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Pessoas com Deficiência na Sociedade: Desafios de Estereótipos e Barreiras Atitudinais, Notas de estudo de Redação

Este documento discute o papel da convenção na promoção da participação integral de pessoas com deficiência em todas as esferas da vida, desafiando estereótipos, preconceitos e estigmas. O texto reflete sobre a situação das pessoas com deficiência como grupo social subalterno e desprivilegiado do discurso em relação às pessoas sem deficiência. Além disso, são abordados os modelos históricos de deficiência e as barreiras atitudinais que limitam a autonomia das pessoas com deficiência. A campanha #écapacitismoquando é utilizada para ampliar o debate sobre o preconceito contra as pessoas com deficiência.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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usuário desconhecido 🇧🇷

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118 | Revista da Defensoria Pública RS
CAPACITISMO E LUGAR DE FALA: REPENSANDO BARREIRAS ATITUDINAIS
Letícia Souza Mello1
Luiza Griesang Cabistani2
RESUMO: O presente artigo aborda o tema da deficiência e suas diferentes
compreensões ao longo da história até chegar ao atual arcabouço legal nacional e
internacional. A partir do modelo social, são identificadas barreiras que potencializam
a existência do capacitismo, preconceito que classifica os sujeitos conforme a
adequação de seus corpos a um ideal de capacidade funcional. O trabalho propõe
como marco teórico a teoria do lugar de fala, que permite refletir sobre a situação
das pessoas com deficiência enquanto grupo social subalterno desprovido do
discurso hegemônico. Nesse sentido, aborda-se a experiência de uma oficina
proposta pelas autoras, também oficineiras, para debater discursos e práticas
capacitistas a partir da campanha virtual #écapacitismoquando.
PALAVRAS-CHAVE: Barreiras. Capacitismo. Deficiência. Lugar de fala.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Capacitismo e barreiras atitudinais. 3 Discurso e lugar de
fala. 4 #ÉCAPACITISMOQUANDO: repensando o capacitismo a partir de uma
oficina. 4.1 As publicações no Twitter: #écapacitismoquando. 4.2 A experiência da
oficina. 5 Considerações finais. 6 Referências.
1 INTRODUÇÃO
O universo da deficiência é bastante amplo e diverso, com suas
peculiaridades e tipos, os quais se dividem, conforme as classificações mais atuais,
entre sensorial, intelectual, física ou múltipla (quando ocorre a associação de duas
ou mais deficiências). As pessoas com deficiência, entendendo esta como
manifestação da diversidade humana, são diferentes e heterogêneas, sendo que
cada uma delas tem suas predileções e respostas individuais para lidar com a sua
condição (OMS, 2011).
Em dezembro de 2006, a Assembleia Geral da Organização das Nações
Unidas (ONU) adotou a resolução que estabeleceu a Convenção dos Direitos das
1 Psicóloga, analista da Defensoria Pública do Estado do RS
2 Bacharel em Direito, analista processual da Defensoria Pública do Estado do RS
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118 | Revista da Defensoria Pública RS

CAPACITISMO E LUGAR DE FALA: REPENSANDO BARREIRAS ATITUDINAIS

Letícia Souza Mello 1 Luiza Griesang Cabistani 2

RESUMO: O presente artigo aborda o tema da deficiência e suas diferentes compreensões ao longo da história até chegar ao atual arcabouço legal nacional e internacional. A partir do modelo social, são identificadas barreiras que potencializam a existência do capacitismo, preconceito que classifica os sujeitos conforme a adequação de seus corpos a um ideal de capacidade funcional. O trabalho propõe como marco teórico a teoria do lugar de fala, que permite refletir sobre a situação das pessoas com deficiência enquanto grupo social subalterno desprovido do discurso hegemônico. Nesse sentido, aborda-se a experiência de uma oficina proposta pelas autoras, também oficineiras, para debater discursos e práticas capacitistas a partir da campanha virtual #écapacitismoquando.

PALAVRAS-CHAVE: Barreiras. Capacitismo. Deficiência. Lugar de fala.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Capacitismo e barreiras atitudinais. 3 Discurso e lugar de fala. 4 #ÉCAPACITISMOQUANDO: repensando o capacitismo a partir de uma oficina. 4.1 As publicações no Twitter: #écapacitismoquando. 4.2 A experiência da oficina. 5 Considerações finais. 6 Referências.

1 INTRODUÇÃO O universo da deficiência é bastante amplo e diverso, com suas peculiaridades e tipos, os quais se dividem, conforme as classificações mais atuais, entre sensorial, intelectual, física ou múltipla (quando ocorre a associação de duas ou mais deficiências). As pessoas com deficiência, entendendo esta como manifestação da diversidade humana, são diferentes e heterogêneas, sendo que cada uma delas tem suas predileções e respostas individuais para lidar com a sua condição (OMS, 2011). Em dezembro de 2006, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) adotou a resolução que estabeleceu a Convenção dos Direitos das (^1) Psicóloga, analista da Defensoria Pública do Estado do RS (^2) Bacharel em Direito, analista processual da Defensoria Pública do Estado do RS

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Pessoas com Deficiência, cujo objetivo é “proteger e garantir o total e igual acesso a todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, e promover o respeito à sua dignidade”. A convenção promove a total participação de pessoas com deficiência em todas as esferas da vida, desafiando estereótipos, preconceitos e estigmas. A ONU, através de seu Comitê para os Direitos das Pessoas com Deficiência, monitora de que forma os países que ratificaram a convenção estão evoluindo, fazendo análises regulares e emitindo recomendações sobre como as violações podem ser combatidas e os direitos garantidos. Após a pactuação da referida convenção e do seu Protocolo Facultativo 3 entra em vigor a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) n° 13.146/2015. O documento legal consolidou princípios e diretrizes do mais recente tratado de direitos humanos do sistema global de proteção da ONU, além de pormenorizar as normas que deverão ser observadas para a garantia do exercício dos direitos das pessoas com deficiência no país. Nesse sentido, restou organizado verdadeiro marco regulatório para as pessoas com deficiência, cujos direitos e deveres antes estavam dispersos em outras leis, decretos e portarias. Assim, regulamentou-se limites e condições, tendo sido atribuído responsabilidades para cada ator na consolidação da sociedade inclusiva (SETUBAL; FAYAN, 2016). Ainda que a lei garanta os mesmos direitos às pessoas com e sem deficiência, devido às desvantagens impostas pela sociedade, por meio de barreiras, as pessoas com deficiência nem sempre conseguem exigir seus direitos nas mesmas condições que uma pessoa sem deficiência. Apesar do último Censo apontar que 23,9% da população brasileira possui, ao menos, um tipo de deficiência 4 (IBGE, 2010), falar sobre este assunto é se aproximar de um campo pouco estudado, por vezes ignorado e, com poucos incentivos à pesquisa (DINIZ, 2003). A pouca produção acadêmica existente sobre o tema ainda está muito ligada aos campos da biomedicina, da psicologia do desenvolvimento ou da educação “especial”.

(^3) Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. 4 As categorias usadas pelo IBGE, à época, foram visual, auditiva, motora ou intelectual.

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corporeidade que objetiva meramente o controle e a correção, em função de uma estética corporal hegemônica” (SILVA, 2006, p. 426). No Egito Antigo, a deficiência era entendida como provocada pelos “maus espíritos”. Enquanto a nobreza possuía acesso a tratamentos, os pobres com deficiência eram usados como atrações em circos ou como objetos de estudos (SILVA, 1987 apud SCHEWINSKY, 2004, p. 8). Já na Grécia e em Roma, o corpo forte e belo era valorizado para que pudesse participar de guerras, porém aquele que não correspondia a esse padrão poderia ser, inclusive, eliminado, legitimando, até mesmo, a condenação de crianças que possuíam algum tipo de deficiência (SCHEWINSKY, 2004). Apenas a partir do século XVI a medicina apropria-se do campo da deficiência e esta deixa de ser compreendida como advinda de questões religiosas e sobrenaturais, passando a ser vista como científica e passível de tratamento. No século XVII são criados os hospitais, que serviam para exclusão daqueles que eram percebidos como doentes. Somente nos séculos XIX e XX, passam a existir programas de reabilitação global para as pessoas com deficiência, práticas influenciadas pela filosofia humanista e pela Revolução Industrial, quando os países começavam a se deparar com a existência de pessoas mutiladas após as duas grandes guerras, além daquelas que haviam sofrido acidentes de trabalho nas indústrias (SCHEWINSKY, 2004). Nas sociedades atuais, grande parte das iniciativas sociais é dirigida a um sujeito universal, comumente representado pelo homem “padrão” e idealizado, sendo a exclusão, desse modo, a negação de toda a diversidade humana. Medeiros e Mudado (2010) explicam que, ao negar os imperativos éticos da responsabilidade e do compromisso com os seres humanos, a exclusão social tinge-se de preconceito ao afirmar um ideal de homem biologicamente perfeito. Assim, a desigualdade pode significar a exclusão de muitas pessoas de uma efetiva participação na vida social. De acordo com Silva (2006, p. 121), “a deficiência não é uma condição estática, natural e definitiva”, uma vez que está firmada nas relações e interações que determinam sua percepção na sociedade. Trata-se, assim, de uma diferença que surge no processo de produção da existência dos povos, em momentos históricos e locais distintos, assim como as crenças religiosas ou as diferenças étnicas, por exemplo.

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Atualmente, o arcabouço legal brasileiro a respeito do tema tem como base dois principais documentos: a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a LBI. A deficiência passa a ser entendida como o resultado produzido entre a interação do impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, com uma ou mais barreiras (impedimento x barreira = deficiência) 5. E a avaliação desta, quando necessária, deve levar em consideração diversos aspectos, tais como os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo, os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais, a limitação no desempenho de atividades e a restrição de participação 6 (BRASIL, 2015). No entanto, o atual paradigma para o tratamento das pessoas com deficiência vem se consolidando há poucas décadas. Assim sendo, para compreender a temática da deficiência, cabe mencionar a discussão acerca de seus modelos que, em diferentes períodos históricos, tiveram transformações fundamentadas pela necessidade das pessoas e pelos sistemas social, político e econômico. O modelo caritativo compreende a pessoa com deficiência como tendo uma vida trágica e sofrida, merecedora de ajuda e caridade. Os cuidadores têm poderes plenos no tipo de atendimento que a pessoa recebe. Com esta perspectiva, surgem espaços especializados que oferecem serviços, normalmente, menos desafiadores intelectualmente, limitando a entrada da pessoa com deficiência nos meios acadêmicos, laborais e sociais (AUGUSTIN, 2012). Já o modelo biomédico tradicional visualiza, primeiramente, a deficiência, percebendo a pessoa como possuidora de uma patologia e oferecendo um papel passivo de paciente. Este padrão busca uma “normalidade” de funcionamento físico, sensorial e intelectual. Com um precoce diagnóstico, pode reduzir a incidência da deficiência, pois ignora o papel das estruturas sociais para a opressão dos deficientes. A crítica se dá no sentido de que seus esforços são voltados exclusivamente à cura, desconsiderando os aspectos sociais e emocionais implicados na deficiência (AUGUSTIN, 2012). No século XIX, este modelo “representou uma redenção ao corpo com impedimentos diante da narrativa religiosa (^5) Para explicar a deficiência, adota-se, com fins didáticos, a fórmula “impedimento x barreira = deficiência”, uma vez que aquela é o resultado da interação entre os impedimentos e as barreiras impostas. Logo, quando não há barreira, não há deficiência. Nesse sentido, se uma pessoa possui um impedimento, como a utilização de cadeiras de roda (10), mas não há barreiras, pois há rampas em determinado local de acesso (0), a deficiência não existirá (10 x 0 = 0) 6 Art. 2º, §1º da Lei Brasileira de Inclusão.

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opressão contra as pessoas com deficiência, dando maior visibilidade social e política a esta população. O segundo motivo objetiva romper com os limites entre deficientes e não deficientes a partir da exploração dos “meandros da corponormatividade”, nomeando um tipo de preconceito pautado pela premissa da “(in)capacidade”, que avalia o que as pessoas com deficiência podem ou são capazes de ser e fazer. Segundo Campbell (2001), o capacitismo está para as pessoas com deficiência, assim como o racismo está para os negros e o sexismo para as mulheres (apud MELLO, 2016). Assim, a autora propõe que o termo seja cada vez mais introduzido nas produções científicas, nos movimentos sociais, em documentos oficiais e nas políticas públicas a fim de conquistar espaço e provocar a reflexão naquele que produz práticas e discursos capacitistas. O pouco material e bibliografia encontrados sobre o tema evidencia a necessidade de se discutir e produzir sobre o assunto, inclusive, porque muitas vezes, estes discursos aparecem travestidos de atitudes agradáveis. Entendendo capacitismo como o preconceito contra as pessoas com deficiência, a medida que valora sujeitos e corpos a partir de um referencial padronizado de corpo “normal”, uma das formas dessa opressão revela-se na sociedade por meio das barreiras atitudinais. Estas são definidas, conforme a legislação vigente, como qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros. E as classificou enquanto barreiras urbanísticas, arquitetônicas, nos transportes, nas comunicações e na informação, atitudinais e tecnológicas (BRASIL, 2015). Nesse sentido, as barreiras atitudinais são aquelas que se estabelecem na esfera social, cujas relações humanas centram-se nas limitações dos indivíduos e não em suas potencialidades. Referem-se a atitudes ou comportamentos que impedem ou prejudicam a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas. Amaral (1998) conceitua barreira atitudinal como uma defesa intercalada na relação entre duas pessoas em que uma está numa posição mais favorável em relação à outra, por esta ser diferente, especialmente quanto às condições ditas

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ideais. A autora refere-se ao preconceito que, para ela, tem dois componentes básicos neste caso: uma atitude (predisposição psíquica desfavorável em relação a alguém) e o desconhecimento concreto e vivencial desse alguém, assim como as próprias atitudes diante dessa pessoa. Isto é, as atitudes fundamentam-se em preconceitos e estereótipos que produzem a discriminação, além do desconhecimento em como agir adequadamente diante da pessoa com deficiência (MENDONÇA, 2013). Ainda que projetos e leis venham a assegurar os direitos às pessoas com deficiência, muitas dificuldades permanecem sendo encontradas por estes sujeitos, sendo as barreiras atitudinais as maiores delas, cuja existência pode limitar ou impedir a livre circulação dessas pessoas. No cotidiano, são exemplos de barreiras atitudinais: não respeitar as vagas de estacionamento destinadas às pessoas com deficiência, estacionar em locais em que as guias são rebaixadas (rampas), falta de sinalização adequada, professores que não utilizam didática que contemple as especificidades de seus alunos, motoristas de transporte coletivo que param muito afastados das calçadas e o uso de corrimãos para outros fins. Assim, são necessárias repetidas campanhas de conscientização, a fim de fomentar o respeito pelos direitos e pela dignidade das pessoas com deficiência (EMMEL; GOMES; BAUAB, 2010). Dias (2014) postula que a barreira atitudinal está no âmago de todas as outras barreiras existentes (arquitetônicas, comunicacionais, programáticas, metodológicas e instrumentais), pois se dá devido a uma consequência da intolerância. Diante disso,

o preconceito e as atitudes negativas em relação às pessoas com deficiência vão dificultar que a sociedade realize as modificações necessárias para garantir a acessibilidade na escola, no lazer, na informação, na cultura e nos outros sistemas sociais (p. 33). Considerando que a experiência do corpo com impedimentos é discriminada pela cultura da normalidade, no próximo capítulo serão desenvolvidas a teoria do lugar de fala e suas contribuições para a visibilidade de discursos contra hegemônicos.

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suas principais autoras é a norte-americana Collins (1997), que defende que a teoria do “ standpoint ” ou “teoria do ponto de partida” seria um quadro interpretativo dedicado a explicar como o conhecimento ainda se mantém como elemento central para manter e mudar sistemas injustos de poder. Esta teoria refere-se a experiências historicamente compartilhadas por grupos socialmente construídos, de maneira que se deve dar menos ênfase às experiências individuais dos sujeitos dentro desses grupos, para atentar às condições sociais que os constroem. Ou seja, trata-se de uma perspectiva que considera as histórias e as vivências compartilhadas pelos grupos baseadas na posição comum que possuem nas relações de poder, uma vez que essa localização comum acaba por produzir experiências comuns. Collins (1997) explica que categorias como gênero, raça, cor, classe, idade – e aqui incluímos a deficiência – não são somente características descritivas individuais de identidade, mas são dispositivos fundamentais que promovem acessos desiguais para estes grupos. A autora explica, ao comentar sobre o racismo, que as experiências individuais dos sujeitos em relação a este tipo de opressão serão únicas, no entanto, os tipos de oportunidades e constrangimentos que os sujeitos enfrentam diariamente são semelhantes a todas as pessoas negras enquanto grupo social. Estes ângulos de visão compartilhados levam aqueles que estão em uma localização social semelhante a estarem predispostos para interpretar essas experiências de maneira comparável (COLLINS, 1997). Isso não deve conduzir a um entendimento de que todos aqueles que compõem um determinado grupo compartilharão das mesmas experiências ou irão interpretá-las do mesmo modo, ainda que enfrentem barreiras similares, pois se trata de uma questão estrutural, não individual. Embora a autora traga seus estudos para a questão racial, seus conceitos também podem ser explorados a partir da perspectiva das pessoas com deficiência, já que estas também pertencem a um grupo historicamente sujeito a diversas formas de opressão. Entendendo lugar de fala como o locus social ocupado pelos sujeitos nas relações de poder, esta teoria não deve ser confundida com a questão da representatividade, ainda que os conceitos estejam interligados. Nesse sentido, um homem branco não poderá representar uma mulher negra, mas poderá falar sobre o racismo a partir do lugar que ocupa enquanto homem branco, pois todas as pessoas possuem lugares de fala, uma vez que estão socialmente localizados nas relações

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hierárquicas de poder. Berth afirma que se trata de uma postura e um compromisso ético, em que todos devem se sentir implicados a pensar o seu lugar de fala, pois saber a partir de onde se fala é fundamental para pensar as hierarquias e as questões de desigualdade (MOREIRA; DIAS, 2017). Assim, não somente os “subalternos” ou “oprimidos” têm lugar de fala, pois os sujeitos do poder podem e devem refletir acerca das suas localizações sociais, caso contrário haveria uma desresponsabilização desses sujeitos sobre as situações de desigualdade nas quais estão implicados (RIBEIRO, 2017). Dessa forma, torna-se indispensável convocar aquele que tem seu corpo “saudável” e “normal” a refletir e falar sobre a reprodução do capacitismo, a fim de contribuir com a construção de uma sociedade mais igualitária. Nesse sentido, a importância da discussão a respeito do lugar de fala reside na desmistificação da existência de um sujeito universal, que acredita que todas as pessoas partem de uma posição comum de acesso à fala e à escuta (MOMBAÇA, 2017). Ao contrário, esse sujeito que acredita ser universal, que se usa como referência para tudo – branco, masculino, cisnormativo e heterossexual, sem deficiência – está em desgaste, sendo substituído por uma diversidade de sujeitos, conforme explica Borges 9 (MOREIRA; DIAS, 2017). E é o lugar de fala quem diz quais são os posicionamentos e as experiências diversas desses sujeitos plurais. Trata-se, portanto, de uma ferramenta teórico-política que permite a visibilização da experiência subalterna, para que esta passe a ser entendida como uma forma de conhecimento, desvelando as opressões sofridas pelos diferentes grupos. Deve-se pontuar, no entanto, que o lugar de fala não determina necessariamente uma consciência discursiva a respeito dessa localização social, mas este lugar proporciona experiências e perspectivas singulares àqueles que estão inseridos nos grupos subalternizados. A reprodução dos discursos hegemônicos por parte de pessoas pertencentes a grupos oprimidos deve ser combatida, desde que a atenção esteja voltada ao discurso e não aos sujeitos, pois ainda assim, eles continuarão sendo atingidos de maneira individual e estrutural pelas opressões. Ribeiro (2017) alerta que a existência de uma cobrança maior sobre os indivíduos pertencentes a estes grupos têm, por fim, o intuito de deslegitimar as lutas contra hegemônicas.

(^9) Trata-se de entrevista concedida pela professora e ativista Rosane Borges ao jornal Nexo.

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Considerando a importância dessas novas ferramentas e a teoria do lugar de fala, as autoras do presente trabalho promoveram uma oficina durante o evento de qualificação interna “Diversidade e Inclusão Social” realizado pela DPE-RS, por meio da CPAI^10 e do NUDDH 11 , nos dias 04 e 05 de abril de 2019 12. O evento, entre outros objetivos, buscou qualificar a inclusão e a permanência de servidores com deficiência na instituição, sensibilizar seus trabalhadores quanto à inclusão e à cidadania dos assistidos pertencentes a este grupo, além de ampliar o debate e a reflexão acerca das práticas diárias de trabalho que envolvem essa temática. Importante destacar o dever imposto pela LBI ao poder público no sentido de assegurar o acesso da pessoa com deficiência à justiça, obrigando expressamente as Defensorias Públicas a capacitar seus trabalhadores quanto aos direitos das pessoas com deficiência 13. A oficina, intitulada “Deficiência física e mobilidade: relato de experiências” 14 , objetivou promover um espaço para que as servidoras oficineiras realizassem um relato pessoal a respeito de suas condições enquanto mulheres com deficiência física. Para ampliar o escopo da discussão, as autoras utilizaram-se de conteúdos disponíveis na internet, principalmente, no Youtube e na rede social Twitter a respeito do capacitismo. Com o intuito de desmistificar e promover assuntos relacionados às pessoas com deficiência, a youtuber Mariana Torquato publicou em seu canal “Vai uma mãozinha aí?”, um vídeo sobre capacitismo, por meio do qual divulga e aborda a campanha realizada no Twitter#écapacitismoquando”. A youtuber , que também é pessoa com deficiência, explica que a campanha surgiu no dia 03 de dezembro de 2016, quando se comemora o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, cujo objetivo não é parabenizar as pessoas pela data, mas sim conscientizar a respeito do tema e dar visibilidade à pauta. A hashtag #écapacitismoquando , publicada por diversos usuários desde 2016, trouxe para as redes sociais exemplos concretos de preconceitos vivenciados por pessoas com deficiência, que escondem uma visão capacitista acerca deste 10 11 Comissão Permanente de Acessibilidade e Inclusão 12 Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos O evento contou com a participação de quase 200 pessoas entre defensores públicos, servidores e estagiários da DPE-RS. 13 14 Art. 79 da Lei Brasileira de Inclusão. Foram oferecidas aos participantes do evento três oficinas no turno da tarde do dia 04/04/ (“Deficiência intelectual e múltipla: vencendo desafios”; “Deficiência auditiva: atendimento ao público e LIBRAS” e “Deficiência física e mobilidade: relato de experiências”, sendo que nesta participaram cerca de 25 pessoas, entre servidores e defensores públicos).

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grupo. As publicações visibilizam práticas e discursos capacitistas disseminados de maneira sutil (e, às vezes, nem tanto) na sociedade. Assim sendo, para a realização da oficina, quarenta e cinco postagens do Twitter foram selecionadas e utilizadas como recurso propulsor para o início da atividade. No primeiro momento do trabalho, a teoria do lugar de fala e a perspectiva de que falamos todos a partir de uma localização social foi exposta aos participantes. O intuito era que estes tivessem essa teoria como referência, a fim de instigá-los a pensar a partir do lugar de onde falam, uma vez que participaram da atividade pessoas com e sem deficiência.

4.1 AS PUBLICAÇÕES NO TWITTER: #ÉCAPACITISMOQUANDO

Considerando a limitação de espaço do presente trabalho, serão citadas apenas algumas publicações, agrupadas por afinidade temática, com o intuito de expor parte do conteúdo discutido com os demais colegas participantes da oficina. O primeiro tema refere-se aos discursos capacitistas que questionam o direito reprodutivo e a capacidade de mulheres com deficiência de exercerem a maternidade. Nesse sentido, as publicações “ #écapacitismoquando questiona-se a capacidade e a vontade de uma mulher com deficiência de ter filhos” e “ a saúde reprodutiva de um grande número de mulheres com deficiência é simplesmente ignorada” denunciam o entendimento de que o corpo da mulher com deficiência seria um corpo incapaz para a reprodução. Conforme aponta Bernardes, mesmo quando a gestação não oferece risco à vida da mulher, a indicação do aborto por médicos é muito comum, por considerarem que o corpo da mulher com deficiência e suas limitações não seriam suficientemente aptos para cuidar de outra vida (VENTURA, 2019) 15. Nesse sentido, as políticas públicas estão ainda muito centralizadas nos recursos de acessibilidade, sem referenciar outros direitos, tal como a maternidade. O constante questionamento acerca da capacidade das pessoas com deficiência para o trabalho também foi tema recorrente nas publicações: “#écapacitismoquando alguém diz a uma PCD 16 : ‘mas nem parece que você é deficiente, é tão produtiva!’”, “a PCD tem que provar a sua eficiência enquanto (^15) Trata-se de entrevista concedida pela psicóloga e integrante do coletivo feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência, Vitória Bernardes, ao Jornal Estadão. 16 Ao longo deste capítulo será utilizada a abreviação PCD para a expressão pessoa(s) com deficiência.

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Outro exemplo de barreira atitudinal existente é aquele que considera que as pessoas que possuem uma deficiência do mesmo grupo (sensorial, física, intelectual ou cognitiva) terão necessariamente as mesmas necessidades de adaptação e tratamento. Nesse sentido, a publicação “ #écapacitismoquando você acha que todas as pessoas com deficiência passam por situações idênticas” expõe esse entendimento equivocado, como se o universo das pessoas com deficiência fosse homogêneo e as pessoas não fossem sujeitos singulares tal qual as pessoas sem deficiência. Por fim, a ideia que concebe pessoas com deficiência como heróis ou que as coloca sempre em situação de superação está baseada em um discurso capacitista: “ #écapacitismoquando você vira um super-herói por se locomover pela cidade de transporte público sozinho” ; “ você chama uma PCD de 'especial', negando-lhe o direito a uma vida ordinária ”, “ utiliza-se do termo superação para pessoas com deficiência” e “dizem a PCD: ‘você é especial, Jesus te ama e Deus tem um plano para você na eternidade’”. Esse entendimento impossibilita a percepção de que a deficiência é somente mais uma característica que constitui o indivíduo, como tantas outras. E, como bem denunciado por uma das postagens, isso acaba por negar à pessoa com deficiência o direito a uma vida normal. Não por acaso caiu em desuso a terminologia “portador de necessidades especiais” ou ainda “pessoa especial” (muito utilizada para pessoas com deficiência intelectual), uma vez que esta nomenclatura não define o grupo de pessoas com deficiência, pois todos os sujeitos têm necessidades especiais, de acordo com a idade, sexo, situação de saúde, etc. Do mesmo modo, “portador de deficiência” também já não é mais utilizado, pois as pessoas não portam deficiências. Apesar dos avanços conquistados pelas lutas travadas pelos movimentos das pessoas com deficiência, este grupo social ainda ocupa poucos lugares nas universidades, na política institucional, nos cargos de chefia e nas mídias, ou seja, nos lugares onde os discursos são produzidos e mais amplamente disseminados. Assim sendo, o objetivo principal ao trazer estas publicações para o debate foi mostrar o quanto esses discursos escondem um entendimento restrito acerca dos sujeitos com deficiência. A ideia foi, então, questionar a reprodução desses discursos e ações, que julgam e valoram corpos e sujeitos de acordo com um

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padrão de normalidade e capacidade, como se pudesse existir um sujeito universal sem imperfeições.

4.2 A EXPERIÊNCIA DA OFICINA A presença das mais diversas áreas do conhecimento que atuam na DPE- RS através dos servidores e defensores participantes da oficina mostrou-se relevante, pois denota a importância e necessidade de ouvir o discurso de um outro lugar e, assim, refletir suas práticas de modo efetivo. Como exemplo disso, pode-se citar a participação de pessoas que trabalham na área de engenharia, que possui responsabilidade nas obras da instituição e adaptações de acessibilidade dos prédios locados. Apesar do conhecimento técnico acerca das normas que regem a acessibilidade ser fundamental, ouvir pessoas com deficiência sobre as adequações físicas enquanto sujeitos que vivenciam, de fato, a experiência diária de se locomover pelo seu espaço de trabalho revelou-se transformador. Durante a atividade, todos os participantes puderam expressar suas ideias referentes à temática e compartilhar suas experiências enquanto pessoa com deficiência ou não. A oficina contou com a participação espontânea de servidores e defensores de diversas regiões e realidades bastante distintas, elementos que potencializaram a discussão. Após o debate, as responsáveis pelo trabalho puderam compartilhar suas vivências a respeito do eixo central da oficina: “Deficiência física e mobilidade: relato de experiências”. Assim, pôde-se discutir pontos importantes sobre a deficiência, como as diferenças entre esta ser congênita ou adquirida, visível ou não visível, dando destaque às peculiaridades de cada uma, pois ainda que as duas servidoras sejam pessoas com deficiência física, experienciam esta condição de formas muito diversas uma da outra. Uma das servidoras possui deficiência física congênita, isto é, já nasceu com esta condição, enquanto que a outra apresenta deficiência física adquirida, manifestada ao longo de sua adolescência. Assim, puderam dividir parte de suas vivências e, também, sobre o processo de entendimento acerca da própria deficiência, que nem sempre é uma experiência simples, pelo contrário, tarefa bastante complexa, que demanda compreensão e rede de apoio afetiva.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a realização da oficina em que se discutiu temas como capacitismo, acessibilidade e inclusão das pessoas com deficiência, entendeu-se que a escrita do presente artigo seria um passo importante para o registro da experiência inédita proporcionada. O espaço proposto permitiu visibilizar algumas experiências vividas por pessoas com deficiência, principalmente por meio da campanha #écapacitismquando, que visibilizou experiências subalternas como uma forma de conhecimento. Nesse sentido, ainda que pareça muito difícil, é possível pensar em um ambiente organizacional e uma sociedade sem barreiras atitudinais e livre do capacitismo. Para isso, é necessário estimular práticas que sensibilizem e conscientizem os sujeitos sobre como lidar com a diversidade e com o desconhecido. Frisa-se que a presença de pessoas com deficiência nos mais diversos ambientes contribui para o enfrentamento dessas barreiras e discursos. Nesse sentido, promover a inclusão de pessoas com deficiência nas instituições não cabe apenas à gestão de pessoas, pois deve ser uma política de toda a organização. Portanto, não se trata unicamente de cumprir exigências legais, mas conceber a diversidade como potência, não como algo a ser tolerado (NUERNBERG, 2018). O contexto da DPE-RS ainda é muito desafiador, seja pelas barreiras atitudinais, seja pelas barreiras arquitetônicas, comunicacionais e tecnológicas, mas um primeiro passo foi dado. A criação de espaços como a CPAI, o Evento “Diversidade e Inclusão Social” e as oficinas, considerando que são espaços ocupados e conquistados por pessoas com deficiência, já se mostra como importante avanço para uma instituição e uma sociedade menos capacitista. A abertura desses espaços legitima a presença de servidores com deficiência na instituição e desmistifica os preconceitos em torno deste grupo social, pois amplia o conhecimento a respeito das diversas possibilidades desses sujeitos. Cabe lembrar que “#écapacitismoquando você chama pessoas com deficiência só para falar sobre acessibilidade e capacitismo” , de maneira que todas as pessoas com deficiência podem desenvolver suas atividades de trabalho nos mais variados contextos institucionais, não apenas naqueles que dizem respeito estritamente a este tema.

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Se o conhecimento é elemento central para mudar sistemas injustos de poder, espera-se que este breve trabalho contribua para a disseminação de um conteúdo ainda pouco visibilizado. Nesse sentido, a tentativa de nomear, conhecer e discutir algumas das faces do capacitismo serve justamente para trazer à tona os conhecimentos e as experiências vividas pelas pessoas com deficiência a fim de tornar cada vez menor a incidência de discursos e práticas preconceituosas.

6 REFERÊNCIAS

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