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Mercado Religioso: Música Gospel - Olívia Bandeira e Michel Nicolau Netto, Notas de estudo de Música

Uma análise da indústria da música gospel no brasil, enfatizando as racionalidades que guiaram seu desenvolvimento e o consumidor evangélico. Os autores discutem a noção imprópria de 'indústria da música' e a crise na indústria fonográfica, que deve ser entendida em contexto específico. Além disso, eles examinam a relação entre o consumidor evangélico e a música gospel, que opera como um mediador de relações sociais e religiosas. Palavras-chave: música gospel, consumo, indústria da música, indústria fonográfica.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.48, n. 1, p.269-302, jan./jul., 2017
As racionalidades do mercado
religioso: considerações sobre
produção e consumo da música
gospel
Olívia Bandeira
Doutora em Antropologia Cultural pelo Programa
de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Michel Nicolau Netto
Professor do Departamento Sociologia do
IFCH/Unicamp. Doutor em Sociologia pela
Unicamp, com estágio de doutorado na Humboldt
Universität de Berlim, tem pós-doutorado em
Sociologia pela Unicamp, tendo sido visiting
scholar no ILAS/Columbia University, em Nova
Iorque, em 2014.
Introdução
O consumo de produtos gospel desperta a atenção recente das ciências
sociais. A expressão “explosão gospel”, de Magali Nascimento Cunha (2007),
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As racionalidades do mercado

religioso: considerações sobre

produção e consumo da música

gospel

Olívia Bandeira Doutora em Antropologia Cultural pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Michel Nicolau Netto Professor do Departamento Sociologia do IFCH/Unicamp. Doutor em Sociologia pela Unicamp, com estágio de doutorado na Humboldt Universität de Berlim, tem pós-doutorado em Sociologia pela Unicamp, tendo sido visiting scholar no ILAS/Columbia University, em Nova Iorque, em 2014.

Introdução

O consumo de produtos gospel desperta a atenção recente das ciências sociais. A expressão “explosão gospel”, de Magali Nascimento Cunha (2007),

As racionalidades do mercado religioso

parece bem descrever a intensidade desse processo e, de certo modo, a surpresa que ele causa nos analistas. Dessa forma, encontramos na bibliografia explicações para esse fenômeno, desde as ligadas a questões demográficas (o aumento do número de evangélicos no país), até as que apontam para questões mais propriamente culturais (um impulso propriamente religioso ao consumo) ou econômicas (uma suposta mercantilização da religião). Este artigo se insere neste debate. Observando aquilo que entendemos serem os limites dos argumentos até agora apresentados, buscamos contribuir com explicações de caráter mais ligados aos processos propriamente típicos desse mercado. Em outras palavras, buscamos mostrar que há razões internas que apontam para explicações mais abrangentes em relação a esse fenômeno.

Para proceder nossa investigação, é preciso anotar de que perspectiva estamos empregando o termo gospel. Esse termo possui muitos sentidos que variam de acordo com o que se descreve e com as intenções daquele que descreve. Alguns desses sentidos surgirão neste artigo pelos trabalhos de autores com os quais nos interessa dialogar, mas o sentido que nós adotamos propriamente advém da atribuição a ele dado por agentes ligados ao mercado musical denominado de gospel, sendo o consumo musical nosso tema de pesquisa. O termo música gospel é aqui, portanto, uma categoria nativa que se refere a um gênero musical que, como define Simon Frith (1996, p. 76), é “uma maneira de se definir a música em seu mercado ou, alternativamente, o mercado em sua música”.

Dessa forma, podemos propor que o objeto aqui pesquisado deve ser compreendido de duas formas. De um lado, como um fenômeno próprio de um mercado que, portanto, é produzido em relação a outros tantos fenômenos desse mesmo mercado. Ou seja, ao mesmo tempo em que o gospel se insere em uma racionalidade do mercado de música, nele também se diferencia, concorre com outros gêneros, cria seus próprios circuitos, etc. De outro lado, a música gospel está também inserida em uma sociedade mais ampla, na qual os agentes que com o gospel se relacionam estão produzindo sentido, se relacionando socialmente. Essa perspectiva nos leva a observar a dimensão do consumo do gospel para notar

As racionalidades do mercado religioso

(Williamson & Cloonan, 2007, p. 309).

Esse processo de singularização produz uma narrativa de história da indústria da música que desconsidera as diferentes histórias de cada um dos setores. Mais importante, tende-se a produzir essa grande narrativa a partir de um setor, o setor da indústria fonográfica, e a partir do espaço dominante deste setor, as chamadas majors. John B. Thompson (1990, p. 60) afirma que uma das estratégias de dominação que definem formas simbólicas (como as narrativas) como ideológicas é o processo de universalização, no qual o verdadeiro sujeito do processo é confundido com um universo indistinto. Aceitando-se essa definição é possível se dizer que a narrativa sobre a crise recente da indústria da música é uma típica narrativa ideológica. Isso porque essa narrativa, produzida especialmente pela organização internacional representante das gravadoras majors (IFPI – International Federation of Phonographic Industry ), universalizou para todas as indústrias da música uma crise que, em verdade, se referia centralmente às grandes gravadoras da indústria fonográfica. No início de sua briga contra os dispositivos online de distribuição de música, em 2002 a IFPI dizia ser a pirataria “a maior ameaça que a indústria da música enfrenta hoje” (IFPI, 2002, p. 1). De fato, a IFPI lamentou ininterruptamente em seus relatórios entre 1999 e 2012 uma diminuição de faturamento da indústria da música, ignorando que se referia a seus sócios fonográficos. Isso se nota pelo fato de que entre 1999 e 2004 as vendas “em todas as outras indústrias da música estavam aumentando,” (Williamson & Cloonan, 2007, p. 14). Ainda, deve-se lembrar como promotores de música ao vivo, festivais, pequenos vendedores de discos, artistas que dificilmente conseguiam entrar em gravadoras, etc. tiveram seus negócios justamente impulsionados por aquilo que a IFPI chama de pirataria. O que ocorria, em verdade, era uma perda da importância relativa das majors em meio a ampla indústria da música (Nicolau Netto, 2014, pp. 167-202) e não a crise dessa.

Da mesma forma que setores das indústrias da música não confirmavam a narrativa das grandes gravadoras, a música gospel se desenvolvia no Brasil. Duas das razões que se costuma apontar para tanto e que se referem diretamente às

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indústrias da música são: a ampliação do mercado consumidor (pelo crescimento do número de evangélicos no país) e um suposto resguardo moral dos evangélicos que se recusavam a comprar discos piratas.

Essas explicações, contudo, são insuficientes. Em relação ao primeiro argumento, o fator mais importante para o crescimento da demanda por música gospel seria o reflexo do crescimento do número de evangélicos no país, que passou de 5% da população brasileira em 1970 para 9% em 1991, segundo o IBGE, e da diversificação desse segmento com o surgimento de denominações e ministérios voltados para grupos específicos, como “roqueiros, tatuados, surfistas, gays etc.” (Paula, 2008: 39). Se é verdade que o aumento do número de evangélicos aumenta o número de consumidores potenciais da música cristã, esse fator não é suficiente para explicar o desenvolvimento do setor. A base dessa argumentação é relacionar um grupo social com o consumo de determinados produtos. Além de reducionista e imprecisa, como veremos em mais detalhes no próximo item deste artigo, essa argumentação não se comprova com simples observações empíricas. Fosse essa uma relação direta e suficiente, era de se esperar que a diminuição do número de católicos no Brasil levasse à diminuição do consumo de música católica. Contudo, nota-se que não só no meio evangélico, mas também no católico houve um crescimento do mercado de bens culturais religiosos no período. No caso da música, esse crescimento se deu principalmente com os chamados “padres cantores”, como Marcelo Rossi, Reginaldo Manzotti e Fábio de Melo, que ocupam as listas dos maiores vendedores de discos e de DVDs há vários anos seguidos^97.

(^97) Peguemos a lista da ABPD – Associação Brasileira dos Produtores de Discos, que lista os 20 álbuns e os 20 DVDs mais vendidos a cada ano, ao longo da década de 2000. O Padre Marcelo Rossi é o primeiro religioso a entrar na lista, em 2001, e seria o único religioso a ocupá-la até

  1. Já a primeira evangélica a entrar na lista é a cantora Aline Barros, em 2009. Padres cantores e cantores e grupos evangélicos, desde então, ocupam diversas posições no ranking, com destaque para os primeiros. Em 2010, são quatro evangélicos – o Ministério de Louvor Diante do Trono e as cantoras Damares, Ludmila Ferber e Cassiane - e três padres cantores, além de uma coletânea católica e outra evangélica, totalizando 9 dos 20 CDs mais vendidos. Em 2011, duas cantoras evangélicas – Damares e a pastora Ludmila Ferber - aparecem na lista, ao lado de quatro padres cantores. Não há evangélicos entre os 20 mais vendidos em 2012, mas há cinco padres cantores. Em 2013, há quatro padres, uma coletânea católica e um artista gospel – a pentecostal Damares, mais uma vez. Em 2014, mais uma vez temos quatro padres, embora nenhum artista evangélico.

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seu consumidor. Não temos espaço aqui para desenvolver esse ponto, mas essas breves noções são suficientes para demonstrar o problema com a tese apontada.

O que, em verdade, esses argumentos deixam de compreender são as próprias racionalidades das indústrias da música: se em um primeiro momento o gospel se contrapõe às majors e, dessa forma, encontra um caminho mais propício para se desenvolver, em um segundo momento é incorporado também pelas majors , adquirindo novos padrões de competitividade e profissionalização. É isso que queremos explorar agora.

O termo gospel foi popularizado no Brasil no início dos anos 1990, através sobretudo da atuação da Igreja Renascer em Cristo. A igreja havia sido fundada em 1986 pelo casal Estevan e Sônia Hernandes, com foco inicial na participação da juventude e na música^99. Em 1990, inspirados por um mercado que já parecia promissor^100 e por shows de música religiosa que aconteciam com grande sucesso em casas de shows seculares – como o Canecão, no Rio de Janeiro, e a Dama XOC, em São Paulo – Estevan Hernandes e o empresário Antônio Carlos Abudd decidiram fundar uma gravadora e deram a ela o nome de Gospel Records, registrando o termo gospel no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual^101 (Siepierski, 2001). A partir desse momento, de um lado o termo gospel se firmava como aquele que organizava o mercado de música religiosa, se sobrepondo a termos comuns até a década de 1990, como música evangélica. De outro, o termo gospel se pluralizou e a ele se hifenizaram diversos termos da música popular, de sertanejo gospel a rap gospel, algo a que retornaremos no fim deste item. Assim, gravadoras, editoras, lojas físicas e digitais predominantemente tenderam a organizar uma gama variada de produtos musicais sob o gênero gospel.

(^99) Com o passar do tempo, a igreja passou a ter um foco maior nos empresários, segundo pesquisa desenvolvida por Siepierski (2001). 100 Sobre o histórico da música evangélica ainda antes de se chamar gospel, ver: Rosas, 2014; Vicente, 1998. 101 No INPI notamos que a marca Gospel em vigor foi registrada em 1991 pela Gospel Records Industrial. Ver https://gru.inpi.gov.br/pePI/servlet/MarcasServletController?Action=nextPageMarca&page=1. Pesquisa em 10/06/2016.

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O momento de afirmação do gênero gospel no mercado de música coincide com o apogeu da indústria fonográfica ou, mais precisamente, das majors no mundo. Como já mostramos em outro lugar (Nicolau Netto, 2015), é na década de 1990, com a exploração do CD, que as majors atingem o maior faturamento de sua história, mas também um poder incomparável de organização da ampla indústria da música. Essa coincidência explica algumas das bases de comercialização da música gospel, como a mídia mais relevante naquele momento (o CD) e a própria conformação de um gênero geral como ordenador da produção, distribuição e marketing. Contudo, na década seguinte transparecem as diferenças desse gênero e o modo de operação das majors. O sintoma dessas diferenças são claros. Em todos os anos, entre 1999 e 2012, a IFPI declarou retração da “indústria da música”, enquanto o mercado de música gospel celebrava sua expansão. Embora não se possa fiar nos números dos próprios setores econômicos, o crescimento no número de gravadoras que se dedicam à música gospel (na primeira década havia mais de 150 no Brasil^102 ), a criação de festivais dedicados a esse gênero^103 , o estrelato dos artistas demonstram que há razões para essa celebração.

A forma de organização desse mercado é um dos elementos que explicam seu sucesso. Robson de Paula (2008) nota que, enquanto as gravadoras majors adentravam os anos 1990 terceirizando parte de sua produção^104 , as maiores empresas evangélicas se formaram na contramão deste processo, buscando reunir

(^102) Ver: https://juniormacedo.wordpress.com/. Acesso em: 10 de junho de 2016. Dados coletados pelo Robson de Paula (2008) e Magali Cunha (2007) indicam que este número era de 50 na década de 1980 e hoje é de mais de 120 selos e gravadoras. 103 Há inúmeros festivais espalhados pelo Brasil, sendo os mais relevantes: Marcha para Jesus, realizada anualmente em várias cidades do Brasil desde 1993, com destaque para a marcha da capital paulista; Louvorzão, realizado regularmente desde 2008 pela MK Music e Rádio 93 FM no Rio de Janeiro; Clama Bahia, realizado anualmente há dez anos em Salvador; Festival Promessas, realizado pela Rede Globo em várias cidades do Brasil (de 2011 a 2013, aconteceu no Rio de Janeiro e foi transmitido por TV aberta para todo o país, desde então acontece em menor escala em diferentes cidades com transmissão local); Canto pela Paz, promovido anualmente pela Igreja Paz e Vida e rádio Feliz FM em São Paulo desde 2011; Extreme Manaus Gospel, que acontece anualmente desde 2011. 104 Márcia Tosta Dias (2008) mostrou que as majors mantiveram em sua estrutura a direção artística e as áreas de vendas e de marketing, e terceirizaram atividades como a produção musical, estúdios, fábricas e distribuição física.

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precisassem disputar os artistas com outras gravadoras, uma vez que eram seus próprios pastores e ministros. Por fim, esse circuito próprio garantia um espaço privilegiado para o marketing dos produtos fonográficos das empresas gospel, especialmente na forma de apresentações musicais ao vivo. Enquanto na primeira década dos anos 2000 as majors deixaram de investir em shows para a promoção de seus produtos fonográficos, uma vez que isso requeria um dispêndio muito grande devido ao crescimento da espetacularização desses shows e, correspondentemente, de seus custos, as gravadoras gospel podiam aproveitar as apresentações nas próprias igrejas, durante os cultos e em ocasiões festivas ou comemorativas. Esse controle e criação de circuito desembocam, contudo, em algo bastante mais definitivo e, destaca-se, contemporâneo para o sucesso da música gospel. Refirimo-nos à propriedade cruzada de empresas de comunicação. Diversos autores destacam que desde o fim dos anos 1990 as empresas de comunicação buscam ampliar seus negócios criando grandes conglomerados de mídia formados por empresas dedicadas aos mais diversos produtos e serviços de informação e culturais. O exemplo, em nível mundial, que mais se destaca é o grupo News Corp. que controla jornais, canais de televisão, estúdios de cinema e editoras em países como Austrália, Estados Unidos e Grã-Bretanha. No Brasil, contudo, essa propriedade cruzada é própria do nosso sistema de comunicação, algo que não temos tempo de explorar aqui (ver Lima, 2011), e as empresas de música gospel souberam aproveitar bastante bem essa condição. Assim, os conglomerados em que essas gravadoras estão envolvidas podem ser formados também por emissoras de rádio, canais de TV, sites, jornais, revistas, editoras de livros, produtoras e distribuidoras de filmes. Apenas para dar alguns exemplos:

  • Gravadora Graça Music é parte da Igreja Internacional da Graça de Deus, que possui também a Graça Editorial, a Graça Filmes, o jornal impresso e o programa de TV Show da Fé, transmitido em TV aberta para todo o país, a Nossa Rádio (700 AM SP), entre outros;

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  • MK Music é parte do Grupo MK que possui uma rádio (93FM), uma loja virtual, uma editora de revistas e livros;
  • Gospel Records fazia parte do grupo Fundação Renascer, que controla a Rede Gospel de Televisão, a Rádio Gospel FM, e o jornal Gospel News;
  • Central Gospel Music é ligada à editora de livros Central Gospel e ao programa de televisão Vitória em Cristo, apresentado pelo pastor Silas Malafaia e transmitido semanalmente em TV aberta;
  • Line Records é ligada à Igreja Universal do Reino de Deus, que controla a Rede Aleluia, com mais de 60 emissoras de rádio que cobrem 75% do território nacional, o jornal impresso Folha Universal e o programa de TV “Fala que eu te escuto”, veiculado diariamente pela TV Record para todo o Brasil e para outros países através da Record Internacional. Dessa forma, o conteúdo musical produzido pelas gravadoras de música gospel entra em uma rede mediática chamada pela bibliografia especializada pelo termo de convergência. Com esse termo pensa-se no processo pelo qual os produtos culturais passam a ficar disponíveis em várias mídias ao mesmo tempo. Quando isso se dá em um espaço de pouca concentração empresarial, é possível se imaginar uma maior diversidade de ofertas e de escolhas por parte do público (Olswang, 2008). Quando, contudo, se dá em um espaço como esse que estamos descrevendo, a tendência é que o público seja exposto nas mais diversas mídias aos mesmos produtos. Do ponto de vista das empresas fonográficas gospel, isso potencializa imensamente a divulgação de seus produtos, uma vez que a convergência produz uma coincidência dentre os fiéis religiosos e os fãs da música. Abrangendo os espaços físicos em que a música circula (especialmente as igrejas), a convergência entre mídias na música gospel permite que o sujeito que consome um típico bem de salvação em um culto também consuma um típico bem cultural, uma vez que aquele que lhe oferece o primeiro, também lhe oferece o segundo. Dessa forma, a convergência faz com que um tipo de consumo leve a outro, sem que isso possa se resumir a um simples processo de mercantilização da religião. Em verdade, o fiel de fato consome o bem de salvação, mas o faz em um espaço no qual outros bens lhe são oferecidos pela convergência mediática que define esse espaço. Assim, as empresas de música gospel realizam a receita atual das empresas de comunicação, como Apple, Google, etc., da maneira como as majors não foram capazes de fazer até aquele momento.

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A ampliação do mercado gospel para fora do circuito exclusivamente voltado ao setor modifica, é claro, sua estruturação. Neste artigo não teremos oportunidade de tratar desse tema de forma aprofundada, mas é preciso notar que essas mudanças não podem ser explicadas a partir de uma perspectiva determinista. Não é possível afirmar que o gospel modifica o funcionamento das empresas fonográficas, mas é possível observar uma mudança de seu comportamento. Os setores gospel criados nessas empresas levam para elas uma forma de operação já observada nas gravadoras gospel. Conforme relata o diretor da Sony Music Gospel, divisão da gravadora voltada para o segmento, a distribuição da música gospel, mesmo dentro da gravadora, é feita de forma totalmente diferente da distribuição da música secular. A principal diferença, segundo ele, é que a distribuição do gospel é descentralizada, havendo só na Sony um cadastro de cerca de 2 mil lojas para distribuição em todo o país, além das igrejas que são também canais de venda. Já a música secular está cada vez mais concentrada em grandes redes de lojas e grandes sites de vendas^108. Do contrário, contudo, é cada vez mais comum notar uma certa especialização e profissionalização do processo de produção, distribuição e marketing entre as gravadoras gospel, como já se observava nas grandes gravadoras seculares. Em relação à distribuição, hoje se nota que selos e ministérios fazem parceria com as grandes gravadoras para a distribuição nacional e mesmo internacional de seus produtos. É este o caso do Ministério de Louvor Diante do Trono com as gravadoras e distribuidoras Canzion e Som Livre; similar é a parceria, entre empresas gospel, entre a Apascentar Music e a Central Gospel para distribuição. Em relação ao processo de produção e divulgação, observa-se uma racionalidade que inclui o momento certo para lançamentos (observando calendário de festas como o Natal, por exemplo) e um roteiro que articula as etapas da produção com o marketing dos produtos.

(^108) Maurício Soares em enrevista concedida a Olívia Bandeira em 02/11/2011 na sede da Sony Music, Rio de Janeiro.

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Ainda, a própria internet desafia o circuito fechado da música gospel, uma vez que as gravadoras – exclusivamente ou não dedicadas ao segmento gospel – passam a se voltar fortemente para a distribuição e venda de seus produtos em sites de descarregamento de fonogramas digitais, como o iTunes da Apple, e plataformas de streaming, como Deezer e Spotify. O uso intenso das mídias sociais por artistas e gravadoras, como se falará abaixo, também abre necessariamente o circuito da música gospel. Dessa forma, no fim da primeira década de 2000 o mercado de música gospel está estabelecido e se ampliando cada vez mais para empresas que não se dedicam exclusivamente a esse mercado, se beneficiando de uma estrutura de distribuição e de difusão formada por lojas distribuídas por todo o país, milhares de igrejas, centenas de rádios, programas de TV e outras mídias especializadas, além de uma visibilidade conferida pelas mídias não segmentadas. Como podemos apreender da definição de Simon Frith, a configuração dessa música como um gênero musical – a “música gospel” em detrimento de outras categorizações como “música evangélica”, “hinos” ou “corinhos” – foi necessária para sua estruturação no mercado, pois o gênero ajuda a regular o modo como cada mercado funcionará. A definição de gênero pode obedecer a inúmeros conceitos. No caso da música gospel, ele foi agrupado a partir de critérios religiosos e não a partir de características estritamente musicais como ritmo e melodia, por exemplo. Nessa configuração, o conteúdo bíblico das letras é um critério definidor, mas talvez não o mais importante, pois a ele precisa estar associada a declaração de fé de seus autores e intérpretes como cristãos e a declaração de que sua música tem propósitos religiosos. Afinal, existe também a música gospel instrumental e nem toda música que cita Deus ou versículos da Bíblia são consideradas gospel. Assim, configuradas como parte da música gospel essa música é capaz de circular por esse mercado que possui uma estrutura formada tanto pela mídia de massa e grandes cadeias varejistas – que dispõem tanto do gospel quanto do secular – como por centenas de mídias segmentadas e

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propriamente como “cultos”, por outro lado, são aqueles que mais facilidade têm em cruzar fronteiras e atingir um público não evangélico através de mídias e espaços segmentados do rap e do funk. Já nas mídias de massa secular, por exemplo, circulam principalmente aqueles artistas de grande sucesso no mercado, como Aline Barros e Thalles Roberto. Se nesta primeira parte do artigo demonstramos que as dinâmicas do mercado de música gospel são complexas, no próximo item notemos como isso se relaciona na dinâmica do consumo.

A dimensão simbólica do consumo da música gospel

O consumo de produtos gospel gera um desafio às ciências sociais: como relacionar o ascetismo, que caracterizou o protestantismo até pelo menos a segunda metade do século XX, com o consumo, que atravessa as práticas das religiões evangélicas contemporâneas. A maior parte das análises disponíveis buscou demonstrar algo que podemos entender como uma decadência dos valores religiosos, cada vez mais substituídos por valores tipicamente de mercado. Ou seja, ao invés dos preceitos doutrinários, o que moveria as religiões protestantes e, por consequência, seus praticantes, se relacionaria com ideias tais quais competitividade, lucro, hedonismo, etc. A isso, os autores chamaram de “mercantilização da religião”. Vejamos alguns desses argumentos na produção acadêmica sobre a música gospel. Para Joêzer Mendonça, as mudanças na música cristã refletem mudanças doutrinárias nas igrejas evangélicas. A música gospel se insere nesse contexto que refletiria, segue o autor, o fenômeno pelo qual o pentecostalismo e o neopentecostalismo proliferaram fazendo concessões da doutrina e do sagrado às “culturas seculares”, visando manter ou conquistar novos adeptos diante do pluralismo religioso:

Essa competição entre as igrejas está situada na lógica de mercado capitalista, em que o posto da instituição de sucesso é alcançado por meio de busca incessante pelos melhores resultados numa sociedade marcada pela desigualdade de oportunidades. Essa competição não inclui necessariamente a totalidade das religiões no dogma capitalista de livre mercado. Contudo,

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muitas denominações que buscam o aumento de filiados em conjunto com o desejo de maior visibilidade social fazem concessões aos gostos e preferências de seu público-alvo. (MENDONÇA 2014: 43)

Mendonça segue os argumentos do influente trabalho de Magali Nascimento Cunha sobre o fenômeno que a autora denominou de “a explosão gospel” (Cunha 2007). Para a autora, a música gospel faz parte de transformações mais amplas no cenário religioso brasileiro, constituindo-se como parte da cultura evangélica contemporânea que ela denomina de “cultura gospel”. Assim, mesmo que tenha começado com o crescimento das igrejas pentecostais e neopentecostais no Brasil, nos anos 1980, essa cultura faria parte hoje do “modo de ser” dos evangélicos em geral, uma vez que muitas igrejas, mesmo as históricas^110 , passaram a ser influenciadas por essas transformações. A cultura gospel que determina o “modo de ser” dos evangélicos brasileiros na atualidade é definida pela autora como uma cultura híbrida no sentido de manutenção da tradição religiosa a partir da modernização de costumes como o modo de se vestir e de se expressar através da música e do corpo. Essa “modernização superficial”, na visão da autora, seria a subordinação da religião e da religiosidade aos ditames do capitalismo global, através da “consagração” do consumo, do entretenimento e da mídia.

(^110) As igrejas históricas são consideradas aquelas oriundas da reforma protestante que vieram para o Brasil com os imigrantes, além daquelas trazidas pelos missionários norte-americanos no início do século XX (entre as principais: Luterana, Anglicana, Presbiteriana, Metodista e Batista). Já as pentecostais, com ênfase nos dons do Espírito Santo, teriam sido fundadas no Brasil em três épocas diferentes ao longo do século XX, e incluiriam uma diversidade de denominações como as Assembleias de Deus, Presbiteriana Renovada, Batista Renovada. A noção de neopentecostal é mais imprecisa. Contudo, em geral se referem a igrejas evangélicas fundadas depois dos anos 1970, como Igreja Universal do Reino de Deus, Renascer em Cristo, Sara a Nossa terra e Bola de Neve. O importante aqui é frisar que o meio acadêmico utiliza diferentes tipologias nos estudos sobre os evangélicos no Brasil (para outras classificações, ver Campos 1997) e que, se essas tipologias funcionam para a análise das igrejas em termos históricos, institucionais e doutrinários, dificilmente são válidas para a classificação dos evangélicos enquanto crentes ou fiéis, uma vez que eles podem mudar de denominação ou experimentar várias delas, independente da classificação em que se encaixem. No Censo do IBGE, por exemplo, 60% dos evangélicos se declaram pentecostais, 18,5% evangélicos de missão e 21,8% se declaram como “evangélicos não determinados”. A classificação também não é válida para suas práticas de consumo, como veremos neste texto.

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das pessoas que “buscam em seu tempo livre uma compensação, um alívio” diante do “esforço para sobreviver num sistema cuja lógica é excludente” (Cunha 2007: 137). O consumo é, então, visto como ditado exclusivamente por uma lógica de mercado, que privilegiaria alguns ritmos musicais populares, como o sertanejo e o rock em detrimento de ritmos considerados mais sérios ou profundos. Esses ritmos populares fariam parte da lógica da cultura do entretenimento, que enfatizaria elementos sensoriais e emocionais, em oposição à razão e à “modernidade”. Existe aqui a produção de um hierarquia de gosto que é comum nas análises sobre a música popular. Este pensamento fica mais claro na análise de Joêzer Mendonça:

Ao ouvirmos as canções gospel, ouvimos também a diversidade estética e a diferença de densidade na expressão dos temas cristãos. O funk e o axé-pop gospel assimilam referenciais dos seus equivalentes musicais seculares, como a dança e a menor preocupação com a densidade da letra, o que pode ser tomado como base de uma religiosidade de estímulo ao entretenimento e à corporalidade. Com o intuito de também comunicar as mensagens do evangelho, os cantores e compositores que convertem aqueles gêneros para o uso religioso não raro incorrem em vulgarização das doutrinas cristãs. O rap gospel, a despeito da marginalização que lhe é relegada nos círculos religiosos e seculares elitizados, reflete a interação entre a cultura politizada do hip hop e a cultura moral da religião. Mesmo atrelado à espetacularização da religião e aderindo a fórmulas pop de entretenimento juvenil, o hip hop gospel, do figurino ao canto falado, confere às performances visuais, gestuais e vocais um sentido de missão que conjuga esclarecimento político e noção conservadora de santidade pentecostal. (MENDONÇA 2014: 187-8).

Dessa forma, o argumento adiantado até aqui por esses autores indica que a relevância do consumo da música gospel na contemporaneidade passa, em primeiro lugar, pela permissividade ao consumo na sociedade contemporânea que acaba por redefinir as doutrinas religiosas em sua função. O exemplo maior dessa permissividade é encontrado na Teologia da Prosperidade, definida por Leonildo Silveira Campos como uma “imersão na sociedade em sua dimensão econômica” (Campos 1997: 375), pela qual é permitida a busca dos crentes por riqueza material e ascensão social, sendo aceita a ideia de que a prosperidade é reflexo de Deus na vida do crente. Em segundo lugar, as práticas religiosas que, portanto, só

As racionalidades do mercado religioso

podem se realizar pelo consumo em tal sociedade, são mais superficiais, atingindo, por isso, um número maior de possíveis fiéis. A importância dada ao consumo por essa perspectiva, ironicamente não permite que esse seja compreendido na inteireza das relações sociais em que está inserido. Os autores aqui citados parecem antever uma simples dicotomia entre religião e consumo, sendo possível separar de um lado elementos ligados ao profundo e ao simbólico e de outro ligado ao superficial e ao econômico. Uma vez que o consumo e a religião se encontram na sociedade contemporânea haveria a “colonização” dessa por aquele, no sentido em que o consumo subordina a ele seus elementos fundamentais. O consumo, portanto, é somente visto pelo negativo, por aquilo que nega. Desconsidera-se, com isso, que a relação entre consumo e religião produz novas formas de práticas religiosas, mas também de consumo. Independente do julgamento moral dessas formas, o que importa é não apenas o que se nega, mas também o que se produz socialmente. Propomos que é nesse aspecto produtivo da relação entre consumo e religião na sociedade contemporânea onde encontramos explicações eficazes que nos ajudam a compreender a relevância atual da música gospel. Para tanto, propomos investigar o consumo dessa música através de dois aspectos. Em primeiro lugar, pela noção do consumo como forma de unificação e diferenciação. Em segundo lugar, o consumo gospel será compreendido como mediador das relações dos fiéis e a sociedade mais ampla^111. Para tanto, usaremos dados de trabalho de campo realizado em igrejas, feiras e lojas de discos, assim como os dados etnográficos das redes sociais de artistas da música gospel^112. As complexidades do mercado que descrevemos no item anterior são mais bem apreendidas a partir dessa abordagem. Nossa primeira entrada no tema aponta o consumo gospel como uma forma de unificação e classificação de práticas em torno da religiosidade. Para

(^111) Escolhemos, neste artigo, nos ater a essas dimensões do consume religiosos pelo limite de espaço. Com isso, queremos dizer que nosso trabalho de forma alguma é exaustivo. Contudo, também afirmamos que aquilo que aqui apresentamos são pode estabelecer uma base a partir da qual se pode ter uma compreensão mais completa do problema abordado. 112 Os dados fazem parte da pesquisa para tese de doutorado realizada por Olívia Bandeira entre março de 2012 e dezembro de 2015.