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CECÍLIA MEIRELES E A REINVENÇÃO DA MORTE, Notas de estudo de Poética

KEYWORDS: Cecilia Meireles; poetry, Mar absoluto; death. A longa “Elegia”, que fecha o livro Mar absoluto e outros poemas. (1945), de Cecília Meireles, já foi ...

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Michelle87
Michelle87 🇧🇷

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CECÍLIA MEIRELES E A REINVENÇÃO DA MORTE
Ana Maria Domingues de Oliveira (UNESP – ASSIS)
RESUMO: O conjunto de poemas intitulado “Elegia”, que constitui o
fecho do livro Mar absoluto e outros poemas (1945), tem sido analisado,
via de regra, apenas do ponto de vista da dedicatória à avó feita por
Cecília Meireles. Neste artigo, tento estabelecer outros caminhos para a
leitura dos poemas, propondo que neles, como no restante da obra da
poetisa, a morte não representa aniquilação, mas sim a ascensão para
um patamar de perfeição inatingível durante a vida.
PALAVRAS-CHAVE: Cecília Meireles; poesia; Mar absoluto; morte.
ABSTRACT: The group of poems entitled “Elegia”, which closes the book
Mar absoluto e outros poemas (1945), has in general been analyzed only
from the perspective of Cecilia Meireles’s dedication to her grandmother.
In this article, I try to establish other ways to read these poems, as I
propose that here, as well as in her whole work, death does not mean
annihilation, but ascension to a level of perfection which was
unattainable during life.
KEYWORDS: Cecilia Meireles; poetry, Mar absoluto; death.
A longa “Elegia”, que fecha o livro Mar absoluto e outros poemas
(1945), de Cecília Meireles, já foi citada por vários de seus estudiosos
como um dos momentos mais densos da lírica ceciliana. Os oito poemas
que compõem esta “Elegia” estão colocados ao final do volume Mar
absoluto e uma indicação após o título indica as datas de 1933-1937,
anos durante os quais a “Elegia” teria sido escrita.
A dedicatória, depois do título, afirma:
À memória de
Jacinta Garcia Benevides
Minha avó
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CECÍLIA MEIRELES E A REINVENÇÃO DA MORTE

Ana Maria Domingues de Oliveira (UNESP – ASSIS)

RESUMO: O conjunto de poemas intitulado “Elegia”, que constitui o fecho do livro Mar absoluto e outros poemas (1945), tem sido analisado, via de regra, apenas do ponto de vista da dedicatória à avó feita por Cecília Meireles. Neste artigo, tento estabelecer outros caminhos para a leitura dos poemas, propondo que neles, como no restante da obra da poetisa, a morte não representa aniquilação, mas sim a ascensão para um patamar de perfeição inatingível durante a vida. PALAVRAS-CHAVE: Cecília Meireles; poesia; Mar absoluto ; morte.

ABSTRACT: The group of poems entitled “Elegia”, which closes the book Mar absoluto e outros poemas (1945), has in general been analyzed only from the perspective of Cecilia Meireles’s dedication to her grandmother. In this article, I try to establish other ways to read these poems, as I propose that here, as well as in her whole work, death does not mean annihilation, but ascension to a level of perfection which was unattainable during life. KEYWORDS : Cecilia Meireles; poetry, Mar absoluto ; death.

A longa “Elegia”, que fecha o livro Mar absoluto e outros poemas (1945), de Cecília Meireles, já foi citada por vários de seus estudiosos como um dos momentos mais densos da lírica ceciliana. Os oito poemas que compõem esta “Elegia” estão colocados ao final do volume Mar absoluto e uma indicação após o título indica as datas de 1933-1937, anos durante os quais a “Elegia” teria sido escrita.

A dedicatória, depois do título, afirma:

À memória de Jacinta Garcia Benevides

Minha avó

Embora a recomposição da biografia ceciliana não seja o objetivo deste ensaio, é importante lembrar que a avó citada na dedicatória foi a responsável pela criação de Cecília Meireles desde os três anos, depois da morte de seus pais. Jacinta Garcia Benevides, açoriana, foi a grande referência familiar para a poetisa, conforme atestam depoimentos de Cecília em várias entrevistas. A “Elegia”, portanto, vista por esse prisma, pode ser considerada o testemunho dos fortes laços afetivos que ligavam a poetisa à avó. Os poemas da “Elegia”, entretanto, vão muito além do testemunho afetivo. São textos de densa elaboração poética, repletos de metáforas complexas, compondo uma visão da morte bastante peculiar, em que o sujeito poético estabelece um diálogo com um interlocutor morto. O primeiro poema anuncia, já nos primeiros versos, a morte deste interlocutor:

Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos. Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído. No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva, modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos.

Nos dois primeiros versos, o interlocutor ainda está vivo, e entre ele e o sujeito poético estabelece-se desde já uma ligação visual e simbolicamente forte: a lágrima que cai de um olho a outro. Trata-se da primeira lágrima, o que já antecipa o tom geral de tristeza do restante do poema. Além disso, esta lágrima brota dos olhos do eu poético e se precipita diretamente para os olhos daquele que é o pranteado, traçando uma linha que liga os olhos de ambos através da tristeza expressa simbolicamente pela lágrima. Na passagem da primeira para a segunda estrofe, ocorre a morte do interlocutor. A morte adquire aqui uma característica curiosa: é produto de uma modelagem, que leva o morto a uma “forma definitiva”, como se toda a existência fosse apenas um ensaio para se chegar a essa forma. Como em toda a obra poética de Cecília, os mortos são pessoas que atingiram um estado de perfeição inatingível em vida. A esse respeito, vejam-se poemas como o “Doze” de Doze noturnos da Holanda que se abre com os versos “Sem podridão nenhuma, jazerá um afogado / Nos canais de Amsterdão”. Os mortos de Cecília, na maioria dos casos, não se decompõem, antes chegam a um ideal de perfeição invejável. Mesmo aqueles que passam pela decomposição, como é o caso do filho morto em “Lamento da mãe órfã”, de Mar absoluto e outros poemas , alcançam, apesar da putrefação – ou através dela – um estado superior àquele em que viviam. Vejamos como esse processo se ocorre ao longo da “Elegia”.

Um jardineiro desconhecido se ocupará da simetria desse pequeno mundo em que estás.

Suas mãos vivas caminharão acima das tuas, em descanso, das tuas que calculavam primaveras e outonos, fechadas em sementes e escondidos na flor!

(...) Os anjos de mármore ficarão para sempre ouvindo: que eles também falam em silêncio.

Aqui, de fato, concomitantemente ao surgimento dos aqui chamados aspectos materiais da morte, começa a operar-se a transformação que levará o conjunto de poemas a abandonar a postura apenas de lamentação pela aniquilação trazida pela morte e a assumir a mesma postura já apontada nos poemas da autora que abordam a temática semelhante. Ao apresentar esses aspectos materiais da morte, o sujeito poético afirma ao mesmo tempo a condição de morto e de vivo de seu interlocutor: ele está sob a terra – e, portanto, morto – mas está também comandando o processo – e, portanto, vivo. A terceira estrofe do poema evidencia essa dupla condição:

Tua voz sem corpo estará comandando, entre terra e água, o aconchego das raízes tenras, a ordenação das pétalas nascentes.

Como está morto, o interlocutor está sem corpo, entre terra e água, próximo às raízes e à nascente das pétalas das flores. Como vive, sua voz pode comandar o aconchego das raízes e a ordenação das pétalas. Este ofício subterrâneo, paralelo ao do jardineiro vivo e desconhecido que trabalha sobre a terra, é também assegurado pela familiaridade que o morto demonstrara, durante a vida, com os ciclos da natureza:

Suas mãos vivas caminharão acima das tuas, em descanso, das tuas que calculavam primaveras e outonos, fechadas em sementes e escondidos na flor!

No poema seis, o sujeito poético recorda cenas da vida passada do interlocutor morto, já enxergando nele os sinais de transcendência, de elevação acima da mera condição humana:

Tudo cabe aqui dentro: teu corpo era um espelho pensante do universo. E olhavas para essa imagem, clarividente e comovida.

Foi do barro das flores, o teu rosto terreno, e uns liquens de noite sem luzes se enrolaram em tua cabeça de deusa rústica. (grifos meus)

“Espelho pensante do universo”, “clarividente”, “deusa rústica” são expressões que evidenciam a transformação da avó morta em um ser acima da condição humana, carregada de atributos transcendentes. Já no poema sete, reaparece o tema da lamentação pela ausência do morto:

Mas não era só isto o crepúsculo: faltam os teus dois braços numa janela, sobre flores, e em tuas mãos o teu rosto, aprendendo com as nuvens a sorte das transformações.

Faltam teus olhos com ilhas, mares, viagens, povos, tua boca, onde a passagem da vida tinha deixado uma doçura [triste, que dispensava palavras.

A esta lamentação, entretanto, acrescenta-se uma conclusão que inverte mais uma vez os pólos, uma vez que é quem permanece vivo que está, de fato, morto:

Aqui está meu rosto verdadeiro, defronte do crepúsculo que não alcançaste. Abre o túmulo e olha-me: dize-me quem de nós morreu mais. O poema que fecha essa “Elegia” é talvez o mais peculiar deles, pelo tratamento poético de aspectos bastante materiais da morte, sem, entretanto, resvalar para o mórbido ou o macabro. Há, inicialmente, uma referência à decomposição do corpo:

Quanto tempo se passou entre a nossa mútua espera! Tu, paciente e inutilizada, contando as horas que te desfaziam.

o ser, através da literatura. O caminho, portanto, para atingir a perfeição se daria através de um processo de aniquilação do meramente terreno, de sua decomposição, e da recriação do ser, agora perfeito, através da invenção literária. Nestes versos, através do deslocamento de um possível contexto de morbidez para o contexto da invenção, Cecília Meireles evidencia sua compreensão do fazer poético. Mais uma vez a poetisa ultrapassa o que poderia facilmente se converter em pieguice ou morbidez e estabelece um tratamento de fato artístico e poético da morte. Como se pode notar, mesmo em um poema que muito facilmente poderia favorecer uma leitura de ordem mais confessional, inclusive pela referência ao nome da avó na dedicatória, Cecília Meireles reafirma, aos leitores mais atentos, a capacidade transfiguradora do literário e o poder recriador da poesia. Ou, como diria ela mesma, em outro poema: “A vida só é possível reinventada”. Assim também a morte.