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Este documento propõe um estudo sobre a relação entre o filme 'o desprezo' de jean-luc godard e a odisséia de homero. A análise se concentra em como godard trabalha o retrato de uma vênus e compara a personagem à eva de piero della francesca, bem como a utilização de artifícios cinematográficos para conjugar imagens e falas dos personagens. Além disso, discute-se a tricromia no filme de lang e a opção de godard em trabalhar uma paleta que recorre às cores fundamentais do espectro.
Tipologia: Notas de aula
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Caderno Seminal Digital Ano 20, nº 20, V. 20 (Jul-Dez/201 3 – ISSN 1806- 9142 )
Celina F. Lage**
Resumo: O artigo propõe uma análise de cenas do filme O Desprezo de Godard, tendo em vista o diálogo estabelecido com a Odisséia de Homero. Este diálogo não pressupõe uma pura e simples aceitação do ideal de beleza antigo por parte do cineasta. Sua atitude reflete a crise por que passava então o cinema europeu, de forma que seu gesto assume uma dimensão crítica, na medida em que pretende revisitar as origens da estética ocidental, reler Homero, reler Moravia e repensar a estética cinematográfica.
Palavras-chave: Homero; Odisséia; Godard.
Abstract: This paper proposes an analysis of selected scenes from the film Contempt by Godard, examining the dialog with the Odyssey of Homer. This dialog does not presuppose a pure and simple acceptance of the ideal of beauty by the cinematographer. His attitude reflects the crisis of the European cinema, so that his gesture assumes a critical dimension, in that it aims to revisit the origins of Western aesthetics, reread Homer and Moravia and rethink cinema aesthetics.
Keywords: Homero; Odisséia; Godard.
** (^) Celina F. Lage Doutorado em Literatura Comparada e Mestrado
em Teoria da Literatura pela FALE/UFMG. Ex-bolsista da Fundação Alexander S. Onassis e Ex-colaboradora da Universidade Helênica Aberta (Grécia).
Caderno Seminal Digital Ano 20, nº 20, V. 20 (Jul-Dez/201 3 – ISSN 1806- 9142 )
Uma das primeiras cenas do filme O Desprezo , de Jean-Luc Godard, aborda o tema da beleza física, a beleza de um corpo feminino. Temos num único plano-sequência o diálogo entre a atriz Brigitte Bardot, no papel de Camille, e Michel Piccoli, representando seu marido Paul. Camille está deitada de bruços no primeiro plano da cena que se passa no leito do casal, completamente nua, e Paul aparece atrás dela, recostado na cama, vestido e coberto com um lençol^10. O diálogo entre ambos revela grande intimidade e alto conteúdo erótico. Vejamos parte dele:
Camille – Você vê meus pés no espelho? Paul – Sim. C. – Você os acha belos? P.– Sim, muito. C. – E meus tornozelos? Você os ama? P.– Sim... C. – Você ama também meus joelhos? P.– Sim....Eu amo muito seus joelhos. [...]
(^10) Esta sequência foi uma imposição dos produtores do filme, com
intuito comercial. Douchet e Vimenet notam que, na sequência da sala de projeção, Godard ironiza esta exigência, através do comentário de Prokosh, o produtor amaricano, a respeito da cena da sereia onde aparece uma mulher nua; ele diz: “isto é arte, mas será que o público compreenderá?”. Mais à frente, o teatrólogo Paul indaga se as mulheres vão se despir para a filmagem e tece o seguinte comentário: “é maravilhoso o cinema. Vemos as mulheres e elas estão com um robe. Elas estão no cinema e, crac, vemos sua bunda”. (Douchet & Vimenet. In: VIMENET, 1991, p.62-4)
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representado através do olhar de Paul em direção ao suposto reflexo (Douchet & Vimenet. In: VIMENET, 1991, p.66).
Longino, no Tratado do Sublime , chama a atenção para a importância da conjugação dos membros para a grandiosidade do todo, relativamente à composição dos discursos:
XL – Um dos meios que mais concorrem para a grandiosidade do discurso, como dos corpos, é a conjugação dos membros; qualquer deles, separado de outro, nada tem de notável, mas todos em conjunto formam um organismo perfeito; igualmente, as expressões grandiosas, apartadas umas das outras e dispersas, levam consigo, desconjuntado, o sublime; formadas num corpo só pela associação e, mais, presas pelo vínculo da harmonia, tornam-se sonoras graças ao torneio; dir-se-ia que, nos períodos, a grandiosidade é a soma das cotas-partes do grupo. (trad. de Jaime Bruna).
A composição do todo, pela conjunção harmoniosa das partes nos conduziria à grandiosidade, contribuindo para alcançar o sublime. A cena em questão poderia ser um exemplo da utilização desse tipo de artifício pelo cinema, na medida em que Godard conjuga as imagens e as falas dos personagens, numa espécie de enumeração gradativa, que culmina na resposta apaixonada de Paul: “ eu te amo totalmente, ternamente, tragicamente. ”
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A combinação de travellings lentos entrecortados com pausas e planos fixos revelam o corpo da personagem que, além do mais, sofre mudanças de coloração, devidas à utilização de filtros: o vermelho, em seguida o amarelo, e depois o azul. O filtro vermelho denota o calor da paixão, o amor vívido. Como sugere Vimenet, o filtro amarelo é capaz de transformar o corpo de Camille em um bloco de mármore e "iluminar" diferentemente o diálogo (1991, p.65). Já o azul implica em certa frieza e distanciamento. A sonoplastia nos apresenta inicialmente um tema musical doce, terno, que é interrompido e depois retorna, segundo um tempo trágico e nostálgico. Toda a construção do plano-sequência leva à magnificação da beleza de Camille, com a culminação do amor declarado, anunciando uma espécie de paraíso (perdido) que contrasta com a crise do casal, que vai se revelar no decorrer da história. A fala de Paul pode ser entendida como uma profecia, uma espécie de anúncio do final trágico da estória. Muitas sequências ao longo do filme sugerem um espelhamento ou uma aproximação entre as cenas que se desenrolam e as alusões à cultura visual que herdamos da Antiguidade, estabelecendo assim um diálogo com as artes plásticas. A mise en scène cuidadosa de Godard por vezes coloca frente a frente a personagem Camille com uma estátua que nos remete à tradição iconográfica da deusa Afrodite (Vênus para os romanos). Posso citar, como exemplo, duas cenas, que se passam no apartamento do casal, onde vemos Camille procurando por um espelho (fig. 2), enquanto arruma sua
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O filme propõe-nos um exercício de diálogo entre duas estéticas: o clássico, de origem greco-romana, e o cinema do próprio Godard. A nudez da personagem, a perfeição da forma, o equilíbrio do conjunto e o erotismo apontam para um ideal de beleza que será retrabalhado na busca do cineasta por uma estética particular. A metáfora clara desse esforço pode ser observada na abordagem de Godard, ao tematizar, no seu filme, a filmagem da Odisséia de Homero, por Fritz Lang (o nome do filme deste é Odysseus ), o qual interpreta a si mesmo no papel de diretor^12.
É necessário salientar, entretanto, que este diálogo não pressupõe uma pura e simples aceitação do ideal de beleza antigo por parte do cineasta. Sua atitude reflete a crise por que passava então o cinema europeu, de forma que seu gesto assume uma dimensão crítica, na medida em que pretende revisitar as origens da estética ocidental, reler Homero, reler Moravia e repensar a estética cinematográfica. Todo o ambiente que envolve as filmagens da Odisséia encontra-se em uma situação de crise, que se reflete na decadência da Cinecittá, nos desentendimentos do casal Camille e Paul e na discussão entre o produtor americano, o teatrólogo e Lang sobre como a epopéia deveria ser filmada.
A sequência 7, que se passa no apartamento do casal, toda ela se reveste de inúmeras referências à cultura
(^12) Nota-se que o próprio Godard aparece no filme como assistente
de direção de Lang.
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clássica e aos mecanismos miméticos aí presentes. Em determinado momento, o casal veste-se com panos enrolados ao corpo, ela uma toalha vermelha e ele um lençol branco, o que nos remete ao tipo de vestimenta utilizada na Antiguidade, como se fossem encarnações de esculturas antigas (fig. 4). Camille, em adição, veste uma peruca preta (ela, que é loiríssima). Ela troca ainda de roupa algumas vezes, reforçando o efeito do disfarce. O travestimento sugere a metamorfose, a encenação teatral, ressaltando o procedimento da falsificação que se encontra presente no relacionamento do casal e também na arte cinematográfica.
Figura 4 – Cena no apartamento. (GODARD, 1963). Esses travestimentos nos remetem aos inúmeros disfarces e engodos característicos de alguns dos personagens da Odisséia homérica (LAGE, 2004, passim). Se, por um lado, Atena e Ulisses são hábeis em se
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afirma que “Camille não fala através de palavras, ela se exprime por imagens, pelas percepções visuais tão precisas quanto rápidas. A mise en scène está inteiramente a serviço de seu olhar [...]” (1991, p.46).
Brenez chama a atenção para o modo como Camille é presentificada e magnificada por tudo que a metaforiza, como o mosaico, a estátua e a descrição literária:
No Desprezo , as múltiplas estátuas, baixos-relevos, fotografias que povoam todos os espaços, a reprodução de homens e da imagem de homens, não cessam de exaltar os indivíduos que se metamorfoseiam (no sentido primeiro e ovidiano desse verbo) em modelos. Os indivíduos fílmicos são tomados nesta dialética da pessoa como singularidade (escapando a toda determinação) e como modelo (fixo, prolongado, consagrado pelos seus substitutos)... (In: GODARD, 1992, p.6). O crítico sugere ainda que a história dos personagens progride em virtude da confrontação com seus gestos, com suas poses e suas propriedades, constituindo assim, uma história das imagens através da encenação dos corpos, uma verdadeira ontologia da aparência (In: GODARD, 1992, p.7). É na tensão entre o figurável e o modelo, o protótipo e o arquétipo que, Brenez acredita, “Godard inventa e consuma um cinema do sublime” (In: GODARD, 1992, p.9).
É notável a preocupação de Godard com o tratamento das cores em seu filme. Como sabemos, a trama básica gira em torno do casal Camille e Paul, durante a produção da
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Odisséia em cinema, sob a direção de Fritz Lang, interpretado pelo próprio diretor. O produtor americano Prokosh contrata o teatrólogo Paul para alterar o roteiro que estava sendo filmado. A traição mútua do casal, envolvendo o produtor e sua assistente Francesca, contribuem para a crise dos cônjuges, quando finalmente Camille abandona o marido, foge com Prokosh e ambos morrem numa explosão proveniente de uma batida de carro na saída de um posto de gasolina. A crise do casal, Penélope e Ulisses contemporanizados, reflete-se na crise e nos questionamentos gerados pela filmagem da Odisséia. O tratamento das cores é apenas uma das implicações decorrentes da pergunta proposta por Godard: como filmar a Odisséia hoje? Segundo a definição do próprio Godard,
As cenas da Odisséia propriamente dita, quer dizer, as cenas que Fritz Lang dirige enquanto personagem, não são fotografadas do mesmo modo que as do próprio filme. As cores são mais brilhantes, mais violentas, mais vivas, mais contrastadas, mais severas também, quanto à sua organização. Pode-se dizer que elas surtem o efeito de um quadro de Matisse ou Braque no meio de uma composição de Fragonard ou de um plano de Eisenstein em um filme de Rouch. (In: BERGALA, 1985, p.246). Ao se referir à fotografia, ele compara o efeito produzido pelo filme de Lang a inserções brutas de imagens dentro de um registro estético completamente diferente, e até mesmo distante no tempo, como é o caso de uma tela Matisse inserida dentro de uma tela de Fragonard, ou de um
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contentamento de anunciar a cor e de a fazer mais classicamente” (Godard. In: BERGALA, 1985, p.16). As cenas do filme em construção de Lang poderiam ser chamadas de “caricaturas” da Antiguidade, na medida em que radicalizam as referências visuais ao extremo. Os deuses são representados por simulacros de estátuas, os olhos pintados com a cor azul e a boca algumas vezes pintadas com azul, vermelho ou amarelo (fig.5 e 6). Já os mortais são representados por seres humanos com maquiagem semelhante à dos deuses e vestimentas rudes. As sereias seriam mulheres nuas nadando no mar. A referência à estatuária em mármore romana, muitas vezes cópias de originais gregos, remeteria à cor branca. O jogo entre o branco, o vermelho, o amarelo e o azul mostram a opção de Godard em utilizar cores primordiais, formando assim uma tricromia básica. Essa tricromia é trabalhada mais fortemente no filme de Lang, mas também está presente em O Desprezo como um todo, como afirma Godard, referindo-se à parte filmada na Ilha de Capri:
Toda a segunda parte será dominada, do ponto de vista das cores, pelo azul profundo do mar, o vermelho da casa [Villa de Malaparte] e o amarelo do sol, reencontrando, assim, uma certa tricromia muito próxima daquela da verdadeira estatuária antiga. (In: BERGALA, 1985, p.246). A opção de Godard em trabalhar uma paleta que recorre às cores fundamentais do espectro mostra a preocupação do cineasta com a simplicidade, com o rigor e,
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com uma busca das origens (MARIE, 1995, p.63). Reler Homero é tanto buscar as origens do cinema e da literatura, quanto da pintura, paralelamente à produção de pintores como Matisse, Paul Klee e Mondrian, que trabalharam também com as cores primordiais. Outro aspecto a ser ressaltado é a opção do cineasta em filmar O Desprezo utilizando o formato do cinemascope, que imprime ao filme uma composição de cunho épico, permitindo um alargamento horizontal do plano e exigindo grandes telas para sua exibição. Godard pode trabalhar a composição do filme, deste modo, não apenas buscando a centralização dos planos, mas também explorando sua lateralidade em momentos específicos (como é o caso das fig. 2 e 3 citadas acima). Vale a pena notar também a larga utilização de planos-sequência, que parecem imprimir ao fime um ritmo mais lento, guardando uma analogia com o discurso épico (LAGE, 2004, p.148s).
As cenas dos deuses são compostas por planos fixos, tomados de baixo para cima, os quais mimetizam o efeito de uma panorâmica circular, fazendo com que as próprias estátuas girem lentamente. O mecanismo gera uma impressão de estaticidade da estátua, iluminada pela luz solar com o fundo azul do céu. A imponência reforça o carácter hierático, elevando os deuses acima dos mortais^13. Algumas das imagens
(^13) As imagens lembram o filme de Rossellini, Viaggio in Italia (1953) , onde figuram estátuas do Museu de Nápoles, filmadas em longas panorâmicas. Na sequência 9, plano 140 do filme de Godard, o filme
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antigo, aquele de Homero. "O mundo real pertence a uma civilização que se desenvolve em acordo, e não em oposição com a natureza, e a beleza da Odisséia reside justamente nesta crença na realidade como ela é (Lang, plano 139).” (1995, p.48) Lang possui sua própria leitura da Odisséia , que é questionada e discutida entre os personagens. Ele afirma, em inglês: “cada imagem deve ter um ponto de vista definido” – o que Francesca traduz como: “em cada filme deve haver uma razão crítica” (sequência 3). O cineasta defende a tese de uma fidelidade ao texto de Homero, intentando representar a Odisséia como ela é. A posição de demiurgo faz com que Lang ocupe uma função paralela à do poeta, na medida em que cria uma imagem de mundo. A próposito da importância do ponto de vista, o próprio Godard afirma que o tema de O Desprezo “são as pessoas que se vêm e se julgam, pois são, por sua vez, vistas e julgadas pelo cinema [...]” (In: BERGALA, 1985. p.249).
É Lang que, através da nomeação, identifica os personagens representados em seu filme. Na sequência 3, que se passa na sala de projeção, os planos são tomados de forma que o cineasta ocupe a posição central da cena (fig. 7), com os outros personagens ao seu redor, alternadamente com as cenas projetadas. Uma das características mais marcantes de Lang é a sua sabedoria, inclusive o personagem demonstra grande erudição ao discutir Homero e citar diversos autores, como Dante, Corneille, Hölderlin e Brecht (BERGALA,^ 1985.^ p.59). Lang chega a recitar os versos de Dante de cor, traduzidos
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para o alemão, e esbanjar conhecimento, discutindo o sentido de duas das possíveis variantes do texto. Além de ter uma concepção própria do mundo antigo, Lang é ainda um poliglota, que fala as quatro línguas utilizadas no filme (francês, inglês, italiano e alemão).
Figura 7 – Sala de projeção. (GODARD , 1963)****. A erudição demonstrada pelo diretor ao discutir um detalhe do poema de Dante, longe de ser apenas uma querela literária, fornece subsídios para que o personagem teça considerações sobre a relação entre os homens e os deuses. Esta relação é uma das questões implícitas no debate gerado pela adaptação do texto homérico para o cinema. Uma outra questão trabalhada é a da transculturalização. O filme de Lang é também uma co-produção internacional, assim como o próprio filme de Godard. Os personagens são de origens diferentes, sendo Camille francesa, Paul italiano, Prokosh americano, Lang alemão, e Francesca Vanini de origem indeterminada, apesar de seu sobrenome italiano.
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apenas sexo, mas algo mais, por isso contrata Paul para que reescreva o roteiro. Nesse sentido, a maior parte do debate gira em torno de uma possível traição de Penélope, segundo a tese do produtor, e Paul a atribui ao seu sentimento de desprezo por Ulisses. Embora Penélope, tradicionalmente, seja o exemplo da esposa fiel, como iludiu por muito tempo os pretendentes com falsas promessas, tentando ganhar tempo até que seu marido retornasse da guerra, muitos questionaram o mito de sua fidelidade a Ulisses. Uma das cenas ilustrativas da questão da tradução entre a literatura e o cinema pode ser vista ao final da sequência na sala de projeção, quando o produtor, num acesso de fúria, derruba os rolos já filmados que o projecionista carregava, reclamando com o cineasta que as imagens exibidas não estavam no roteiro. Logo em seguida, confere o roteiro e confirma que sim, que constam no roteiro, mas que não é efetivamente o que está na tela. Lang, impassível, responde laconicamente: “naturalmente, pois no roteiro está escrito e na tela são imagens, motion-picture é como se chama”. A diferença a que se refere Lang reside justamente no exercício da tradução intersemiótica, desde o texto literário, passando pelo roteiro, até, finalmente, atingir- se o cinema. No final do diálogo temos uma cena extremamente expressiva, pois Prokosh toma uma das caixas de filme e a lança ao longe, mimetizando o movimento de um
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discóbulo (fig. 8). Vendo isso, Lang comenta: “finalmente você entendeu o espírito da cultura grega”. Ao agir deste modo, o produtor opera uma tradução, através da dramatização, da mimetização do movimento de um atleta, à maneira do teatro^14.
Figura 8 – Sala de projeção. (GODARD , 1963)****. Tendo em conta as considerações acima, sou levada a concluir que Godard apresenta uma reflexão sobre a identidade do cinema em relação com as outras artes e com outras épocas e culturas, através do exercício crítico de traduções intersemióticas e transculturais. Sobre este exercício crítico da transposição, cito EpsteIn:
Ver é idealizar, abstrair e extrair, ler e escolher, é transformar. Na tela revemos o que a câmera já viu uma
(^14) A cena apresenta também uma referência à famosa estátua grega
do Discóbulo, produzida por Miron por volta de 455 a.C., a qual conhecemos principalmente através das cópias romanas que restaram.