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Chaui Cultura e Democracia.pdf, Esquemas de Cultura

Cultura e democracia. Marilena Chaui. Abstract. This text reconstructs the meanings of the term culture, whose different senses.

Tipologia: Esquemas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

EmiliaCuca
EmiliaCuca 🇧🇷

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CyE
Año I
Nº 1
Junio
2008
Cultura e
democracia
Marilena Chaui
Abstract
This text reconstructs the meanings of
the term cul ture, whose different se nses
vary according to the intellectual and
political context of a certain period,
when during the age of enlightenment,
the capitalist cultural model of West-
ern Europe is placed as the maximum
reference. Simultaneously, it becomes
a tool of valuation and hierarchysa-
tion of political regimes and social
classes, legitimating the domination
and exploitation processes. Within
this general framework, it criticizes
mass culture and communication, as
a way of veiling such processes, thus
creating a whole range of standard
cultural products and services through
the massive means of communica-
tion and other tools that cover up class
Resumo
O presente texto reconstitu i os sig-
nificados da palavra cultura, cujas
diferentes acepções variarão confor-
me o contexto intelec tual e pol ítico
da época, quando no iluminismo,
coloca-se como referência máxima o
modelo cultural capita lista da Euro-
pa Ocidental. Simultanea mente pas-
sa a ser instrumento de avaliação e
hierarquização dos regimes políticos
e classes sociais, legitima ndo os pro-
cessos de dominação e exploração.
Neste marco geral, critica a cultura e
comunicação de massas, como forma
de ocultar estes processos, cria ndo
toda uma gama de produtos e ser-
viços culturais médios através dos
meios de comunicação de massa e
outras ferramentas, que encobrem a
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Cultura e

democracia

Marilena Chaui

Abstract This text reconstructs the meanings of the term culture, whose different senses vary according to the intellectual and political context of a certain period, when during the age of enlightenment, the capitalist cultural model of West- ern Europe is placed as the maximum reference. Simultaneously, it becomes a tool of valuation and hierarchysa- tion of political regimes and social classes, legitimating the domination and exploitation processes. Within this general framework, it criticizes mass culture and communication, as a way of veiling such processes, thus creating a whole range of standard cultural products and services through the massive means of communica- tion and other tools that cover up class

Resumo O presente texto reconstitui os sig- nificados da palavra cultura, cujas diferentes acepções variarão confor- me o contexto intelectual e político da época, quando no iluminismo, coloca-se como referência máxima o modelo cultural capitalista da Euro- pa Ocidental. Simultaneamente pas- sa a ser instrumento de avaliação e hierarquização dos regimes políticos e classes sociais, legitimando os pro- cessos de dominação e exploração. Neste marco geral, critica a cultura e comunicação de massas, como forma de ocultar estes processos, criando toda uma gama de produtos e ser- viços culturais médios através dos meios de comunicação de massa e outras ferramentas, que encobrem a

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struggle; this is developed because the massification of culture is, in fact, its denial. Then it deals with the issue of culture as a right, the affirmation of which is in opposition to the neoliberal culture, which transforms culture into merchandise, products and services to be sold in the market, thus becoming a class privilege and a tool to preserve the ongoing scheme. In accordance with such viewpoint, it analyses the cultural and democratic issues in the light of the Brazilian experience. Finally, it deline- ates what would be a concrete democ- racy, that is to say, a democracy within the socialist framework.

luta de classes; e descreve porque a massificação da cultura é, de fato, a sua negação. Posteriormente tratará da questão da cultural como um di- reito, cuja afirmação é a oposição à política neoliberal, que transforma a cultura em produtos e serviços a serem vendidos no mercado, consti- tuindo-se, portanto, em privilégio de classe e instrumento de manutenção da ordem vigente. Segundo esta con- cepção, analisa as questões cultural e democrática à luz da experiência bra- sileira. Por fim, traça algumas linhas do que seria uma democracia concre- ta, ou seja, a democracia no marco socialista.

Professor at the Philosophy Department of Universidade de São Paulo. Specialist in Political Philosophy and History of Philosophy.

Marilena Chaui Professora do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Especialista em filosofia-política e história da filosofia.

Palavras-chave 1| Cultura 2| Democracia 3| Socialismo 4| Neoliberalismo 5| Direitos 6| Comunicação de Massa

Keywords 1| Culture 2| Democracy 3| Socialism 4| Neoliberalism 5| Rights 6| Mass Communication

Como citar este artigo [Norma ISO 690] CHAUI, Marilena. Cultura e democracia. Crítica y Emancipación , (1): 53-76, junio 2008.

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a evolução ou o grau de progresso de uma cultura e esse padrão foi, evidentemente, o da Europa capitalista. As sociedades passaram a ser avaliadas segundo a presença ou a ausência de alguns elementos que são próprios do ocidente capitalista e a ausência desses elementos foi considerada sinal de falta de cultura ou de uma cultura pouco evoluí- da. Que elementos são esses? O Estado, o mercado e a escrita. Todas as sociedades que desenvolvessem formas de troca, comunicação e poder diferentes do mercado, da escrita e do Estado europeu, foram definidas como culturas “primitivas”. Em outras palavras, foi introduzido um conceito de valor para distinguir as formas culturais. A noção do primitivo só pode ser elaborada se for determi- nada pela figura do não-primitivo, portanto pela figura daquele que re- alizou a “evolução”. Isso implica não apenas um juízo de valor, porém mais do que isso, significa que aqueles critérios se tornaram definido- res da essência da cultura, de tal modo que se considerou que aquelas sociedades que “ainda” estavam sem mercado, sem escrita e sem Estado chegariam necessariamente a esse estágio, um dia. A cultura européia capitalista não apenas se coloca como télos, como o fim necessário do desenvolvimento de toda cultura ou de toda civilização, isto é adota uma posição etnocêntrica, mas sobretudo ao se oferecer como modelo necessário do desenvolvimento histórico legitimou e justificou, pri- meiro, a colonização e, depois, o imperialismo. No século XIX, sobretudo com a filosofia alemã, a idéia de cultura sofre uma mutação decisiva porque é elaborada como a diferença entre natureza e história. A cultura é a ruptura da adesão imediata à natureza, adesão própria aos animais, e inaugura o mundo humano propriamente dito. A ordem natural ou física é regida por leis de causalidade necessária que visam o equilíbrio do todo. A ordem vital ou biológica é regida pelas normas de adaptação do organismo ao meio ambiente. A ordem humana, porém, é a ordem simbólica, isto é, da capacidade humana para relacionar-se com o ausente e com o possível por meio da linguagem e do trabalho. A dimensão humana da cultura é um movimento de transcendência, que põe a existência como o poder para ultrapassar uma situação dada graças a uma ação dirigi- da àquilo que está ausente. Por isso mesmo somente nessa dimensão é que se poderá falar em história propriamente dita. Pela linguagem e pelo trabalho o corpo humano deixa de aderir imediatamente ao meio, como o animal adere. Ultrapassa os dados imediatos dos sinais e dos objetos de uso para recriá-los numa dimensão nova. A linguagem e o trabalho revelam que a ação humana não pode ser reduzida à ação vital, expediente engenhoso para alcançar um alvo fixo, mas que há um sentido imanente que vincula meios e fins, que determina o de-

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senvolvimento da ação como transformação do dado em fins e destes em meios para novos fins, definindo o homem como agente histórico propriamente dito com o qual inaugura-se a ordem do tempo e a des- coberta do possível. É essa concepção ampliada da cultura que, finalmente, será incorporada a partir da segunda metade do século XX, pelos antropó- logos europeus. Seja por terem uma formação marxista, seja por terem um profundo sentimento de culpa, buscarão desfazer a ideologia etno- cêntrica e imperialista da cultura, inaugurando a antropologia social e a antropologia política, nas quais cada cultura exprime, de maneira historicamente determinada e materialmente determinada, a ordem humana simbólica com uma individualidade própria ou uma estrutu- ra própria. A partir de então, o termo cultura passa a ter uma abran- gência que não possuía antes, sendo agora entendida como produção e criação da linguagem, da religião, da sexualidade, dos instrumentos e das formas do trabalho, das formas da habitação, do vestuário e da culinária, das expressões de lazer, da música, da dança, dos sistemas de relações sociais, particularmente os sistemas de parentesco ou a es- trutura da família, das relações de poder, da guerra e da paz, da noção de vida e morte. A cultura passa a ser compreendida como o campo no qual os sujeitos humanos elaboram símbolos e signos, instituem as práticas e os valores, definem para si próprios o possível e o impossível, o sentido da linha do tempo (passado, presente e futuro), as diferenças no interior do espaço (o sentido do próximo e do distante, do grande e do pequeno, do visível e do invisível), os valores como o verdadeiro e o falso, o belo e o feio, o justo e o injusto, instauram a idéia de lei, e, portanto, do permitido e do proibido, determinam o sentido da vida e da morte e das relações entre o sagrado e o profano. Entretanto, que essa abrangência da noção de cultura es- barra, nas sociedades modernas, num problema: o fato de serem, jus- tamente, sociedades e não comunidades. A marca da comunidade é a indivisão interna e a idéia de bem comum; seus membros estão sempre numa relação face-a-face (sem mediações institucionais), possuem o sentimento de uma uni- dade de destino, ou de um destino comum, e afirmam a encarnação do espírito da comunidade em alguns de seus membros, em certas circunstâncias. Ora, o mundo moderno desconhece a comunidade: o modo de produção capitalista dá origem à sociedade , cuja marca pri- meira é a existência de indivíduos, separados uns dos outros por seus interesses e desejos. Sociedade significa isolamento, fragmentação ou atomização de seus membros, forçando o pensamento moderno a in- dagar como os indivíduos isolados podem se relacionar, tornar-se só-

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ca busca universalizar a cultura popular por meio do nacionalismo, ou seja, transformando-a em cultura nacional; a ilustrada ou iluminista propõe a desaparição da cultura popular por meio da educação formal, a ser realizada pelo Estado; e a populista pretende trazer a “consciência correta” ao povo para que a cultura popular se torne revolucionária (na perspectiva das vanguardas de esquerda) ou se torne sustentáculo do Estado (na perspectiva dos populismos de direita). Mudemos, porém, nosso foco de análise. Graças às análi- ses e criticas da ideologia, sabemos que o lugar da cultura dominante é bastante claro: é o lugar a partir do qual se legitima o exercício da ex-

ploração econômica, da dominação política e da exclusão social. Mas esse lugar também torna mais nítida a cultura popular como aquilo que é elaborado pelas classes populares e, em particular, pela classe tra- balhadora, segundo o que se faz no pólo da dominação, ou seja, como repetição ou como contestação, dependendo das condições históricas e das formas de organização populares. Por isso mesmo é preciso levar em conta a maneira como a divisão cultural tende a ser ocultada e, por esse motivo, reforçada com o surgimento da cultura de massa ou da indústria cultural. Como opera a indústria cultural? Em primeiro lugar, separa os bens culturais pelo seu su- posto valor de mercado: há obras “caras” e “raras”, destinadas aos pri- vilegiados que podem pagar por elas, formando uma elite cultural; e há obras “baratas” e “comuns”, destinadas à massa. Assim, em vez de garantir o mesmo direito de todos à totalidade da produção cultural, a indústria cultural sobre-determina a divisão social acrescentando-lhe a divisão entre elite “culta” e massa “inculta”. Em segundo, contraditoriamente com o primeiro aspecto, cria a ilusão de que todos têm acesso aos mesmos bens culturais, cada um escolhendo livremente o que deseja, como o consumidor num super-mercado. No entanto, basta darmos atenção aos horários dos

Todas as sociedades que desenvolvessem formas de troca, comunicação e poder diferentes do mercado, da escrita e do Estado europeu, foram definidas como culturas “primitivas”.

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programas de rádio e televisão ou ao que é vendido nas bancas de jornais e revistas para vermos que as empresas de divulgação cultural já selecionaram de antemão o que cada classe e grupo sociais pode e deve ouvir, ver ou ler. No caso dos jornais e revistas, por exemplo, a qualidade do papel, a qualidade gráfica de letras e imagens, o tipo de manchete e de matéria publicada definem o consumidor e determi- nam o conteúdo daquilo a que terá acesso e o tipo de informação que poderá receber. Se compararmos, numa manhã, cinco ou seis jornais, perceberemos que o mesmo mundo – este no qual todos vivemos – transforma-se em cinco ou seis mundos diferentes ou mesmo opos- tos, pois um mesmo acontecimento recebe cinco ou seis tratamentos diversos, em função do leitor que a empresa jornalística tem interesse (econômico e político) de atingir. Em terceiro lugar, inventa uma figura chamada “especta- dor médio”, “ouvinte médio” e “leitor médio”, aos quais são atribuídas certas capacidades mentais “médias”, certos conhecimentos “médios” e certos gostos “médios”, oferecendo-lhes produtos culturais “médios”. Que significa isso? A indústria cultural vende cultura. Para vendê-la, deve seduzir e agradar o consumidor. Para seduzi-lo e agradá-lo, não pode chocá-lo, provocá-lo, fazê-lo pensar, trazer-lhe informações no- vas que o perturbem, mas deve devolver-lhe, com nova aparência, o que ele já sabe, já viu, já fez. A “média” é o senso-comum cristalizado, que a indústria cultural devolve com cara de coisa nova. Em quarto lugar, define a cultura como lazer e entreteni- mento. Hannah Arendt apontou a transmutação da cultura sob os im- perativos da comunicação de massa, isto é, a transformação do trabalho cultural, das obras de pensamento e das obras de arte, dos atos cívicos e religiosos e das festas em entretenimento. Evidentemente, escreve ela, os seres humanos necessitam vitalmente do lazer e do entretenimen- to. Seja, como mostrou Marx, para que a força de trabalho aumente sua produtividade, graças ao descanso, seja, como mostram estudiosos marxistas, para que o controle social e a dominação se perpetuem por meio da alienação, seja, como assinala Arendt, por que o lazer e o en- tretenimento são exigências vitais do metabolismo humano. Ninguém há de ser contrário ao entretenimento, ainda que possa ser crítico das modalidades do entretenimento que entretêm a dominação social e política. Seja qual for nossa concepção do entre- tenimento, é certo que sua característica principal não é apenas o re- pouso, mas também o passatempo. É um deixar passar o tempo como tempo livre e desobrigado, como tempo nosso (mesmo quando esse “nosso” é ilusório). O passatempo ou o entretenimento dizem respeito ao tempo biológico e ao ciclo vital de reposição de forças corporais e

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A dimensão econômica e social da nova forma do capital é inseparável de uma transformação sem precedentes na experiência do espaço e do tempo, designada por David Harvey como a “compressão espaço-temporal”. A fragmentação e a globalização da produção eco- nômica engendram dois fenômenos contrários e simultâneos: de um lado, a fragmentação e dispersão espacial e temporal e, de outro, sob os efeitos das tecnologias eletrônicas e de informação, a compressão do espaço – tudo se passa aqui, sem distâncias, diferenças nem fron- teiras – e a compressão do tempo – tudo se passa agora, sem passado e sem futuro. Em outras palavras, fragmentação e dispersão do espaço e do tempo condicionam sua reunificação sob um espaço indiferenciado (um espaço plano de imagens fugazes) e um tempo efêmero desprovi- do de profundidade. Paul Virilio (1993) fala de acronia 2 e atopia 3 , ou da desaparição das unidades sensíveis do tempo e do espaço vivido sob os efeitos da revolução eletrônica e informática. A profundidade do tempo e seu poder diferenciador desaparecem sob o poder do instan- tâneo. Por seu turno, a profundidade de campo, que define o espaço da percepção, desaparece sob o poder de uma localidade sem lugar e das tecnologias de sobrevôo. Vivemos sob o signo da telepresença e da teleobservação, que impossibilitam diferenciar entre a aparência e o sentido, o virtual e o real, pois tudo nos é imediatamente dado sob a forma da transparência temporal e espacial das aparências, apresenta- das como evidências. Volátil e efêmera, hoje nossa experiência desconhece qual- quer sentido de continuidade e se esgota num presente sentido como instante fugaz. Ao perdermos a diferenciação temporal, não só ruma- mos para o que Virilio chama de “memória imediata”, ou ausência da profundidade do passado, mas também perdemos a profundidade do futuro como possibilidade inscrita na ação humana enquanto poder para determinar o indeterminado e para ultrapassar situações dadas, compreendendo e transformando o sentido delas_._ Em outras palavras, perdemos o sentido da cultura como ação histórica.

2 Em grego, kronos significa tempo, donde cronologia, cronômetro, etc.; acronia significa: sem tempo, ausência do tempo. 3 Em grego, topos significa lugar, o espaço diferenciado por lugares e por qualida- des como próximo, distante, alto, baixo, pequeno, grande, etc., donde topologia, topografia; atopia significa: sem lugar, ausência de um espaço diferenciado. De topos vem utopia , que, segundo alguns, significa lugar nenhum e, segundo outros, lugar perfeito ainda inexistente.

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II

Massificar é o contrário de democratizar a cultura. Ou melhor, é a ne- gação da democratização da cultura. O que pode ser a cultura tratada do ponto de vista da de- mocracia? O que seriam uma cultura da democracia e uma cultura democrática? Quais os problemas de um tratamento democrático da cultura, portanto, de uma cultura da democracia, e da realização da cultura como visão democrática, portanto, de uma cultura democrá- tica? Essas perguntas sinalizam alguns dos problemas a enfrentar. Em primeiro lugar, o problema da relação entre cultura e Estado; em se-

gundo, a relação entre cultura e mercado; em terceiro, a relação entre cultura e criadores. Se examinarmos o modo como tradicionalmente o Estado opera no Brasil, podemos dizer que, no tratamento da cultura, sua ten- dência foi antidemocrática. Não por ser o Estado ocupado por este ou aquele grupo dirigente, mas pelo modo mesmo como o Estado visou a cultura. Tradicionalmente, sempre procurou capturar toda a criação social da cultura sob o pretexto de ampliar o campo cultural público, transformando a criação social em cultura oficial , para fazê-la operar como doutrina e irradiá-la para toda a sociedade. Assim, o Estado se apresentava como produtor de cultura , conferindo a ela generalidade nacional ao retirar das classes sociais antagônicas o lugar onde a cul- tura efetivamente se realiza. Há, ainda uma outra modalidade de ação estatal, que data dos anos 1990, em que o Estado propõe o “tratamento moderno da cultura” e considera arcaico apresentar-se como produtor oficial de cultura. Por modernidade, os governantes entendem os cri- térios e a lógica da indústria cultural, cujos padrões o Estado busca re- petir, por meio das instituições governamentais de cultura. Dessa ma- neira, o Estado passa a operar no interior da cultura com os padrões de mercado. Se, no primeiro caso, oferecia-se como produtor e irradiador de uma cultura oficial, no segundo, oferece-se como um balcão para

Volátil e efêmera, hoje nossa experiência desconhece qualquer sentido de continuidade e se esgota num presente sentido como instante fugaz.

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la como trabalho da inteligência, da sensibilidade, da imaginação, da reflexão, da experiência e do debate, e como trabalho no interior do tempo, é pensá-la como instituição social , portanto, determinada pelas condições materiais e históricas de sua realização. O trabalho, como sabemos, é a ação que produz algo até então inexistente, graças à transformação do existente em algo novo. O trabalho livre ultrapassa e modifica o existente. Como trabalho, a cultura opera mudanças em nossas experiências imediatas, abre o tempo com o novo, faz emergir o que ainda não foi feito, pensado e dito. Captar a cultura como trabalho significa, enfim, compreender que o resultado cultural (a obra) se oferece aos outros sujeitos sociais, se expõe a eles, como algo a ser recebido por eles para fazer parte de sua inteligência, sensibilidade e imaginação e ser retrabalhada pelos receptores, seja por que a interpretam, seja por que uma obra suscita a criação de outras. A exposição das obras culturais lhes é essencial, existem para serem dadas à sensibilidade, percepção, inteligência, re- flexão e imaginação dos outros. Eis por que o mercado cultural explora essa dimensão das obras de arte, isto é, o fato de que são espetáculo, submetendo-as ao show business. Se o Estado não é produtor de cultura nem instrumento para seu consumo, que relação pode ele ter com ela? Pode concebê-la como um direito do cidadão e, portanto, assegurar o direito de acesso às obras culturais produzidas, particularmente o direito de fruí-las, o direito de criar as obras, isto é, produzi-las, e o direito de participar das decisões sobre políticas culturais. Que significa o direito de produzir obras culturais? Se con- siderar-se a cultura como o conjunto das belas-artes, então se poderia supor que esse direito significaria, por exemplo, que está aberto a todos o direito de ser pintor. Afinal, cada um de nós, um dia ou outro, tem vontade de fazer uma aquarela, um guache, um desenho, e poder-se-ia estabelecer uma política cultural que espalhasse pelas cidades ateliês de pintura, aulas e grupos de pintura. Essa política não garantiria o direito de produzir obras de pintura e sim um hobby , um passatempo e, no melhor dos casos, uma ludoterapia. Que é a pintura? A expressão do enigma da visão e do visível: enigma de um corpo vidente e visível, que realiza uma reflexão corporal por que se vê vendo; enigma das coisas visíveis, que estão simultaneamente lá fora, no mundo, e aqui dentro, em nossos olhos; enigma da profundidade, que não é uma terceira di- mensão ao lado da altura e da largura, mas aquilo que não vemos e, no entanto, nos permite ver; enigma da cor, pois uma cor é apenas dife- rença entre cores; enigma da linha, pois ao oferecer os limites de uma coisa, não a fecha sobre si, mas a coloca em relação com todas as outras.

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O pintor interroga esses enigmas e seu trabalho é dar a ver o visível que não vemos quando olhamos o mundo. Se, portanto, nem todos são pintores, mas praticamente todos amam as obras da pintura, não seria melhor que essas pessoas tivessem o direito de ver as obras dos artistas, fruí-las, serem levadas a elas? Não caberia ao Estado garantir o direito dos cidadãos de ter acesso à pintura – aos pintores garantir o direito de criá-la; aos não-pintores, o direito de frui-la? Ora, essas mesmas pessoas, que não são pintoras nem es- cultoras nem dançarinas, também são produtoras de cultura, no senti- do antropológico da palavra: são, por exemplo, sujeitos, agentes, auto- res da sua própria memória. Por que não oferecer condições para que possam criar formas de registro e preservação da sua memória, da qual são os sujeitos? Por que não oferecer condições teóricas e técnicas para que, conhecendo as várias modalidades de suportes da memória (do- cumentos, escritos, fotografias, filmes, objetos, etc.), possam preservar sua própria criação como memória social? Não se trata, portanto, de excluir as pessoas da produção cultural e sim de, alargando o concei- to de cultura para além do campo restrito das belas-artes, garantir a elas que, naquilo em que são sujeitos da sua obra , tenham o direito de produzi-la da melhor forma possível. Finalmente, o direito à participação nas decisões de polí- tica cultural é o direito dos cidadãos de intervir na definição de dire- trizes culturais e dos orçamentos públicos, a fim de garantir tanto o acesso quanto à produção de cultura pelos cidadãos. Trata-se, pois, de uma política cultural definida pela idéia de cidadania cultural , em que a cultura não se reduz ao supérfluo, en- tretenimento, aos padrões do mercado, à oficialidade doutrinária (que é ideologia), mas se realiza como direito de todos os cidadãos, direito a partir do qual a divisão social das classes ou a luta de classes possa manifestar-se e ser trabalhada porque no exercício do direito à cultura, os cidadãos, como sujeitos sociais e políticos, se diferenciam, entram em conflito, comunicam e trocam suas experiências, recusam formas de cultura, criam outras e movem todo o processo cultural.

III

Afirmar a cultura como um direito é opor-se à política neoliberal, que abandona a garantia dos direitos, transformando-os em serviços vendi- dos e comprados no mercado e, portanto, em privilégios de classe. Essa concepção da democratização da cultura pressupõe uma concepção nova da democracia. De fato, estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como regime da lei e da or- dem para a garantia das liberdades individuais. Visto que o pensamento

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mediações institucionais para que possa exprimir-se. A democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra dificuldade de- mocrática nas sociedades de classes: como operar com os conflitos quando estes possuem a forma da contradição e não a da mera oposição?

− Forma sócio-política que busca enfrentar as dificuldades acima apontadas conciliando o princípio da igualdade e da liberdade e a existência real das desigualdades, bem como o princípio da legitimidade do conflito e a existência de contradições materiais introduzindo, para isso, a idéia dos direitos (econômicos, sociais, políticos e culturais). Graças aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entran- do no espaço político para reivindicar a participação nos direitos existentes e sobretudo para criar novos direitos. Estes são novos não simplesmente porque não existiam anteriormente, mas porque são diferentes daqueles que existem, uma vez que fazem surgir, como cidadãos, novos sujeitos políticos que os afirmaram e os fizeram ser reco- nhecidos por toda a sociedade. − Pela criação dos direitos, a democracia surge como o único regime político realmente aberto às mudanças temporais, uma vez que faz surgir o novo como parte de sua existência e, consequentemente, a temporalidade como constitutiva de seu modo de ser.

− Única forma sócio-política na qual o caráter popular do po- der e das lutas tende a evidenciar-se nas sociedades de clas- ses, na medida em que os direitos só ampliam seu alcance ou só surgem como novos pela ação das classes populares contra a cristalização jurídico-política que favorece a clas- se dominante. Em outras palavras, a marca da democracia moderna, permitindo sua passagem de democracia liberal á democracia social, encontra-se no fato de que somente as classes populares e os excluídos (as “minorias”) sentem a exigência de reivindicar direitos e criar novos direitos. − Forma política na qual a distinção entre o poder e o gover- nante é garantida não só pela presença de leis e pela divisão de várias esferas de autoridade, mas também pela existência das eleições, pois estas (contrariamente do que afirma a ci- ência política) não significam mera “alternância no poder”,

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mas assinalam que o poder está sempre vazio, que seu de- tentor é a sociedade e que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato temporário para isto. Em ou- tras palavras, os sujeitos políticos não são simples votantes, mas eleitores. Eleger significa não só exercer o poder, mas manifestar a origem do poder, repondo o princípio afirma- do pelos romanos quando inventaram a política: eleger é “dar a alguém aquilo que se possui, porque ninguém pode dar o que não tem”, isto é, eleger é afirmar-se soberano para escolher ocupantes temporários do governo.

Dizemos, então, que uma sociedade – e não um simples regime de go- verno – é democrática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos e que essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática social realiza-se como uma contra-poder social que determina, dirige, con- trola e modifica a ação estatal e o poder dos governantes. A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. Eis porque podemos afirmar que a demo- cracia é a sociedade verdadeiramente histórica , isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva (a liberdade) e de alterar-se pela própria práxis. Por isso mesmo, a democracia é aquela forma da vida social que cria para si própria um problema que não pode cessar de resolver, porque a cada solução que encontra, reabre o seu próprio problema, qual seja, a questão da participação. Como poder popular (demos = povo; krathós = poder), a democracia exige que a lei seja feita por aqueles que irão cumpri- la e que exprima seus direitos. Nas sociedades de classe, sabemos, o povo, na qualidade de governante, não é a totalidade das classes nem da população, mas a classe dominante que se apresenta através do voto, como representante de toda a sociedade para a feitura das leis, seu cumprimento e a garantia dos direitos. Assim, paradoxalmente, a re- presentação política tende a legitimar formas de exclusão política sem que isso seja percebido pela população como ilegítimo, mas é perce-

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mente reconhecida pelos trabalhadores quando afirmam que “a justiça só existe para os ricos”. Tal situação também forma numa consciência social difusa, que se exprime no dito muito conhecido: “para os ami- gos, tudo; para os inimigos, a lei”. Para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão. A lei não figura o pólo público do poder e da regulação dos conflitos, nunca define direitos e deveres dos cidadãos porque, em nosso país, a tarefa da lei é a conservação de privilégios e o exercício da repressão. Por este motivo, as leis aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem trans- gredidas e não para serem transformadas – situação violenta que é mi-

ticamente transformada num traço positivo, quando a transgressão é elogiada como “o jeitinho brasileiro”. O poder judiciário é claramente percebido como distante, secreto, representante dos privilégios das oli- garquias e não dos direitos da generalidade social. Nessa sociedade, não existem nem a idéia, nem a prática da representação política autêntica. Os partidos políticos tendem a ser clu- bes privados das oligarquias locais e regionais, sempre tomam a forma clientelística na qual a relação é de tutela e de favor. É uma sociedade, conseqüentemente, na qual a esfera pública nunca chega a constituir-se como pública, pois é definida sempre e imediatamente pelas exigências do espaço privado, de sorte que a vontade e o arbítrio são as marcas dos governos e das instituições “públicas”. A indistinção entre o público e o privado (a política nasce ao instituir a distinção entre ambos, como vimos) não é uma falha acidental que podemos corrigir, pois é a estru- tura do campo social e do campo político que se encontra determinada pela indistinção entre o público e o privado. Essa indistinção é a forma mesma de realização da sociedade e da política: não apenas os gover- nantes e parlamentares praticam a corrupção sobre os fundos públicos, mas não há a percepção social de uma esfera pública das opiniões, da sociabilidade coletiva, da rua como espaço comum, assim como não há a percepção dos direitos à privacidade e à intimidade.

É uma sociedade na qual as diferenças e assimetrias sociais e pessoais são imediatamente transformadas em desigualdades, e estas, em relação de hierarquia, mando e obediência.

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CyE Año I Nº 1 Junio 2008

CULTURA E DEMOCRACIA

É uma sociedade que por isso bloqueia a esfera pública da opinião como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados e\ou antagônicos. Esse bloqueio não é um vazio ou uma ausência, mas um conjunto de ações determinadas que se traduzem numa maneira determinada de lidar com a esfera da opi- nião: os mass media monopolizam a informação, e o consenso é con- fundido com a unanimidade, de sorte que a discordância é posta como ignorância ou atraso. As disputas pela posse da terra cultivada ou cultivável são resolvidas pelas armas e pelos assassinatos clandestinos. As desigual- dades econômicas atingem a proporção do genocídio. Os negros são considerados infantis, ignorantes, raça inferior e perigosa, tanto assim, que numa inscrição gravada até pouco tempo na entrada da Escola de Polícia de São Paulo dizia: “Um negro parado é suspeito; correndo, é culpado”. Os índios, em fase final de extermínio, são considerados ir- responsáveis (isto é, incapazes de cidadania), preguiçosos (isto é, mal- adaptáveis ao mercado de trabalho capitalista), perigosos, devendo ser exterminados ou, então, “civilizados” (isto é, entregues à sanha do mercado de compra e venda de mão-de-obra, mas sem garantias traba- lhistas porque “irresponsáveis”). E, ao mesmo tempo, desde o roman- tismo, a imagem índia é apresentada pela cultura letrada com heróica e épica, fundadora da “raça brasileira”. Os trabalhadores rurais e urba- nos são considerados ignorantes, atrasados e perigosos, estando a polí- cia autorizada a parar qualquer trabalhador nas ruas, exigir a carteira de trabalho e prendê-lo “para averiguação”, caso não esteja carregando identificação profissional (se for negro, além de carteira de trabalho, a polícia está autorizada a examinar-lhe as mãos para verificar se apre- sentam “sinais de trabalho” e a prendê-lo caso não encontre os supos- tos “sinais”). Há casos de mulheres que recorrem à Justiça por espan- camento ou estupro, e são violentadas nas delegacias de polícia, sendo ali novamente espancadas e estupradas pelas “forças da ordem”. Isto para não falarmos da tortura, nas prisões, de homossexuais, prostitu- tas e pequenos criminosos. Numa palavra, as classes populares carre- gam os estigmas da suspeita, da culpa e da incriminação permanentes. Essa situação é ainda mais aterradora quando nos lembramos de que os instrumentos criados durante a ditadura (1964-1975) para repressão e tortura dos prisioneiros políticos foram transferidos para o tratamento diário da população trabalhadora e que impera uma ideologia segundo a qual a miséria é causa de violência, as classes ditas “desfavorecidas” sendo consideradas potencialmente violentas e criminosas. Preconcei- to que atinge profundamente os habitantes das favelas, estigmatizados não só pelas classes média e dominante, mas pelos próprios domina-