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Cinema e Hallucinação com Ayahuasca no Alto Ucayali: Um Estudo Fenomenológico, Exercícios de Antropologia

Uma análise etnográfica do cinema na região do alto ucayali, no peru, onde as pessoas se referem à hallucinogênica ayahuasca. O autor discute a maneira como o cinema difere das alucinações e dos sonhos, baseando-se na experiência pessoal de assistir a filmes em londres e na região do alto ucayali. O texto explora as formas diferentes de vivenciar o cinema e a hallucinação na comunidade local.

O que você vai aprender

  • Como o autor se relacionou com o cinema e a hallucinação durante sua estada no Alto Ucayali?
  • Como as pessoas do Alto Ucayali se referem ao cinema?
  • Quais são as diferenças culturais na percepção do cinema entre as pessoas do Alto Ucayali e europeus ou americanos?
  • Como o cinema difere das alucinações e dos sonhos para as pessoas do Alto Ucayali?
  • Qual é a importância da hallucinação com o ayahuasca na vida cotidiana do Alto Ucayali?

Tipologia: Exercícios

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Amanda_90
Amanda_90 🇧🇷

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Cinema da Floresta
Filme, Alucinação e Sonho
na Amazônia Peruana
PeterGow
Depto. de Antropologia Social -Univ. de Manchester
RESUMO: Este artigo tem co1no objetivo fazer uma etnografia fenomeno-
lógica do cinema a part ir do mund o vivido do Alto Ucaya li. Explora tam-
bém a analog ia que a popul ação local faz entre o cinema e o aluc inóge no
ayahuasca, que eles eles denominam o "cinema da floresta" e que torna
visíve is os seres poderosos, nonn almente in visíveis. Analisa-se ainda o
modo como cinema e alucinação diferem dos sonhos.
PALA VRAS-C HAVE: cinema e antropologia, fenotnenologia do cinema,
cinema e alucinóge no, Alto Ucaya li, Peru .
Trad ução de Heloisa Buarque de Almeida.
Revisão técn ica de Sylvia Caiuby Novaes.
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Baixe Cinema e Hallucinação com Ayahuasca no Alto Ucayali: Um Estudo Fenomenológico e outras Exercícios em PDF para Antropologia, somente na Docsity!

Cinema da Floresta

Filme, Alucinação e Sonho

na Amazônia Peruana

PeterGow

Dept o. de Antr op ologia Social - Univ. de Man chester

RESUMO: Este artigo tem co1no objetivo faze r um a etnografia fenomeno- lógica do cinema a part ir do mund o vivido do Al to Ucaya li. Ex plora tam- bém a analog ia que a popul ação loca l faz en tre o cinem a e o aluc inóge no ayahuasca, que eles eles denomin am o "c inem a da floresta" e qu e torn a visíve is os seres pode rosos, nonn almente in visíveis. A nalisa-se ai nda o modo com o ci nema e aluci nação diferem dos sonhos.

PALA VR AS-C HAVE: ci nema e antr opolog ia, fenotnenologia do cinema, ci nema e al ucinóge no, Alto Ucaya li, Peru.

Trad ução de Heloisa Bu arque de Almeida. Revisão técn ica de Sy lvia Caiuby Novaes.

PE TER Gow. CINEMA DA FLORESTA

Na região do Alto Ucayali, no leste do Peru, as pessoas ref ere m- se

joco same nte ao alucinógeno ayahuasca co1no e! cine de ,nonte, o ci-

ne1na da floresta. Este ensaio segue a direção indicada por esta metá - fora para fazer uma análise etnográfica do cine1na como uma experi- ência significativa no Alto Ucayali. Ocorreu-me discutir esta questão quando estava muito longe do Alto Ucayali, nos cine1nas de Londres. Assistir ao fihne de Werner Herzog,

Fitz.carraldo, e ao film e de Les Blank sobre e le, Burd en o.f Dr ea,ns,

ambos feitos na reg ião durante meu trabalho de campo, constituiu-se numa exper iênc ia inquietante e confusa. Ali na tela , ao lado de atores famosos e equipes de filmagem , havia u1na paisage m que conheci be1n, indivíduos que conheci pessoalmente, ou de ouvir falar, e fonnas de comportamento e linguagem com as quai s eu havia me familiarizado durante minha estada nessa região do Peru. Ta l familiaridade confe- riu à atividade aparenteme nte comum de " ir ao cinema" um aspecto estranho e misterio so. Por que estávamos todo s se ntados nessa gran- de sala escura, cahname nte atentos a u1na luz colorida e trê1nula e ao som que saía da parede? O hábito de ir ao cine1na havia se tornado estranho a mim, especialmente à maneira da qual eu 1nais gos tav a an- tes de viajar ao Alto Ucaya li: o cinema de arte feito por e para as clas- ses médias cultas do Ocidente. Não podia imaginar co1no exp licar este fenômeno às pessoas que contatei no Alto Ucayali, e isso me pertur - bou profunda tnente. Esta expe riência de perder o cinema foi , sem dúvida, urn intenso choque cultural. Co1n o tempo, o pr azer foi resta urado , mes 1no quan - do eu sent ia, ocas iona hnente, certa fa lta de se ntido dentro da sa la de cinema. Esta alienação passageira de um prazer centra l de 1ninha vida transformou-se também em uma que stão etnográfica: como as pessoas da região do A lto Ucaya li vivenciam o cinema e o que pensam sob re e le. Se, nu1n momento de choque cu ltura l, o cine 1na pôde perder o seu sentido para mim e se apresentar como uma convenção cu ltural arbi-

PETER Gow. C1NEMA DA FLORESTA

ti vos que fornecen1 elementos de inteligibilidade básica deste inundo. Aqui, minha análise segue o progra1na de trabalho de antropologia siinból ica proposto por Munn e1n seu estudo sobre a transformação do valor e111Gawa, Papua Nova Guiné ( 1986). Resun1indo, trata-se de u1na etnogra fia fenotneno lógíca do cinen1a. A área do Alto Ucaya li é extensa, 1nas na época do n1eu trabalho de ca rnpo, no início dos anos 80, sua popu]ação era de, no 1náximo, 1 O000 indivíduos espalhados ao longo dos rios Tambo, Bajo Uruba1nba e Alto Ucayali. A 1naioria da popul ação era fonnada por nativos da Amazônia, com línguas aruak e pano, alé1n de uma grande parte de indivíduo s do norte da reg ião a1nazônica. A elite local identifica- se principalmente corn origens não-a1nazônicas e, freqüentemente, não- peruana s (ver Gow , 199 1, para 1naiores detalhes sobre a região). A econom ia local é constituída de uma interação co1nplexa entre dois sistemas. Por um lado, há a econo1nian1ercantilextrativista de n1adeiras nobre s, cuja fonte de capital são os e1nprésti1nos oriundos da cidade de Pucallpa efetuados pela classe do1ninante loca], baseada e1nAtalaya, para os trabalhadore s nativos. Por outro lado, há urna eco no1nia de subsistência na qual os nativos produzem en1 interação co1n o ambi- ente do rio e da floresta. A econo1nia de subsistência é crucial tanto para fornecer mão-de-obra barata para extração de madeira como para criar as relaçõe s sociais básicas dos nativos. Esta economia política é antiga na região e está associada a 1node- los simbólico s generativos importantes que organizam aspectos da vida loca] aparente1nente dissonantes. Eles podetn ser resu1nidos da seguinte forma. A vida social, incluindo o processo histórico, é organizada pelo 1novimento entre dois pólo s: el ,nonte, a floresta, e afuera, o lado de fora. Ajuera é fora da floresta em geral e, mais espec ifica1nente, fora da Amazônia. As transações econô1nicas referentes à madeira são tro- cas de cosas de acá no niás, "coisas daqui" (como as madeiras nobres tropicai s) por cosasj inas , ou seja, produtos industriais. Generalizan-

REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃo PAULO, USP, 1995, v. 38 n º 2.

do, a vida socia l é u1na co1nbinação correta entre a floresta e o exterior.

Para alcançar esta co1nbinação ideal, há um processo delicado, cons- tantemente ameaçado de desrnoronar, separa ndo-se nas duas formas puras de cada pólo. Voltarei às ameaças potenciais mais tarde. Em geral, o rnodelo simbólico generativo tende a estar relacionado ao exterior e ao interior do corpo hutnano. A classe mais importante

das "coisas daqui" é a conzida legítinza, "comida de verdade", comida

da floresta e do rio, enquanto a classe mais importante de cosajhza é

ropa !eg íthna, "roupa de verdade'', importada e industrial. Juntas,

"cotnida de verdade" e "roupa de verdade" produzem o interior e o exterior de gente con10 nosotros, o povo local do Alto Ucaya li.

No Alto Ucayali, o cinema é uma das cosas finas, ainda que dificil-

1nente seja consutnido pelas pessoas da região. Sua única saída comer- cial na área, no início dos anos 80, era uma pequena sessão semanal organizada pelas freiras da missão da capital distrital Atalaya. Este cinema exibia o padrão do cinema rural peruano: filmes de kung-fu , filmes indiano~, faroestes do tipo spaghetti ivestern e filmes B norte-

americanos. Atalaya é o único povoado da região com u1n siste1na de

eletricidade público e regular (das 18 às 2 I horas), e não há recepção

televisiva. Portanto, excetuando-se a exibição ocasional de fihnes fei - ta pelos missionários nas con1unidades menores, este pequeno cine- rna era o único acesso local ao consun10 desse meio de con1unicação. Os cine 1nas comerciais regulares 1nais próxi1nos, onde os aparelhos de televisão funcionavam, localizavam-se a centenas de n1ilhas ao norte,

na cidade de Pucallpa. A exibição 1nais próxi1na de Fit~carraldo, de

Herzog - feito no Bajo U rubarnba na época de 1neu trabalho de cam- po, e le mesmo sendo uni (^) ,,dran1a social local relevante-, só aconteceu na capital do paí s, Lima. E be1n provável que ninguém do Alto Ucayali tenha assistido ao fihne. E1nbora provaveltnente algu1nas pessoas da região nunca tenhan assistido a u1n filrne, a n1aioria delas já teve um certo nível de cxperi-

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REVI STA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO , USP, 1995, v. 38 nº 2.

Elia, su ,nadre , se hâ metido por allí, y de al/í se han vuelto a venir estes paíias os. (E la, a n1ãe, se escondeu e, de onde estava, sa íra1n de novo as grande piranhas.)

O conceito de mãe da espécie é central para que as pessoas do Alto

Ucayali compreendam mais arnplan1ente os processos ecológicos, co-

mo discutirei mais adiante. Acredito que a "grande mãe piranha" seja

u1na piranha imensa e monstruosa, inatacável por predadores, que

coordena a produtividade da espécie. Não me lembro de nenhuma

"grande mãe piranha" no filme (apesar de ter perdido os 5 minutos

iniciais) e duvido de que os cineastas americano s tenham explorado

este uso tão específico da A1nazônia. No entanto, o relato do jovem

sobre os dois filmes confere um to1n intrinsecamente local e um cál-

culo tipicamente amazônico às duas narrativas: os problemas causa-

dos pela reconhecida ignorância dos f?ringos em relação ao compor-

tamento e às motivações das espécies animais selvagens.

Meu relato da aná lise local de Piranha II deve permanecer apenas

anedótico, pois não discuti a questão diretamente com os nativo s.

Provavelmente ouvi estes comentários apenas porque quem os fez

pensava que eu não entendia bem o castelhano. As pe ssoas da região

relutavam muito em expressar suas opiniões sobre certos assuntos -

corno fihnes - diretamente para mitn , pois presumiam que, co tno eu

e ra gri ngo , devia saber mai s do que eles. Portanto , em vez de arrisca-

re1n sofrer urna humilhação por dizer algo errado, as pessoas do Alto

Ucaya li tratava1n -me como se eu fo sse o informant e e faziam-1ne per-

guntas. O ato de respo nder às perguntas tornou-se um forma muito

difícil de recolh er dados etnográficos, considerando que eu não gra-

vei - e esqueci totalmente- as perguntas que me foram feitas e as res-

postas que dei. Deve ser por este mot ivo que os antropólogos procu-

ram ev itar o papel de informante e prefere1n que seja ocupado por

quem está se ndo o bse rvado.

Por so rte. na questão do ayahuasca, e! cine de ,nonte, "o cinema

PETER Gow. C1NEl\1A DA FLORl:STA

da floresta ", as posições invertera1n-se. Con10 u111 gr ingo , considera-

van1 que eu não co nhecia nada sobre est a planta a1nazônica e seu po-

tenc ial de alucinação. Assin1, volto-111eagora para o "c íne111ada flo-

resta" e seus significados.

Se assistir a fi1J11esé u111evento relativa1nente inco1nu111para o povo

do Alto lJcayali , as sessões de cura x"u11ânica con 1o uso do alucinó-

geno ayahuasca (Banisteriopsis sp.) é un1a característ ica difundida da

vida local. Virtualmente todas as pessoas que conhec i na região , ex-

cetua ndo crianç as pequena s e a 1naioria dos 111ission~írios, tomaran

ayahuasca durante o ritual de cura, e 1nuitos tomavam a droga co1n

regularidade. Ayalzuasca é ingerido tanto no contexto de Lnnadoença

severa, como por sua propriedad e geral de forn ece r saúde. Conside -

ra-se bom to1nar ayalzuasca, e 111uitos irnigrantes , que viera1n de fora

da Amazônia para o Alto Ucayali , descreven1 seu primeiro contato com

o ayahua sca con10 uma experiê ncia tran sfonnadora crucial.

Para ser bebido, parte do vinho de ayahuasca é fervido co1n folha s

de chacrona; o produto é nauseante111ente a1nargo. Ay ahuasca é u

poderoso alucinógeno que gera u111avariedade de efeitos nas hora s

seg uinte s à ingestão , sendo que os 111ais dran1áticos são uma náusea

vio lenta, distorção auricular e várias fonnas de alucinação visua l in-

tensa. Gera ta1nbé1numa euforia 111uitogrande e u1na sensação de be1n-

estar por vários dias.

A orige1111naisóbvia da 111etáfora"cine1nada floresta" para o ayahuasca

são as alucinações visuais e, de fato, co111enta-se111uito a sernelhança

entre as experiênc ias visuais do cinen1a e do ayahuasca. A droga sem-

pre é tomada no escuro , e as co111plexas alucinações visuais são o as-

pecto mai s important e da sensação de quetn a ingere. As alucinaçõe s

hacern ver, ''faze tn ver": tanto as origens da doença, co1no objetos de

feitiçaria brilhando no corpo de u1n doente, pa íses distantes, parentes

mortos ou distantes etc. Os nativos dize111: "Con ayahuasca, se vede

todo". Seria até melhor dizer que con1 ayahuasca tudo se torna visí-

PETER Gow. C INEMA DA FLORESTA

enfatiza-se a in1itação espontân ea de um produto es trang eiro e nor - mal men te refere-se a uma forrna u1n tan to 1nonstruo sa de cóp ia. Em cada caso, o item es tran ge iro é a "cois a de verdad e" e o da flor es ta, a imitação. Neste se ntido , ayahuasca é u1na cópia espo ntân ea e mon s- truosa do cinema verdadeiro. A capac idad e da flore sta de ge rar i1nitações mon struo sas de produ- tos estran ge iros faz parte de sua capacidad e ge ral de produ zir fonnas, es pontân ea e inexau st ivamente. A própria flor es ta , e tudo o que ela co ntém, é a manifestação externa da fertilidad e de seres poderosos que irradiam de si próprio s as espécies animais e vegetai s. A sachamania , a anaconda gigante da floresta , produz figuras; animais e planta s "vê 1n do seu corpo ". Como dize1n a respeito de sacham c11na, "o nde ela está , estão os anima s". Como aspecto crí tico da radiação de vida natural , a 1nanife stação externa da floresta , sua aparê ncia, con stitui uma espéc ie de alucin a- ção indu zida. A flore sta apena s parece ser uma exten são de árvores e outra s planta s. Na realidade, é uma cidade repleta de pe ssoa s. Essas pessoa s são os se res poderoso s que produze1n forma s visuai s atravé s de suas canções. A aparência visual manife sta é u1n produto de seu conhecimento. Seu conhecimento , no enta nto , constitui- se de uma visualização verdadeira. Este conhecimento dos seres podero sos só pode ser alcançado pelos humano s atravé s da inge stão de aya huasca. Através do ayahuasca, a flore sta como interior é interiorizada no cor- po, que desta maneira transcende sua capacidade se nso rial cotidiana para permitir ao sujeito acesso visual direto à verdadeira natureza da aparência visível, como as cidades e os co rpo s do s seres poderosos. Este processo pode escla recer- se com referê ncia ao n1odo pelo qual a própria experiência costuma se r de scr ita. Certo tempo depoi s de ingerida a infu são, o ayahuasca começa a agir sob a forma de anacon- das que e1nergem da escuridão e enrola1n-se ern volta do estômago de quem a bebeu , depois forçam a entrada pela boca e de sce 1n até o es-

REVISTA DE ANTROPOLOGIA , SÃOPAULO, USP, 1995, v. 38 nº 2.

tômago para causar náusea e vômito intensos. Trata-se das alucina- ções iniciais de medo, que são descartadas por serem mentiras. Nesta fase, a ayahuasca,na,na, o ser poderoso, revela-se inicialmente àque- les que ingeriram sua forma cotidiana, o vinho ayahuasca. O interior do corpo começa a vir à superfície e a circundar o sujeito. Nas fases subseqüentes de intensa alucinação, quando a ayahuascamama re- vela-se sob sua verdadeira fonna de uma bela mulher que canta e

mostra a realidade oculta à pessoa que tomou a droga, há uma sen-

sação de euforia corporal , normalmente mencionada pelos nativos como "vôo". Assim, o ayahuasca é uma planta da floresta que permite o aces- so à verdadeira identidade visual da floresta, como o cinema, um pro- duto estrangeiro, permite acesso visual a países distantes, ao "lado de fora". Mas há uma diferença central entre o cine1na e o ayahuasca. O ci- nema não é, de forma nenhuma, o "ayahuasca do mundo de fora". A metáfora central de Fitzcarraldo, de Herzog, pode se assemelhar a esta noção, pois a ação dos personagen s, Fitzcarraldo e os jivaro s, demons-

tra sua fé nos so nhos como a única realidade verdadeira e é, assim,

metáfora do próprio argumento de Herzog de que o cinema é um meio

para os sonhos. Este conceito é totalmente estranho ao povo do Alto

Ucaya li, porque o " lado de fora" não pode imitar espontaneamente a floresta. A produção e a irradiação complexa de 1naterial constituem o processo central do " lado de fora", assim co1no o da floresta. Mas a criação do " lado de fora" realiza-se através das pessoas. Diferentemen-

te da floresta, que é o produto espontâneo do conhecimento de seres

poderosos, as coisas finas que vêm de fora exigem contribuição hu- mana, tanto o conhecimento dos gringos, estrangeiros brancos, como todos os produtos locais. A maioria das pessoas do Alto Ucayali tem apenas uma noção simplista do que acontece com todas as 1natérias- primas que mandam para fora , borracha , algodão, barbasco, couro ani-

REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, I 995, v. 38 nº 2.

O próprio filme chega ao Alto Ucayali vindo de fora, de lugares dis-.,, tantes e exóticos como Estados Unidos, India e Hong Kong. As pes-

soas, os lugares e os eventos do fi Jrne são dessas regiões distantes. E les

são intri gantes e divertidos, mas decididarnente exteriores; apenas in- forma1n como é o mundo externo. Claro que o tipo de informação que tais filmes fornecem não coin- cide com a intenção do c ineasta. Por este 1notivo, é possível que as pessoas do A lto Ucayali assistam e divirtam-se com Piranha 11, além de considerá-lo 1nais u1na evidência da ignorância dos gringos em re- lação às espécies animais silvestres. Pelos mesmos motivos, é possí- vel que eles ass istam ao fihne e divirtam-se sem compartilhar daquela que seria uma precondição, em termos de vivência, para as platéias euro-americanas: o conhecimento de que a piranha é um peixe peri- goso e voraz, de urna região despovoada do perigoso e voraz Tercei- ro Mundo. Até aqui, analisei tanto o cine1na quanto o ayahuasca como formas de vivência dentro da vida cotidiana do Alto Ucayali. Mas, para con- cluir, quero voltar-me rapidamente a mais u1n aspecto dos modelo s simbólicos generativos da existência social a que me referi antes. Co- mentei que a vida social é compreendida como uma combinação pre- cária de diferenças constantemente ameaçada de desmoronar , separan- do-se nas formas puras de polaridade opostas em que se baseia (ver

Overing, 1981, e Gow, 1991 e 1993, para uma discussão deste te1na

nas culturas nativas da Amazônia). Tanto o cinema como oayahuasca contêm as precondições que evidencia1n a possibilidade deste colap- so em 1nundos puros, que destruiria a vida social.

O ayahuasca permite acesso à potência de seres poderosos , pelo

menos quanto à saúde. O consumo regular de ayahuasca torna o usário um xamã co1n poderes transformadores progressiva1nente maiores. O consumo constante pode transformá-lo completamente num ser pode - roso. Um corpo totalmente sustentado pelo ayahuasca , no qual o in-

PETER Gow. CINEMA DA FLORESTA

terior do corpo é o interior da floresta, gera um sujeito em comp leta e constante alucinação, ou seja, u1nser poderoso como ayahuascamcana. Esta transformação é um dos perigos constantes do xamanismo do ayahuasca, pois significa o colapso dos poderes da floresta em uma fonna pura, exc luindo a vida soc ial corrente e destruindo-a. Há a possibilidade lógica de que o cinema també1n possa entrar em colapso, tornando -se apenas sua forma pura de exter ioridade. No en- tanto, ninguém no Alto Ucaya li diria este tipo de coisa para mim, já que , presu1nivelmente, esta é a coisa monstruosa de 1ninhaprópria vida, aqui no mundo de fora. No entanto, há uma sugestão dessa possibilidade pelas ramificações de um evento real no Bajo Urubamba em 198 l: a fi]mage111 deFit zcarraldo, de Werner Herzog, no rio Camisea, os nativos de Campa e Machiguenga como atores. Seria necessário um livro para exp licar o que realmente aconteceu, com sua sutileza e densa comp lexidade (o livro que estou escrevendo atua hnente), 1nas um aspecto pode ser fonnulado. Muita s pessoas da região ficaram com um 1nedo profundo de Herzog e de sua equipe, e foram perturbadas por suas atividade s (ver B]ank e Bogan, 1984). Entretanto, este 1nedo nunca se expressou e1nrelação ao filme que e le dirigia: ninguém sugeriu que o fihne poderia representar 1nal a realidad e local, não mencionar a perspectiva deles , ou qualquer pro- blema semelhant e. De fato, a maioria das pessoas ne1n acreditava que ele estivesse realizando u111fihne. Ao contrário, pensava1n que ele ti- nha vindo para matar pessoas da região e roubar suas peles faciais para usá-las em cirurgias plásticas na Alemanha. Co1nentava-se que esta pele seria usada para repor aquela envelhecida dos iringos, trazendo-lhes a juventude perdida. O conteúdo deste boato te1n precondições histórica s precisas rela- cionadas ao medo generalizado dos g rillgos , às mudanças na econo- mia local , ao conhecimento cos1nológico local e ao movimento de ru- mores no Alto Ucayali sobre o fihne anterior de Herzog , realizado na

PETER Gow. CINEMA DA FLORESTA

do Alto Ucaya li con1 o cine1naque se encaixa no siste111amais an1plo de experiê ncia significativa, do qual é apenas u1napequena parte. Desta forma, enfatizei certas fonnas-chave de encadeamento metafórico que associa domínios distantes: con10 a alucinação do ayahuasca asse111e- lha-se ao cinema, como difere do sonho e a atenção a disposições experime ntais específicas que se associan1 a noções de se111elhança e diferença. Meu propósito aqui era essencialmente etnográfico; este ensaio deve ser validado ou criticado por este padrão. Minha questão mais geral é u111"lugar-comum·' na antropologia: povos diferentes observa1naspec- tos diversos de seu arnbiente e atribuem valores diferent es às suas experiências. Mas há u111aquestão mais profunda, que me faz retornar à crítica das abordagens do cine111a sob o aspecto da perspectiva e da representação. Não surpreende que o povo do Alto Ucayali interpre- te Piranha II de fonn a diversa de um público europeu ou an1ericano. Muito mai s surpreendente é o fato de que Herzog possa fazer u111fil- me na região compartilhando tão pouco com os nativos quanto ao sig- nificado do cinema e, de fato, assumindo uma metáfora básica entre cinema , visões e sonhos totalmente distante do povo da região. Mas, em co njunto, estes dois fatos apontan1 para uma possibilidade fasci- nante: a indústria globa l de produção , distribuição e exibição do cine- ma pode funcionar com sucesso seni significados cornpart ilhados en- quanto os agentes do siste111aassu1n irem que os significados são comuns. Esta possibilid ade deveria esti1nular a i1naginação antropológica.

Agradecimentos

A pesquisa na região do Alto Ucaya li foi financiada pelo Social Science Research Council da Grã-Bretanha e pela Nuffield Foundation. Pelo s seus co1nentários nas versões n1ais recentes deste ensaio, gos- taria de agradecer a Cecília McCallun1, Margaret Wi1lson, Laura Mulvey,

REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 1995, v. 38 nº 2.

Marilyn Strathern, Andrew Holding e especialmente a Sylvia Caiuby

Novaes. Espero que minha dívida intelectual para com o trabalho de

Patricia Deshaye e Barbara Keiffenheí1n , Nawan ]uni, seja suficiente-

mente óbvia.

Notas

l N. T.: No orig inal , "perspec tiva! and reprcsentational".

Bibliografia

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