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Este artigo propõe analisar o discurso do deputado jair bolsonaro para entender como contribuiu para a construção do campo da direita no brasil. O texto destaca a importância dos discursos na formação de grupos políticos e analisa as narrativas e práticas atribuídas aos campos da esquerda e da direita pelo parlamentar. Além disso, discute a trajetória das direitas no brasil, a unidade e fragmentação do campo da direita e a relação entre a direita envergonhada e o centrismo invertebrado.
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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Martin Egon Maitino *
Resumo
Com base nas considerações de Rémond (1982) sobre a existência de múltiplas direitas heterogêneas, de desenvolvimentos contingentes aos contextos e especificidades históricas, Morresi (2015) trabalha a direita como um campo político no qual diferentes formações se sobrepõem e interagem cooperativa e competitivamente. Partindo dessa concepção, o artigo propõe-se a analisar o discurso de um dos principais polos da direita contemporânea no Brasil – o deputado Jair Bolsonaro. Entendendo as narrativas e discursos como importantes mecanismos para a construção e conformação de grupos políticos, busca-se compreender como esse ator contribui para a constituição do campo da direita no país através de suas operações discursivas: quais os valores, atores e práticas atribuídos aos campos da esquerda e da direita pelo parlamentar e quais os temas que julga mais relevantes na conformação da disputa política. Essas questões são abordadas a partir de análises quantitativas e qualitativas de pronunciamentos de Bolsonaro. Como material primário, foram usados seus discursos na 54ª e 55ª legislatura para análises quantitativas e selecionadas entrevistas e declarações para análises qualitativas. Os resultados apontam para uma baixa relevância de questões econômicas no discurso do parlamentar, com maior ênfase em questões de cunho moral e na oposição aos governos petistas. Percebe-se uma grande valorização do período do regime militar e uma reatualização do discurso anticomunista, vinculando-o ao antipetismo. Esses resultados são, em seguida, discutidos à luz de estudos sobre o campo nas décadas de 1980 e 1990 (Pierucci 1987) e hoje (Chaloub e Perlatto 2015).
Nos últimos anos, verifica-se um forte crescimento de discursos políticos conservadores no Brasil (Chaloub e Perlatto 2015; Miguel 2016), provocando reações tanto no campo da esquerda como da direita. A ascensão do que alguns caracterizaram como “nova direita”, associada a uma série de movimentos conjunturais no Brasil e no mundo, tem renovado o interesse no estudo das formações políticas de direita (Velasco e Cruz; Kaysel e Codas 2015).
Como é comum com termos centrais no debate político, ainda que os conceitos de “esquerda” e “direita” sejam usados de forma relativamente consistente, há grande controvérsia com relação a definições conceituais precisas (Velasco e Cruz 2015). Essas controvérsias não se restringem ao âmbito do debate público, gerando problemas para aqueles que desejam estudar academicamente os campos da esquerda e da direita política: como dividi-los e operacionaliza-los empiricamente?
“compiten entre sí por el dominio del espacio pero (...) son capaces de actuar de forma solidaria cuando el campo se encuentra bajo el asedio de fuerzas externas” 3.
Em uma proposta similar, Pierucci (1987, p. 40) entende a extrema direita como “constelações”, nas quais as diferentes posições “se interpenetram, reagem uma sobre a outra, se misturam às vezes, se fagocitam sempre, aqui se enriquecem, ali se anulam, aqui aparecem e ali se escondem, feito massas estelares, distintas, mas nem por isso menos nebulosas”. Analisando entrevistas semi-estruturadas na cidade de São Paulo, o autor busca identificar “famílias” de pensamento a partir de “ideias-chave” e “clivagens por campos semânticos”.
Seguindo essa linha e compreendendo as narrativas e discursos como elementos importantes nos processos de construção e conformação de grupos políticos (Mayer 2014), é de se esperar que a face discursiva das diferentes interações no campo da direita seja de grande relevância para o estudo desse agrupamento. Se, como afirma Chilton (2004, p. 5), “ [i]t is shared perceptions of values that defines political associations. And the human endowment for language has the function of ‘indicating’ – i.e., signifying, communicating – what is deemed (…) right and wrong within that group ”, os discursos de políticos da direita brasileira devem ser um material central para estudá-la, sinalizando os valores que sustentam as coalizões, as fronteiras entre grupos e as divergências entre diferentes formações de direita.
Evidentemente, não se propõe aqui uma análise geral dos discursos no interior do campo da direita no Brasil, o que fugiria ao escopo desta pesquisa e suscitaria problemas tanto de representatividade como de viabilidade. A proposta aqui é a de focalizar as falas de um ator de grande destaque na direita brasileira, um “polo” no campo: o deputado federal Jair Bolsonaro – o terceiro deputado federal mais votado em 2014 e segundo colocado em pesquisas de intenções de votos para a eleição presidencial de 2018. Como destaca Mayer (2014), os líderes políticos não devem ser encarados como meros transmissores de valores do grupo, mas também como construtores de narrativas, buscando moldar as crenças e atitudes comuns. Nesse sentido, o estudo, de forma exploratória, busca observar os tensionamentos e movimentos que o deputado
(^3) Essa abordagem parece condizer com o trabalho de Kaysel (2015, p. 50), para quem “as heterogêneas forças que hoje parecem constituir um bloco homogêneo, não só não o fazem, como pertencem a diferentes tradições, frequentemente contrapostas, cuja compreensão me parece indispensável para quem deseje entender a crise contemporânea vivida pelo país ”.
realiza discursivamente no interior e no exterior do campo, ajudando a conformar o que se entende por “ser de direita” – e, por extensão, “ser de esquerda” - no Brasil de hoje.
O trabalho está estruturado em quatro partes. Primeiramente, são discutidas algumas noções sobre o campo da direita no Brasil, dando destaque ao fenômeno da “direita envergonhada”. Em seguida, é apresentada a metodologia usada no estudo para a análise empírica. Depois, são analisados os resultados dessa análise. Por fim, os resultados são discutidos à luz de estudos anteriores sobre o campo.
1. A “direita envergonhada” e o campo da direita no Brasil
Como destaca André Kaysel (2015), a trajetória das direitas no Brasil tem longa história, estando intimamente relacionada não só a correntes ideológicas como também a movimentos da conjuntura política doméstica e internacional. Assim, além de variações relativas às ambiguidades e diferenças internas entre os campos conservador, liberal e autoritário, a unidade e a fragmentação do campo da direita no Brasil também foram fortemente afetadas por movimentações gerais do campo político – o varguismo durante a Segunda República; o programa de João Goulart antes do Golpe de 1964; o rechaço à ditadura militar durante a década de 1980.
No que se refere à conformação do campo da direita no Brasil pós- redemocratização, um fenômeno merece atenção especial: a chamada “direita envergonhada” – isto é, a direita que não se assumia como tal. Assim, embora tanto estudos acadêmicos como parlamentares não conservadores fossem capazes de localizar os partidos de forma consistente em um eixo esquerda-direita, “os membros dos partidos conservadores diminuem a importância da ideologia, recusam-se a responder ou se autoclassificam em posições distantes da realidade” (Mainwaring, Meneguello e Power 2000, p. 43).
A grande continuidade de partidos e grupos políticos que haviam apoiado o governo autoritário associada ao desprestígio do regime militar são apontados como fatores importantes para a explicação do fenômeno (Pierucci 1987; Souza 1988; Madeira e Tarouco 2010; Caldeira Neto 2016). Se, à época, “o apoio à ditadura era a principal baliza que definiria o pertencimento à direita” (Kaysel 2015, p. 68), tornava-se necessário dissociar-se também do rótulo de “direita”, sendo comum a auto-definição de
regime militar. Tampouco acompanhou a movimentação do campo na década de 1990, rechaçando o neoliberalismo 6. No entanto, o grande crescimento de sua popularidade nos anos recentes contribuiu para torna-lo uma voz importante no campo antipetista – ainda que isso cause constrangimento a outras lideranças^7. Nesse sentido, é provável que as interações entre a direita “sem vergonha”, representada pelo discurso de Bolsonaro e de outros líderes da “nova direita”, e a direita tradicional tenham um efeito significativo sobre o campo da direita no Brasil – seja ganhando espaço ao ter aspectos de seu discurso incorporado pela direita tradicional, seja promovendo uma cisão interna no campo.
2. Método
Como discutido anteriormente, o objetivo deste trabalho é observar como Jair Bolsonaro compreende o campo da direita no Brasil – quais os valores que o deputado ressalta como representativos, os temas que pauta como centrais e as linhas de cisão que visualiza interna (entre grupos de direita) e externamente (em relação ao campo da esquerda). Essas questões são abordadas a partir de análises quantitativas e qualitativas de pronunciamentos de Bolsonaro.
Para reduzir eventuais problemas de representatividade e de viés na seleção dos discursos, a análise geral dos temas abordados pelo deputado foi realizada a partir de métodos quantitativos de análise de conteúdo – a contagem de palavras e bigramas. Para isso, foram coletados os pronunciamentos de Bolsonaro em plenário entre 01/01/2011 e 31/05/2017 e contabilizados tanto os termos presentes nos discursos como os temas de indexação no sistema da Câmara dos Deputados 8. A amostra corresponde a 430 pronunciamentos e 1881 temas de indexação.
Esse tipo de análise, no entanto, apresenta limitações, impedindo análises mais aprofundadas das narrativas e das construções presentes nos discursos estudados. Dessa forma, o estudo baseou-se na análise do discurso político (Chilton 2004) como forma de
(^6) Em episódio famoso, à época da privatização da Vale do Rio Doce, o deputado afirmou que o então presidente Fernando Henrique Cardoso deveria ser “fuzilado” por sua “traição à pátria” (FGV 2017) 7 Um exemplo ilustrativo são os relatos das tentativas de Bolsonaro de participar da campanha de Aécio Neves nas eleições de 2014, tendo suas sugestões ignoradas e sendo impedido de subir em um carro de som. Ver Moraes 2014; Rede Brasil 2015. 8 As análises quantitativas foram realizadas em R, usando os pacotes rvest e tidytext.
observar outras dimensões da linguagem, como as interações entre indivíduos e a troca de imagens sobre o mundo. Com esse intuito, a análise quantitativa foi complementada pela análise qualitativa de um corpus mais reduzido de textos. Os discursos foram selecionados de modo a garantir que a amostra apresentasse tanto variação temporal como de gênero textual, como pode ser observado na tabela 1.
Tabela 1. Textos usados na análise qualitativa
Texto Ano Gênero textual Posição Entrevistador
“O Povo Quer Saber” - CQC, TV Bandeirantes 2011 Entrevista TV/Entretenimento
N/A [entrevistadores diversos, gravados]
Entrevista a leitores, Revista Época 2011 Entrevista Imprensa N/A [entrevistadores diversos, por escrito]
Brasil em Discussão , TV Record 2012 Entrevista TV Confrontação
Entrevista Coletiva: Candidatura à Presidência da Comissão de Direitos Humanos
2014 Entrevista Coletiva Confrontação
“Dois dedos de prosa” - Programa do Ratinho , SBT 2014 Entrevista TV Misto
Agora é Tarde - TV Bandeirantes 2014 Entrevista TV/Entretenimento
Confrontação
Entrevista a Marcelo Moraes, Estado de S. Paulo 2014 Entrevista Imprensa N/A [poucas perguntas, difícil classificar]
Pronunciamento no plenário em 09/12 2014 Discurso Plenário N/A
Entrevista a Alexandre Frota 2015 Entrevista TV Abertura
Voto no impeachment de Dilma Rousseff 2016 Discurso Plenário N/A
Entrevista a Thais Bilenky, Folha de S. Paulo 2017 Entrevista Imprensa Confrontação
Textos do site pessoal do deputado --- Website N/A
3. Resultados
Os resultados obtidos foram separados em quatro subseções. Primeiramente, são apresentados os temas mais salientes na agenda do deputado. Em seguida, é discutida a narrativa de Bolsonaro sobre o período da ditadura militar e sua centralidade para a forma como concebe os campos da direita e da esquerda no país. A terceira subseção
Analisando os principais temas abordados nos pronunciamentos de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, chamam atenção dois grandes grupos: as questões relativas às atividades militares (“defesa”, “militar”, “Comissão Nacional da Verdade”, etc.) e aquelas diretamente referentes ao governo de Dilma Rousseff (“presidente da república”, “Dilma Rousseff”, “PT”, etc.). A tendência se mantém quando se adentra o conteúdo dos discursos - os dois bigramas (grupos de duas palavras seguidas) mais frequentes são, respectivamente, “Dilma Rousseff” e “Forças Armadas”. O forte destaque dado a críticas à presidente e a seu partido é coerente com a ideia de que o antipetismo ocuparia um espaço central no discurso da direita. A análise de conteúdo, no entanto, permite compreender melhor o teor das críticas do deputado ao governo: as expressões “direitos humanos”, “kit gay”, “maioridade penal” e “bolsa família” apontam para uma disputa em torno de políticas públicas específicas, fortemente associadas à ideia de políticas “de esquerda”^10.
Gráfico 2. Bigramas mais frequentes nos pronunciamentos de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados (2011-2017)
(^10) Esses temas também aparecem frequentemente quando o deputado possui a chance de expressar o que considera mais importante na agenda política ou em sua trajetória. Como um exemplo, ver a descrição de sua biografia em seu site pessoal: “ Jair Bolsonaro é conhecido por suas posições em defesa da família, da soberania nacional, do direito à propriedade e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Suas bandeiras políticas são fortemente combatidas pelos partidos de ideologia esquerdista. Em seus mandatos parlamentares, destacou-se na luta contra a erotização infantil nas escolas e por um maior rigor disciplinar nesses estabelecimentos, pela redução da maioridade penal, pelo armamento do cidadão de bem e direito à legítima defesa, pela segurança jurídica na atuação policial e pelos valores cristãos. ” (Bolsonaro 2017)
Nota-se, portanto, além de uma forte presença de temas caros à corporação militar – o núcleo de sua base eleitoral original^11 – uma estratégia de confrontação com o governo, ressaltando as figuras da presidente Dilma Rousseff, de seu partido e do Ministro da Defesa, Celso Amorim. É interessante observar que, ao contrário do que ocorre com outros partidos da direita, a crítica ao governo não está centrada em temas econômicos, mas em questões que, como será discutido mais adiante, o deputado enquadra como morais ou de segurança, ameaças à “família brasileira” e à nação.
3.2 As narrativas sobre o regime militar
“ Rafinha : Essa manchete o senhor assina embaixo: “Dilma Rousseff não foi torturada”? Bolsonaro : Mentira dela! A grande maioria não... alguns foram, eu não tenho dúvida disso. Até porque quando você precisa de informações em tempo real – e esse pessoal não tava aqui de brincadeira. Eles não tavam na rua, Rafinha, pedindo ‘eu quero, eu quero o fim da corrupção’ – que
(^11) De acordo com o Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro , o sucesso eleitoral de Jair Bolsonaro teria se dado por sua projeção nos meios militares e pelo voto de “suas bases eleitorais na Vila Militar e em algumas zonas de Resende” (FGV 2017).
mesma forma, as alegações de tortura seriam sobredimensionadas, pois “qualquer vagabundo preso diz que foi torturado”^21.
A legitimação da ditadura militar permite que o regime seja reivindicado enquanto modelo a ser seguido, contrastando-o com o período da Nova República – o qual tem, muitas vezes, suas credenciais democráticas questionadas. Constrói-se, assim, uma imagem idílica e idealizada dos governos militares, “um período de pleno emprego, segurança, liberdade e respeito”^22 , no qual as “autoridades (...) exerciam a autoridade sem enriquecer” 23. Esse quadro se contraporia ao período contemporâneo, marcado pela corrupção, pela imoralidade, pela insegurança e até mesmo pela “maior taxa de desemprego do mundo” 24. Além de associar o período democrático com a corrupção e a ineficiência dos serviços públicos, Bolsonaro destaca as conexões entre as lideranças políticas de esquerda no período pós-1988 e a luta armada no período militar. Dessa forma, reforça sua narrativa sobre a “falsidade” da democracia petista 25 , uma “‘democracia’ [...] governada por ‘líderes’ que idolatram “democratas” como Fidel Castro, Hugo Chávez, Ahmadinejad e Khadafi” 26.
3.3 Inimigos e Demarcações
“Fala do teu Governo, o Governo mais corrupto da história do Brasil! Dilma Rousseff. Dilma Rousseff. Deve estar envergonhada, sim, S. Exa., por ter roubado só 2,5 milhões de dólares da casa do Ademar. Agora são bilhões da PETROBRAS. Foi Presidente do Conselho de Administração, Ministra de Minas e Energia, Chefe da Casa Civil, é Presidente da República e não sabe de nada! Quantas dezenas de milhares de pessoas morrem por causa desse dinheiro desviado para o seu partido, para a sua causa?” (Bolsonaro 2014b)
(^21) Ver TV Bandeirantes 2014. (^22) Ver Época 2011. (^23) Ver TV Bandeirantes 2011. (^24) Ver SBT 2014. (^25) É interessante notar que, nos primeiros anos do regime democrático, Souza (1988, p. 584) destaca que os setores conservadores também atribuíam à esquerda uma “valorização retórica da democracia”. 26 Ver Época 2011.
A continuidade entre a esquerda guerrilheira do período autoritário e a contemporânea ocupa um lugar importante na forma como Bolsonaro descreve o campo político do Brasil democrático. Ao ressaltar essa ligação, o deputado projeta sobre a disputa política contemporânea as clivagens da Guerra Fria e do período militar, reatualizando o anticomunismo e elementos da Doutrina de Segurança Nacional.
Por cima dessa clivagem - opondo comunismo, autoritarismo e fragmentação a capitalismo, democracia e unidade nacional – o deputado constrói um discurso pautado no antipetismo. O Partido dos Trabalhadores é reconhecido como o eixo central da política nacional e, portanto, como seu principal inimigo^27. As lideranças petistas seriam marcadas pela imoralidade e pelo desrespeito à propriedade privada^28 , o que seria compartilhado por sua militância 29. São ressaltados, ainda, os vínculos internacionais do PT com movimentos de esquerda da América Latina 30 , fazendo referências ao “Foro de São Paulo” 31 - conferência de partidos esquerdistas da região e objeto frequente de teorias conspiratórias da direita brasileira (Chaloub e Perlatto 2015).
Nesse contexto, as referências a Cuba servem como um símbolo e uma evidência da continuidade do ideário comunista 32. O passado guerrilheiro das lideranças esquerdistas – em especial, o de Dilma Rousseff – contribui para deslegitimar as ações do governo, acusando-o de revanchismo e de conivência com a criminalidade 33.
(^27) Ver Moraes; Rede Brasil 2015. Em entrevista ao jornal Estado de São Paulo, Bolsonaro atribui a maior parte dos votos de Aécio Neves ao antipetismo, vislumbrando nesse fenômeno um espaço para seu crescimento (Moraes 2014). 28 Nesse ponto, são ilustrativas as conexões entre ações da luta armada como roubo de bancos e assassinatos e fatos mais recentes, como escândalos de corrupção e o assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel. Ver TV Record 2012; Bolsonaro 2014b. 29 Um exemplo ilustrativo pode ser encontrado em Rede Brasil (2015): “Mostra quem é o PT. Você conhece algum petista empresário, comerciante, agricultor, empreendedor? Não tem. Eles vêm de movimentos... sindicais ou da ociosidade. Por que que o PT detesta a propriedade privada? Porque eles nunca trabalharam.” 30 Vale notar que esse vínculo é associado também a um vínculo com o crime internacional, como se observa na interpretação do deputado sobre a Academia de Defesa da UNASUL: “Este agora na UNASUL se reunindo com a escória da América Latina, tratando, entre outras coisas, da abertura do espaço aéreo para os países da UNASUL. Cuba não faz parte deles, mas está no bolo. Além de tráfico de drogas, há tráfico de armas e munições!” (Bolsonaro 2014b) 31 32 Ver Bolsonaro 2016. Ver TV Bandeirantes 2011; Época 2011; TV Record 2012; SBT 2014; TV Bandeirantes 2014; Bolsonaro 2014b. 33 Ver Época 2011; TV Record 2012; SBT 2014; Bolsonaro 2014b.
Os valores sob ataque: os direitos humanos e os direitos da maioria
“Se lutar para impedir a distribuição do kit-gay nas escolas de ensino fundamental com a intenção de estimular o homossexualismo, em verdadeira afronta à família é ser preconceituoso, então sou preconceituoso, com muito orgulho.” (Época 2011)
Assim como atribui à esquerda a tentativa de “dividir a nação” e “desgastar” seus valores, a disputa política é associada a um embate no campo moral. Assim, a baixa qualidade dos serviços públicos – em especial, da educação e da segurança pública – é relacionada ao fim da ditadura militar, quando se teria perdido o respeito às autoridades e a disciplina 43. Da mesma forma, muitos dos valores defendidos pelo deputado, “reflexo do pensamento da maioria das famílias honestas brasileiras” 44 , estariam sendo atacados pelas políticas da esquerda no governo.
A principal aplicação dessa narrativa aparece nas políticas de direitos humanos, entendidas como políticas de proteção a minorias. Para o deputado, as pessoas teriam sido “pervertidas” a acreditar que “direitos humanos é defender minoria”, quando o correto seria “brigar para que todos nós sejamos iguais perante a lei” 45 – isto é, evitar as divisões, pois “o país é um só”^46. Ressignificando a relação entre “minoria” e “maioria” no contexto das políticas de Direitos Humanos, Bolsonaro alude aos princípios majoritários. Defende, assim, que “a política é o contrário”, isto é, “minoria tem que se calar, se curvar à maioria”^47.
A política atual, exemplificada nos casos das políticas de educação sobre gênero e orientação sexual e de segurança pública, seria marcada por uma lógica invertida. Assim, “uma minoria de marginais aterroriza a maioria de pessoas decentes”^48 e
(^42) Ver Bilenky 2017: “Sou acusado de tudo, só não de corrupto” (^43) Ver Época 2011 (^44) Ver Bolsonaro 2017. (^45) Ver Bolsonaro 2014a. (^46) Ver Rede Brasil 2015. (^47) Ver Bolsonaro 2014a. (^48) Ver Bolsonaro 2014a.
“assassinar um heterossexual é menos grave que matar um homossexual”^49. Essa inversão aparece também na leitura de que o país teria “leis demais” 50 , interferindo em terrenos que deveriam estar fora do alcance estatal, como a família 51. No entanto, o que poderia ser à primeira vista confundido com uma concepção liberal de Estado mínimo pode ser também interpretado como uma crítica às restrições legais ao aparato de repressão estatal 52.
Assim, o “desgaste dos valores familiares” 53 e a “lavagem cerebral em nossas crianças por meio de ações de forte apologia ao sexo precoce” 54 fariam com que o país caminhasse rumo à anarquia 55 , pois sem a preservação da família “uma nação simplesmente ruirá” 56. A defesa de direitos para homossexuais seria uma demanda por privilégios 57 e a discussão de temas como homofobia nas escolas uma agenda voltada a “estimular nossos filhos a ser homossexuais”^58 e, “demagogicamente”, que “deviam se orgulhar dessa condição”^59.
Além disso, a defesa de “marginais como se fossem excluídos da sociedade”^60 dificultaria o combate ao crime e até mesmo recompensaria o “vagabundo” 61. Nesse sentido, as soluções para a segurança pública no país passariam pelo endurecimento de penas, pela redução da maioridade penal e pelo uso de “métodos enérgicos” no combate ao crime 62. A prova da eficácia do endurecimento das penas no combate à criminalidade seria apontada pelo comportamento dos próprios criminosos no país: “o pessoal defende o menor porque diz que ele não tem consciência do que ele faz. Agora eu te pergunto: por que que ele não rouba na favela? Por que que não assalta na favela? Sabe por que?
(^49) Ver Época 2011. (^50) Ver Moraes 2014. (^51) Essa questão aparece frequentemente nas discussões sobre o chamado “kit gay” e a “lei das palmadas”. Ver, por exemplo, TV Record 2012; Rede Brasil 2015. 52 Essa questão fica patente quando se observa a forma como a ideia das “leis demais” era enquadrada pelo deputado no passado: “Também no mesmo ano, voltou a provocar polêmica ao defender o retorno do regime de exceção e o fechamento temporário do Congresso Nacional. Alegava o deputado que a existência de muitas leis atrapalhava o exercício do poder e que, ‘num regime de exceção, o chefe, que não precisa ser um militar, pega uma caneta e risca a lei que está atrapalhando’” (FGV 2017) 53 54 Ver Bilenky 2017. 55 Ver Bolsonaro 2017. 56 Ver Bilenky 2017 57 Ver TV Bandeirantes 2011. 58 Ver Bolsonaro 2014a. 59 Ver Época 2011. 60 Ver Época 2011. 61 Ver Bolsonaro 2014a. 62 Ver SBT 2014. Ver, por exemplo, Bolsonaro 2014a; SBT 2014; Moraes 2014; Bilenky 2017.
O que, de fato, parece novo na “nova direita” contemporânea é sua disposição a “dizer seu nome”, abandonando os rótulos de “centro” e o discurso da “pós-ideologia”. Ao colocar-se como direita “sem vergonha”, com coragem de “dizer o que pensa”, Bolsonaro apresenta-se como exceção em meio aos políticos conservadores do establishment. Como os intelectuais estudados por Chaloub e Perlatto (2015), Bolsonaro coloca o conflito como base de sua construção e mesmo de sua identidade política, de onde se origina a centralidade do antipetismo. Ao fazê-lo, reatualiza seu discurso, enquadrando as políticas petistas em chaves conceituais usadas à época do regime militar.
No entanto, observando as diferenças internas no campo da direita radical no Brasil, que une anticomunistas, ultraliberais e fundamentalistas religiosos (Miguel 2016), é difícil imaginar sua coesão sem a presença de um inimigo comum. Embora a centralidade da questão moral e da família no discurso de Bolsonaro favoreça sua ponte com a direita religiosa, sua ligação com os liberais é mais complexa.
Nesse sentido, o relativo silêncio do deputado sobre questões econômicas é significativo, apontando para uma tensão mais profunda. Como a direita popular descrita por Pierucci (1987), Bolsonaro – ecoando a política nacional- desenvolvimentista do período militar – vê a intervenção estatal na economia e na sociedade com bons olhos. No entanto, para habilitar-se como líder em um campo definido, desde os anos 90, pela adesão ao neoliberalismo, Bolsonaro precisa se credenciar como um “liberal autêntico”. Independentemente da “solução” encontrada pelo deputado para esse problema, a forma como essa tensão se resolverá parece central para compreender os rumos da direita radical no país.
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