Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Comparando a Formação de Advogados no Brasil e na França: Um Estudo da Profissionalização, Manuais, Projetos, Pesquisas de Direito

Este ensaio explora o caminho institucional para se tornar um advogado no brasil e na frança, comparando as estruturas de formação e as expectativas e obrigações em torno da profissão de advogado em ambos os países. O texto também aborda a organização das faculdades de direito, a preparação para exames e a formação profissional.

O que você vai aprender

  • Quais são as implicações da formação profissional de advogados em ambos os países?
  • Quais são as exigências e expectativas em torno da profissão de advogado em cada país?
  • Como a preparação para exames e concursos afeta a formação de advogados?
  • Quais são as semelhanças e diferenças na formação de advogados no Brasil e na França?
  • Qual é a importância da organização das faculdades de Direito na formação de advogados?

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Tapioca_1
Tapioca_1 🇧🇷

4.6

(400)

224 documentos

1 / 20

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
67Direito.UnB, julho – dezembro de 2014, v. 01, n.02
COMO SE FAZ UM ADVOGADO
NO BRASIL E NA FRANÇA:
UM BREVE ENSAIO
COMPARATIVO E CRÍTICO
// HOW TO PRODUCE A LAWYER IN
BRAZIL AND IN FRANCE:
A BRIEF COMPARATIVE AND
CRITICAL ESSAY
Fernando de Castro Fontainha
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Comparando a Formação de Advogados no Brasil e na França: Um Estudo da Profissionalização e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Direito, somente na Docsity!

COMO SE FAZ UM ADVOGADO

NO BRASIL E NA FRANÇA:

UM BREVE ENSAIO

COMPARATIVO E CRÍTICO

// HOW TO PRODUCE A LAWYER IN

BRAZIL AND IN FRANCE:

A BRIEF COMPARATIVE AND

CRITICAL ESSAY

Fernando de Castro Fontainha

RESUMO // ABSTRACT

O presente ensaio propõe uma comparação entre o processo de produ- ção de advogados na França e no Brasil, com o objetivo de provocar reflexões críticas acerca da nossa experiência. Não se trata, por certo, de um artigo científico em sentido estrito, onde uma pesquisa é apresenta- da e a análise sistemática de dados constrói o coração de um argumen- to objetivo. Pretendo aqui ficar na fronteira entre este tipo de produto e o que conhecemos por “artigo de opinião”. Resolvi chamar então de um “breve ensaio”, para desde o início dar ao leitor conta da maneira com a qual pretendo abordar o tema. // This essay proposes a comparison between the lawyers production process in France and in Brazil, aiming to bring critical approaches towards the Brazilian experience. This is not a full scientific article, I don't present a complete research based in data analysis to build an objective point. This paper was written in the frontier between a scientific article and ans a position paper. Calling it a “brief essay” I intent to not raise expectations the reader will not find on the text.

PALAVRAS-CHAVE // KEYWORDS

Formação de advogados; Ensino jurídico; Sociologia das profissões jurí- dicas // Lawyers formation; Legal teaching; Sociology of legal professions

SOBRE O AUTOR // ABOUT THE AUTHOR

Professor da Escola de Direito da FGV - Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, Pesquisador do CJUS - Centro de Justiça e Sociedade, Pesqui- sador Associado do CEPEL - Centre dÉtudes Politiques de lEurope Latine , e Diretor da Associação Brasileira de Ensino do Direito – ABEDI. Doutor em Ciência Política pela Université de Montpellier 1. // Professor at Funda- ção Getúlio Vargas do Rio de Janeiro - FGV Law School, CJUS Researcher, CEPEL Associated Researcher, ABEDI Director, Ph.D., Université de Mont- pellier I, Political Sciences.

de obrigações e expectativas em torno das funções do advogado nos dois países e (2) o fato de se tratar de uma profissão exclusiva de bacharéis de Direito certificados por exames profissionais nos dois países. Além disto, ressalto que minha abordagem – muito embora este ensaio não constitua nem de longe uma etnografia – pretende ainda se aproxi- mar da noção antropológica de comparação, também conhecida como Antropologia Estrutural, uma tradição etnológica preocupada em descre- ver os atributos universais do espírito humano através da comparação por semelhança , tal qual o trabalho de Claude Lévi-Strauss (1962) onde ele tenta chegar ao “pensamento selvagem” - o estado subjetivo de todo homem antes de ser “cultivado” ou “domesticado” - e não ao “pensamento dos selvagens”. Por outro lado, a Antropologia Social se valerá da compa- ração por contraste , onde se busca no estudo do outro um incremento no conhecimento de si. Esta postura de pesquisa cumpre um fundamental papel de desnaturalização da cultura ocidental – tirando-lhe a sua preten- sa universalidade – por meio da etnografia de outras formas de constitui- ção do saber e de práticas sociais, mostrando como são nativas as catego- rias encontradas nos mais diversos contextos. Além disso, a comparação antropológica permite mais particularmente que o conhecimento acer- ca do outro provoque o estranhamento de si , através da desnaturaliza- ção do nosso saber e das nossas práticas. No que toca particularmente a Antropologia do Direito, Roberto Kant de Lima (2008: 5) afirma que na comparação costuma-se ocultar sistematicamente a sociedade do obser- vador, absorvendo como elemento valorativo negativo toda reação ao não encontrar o “mesmo”. Assim, além de não ter interesse na importação do “modelo” francês, pretendo neste ensaio pôr em questão a produção de advogados no Brasil simplesmente pela descrição do sentido institucio- nal que os franceses dão aos elementos e às etapas deste processo por lá.

2. A FACULTÉ DE DROIT 4 E A FACULDADE DE DIREITO

Além de ser subsequente ao ensino médio e de constituir o percurso necessário da formação e da diplomação jurídica, eu já tive a oportuni- dade de salientar outras homologias entre a Faculté de Droit e a Faculda- de de Direito em artigo escrito com Michel Miaille (2010). Naquele artigo, pusemos em questão um dos fatores da progressiva perda de centralidade do Direito: a organização dos estudos jurídicos nas faculdades mediante uma dura arquitetura de disciplinas “refletoras” do ordenamento inter- ligadas por um sistema de pré-requisitos embasados na falsa ideia da progressão do saber do simples ao complexo. Nos utilizamos da distin- ção elaborada por Immanuel Kant (1973) e retomada por Pierre Bourdieu (1984) entre faculdades críticas e mundanas para salientar a colonização política do ambiente intelectual das Facultés de Droit , em outras palavras, instituições mais subordinadas ao poder que ao saber. Desde muito o modelo universitário francês é o da universalidade , em oposição ao da reserva de talento (Charle: 1994). No entanto, como apon- ta Michel Miaille (1979) foi apenas no pós-guerra que as Facultés de Droit

conheceram a massificação que veio a transformar profundamente a morfologia dos seus corpos docente e discente, fenômeno que por aqui se iniciou nos anos 90. Desde o pós-guerra, a massificação das Facultés de Droit se fez com imenso esforço do Estado em torno das universidades públicas. Raríssimas e pouco reputadas são as Facultés de Droit privadas, à exceção talvez da Université Catholique de Lille. No Brasil, a massificação das Faculdades de Direito vem se fazendo igualmente com imenso esfor- ço do Estado, porém distribuído entre os setores público e privado, com a ressalva que a imensa maioria das Faculdades de Direito se encontra neste segundo setor. O ingresso na Faculté de Droit se dá mediante pedido de inscrição, que deve ser acompanhado pelo certificado do baccalauréat , conhecido como “BAC” , exame de avaliação do ensino médio. Em termos práticos, não exis- te seleção inicial, sendo providas as vagas na medida das inscrições. É no primeiro ano que aproximadamente um quarto dos estudantes será depurado da formação jurídica, processo este que se intensificará com a busca pelos diplomas superiores, que oferecem muito menos vagas, e se completará na busca pelos exames e concursos de acesso às profis- sões jurídicas. Muito embora as Faculdades de Direito venham progres- sivamente substituindo o tradicional Exame Vestibular pelo resulta- do no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, o ingresso representa um verdadeiro processo seletivo. Há vagas para todos os candidatos, mas não nas faculdades mais reputadas, na sua imensa maioria públicas. As consequências desta conjuntura para a distribuição sócio-profissional no Direito brasileiro creio serem de conhecimento dos leitores, mas não são objeto deste artigo. Tendo que se adaptar ao sistema universitário europeu – sem no entanto deixar de protestar – as Facultés de Droit oferecem basicamente quatro diplomas: (1) a Licence , obtida após três anos de curso, (2) o Master 1 , constituindo um quarto ano de curso, (3) o Master 2 , constituindo um quinto ano de curso, (4) e o Doctorat , após três anos de pesquisas e a defe- sa de uma tese. A obtenção do diploma de Master 1 – após quatro anos de curso – autoriza a candidatura à profissões jurídicas como a advocacia, a magistratura ou o comissariado de polícia. Nas Faculdades de Direito, após cinco anos de curso e a obtenção do Bacharelado, está autorizada a candidatura a todas as profissões jurídicas, à exceção da docência supe- rior em Direito. Nas Facultés de Droit , um doutorado é condição essencial para que ocorra a agregação de um profissional à carreira da docência. A condi- ção mínima de doutorando é exigida mesmo para os ATER5. Muito excep- cionalmente profissionais externos – como advogados e magistrados

  • podem ser recrutados como vacataires , sendo contratados por tempo determinado, remunerados por hora de trabalho, sem qualquer víncu- lo institucional ou administrativo com a universidade, e nunca atuan- do nos centros de pesquisa mas nos Instituts d’Études Judiciaires (IEJs) , dos quais trataremos mais adiante. Nas Faculdades de Direito, a despeito das imensas diferenças entre o recrutamento professoral no setor públi- co e no privado, a obtenção do diploma de Doutor é algo crescente mas

transição de uma formação para a outra, ou seja, na preparação e na sele- ção inicial das carreiras jurídicas. Deste ponto em diante, as homologias diminuem e os contrastes ficam cada vez mais evidentes.

3. OS INSTITUTS D’ÉTUDES JUDICIAIRES (IEJS) E OS “CURSINHOS”

1958 é um ano crucial para o sistema de profissões jurídicas na Fran- ça, pois é o ano em que o governo De Gaulle cria a École Nationale de la Magistrature , institui o concurso da magistratura e o exame de admis- são advocatícia. A missão institucional de preparar ambos os exames foi dada às Facultés de Droit , que sem suplemento orçamentário deveriam criar institutos voltados para tal fim. Já em 1961 trinta e dois centros de preparação foram criados, dentre os quais vinte e dois já sob a forma de Instituts d’Études Judiciaires (IEJs) (Bodiguel: 1991). Hoje eles estão presen- tes em quarenta e uma Facultés de Droit da França metropolitana, são elas: Aix-Marseille, Amiens, Angers, Avignon, Bordeaux IV, Brest, Caen, Cergy-Pontoise, Chambéry, Clermont-Ferrand, Dijon, Évry Val d’Essonne, Grenoble II, La Rochelle, Le Mans, Lille II, Limoges, Lyon 3, Montpellier 1, Nancy II, Nantes, Nice, Orléans, Paris I, Paris II, Paris V, Paris X, Paris XI, Paris XII, Paris XIII, Pau, Perpignan, Poitiers, Reims, Rennes, Rouen, Saint-Étienne, Strasbourg, Toulon, Toulouse, Tours, Versailles Saint- -Quentin. Há ainda dois IEJs em território ultramarino, nas faculdades de La Réunion e da Martinica. Vale ressaltar que os IEJs sempre tiveram por concorrentes os Insti- tuts d’Études Politiques (IEPs) na preparação ao concurso da magistratu- ra, uma vez que a lei exige quatro anos de qualquer formação universitá- ria para concorrer. Os IEPs são escolas de elite que não ensinam apenas a Ciência Política, mas a Administração a Economia e o Direito, estan- do presentes nas seguintes cidades: Aix-en-Provence, Bordeaux, Grenoble, Lille, Lyon, Paris, Rennes, Strasbourg e Toulouse. Em 2007 os diplomados de IEPs foram autorizados a se inscrever no exame admissional da advo- cacia, não sem virulento protesto dos diretores das Facultés de Droit das universidades de Paris 2 e Montpellier 1 no jornal “Le Monde” (Antonmat- tei; Maistre du Chambon: 20). Não tenho dados referentes a concorrência entre juristas e politólogos na admissão da advocacia, mas em coleta que realizei relativa ao concurso da magistratura francesa de 2007 (Fontai- nha: 2011), a superioridade dos IEPs em termos de percentagem de sucesso de seus inscritos impressiona, como demonstra o quadro abaixo:

Quadro 1: taxa de aprovação dos egressos no concurso da magistratura francesa por instituição

Instituição de Origem

Natureza da preparação

Taxa de aprovação

SciencesPo Paris Instituto de Estudos Políticos 87,5%

SciencesPo Rennes Instituto de Estudos Políticos 80%

SciencesPo Grenoble Instituto de Estudos Políticos 66,67%

Université de Paris 11 Instituto de Estudos Jurídicos 55,56%

SciencesPo Lyon Instituto de Estudos Políticos 50%

Université de Paris 10 Instituto de Estudos Jurídicos 40%

Université de St. Étienne

Instituto de Estudos Jurídicos 40%

Université de Paris 2 Instituto de Estudos Jurídicos 35,21%

Université de Cergy-Pontoise

Instituto de Estudos Jurídicos 33,3%

Université de Évry Val d’Essone

Instituto de Estudos Jurídicos 33,3%

Université de Poitiers Instituto de Estudos Jurídicos 30%

Université de Paris 1 Instituto de Estudos Jurídicos 29,36%

Université de Nice Instituto de Estudos Jurídicos 28,57%

Université de Rennes 1 Instituto de Estudos Jurídicos 27,27%

Université Catholique de Lille

Instituto de Estudos Jurídicos 25%

SciencesPo Bordeaux Instituto de Estudos Políticos 25%

Université de Orléans Instituto de Estudos Jurídicos 25%

Université de Valenciennes

Instituto de Estudos Jurídicos 25%

Université de Lyon 3 Instituto de Estudos Jurídicos 17,31%

CAPA a sigla que designa o Certificat d’Aptitude à la Profession d’Avocat , documento que autoriza o exercício efetivo da advocacia na França. O ensino ministrado é absolutamente voltado às provas de admissão, para pequenos grupos de alunos, comportando muitas atividades práti- cas, exames simulados com debriefing e supervisões de tipo coaching , com ênfase nas disciplinas de Cultura Geral e Direito Privado, sendo certo que por lá o Direito penal, Direito do Trabalho e o Direito Processual não fazem parte do Direito Público. Esta formação, essencialmente pública, como já se mencionou, será feita ao mesmo custo de matrícula que toda a formação, atualmente inferior aos € 200,00 (duzentos euros) por ano. A formação do corpo docente dos institutos é excepcional em relação ao resto da Faculdade: é lá que se concentram a maioria dos vacataires. Na preparação para concursos e exames de seleção é onde se veem os advo- gados e juízes que atuam no ensino jurídico francês. Ainda assim, o ensi- no é bastante dividido com professores da instituição e a administração é centralizada nestes últimos. Não é exagerado afirmar que a Faculté de Droit detém o monopólio da preparação para concursos e exames de seleção, notadamente o da advoca- cia. Raras são as exceções onde pequenas empresas ou até mesmo profes- sores particulares operam de forma marginal uma espécie de reforço. Este monopólio, reflexo de um papel institucional atribuído as Facultés de Droit , vai reproduzir no recrutamento das carreiras jurídicas – notada- mente da advocacia – a já mencionada supremacia professoral. Assim a Faculté de Droit possui um poder de moldura não apenas sobre a seleção dos advogados franceses, mas sobre a advocacia francesa. Isto nos mostra que no Brasil ainda não superamos plenamente a ideia de que a Faculdade de Direito forma advogados, de que é uma esco- la de advocacia. Pelo menos, até o ano de 1996 bastava o bacharelado em Direito para a demanda de inscrição nos quadros de uma das seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Com a instituição do Exame de Ordem, nosso quadro institucional simplesmente o presume como um avaliador do conhecimento acumulado pelo estudante durante a Facul- dade de Direito, sendo esta a única preparação necessária. A realidade é bem diferente. Esta cisão entre o desenho institucional e a realidade faz chocar dois fatores: (1) uma faculdade já desestruturada na sua capaci- dade de produzir externalidades jurídicas propriamente acadêmicas e no seu poder de moldura sobre o Direito com (2) um espaço jurídico domina- do individualmente pelos práticos e institucionalmente pelos tribunais e grandes escritórios de advocacia. O resultado é uma seleção completamen- te desconforme com a Faculdade de Direito, mas que também em nada mede as competências necessárias para o efetivo exercício da advocacia. Mais adiante falaremos mais detidamente do Exame de Ordem. Por ora, fiquemos com a preparação. O produto desta convergência de fatores é a criação de um enorme mercado de preparação, que une tanto o exame de ordem quanto a preparação para concursos públicos em geral. Trata-se de um mercado absolutamente desregulado, em quaisquer termos institucio- nais que se queira imaginar. Essencialmente privado, ele se organiza pela concorrência de inúmeras empresas que oferecem serviços na forma de

aulas, exames simulados e apostilas. Comumente recrutam práticos para o exercício professoral, bem como possuem nos práticos do Direito seus sócios proprietários. Além de pagarem seus docentes bem acima do valor pago pelas Faculdades privadas pelo ensino tradicional de graduação, também praticam preços sem qualquer restrição ou regulação institucional. A autonomização das seleções e concursos jurídicos no Brasil é um fenômeno tão possante que sequer os tribunais e as OABs conseguiram instrumentalizá-la institucionalmente, mas o fazem financeiramente. Que quero dizer com isso? Ao possuir na preparação boa parte de seus quadros, estas instituições não conseguiram transformar as seleções em “medidores de vocação”, onde competências em potencial poderiam ser testadas tendo em vista as necessidades que o trabalho cotidiano de cada profissão impõe. No lugar de deixar que cada um afira os produtos finan- ceiros da atividade, as instituições progressivamente criam escolas para competir neste mercado. Desta forma, muitas Escolas de Magistratura tem essencialmente a função de preparar para o Concurso da Magistratu- ra7. O mesmo vem acontecendo com o Ministério Público e a Defensoria Pública. Desde maio de 2009, quando o exame de ordem tornou-se unifi- cado, tem proliferado pelo país os cursos preparatórios organizados pelas Escolas Superiores da Advocacia (ESAs), ligadas as Seccionais das OABs. Esta situação não poderia ser mais demonstrativa da completa falta de centralidade jurídica da Faculdade de Direito e da completa falta de sentido institucional da ideia de escola profissional. Passemos ao exame mais detido da seleção de advogados no Brasil e na França.

4. O CERTIfICAT D’APTITUDE à LA PROfESSION D’AVOCAT (CAPA) E O EXAME DE ORDEM

Os advogados franceses se organizam profissionalmente no seio de insti- tuições chamadas Barreaux Régionaux 8. Embora exista um Conseil National des Barreaux , cada um deles é autônomo e independente em relação aos demais. O que garante coesão institucional à profissão é a dura regulamen- tação nacional. A Lei de 31 de dezembro de 1971 (modificada pela Lei de 11 de fevereiro de 2004) regulamenta a profissão de advogado na França. Embora conceda ao Conseil National des Barreaux a competência para elaborar um Regimento Interno Nacional da profissão e regulamentá-lo, mantém nos Barreaux regionais a base da organização da profissão. É nos seus quadros que os advogados se inscrevem profissionalmente e são eles que organi- zam o exame de admissão às escolas de advogados, chamadas Centres Régionaux de Formation à la Profession d’Avocat (CFRPAs). Há atualmente cento e oitenta e um Barreaux Regionais na França, mas apenas aqueles de maior concentração de inscritos possuem um CRFPA, quais sejam: Paris, Versailles, Lille, Strasbourg, Villeurbanne, Marseille, Montpellier, Borde- aux, Poitiers, Bruz, Córsega, Guadalupe, La Réunion e Martinica. Uma das grandes diferenças entre o Examen d’Admission e o Exame de Ordem é que a aprovação no primeiro dá direito ao candidato de inscrever-se em um CRFPA para formação profissional, e a aprovação no segundo dá direito ao candidato solicitar sua inscrição profissional nos

  1. uma arguição oral na língua estrangeira escolhida pelo candida- to, dentre as opções: alemão, inglês, árabe clássico, chinês, espanhol, hebraico, italiano, japonês, português e russo (peso 1).

A banca examinadora é recrutada pelas Facultés de Droit organizadoras do exame, é composta de dois professores de Direito, um magistrado da ordem judiciária, um magistrado da ordem administrativa, três advo- gados, comumente bâtonniers ou ex-bâtonniers 9, e professores de línguas estrangeiras. A presença das instituições de ensino jurídico nas seleções profissionais é forte mesmo no concurso da magistratura, no qual é a École Nationale de la Magistrature quem compõe a banca, que em regra conta com tantos professores quantos magistrados. A supremacia universitária nas seleções não gera frutos apenas na composição da banca, mas também na arquitetura, no programa e na preparação. Muitos dos mais vendidos manuais de preparação às carreiras jurídicas – além de escritos por profes- sores universitários – contam desde o seu título com a menção à sua efici- ência tanto para o exame de ingresso nos CRFPAs quando no concurso da magistratura (Ghérardi; Sabio: 2003), (Harichaux: 1999), (Dubos et al : 2004), (Marmoz et al : 2007), (Néret: 1977), (Pierre: 2006), (Ortega: 1996). O sucesso neste exame não garante o CAPA ao candidato, mas lhe dá o direito de se matricular no CRFPA, diferentemente do certificado de apro- vação no Exame de Ordem. Outra diferença fundamental é que o Examen d’Entrée só pode ser realizado até três vezes – depois da terceira reprovação, o candidato não mais poderá ter acesso à profissão de advogado, sendo a mesma regra aplicada para o concurso da magistratura – e o Exame de Ordem não impõe limites numéricos às tentativas dos candidatos. No Brasil, é a Lei 8.906/94 que regulamenta a profissão de advogado, o Provimento 51/96 do Conselho Federal da OAB criou Exame de Ordem e o Provimento 144/11 lhe deu a forma que ele possui hoje. Ele ocorre três vezes ao ano e é a OAB que recebe individualmente as inscrições, compõe a banca examinadora e divulga os resultados. Diferentemente da França, no Exame de Ordem e nos concursos em geral, é bastante comum as instituições promotoras da seleção terceirizarem sua organização. Nas últimas edições quem organiza o Exame de Ordem é a Fundação Getulio Vargas – FGV. O Exame de Ordem é composto por duas provas. A primeira prova é composta de até oitenta questões de múltipla escolha, sendo habilitado para a segunda prova o candidato que acertar ao menos metade delas, que versarão sobre as seguintes disciplinas: Processo Civil, Processo Penal, Direito Civil, Direito Penal, Direito Comercial, Direito e Processo do Trabalho, Direito Tributário, Direito Constitucional, Direito Adminis- trativo, Direitos Humanos e Deontologia. A segunda prova é discursiva e dividida entre a “redação de uma peça profissional” – comumente uma petição ou um parecer – e a resposta a “questões práticas, sob a forma de situações-problema”, ambas sobre uma das matérias à escolha dos candi- datos: Direito Administrativo, Direito Civil, Direito Constitucional, Direi- to Empresarial, Direito do Trabalho, Direito Penal e Direito Tributário. Está definitivamente aprovado no Exame o candidato que obtiver ao menos a nota seis na segunda prova.

Cabe à terceirizada recrutar a banca examinadora, tanto a que elabo- ra quanto a que corrige o exame. Não tenho dados precisos sobre a morfo- logia dos examinadores, mas cabe salientar que o multiprofissionalismo é a regra de composições desta natureza, tanto neste exame quanto nos concursos em geral. É interessante notar que em muitos concursos públi- cos para a área jurídica a banca é composta de internos – uma vez que cada instituição é organizadora do seu concurso – e por externos. Dentre os membros externos há vagas a serem ocupadas por professores. A práti- ca comum é que sejam recrutados para estas posições (multi)profissionais

  • juízes, membros do Ministério Público, da Defensoria Pública, etc – que atuam também nas Faculdades de Direito. Fato é que o poder de recruta- mento é algo que agrega imensamente à carreira de um jurista no Brasil, e a capacidade de adaptação às expectativas da banca chega a níveis bastan- te elevados, o que permite que a posição de jurado potencialize o impacto das posições jurídicas – e publicações – daqueles que a ocupam. No entanto, a Faculdade de Direito não é alheia a este processo. Também não é protagonista, como a Faculté de Droit. Por aqui ela é objeto. A OAB divulga, junto com os resultados do exame, um ranking das Facul- dades de Direito do Brasil, pelo seu índice de aprovação. As melhores posi- cionadas recebem o selo de qualidade “OAB Recomenda”. Esta certifica- ção é comumente justificada pela necessidade da atuação da OAB como normalizadora da qualidade do ensino jurídico. Não é objeto deste arti- go um exame mais detido acerca do “OAB Recomenda”, mas cabe mencio- nar a dura crítica realizada à sua metodologia por Edson Nunes, André Magalhães Nogueira e Leandro Molhano Ribeiro (2001). Do outro lado, são parcos os esforços das Faculdades de Direito de adaptação do ensino ao Exame de Ordem, sobretudo no setor público, onde as instituições são comumente melhor avaliadas. Em relação às Facultés de Droit , elas são avaliadas pelo Ministère de l’Éducation National , que também divulga um ranking , assim como faz seu homólogo brasileiro. Ao lado disto, as Facultés são também avaliadas por institutos privados de sondagem e pesquisa, que divulgam rankings base- ados no índice de empregabilidade dos diplomados. Este capítulo não apenas reforça o caráter coadjuvante das Faculdades de Direito no Brasil, como também demonstra a total falta de sentido institucional da forma- ção profissional, pois uma vez aprovado no Exame de Ordem, o candidato brasileiro pode pedir sua inscrição nos quadros da OAB, e uma vez apro- vado no Examen d’Entrée , o candidato francês apenas tem o direito de se inscrever no CRFPA. 5. OS CENTRES RÉGIONAUX DE fORMATION à LA PROfESSION D’AVOCAT (CRFPAS) E AS ESCOLAS SUPERIORES DA ADVOCACIA (ESAS)

Uma vez aprovados no Examen d’Entrée , os candidatos, doravante élèves-avocats (alunos-advogados) devem seguir uma formação inicial de dezoito meses no seio dos CRFPAs, financiados pelas contribuições dos advogados, pelo próprio Estado, e pelas matrículas pagas pelos seus

Após a aprovação e a obtenção do CAPA, está produzido um advogado na França. É importante frisar que o período de formação inicial não se trata apenas de um processo de aprendizado e avaliação, mas de forte socializa- ção profissional. Nas aulas nos CRFPAs os alunos-advogados tem conta- to qualificado com advogados experientes de sua região, bem como os dois estágios constituem oportunidades de inserção e formação de redes profissionais extraordinárias. Para muitos representa o primeiro empre- go efetivo em escritório de advocacia. Os CRFPAs atuam efetivamente, numa profissão fortemente marcada pelo seu caráter liberal e privado, como forte regulador e ordenador deste mercado. No Brasil, os aprovados no Exame de Ordem enfrentam o mercado de maneira diferente. Aqueles que desejam efetivamente seguir a profissão de advogado dependem de suas capacidades sócio-financeiras para cons- tituir uma rede capaz de garantir uma posição satisfatória ou clientes significativos. Aqueles que se valerão da carteira de advogado para aces- sar uma das carreiras jurídicas de Estado necessitarão do mesmo apor- te sócio-financeiro, mas para lhes garantir anos de dedicação exclusiva à preparação aos concursos. Por fim, e para ilustrar a falta de sentido institucional da forma- ção inicial de advogados, deve-se mencionar que a recente profusão das Escolas Superiores de Advocacia (ESAs), ligadas às OABs regionais, acom- panha dois movimentos: (1) o oferecimento de cursos preparatórios para o próprio Exame de Ordem e (2) o oferecimento de cursos de especiali- zação e pós-graduação latu sensu , ambos sem qualquer regulamenta- ção unificada e cobrados. O sentido institucional da formação profis- sional inicial e continuada é o da obrigatoriedade de segui-las, sob pena de não poder ingressar ou continuar na profissão. No Brasil este senti- do inexiste, mantendo-se a confusão entre formação jurídica e forma- ção profissional.

Prometi ao leitor que não concluiria pela necessidade do Brasil seguir ou “se espelhar” no “modelo” francês. Não há “modelo” francês, só há a maneira de se produzir advogados na França, que é fruto de uma reali- dade social diferente da nossa, e que não foi centro deste ensaio. Porém, o modo de se produzir avocats e advogados exprime o sentido institucional

  • ou a falta dele – que se dá às etapas e agentes deste processo. Os contrastes entre os modos de produção de advogados denun- ciam um primeiro paradoxo brasileiro: a instituição mais coadjuvante no processo de produção de profissionais – a Faculdade de Direito, que praticamente apenas contribui com o diploma de bacharel, é justamen- te aquela que tem a missão institucional de formar todos os profissionais do Direito ou de formar uma espécie de ultraprofissional apto a exercer todas as profissões jurídicas. Na França, esta divisão de missões institucionais é muito clara: a esco- la da polícia forma policiais, a escola da magistratura forma magistrados, a escola da advocacia forma advogados. A Faculté de Droit forma juristas.

É evidente que esta divisão – tanto na França quanto no Brasil – não é fruto de uma “espontaneidade institucional”. Disputas de poder marcam o arranjo institucional da produção de profissionais, notadamente no Direito. A supremacia professoral no Direito francês é marcada pelo excessivo poder dos acadêmicos de Direito sobre os demais profissionais, tanto de forma simbólica quanto prática. No entanto, a construção do sentido institucional que mantém o processo de produção profissional é fundada numa coerência que permite a interação dos agentes envolvidos de forma a garantir a efetiva regulação e ordenação do processo. O senti- do institucional das etapas e instituições implicadas na produção social de advogados na França efetivamente é capaz de mitigar as desigualda- des herdadas pelos envolvidos na competição – pois é disso que se trata

  • tanto do ponto de vista dos indivíduos, quanto do ponto de vista das instituições. Não quero dizer, portanto, que no Brasil devemos fazer como na Fran- ça. Mas no Brasil devemos fazer alguma coisa!

REFERÊNCIAS

Adeodato, João Maurício (2008). Formação universitária, exercício profissional e especialização em direito .“Revista da Faculdade de Direito (Faculdade Maurício de Nassau)”, Volume 3. Almeida, Frederico (2012). “O profissional-docente ao docente-profissional: da valoração simbólica dos títulos acadêmicos e da experiência docente no campo jurídico brasileiro”. In : CARVALHO, Evandro Menezes de et al (org). Representações do professor de Direito. Curitiba: CRV Bodiguel, Jean-Luc (1991). Les Magistrats un Corps Sans Âme? Paris: PUF. Boigeol, Anne (2004). French women lawyers and the women’s cause in the first half of the twentieth century. "International journal of the legal profession”. Vol 10, Num 2. Bourdieu, Pierre. (1986). La Force du Droit. Éléments pour une sociologie du champ juridique. « Actes de la Recherche en Sciences Sociales ». Volume 64, Numéro 1. (1984 ). Homo Academicus. Paris: Minuit. Campilongo, Celso Fernandes (1994). Universities, Changes in Law, and the New Constitutional Order in Brazil. “Beyond Law”, Volume. 3, 1994. Charle, Christophe. (1994). La République des Universitaires. 1870-1940. Paris: Seuil. (1989). Pour une histoire sociale des professions juridiques à l’époque contemporaine : note pour une recherche. « Actes de la recherche en sciences sociales », Volume 76, Numéro 1. Dubos, Olivier; Gonthier, Françoise; Lamarche, Marie; Malabat, Valérie; Melleray, Fabrice; Saint-Pau Jean-Christophe (2004). Se préparer à EFB-CRFPA, ENM, ENG. Paris: Litec. Falcão Neto, Joaquim de Arruda. Os advogados: ensino jurídico e mercado de trabalho. Recife: Massangana, Fundação Joaquim Nabuco. (1978). Crise da Universidade e Crise do ensino Jurídico. “Revista da Ordem dos Advogados do Brasil (Brasília)”, Volume 9. Faria, José Eduardo (1987). A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre: Fabris. Felix, Loussia (2001). Da Reinvenção do Ensino Jurídico- Considerações sobre a Primeira Década. In : OAB – Conselho Federal e Comissão de Ensino Jurídico. (Org.). “OAB Recomenda – Um Retrato dos Cursos Jurídicos”. Brasília: OAB – Conselho Federal. Fontainha, Fernando de Castro. (2011 ). Les (en)jeux du councours: une analyse interactionniste du recrutement à l’École nationale de la magistratutre. Sarrebrück: Éditions Universitaires Européennes. (2010). The French judicial public competitive examination, the candidates and their files: construction and self-construction in non-face-to-face interaction. “New Cultural Frontiers”, v. 1, p. 117-138. (2009). Work division, domination, and solidarity in French law field: scholars, judges, and the National Judicial School’s public contest oral exam. In : Serafimova, Maria; Hunt, Stephen; Marinov, Mario (dir). “Sociology and Law: the 150th^ anniversary of Emile Durkheim”. Newcastle Upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing. Ghérardi, Éric; Sabio, Jean-Pierre (2003). La note de synthèse au CFPA et à l’ENM. Paris: Ellipses. Gleizal, Jean-Jacques (1979). La formation des juristes dans l’État français. « Procès », Volume 1, Numéro 3. Harichaux, Michèle (1999). La note de synthèse : examen d’entrée au CRFPA, concours d’accès à l’ENM. Paris: Monchrestien.

Israël, Liora (2005). Robes Noires, Années Ombres : avocats et magistrats en résistance pendant la Seconde Guerre mondiale. Paris: Fayard. Junqueira, Eliane Botelho (1999). Faculdades de Direito ou Fábricas de Ilusões? Rio de Janeiro: LetraCapital/IDES. Kant, Immanuel (1973). Le conflit des facults. Paris: Vrin. Kant de Lima, Roberto (2008). Por uma Antropologia do Direito, no Brasil. In : “Ensaios de Antropologia e de Direito”. Rio de Janeiro: Lumen Juris. Karpik, Lucien (1995). Les Avocats: entre l’État, le public et le marché. Paris: Gallimard. Lévi-Strauss, Claude (1962). La pensée sauvage. Paris: Plon. Miaille, Michel (1979). Sur l’enseignement des facultés de droit en France (les reformes de 1905, 1922 et 1954). « Procès », Volume 1, Numéro 3. Miaille, Michel; Fontainha, Fernando de Castro. “O ensino do direito na França”, Revista Direito GV vol. 6, n. 1 (junho 2010): 59–66. Néret, Jean-Alexis (1977). Guide d’études juridiques et leurs débouchés : la capacité en droit, le D.U.T. mention ‘carrières juridiques et judiciaires’, le D.E.U.G. Mention ‘droit’, la licence en droit, les maitrises, les diplômes de 3e^ cycle, les concours administratifs, magistrature, barreau, notariat. Paris: Ed. et Guides Néret. Nunes, Edson; Nogueira, André Magalhães; Ribeiro, Leandro Molhano (2001). Futuros possíveis, passados indesejáveis. Selo da OAB, provão e avaliação do ensino superior. Rio de Janeiro: Garamond. Ortega, Olivier (1996). La note de synthèse juridique à l’entrée à l’EFB, aux CRFPA et à l’ENM. Paris: PUF. Pierre, Sylvie (2006). Les épreuves de procédure civile au CRFPA et à l’ENM. Paris: Ellipses. Vigour, Cécile (2005). La comparaison dans les sciences sociales. Paris: la Découverte.