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Este documento aborda conceitos e princípios relacionados à atuação estatal com base em processos e procedimentos, incluindo a noção de 'devido processo legal' e a distinção entre módulos seqüenciais e dialéticos. Além disso, discute a aplicação do princípio do devido processo legal no exercício de função estatal e a evolução do conceito de 'devido processo' no tempo.
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Tipologia: Notas de aula
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC • 125
Carlos César Sousa Cintra* Daniel Mota Gutierrez*
Resumo O presente escrito examina alguns aspectos revelados pela denominada “administração públi- ca burocrática” para, em seguida, evidenciar a importância que os procedimentos e processos, desde que adotados na medida certa, exercem no encaminhamento de questões por parte dos administrados perante o Estado. Analisa-se a relação entre a (in)eficiência da Administração Pública e a burocracia, por intermédio da releitura dos esquemas procedimentais próprios da teoria da burocracia weberiana, em uma perspectiva que resguarde a imprescindível seguran- ça jurídica que deve nortear a atuação estatal. A investigação compreende, ainda, a delimita- ção do sentido e alcance jurídico da “procedimentalização” e da “processualização” no âmbi- to da Administração Pública burocrática à luz da vigente Constituição Federal.
Título Palavras-chave Burocracia. Procedimentalização. Processualização.
BUREAUCRACY, PROCEDURE AND PROCESSING IN BRAZILIAN LAW
Abstract title This paper examines some aspects revealed by the so-called “bureaucratic public administra- tion” and then highlights the importance that the procedures and processes, if adopted in the right way, have in the referral of questions by administrators against the State. The relation- ship between the (in) efficiency of the public administration and the bureaucracy is analyzed through the re-reading of the procedural schemes proper to the Weberian bureaucracy theory, in a perspective that safeguards the indispensable legal certainty that should guide the state performance. The investigation also includes the constitutional delimitation of the legal mean- ing and scope of “proceduralisation” and “processualization” within the scope of bureaucratic public administration.
Key Words title Bureaucracy. Procedurealization. Processualization
*Possui graduação em Direito pela Universidade de Fortaleza (1995), mestrado em Direito pela Pontifí- cia Universidade Católica de São Paulo (2000) e doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2005). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Ceará e sócio - Cintra Mourão Advogados Associados. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Tributário, atuando principalmente nos seguintes temas: tributos federais, direito tributário, *^ tributos estaduais, princípios tributários e processo administrativo tributário. Possui mestrado em Programa de Pós-Graduação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006) e doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2014). Tem expe- riência na área de Direito, com ênfase em Direito Processual Civil, atuando principalmente nos se- guintes temas: direito constitucional processual, processo coletivo e transação.
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Não é de hoje que constitui verdadeiro “lugar comum” associar o termo pluris- significativo “burocracia”^1 a tudo o que obsta a obtenção de soluções ágeis e eficien- tes.^2 Nesse sentido, alguns dicionários definem burocracia do seguinte modo: a) “série de procedimentos que tornam morosos os serviços prestados pelos órgãos públicos ou privados”^3 ; b) “morosidade ou complicação no desempenho de serviço adminis- trativo”^4 ; e c) “tramitação demorada de papéis, em repartições públicas ou em organi- zações de outro tipo. Administração com excesso de formalidades”^5.
Ao apresentar-se como noção portadora de uma expressiva conotação emocio- nal negativa, costuma-se empregar o vocábulo em questão quase que exclusivamente com sentido pejorativo, enquanto causa última do mau funcionamento do aparato estatal.
Assim, o apego dos agentes a regras de conduta, expedientes, rotinas e controles acarreta uma inaceitável lentidão, traço negativo este gerado pelos modelos burocrá- ticos, que desse modo mais atrapalhariam do que favoreceriam o bom desempenho da Administração Pública. Entre outros atributos negativos, ineficiência e lentidão estariam sempre associadas à idéia de burocracia.
Porém, constata-se que o problema não reside na existência de organizações es- truturadas segundo um modelo burocrático. Na verdade, o defeito provém dos exces- sos desnecessários postos em prática por determinados sujeitos integrantes na má- quina estatal, anomalias estas que tornam evidentes perturbações da burocracia.
De seu turno, a existência de procedimentos, prestigiando a participação dos administrados, é algo que tem o condão de concorrer para o oferecimento de soluções que atendam às expectativas axiológicas hospedadas pela vigente ordem constitucio- nal^6.
O presente escrito pretende inicialmente examinar alguns aspectos revelados pela denominada “administração pública burocrática” para, em seguida, evidenciar a importância que os procedimentos e processos, desde que adotados na medida certa, exercem no encaminhamento de questões por parte dos administrados perante o Es- tado.
Nesse sentido, pretende-se examinar a relação entre a (in)eficiência da Adminis- tração Pública e a burocracia, por intermédio da releitura dos esquemas procedimen-
(^1) "Burocracia" é um termo composto pelo francês bureau (escritório) e pelo grego krátos (poder ou regra),
2 significando o exercício do poder por funcionários de escritórios. Nesse sentido, Owen Fiss destaca que “burocracia” é “um termo frequentemente usado com conota- ções pejorativas, em razão das patologias ou disfunções ligadas às organizações complexas, ..”, evi- denciando, inclusive, que “ a história do século XX é, de maneira geral, a história da burocratização”, afirmativa esta que demonstra o relevo da presente temática. Um novo processo civil: estudos norte- americanos sobre Jurisdição, Constituição e Sociedade , coord. da tradução Carlos Alberto de Salles, São 3 Paulo, Revista dos Tribunais, 2004, p. 166. AULETE, Caldas. Minidicionário contemporâneo da língua portuguesa , Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 4 2004, p. 120-121. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. O minidicionário da língua portuguesa, 5. ED., Rio de Janeiro, 5 Nova Fronteira, 2001, p. 120. 6 BUENO, Silveira.^ Dicionário escolar , 3. ed., São Paulo, Ediouro, 2004, p. 103. Para Edson Fábio Garutti Moreira, somente por meio da burocracia “é que os princípios humanistas e os direitos humanos podem, ou não, ser garantidos”. Humanismo de Maritan e a burocracia , São Paulo, Edições Loyola, 2011, p. 21.
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como modelo de organização utilizado para a tomada de decisões no âmbito do Esta- do.
É precisamente a partir daquela constatação que sobressaem os fenômenos da procedimentalização e processualização, como mecanismos que põe em destaque a participação dos administrados, e que se bem empregados podem evitar os efeitos danosos decorrentes de uma extremada burocratização.
Napoleão Mendes de Almeida assinala que “o nosso sufixo izar tem em inglês a forma correspondente ize para indicar a ‘ação de’, quando não tem o próprio nome com força verbal”^11 (grifos do autor).
É também daquele gramático a observação no sentido de que o afixo posposto “ação” acresce-se a tema verbal para designar ação ou resultado de ação^12.
A partir daquelas lições tem-se que o verbo “procedimentalizar”, cuja formação é oriunda da junção do sufixo verbal “izar” ao substantivo “procedimento”, possui o sentido de ação voltada à implementação de procedimento.
Por sua vez, “procedimentalização”, substantivo feminino, consiste exatamente na ação ou resultado da ação de procedimentalizar, isto é, implantar procedimentos.
De modo análogo, “processualizar” (verbo) significa dirigir ação voltada a im- plantar processo, e “processualização” (substantivo feminino) traduz o efeito propri- amente dito decorrente daquele agir.
E quanto à “procedimentalidade” (procedimento + idade) e “processualidade” (processo + “idade”), eis aqui substantivos femininos indicando uma situação em que sobressai procedimento e processo, respectivamente.
Feitas tais anotações gramaticais, cuidar-se-á do ponto central que ora interessa: sentido e alcance jurídico da procedimentalização e processualização no âmbito da Administração Pública burocrática, e segundo o ambiente normativo suscitado pela ordem constitucional inaugurada pela vigente Carta Magna.
A vigente Magna Carta posicionou destacadamente o complexo seqüencial de atos (“procedimentos”) em todos os âmbitos de ação estatal (Poder Executivo, Legisla- tivo e Judiciário). A partir da nova ordem constitucional, o agir do Estado necessitará nortear-se por aquela perspectiva “procedimentalizante”.
A conexão do exercício das funções estatais com o procedimento mostra-se ver- dadeiro consectário da opção manifestada no princípio do “Estado Democrático de Direito” (art. 1º, CF/88), que trouxe para as autoridades (membros do Poder Executi- vo, in exemplis ) o inarredável dever de proporcionar uma maior participação dos ci- dadãos nos momentos em que o Estado atua.
(^11) Dicionário de questões vernáculas , 4. ed., São Paulo, Ática, 1998, p. 292. (^12) Gramática metódica da língua portuguesa , 42. ed., São Paulo, Saraiva, 1998, p. 394.
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Acorda-se com J. J. Gomes Canotilho, que atribuindo ao procedimento (módulo seqüencial) a potencialidade de converter a Constituição em uma ordem jurídica di- nâmica assevera:
“... a participação através do procedimento, além de ser um meio de comuni- cação ascendente e descendente entre governantes e cidadãos, é igualmente, uma compensação e uma garantia dos particulares e das comunidades (locais, regionais, grupais) perante as tarefas crescentes de conformação política e econômica levadas a efeito por uma burocracia e tecnocracia estaduais sem qualquer transparência democrática.”^13 (grifos do autor) Noutro giro verbal: a citada procedimentalidade introduzida pela vigente Cons- tituição, que tem como meta optata favorecer a contenção do exercício “poder estatal”, impulsiona a postular por mudanças no distanciado relacionamento até então trava- do entre Estado e sociedade.
Tendo feito a escolha pelo regime democrático, os detentores do poder político não poderão ser renitentes em criar mecanismos que permitam uma maior inclusão dos cidadãos nos procedimentos decisórios advindos da atividade legislativa, admi- nistrativa e judicante, mediante um encurtamento da distância que separa governan- tes e governados^14.
Defende-se, pois, que por meio da adoção apropriada daquele estilo de atuar, que vai ao encontro das expectativas axiológicas inseridas na Carta Magna, a própria contenção do poder estatal juntamente com a valorização dos direitos fundamentais restarão facilitadas^15.
Entrevê-se nele a aptidão para fomentar, in hipothesi , a efetivação, por parte da sociedade, de um controle mais eficaz do agir estatal, já que a previsão de adequados procedimentos, onde os cidadãos tenham a real condição de influenciar qualitativa- mente nos resultados a serem obtidos, permitirá uma fiscalização antes, durante e depois da concretização das atividades do Estado^16.
Jürgen Habermas, baseado em seus estudos sobre o agir comunicativo (teoria do discurso), edifica uma teoria do procedimento e do processo que segundo ele oportu-
(^13) Direito constitucional, 5. ed., Coimbra, Almedina, 1992, p. 1036. (^14) Gérson Marques de Lima enaltece o fato de a CF/88 ter assegurado o direito ao módulo seqüencial adequado, e diz que tal procedimento “é aquele que se mostra apto a por ele se exercerem as garan- tias processuais, no incremento da tutela buscada para a efetivação do interesse não satisfeito”. Fun- damentos constitucionais do processo (sob a perspectiva de eficácia dos direitos fundamentais ), São Paulo, Ma- 15 lheiros, 2002, p. 87-88. Adriana da Costa Ricardo Schier afirma que “através da procedimentalização da esfera administrati- va, o direito de participação poder ser exercido tanto na dimensão em que concretiza o princípio do Estado de Direito (na medida em que possibilita o controle de legalidade dos atos administrativos) como na perspectiva que viabiliza o princípio democrático, pois garante o direito à intervenção dos cidadãos na gestão pública”. A participação popular na administração pública: o direito de reclamação , Rio 16 de Janeiro, Renovar, 2002, p. 98-99. Acerca disso, J. J. Gomes Canotilho enfatiza que “a compreensão das decisões constitucionais como decisões justas (sejam elas decisões tomadas no exercício da função legislativa, da função adminis- trativa ou da função jurisdicional) quanto ao ‘modo de decidir’ e quanto ao ‘produto final’, implica a idéia de vinculação constitucional de todas as actividades concretizadoras da Constituição nos vários momentos de desenvolvimento e não apenas no acto definitivo final”. Direito constitucional, 5. ed., Coimbra, Almedina, 1992, p. 1035.
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É notório que o legislador constitucional nem sempre empregou o mencionado termo no estrito sentido técnico-jurídico. Mas não se pode contestar que houve da parte dele o esmero em estabelecer as bases jurídicas da atuação dinâmica do Estado, que por força do art. 1º, da CF/88, deve prestigiar a participação ativa dos interessados em tais movimentações estatais.
Noutras palavras: a ordem jurídica sobrevinda com a vigente Constituição criou condições para que cada vez mais fosse posta em prática aquela irrefragável tendên- cia dirigida a implantar as fórmulas a que referimos antes (módulo seqüencial ou mó- dulo seqüencial dialético) nas atuações do Executivo, Legislativo e Judiciário.
Diante daquele vivaz espírito procedimentalizante (sem contraditório ou com contraditório) patenteado na Lex Magna , passou-se a sustentar a existência de um es- quema processual amplo ou “processualidade em sentido amplo”^20 , que alcançaria todo e qualquer agir estatal.
De rigor, segundo as premissas adotadas neste escrito, seria mais apropriado co- gitar de um esquema procedimental amplo. Isto porque pelo que se disse noutra par- te, a atuação estatal com base em procedimentos (módulos seqüenciais) é que se alas- trou, sendo que a aplicação de tal fórmula numa estrutura dialética (processo) é algo mais restrito, próprio de específicas situações.
Então, seria mais correto aludir à “procedimentalização ampla” (procedimenta- lidade) juntamente com uma “processualização atípica” (processualidade).
Aclara-se que a última locução (processualidade atípica) significa que a obrigato- riedade de permitir que os destinatários da atuação estatal tenham a mais ampla pos- sibilidade de intervir, de modo simétrico e equilibrado (contraditório), em situações que dêem origem a atos ou resultados finais produtores de efeitos jurídicos, acontece em particulares manifestações de exercício atípico de função judicante pelo Executivo e Legislativo.
Admite-se que a nomenclatura sugerida (“processualidade ampla”), hoje am- plamente conhecida de todos, quer manifestar a projeção de alguns princípios, de modo especial do contraditório e da ampla defesa, a casos concretos que até à CF/ para muitos não sofriam qualquer influxo de tal postulado.
É naquele sentido que Odete Medauar sugestiona a presença de um “núcleo comum da processualidade” a partir de dados extraídos da própria experiência jurídi- ca – módulo processual amplo esse que portaria, em síntese, os seguintes elementos fundamentais^21 :
a processualidade exprime o instante em que um dado fenômeno está acon- tecendo (dinamicidade); a processualidade não se traduz na simples adição de atos isoladamente considerados (somatório de fases), voltada à obtenção de um certo resultado final, uma vez que o encadeamento dos atos ou atuações exige que cada ato precedente provoque a realização do ato posterior, tudo até o momento fi- nal;
(^20) Medauar, Odete. A processualidade no direito administrativo , São Paulo, Revista dos Tribunais, 1993. (^21) Direito Administrativo Moderno , 7. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, p. 178-179.
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o sistema jurídico determina o encadeamento sucessivo dos atos como algo necessário e obrigatório; apesar da correlação que há entre o processo e o ato final, o primeiro tem natureza instrumental quanto ao segundo; a processualidade abarca todos os atos que imediata ou mediatamente se- jam atados à edição do ato final; a processualidade envolve a coadjuvação de alguns sujeitos ou órgãos; e as pessoas atuantes no processo, e que mantêm vínculos entre si, são dota- das de direitos, deveres, ônus, poderes e faculdades (posições jurídicas ati- vas e passivas). Se é salutar o intento de pinçar na CF/88 os aspectos mencionados acima, por outro lado não se mostra correto supor que a atuação estatal sempre seja realizada de acordo com a sucessão de atos em contraditório (“processo”).
À vista disso, assimila-se, com algumas reservas, a proposta que apregoa a exis- tência de uma “processualidade ampla”, pelo menos no sentido aqui depreendido. Isto porque, apesar de acertadamente tal perspectiva teórica preordenar-se a demons- trar o desacerto da manutenção do processo nas amarras do Judiciário, em contrapar- tida ela peca pelo exagero de planear estender a sistemática processual (série de atos em contraditório), indistintamente, a todas as formas de atuação do Estado.
Aqui novamente reafirma-se que somente ao exercitar (típica ou atipicamente) função judicante é que verdadeiramente torna-se possível cogitar da existência de fenômenos processuais stricto sensu , e, em conseqüência disso, subjugar tal agir a um regime jurídico peculiar, daí porque se opta por utilizar a expressão “processualidade atípica”.
De modo objetivo, serão apresentados neste item os fundamentos que permitem compreender o regime jurídico-constitucional básico das atividades legislativa (atípi- ca), administrativa (típica). Para tanto, somente se apontará os traços indispensáveis aos fins almejados por esta investigação.
5.1. Odue process of law como sobreprincípio ordenador da atuação estatal O exercício de função estatal deve sempre ocorrer segundo módulos seqüenciais (“procedimentos”). O mesmo não acontece com a instauração de módulos seqüenciais dialéticos (“processo”), que só tem vez quando o Estado deseja agir restringindo li- berdades^22 e bens^23 , compreendidas tais palavras na acepção mais ampla.
A despeito da distinção indicada acima, advoga-se que toda atuação estatal tem de ocorrer em absoluta conformidade com o princípio jurídico do devido processo
(^22) Encontram-se nos direitos de liberdade os seguintes atributos: a) centram-se nas pessoas; b) repre-
23 sentam modos de agir das pessoas; c) sua importância é função direta da importância da pessoa. No elenco do conceito de bens, ordinariamente, incluem-se os materiais (tangíveis), imateriais (ide- ais), presentes (existentes desde que são considerados) e futuros (certos).
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devido processo legal apenas com seu aspecto formal, com o aspecto do século passa- do”^29.
Em nosso País, a absorção expressa somente aconteceu com o advento da CF/88, que elevou o direito ao devido processo legal à condição de autêntica garantia consti- tucional^30.
Relativamente à distinção entre direitos e garantias individuais, de uma maneira geral, perfilha-se o entendimento esposado por Jorge Miranda, a saber:
“Os direitos representam por si só certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias são acessórias, e muitas delas, adjectivas (ainda que possam ser objecto de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das pessoas, e inserem-se, directa e imediatamente, por isso, nas respectivas es- feras jurídicas, as garantias, só nelas se projectam pelo nexo que possuem com os direitos; na acepção jusracionalista inicial, os direitos declaram-se , as garantias estabelecem-se .” 31 (grifos do autor) Com efeito, por intermédio das solenidades – garantias^32 , que promanam da cláusula do due process of law , pretende-se ver assegurada a efetividade de direitos fundamentais contemplados na ordem jurídico-constitucional.
Aqui não se pode perder de vista que o due process of law ratifica o disposto no art. 5º, inciso II, da CF/88 (princípio da estrita legalidade), à medida que ele requer que eventual invasões das esferas subjetivas dos particulares somente aconteçam se houver autorização expressa de lei stricto sensu.
Porque se concebe o módulo seqüencial em contraditório (processo) como espé- cie do gênero próximo módulo seqüencial (procedimento), a principiologia jurídica informativa deste ( modus procedendi ) abarca os fenômenos ocorridos no seio daquele (processo).
Porém, a conclusão apontada acima dá ensejo a desdobramentos diversos, fato esse comprovado quando do exame da própria claúsula due processs of law (eficácia incondicionada), que assumirá feições distintas segundo o ambiente circundante do agir estatal.
Assim, aquele postulado operativo (devido processo legal) desmembra-se em princípios específicos, alguns dos quais influenciarão o resultado final advindo da sucessão de atos onde o contraditório não se faz presente (isonomia, publicidade, mo- tivação etc.), e outros que regerão aquilo que sucede no âmbito de “esquemas proces- suais” (ampla defesa, in exemplis ).
(^29) Estado de direito e devido processo legal, in Revista TRF 3ª Região , 1997, n. 32, p. 18. (^30) Afirma Paulo Bonavides que “existe garantia sempre em face de um interesse que demanda proteção e de um perigo que se deve conjurar”. Curso de direito constitucional , 6. ed., São Paulo, Malheiros, 31 1996, p. 481. 32 Manual de direito constitucional , Coimbra, Coimbra Editora, 1988, t. IV, p. 88-89. Esclarece Maria Rosynette Oliveira Lima que, no Brasil, o due process of law assume a condição de garantia uma vez que ele “também assegura, ao indivíduo, um certo procedimento como meio apto a minimizar o risco de decisões arbitrárias sobre os bens que visa tutelar, bem assim a proteção ao núcleo essencial dos direitos tutelados”. O devido processo legal , Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 18.
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Outro aspecto digno de registro diz respeito à bi-dimensão revelada pela men- cionada cláusula – procedural due process of law e substantive due process of law. É que hodiernamente não há mais espaço para pretender cindir aspectos processuais e ma- teriais, que verdadeiramente apresentam-se com traços de complementariedade.
Corolários da garantia constitucional do due process of law ¸ os princípios da am- pla defesa e do contraditório têm aplicação onde quer que haja exercício de função estatal judicante, que obrigatoriamente estruturar-se-á conforme esquemas processu- ais em sentido estrito (módulo seqüencial dialético).
Saliente-se que será de medular importância o conteúdo desse entendimento, principalmente quando se estiver examinando específicas atividades colocadas em prática pelo Executivo no exercício típico de função administrativa, mediante singelos módulos seqüenciais – procedimentos administrativos, tais como:
realização de fiscalização tributária lato sensu ; respostas a consultas, pedidos de restituição e outros requerimentos; e análise de solicitação de inscrição em cadastro de contribuinte. É que em tais situações não será adequado supor que a Administração Pública tenha de respeitar os primados do contraditório e da ampla defesa, o que não autori- zará afastar por completo o administrado daquelas manifestações estatais, porque como se afirmou, a participação ativa dos interessados deve guiar todos os passos do Estado.
Quanto ao contraditório, ele se revela na multicitada estrutura dialética^33 que orienta módulos seqüenciais (procedimentos)^34 instaurados precipuamente na órbita do Poder Judiciário, mas que também qualificam certas atuações ocorridas no seio dos Poderes Executivo (processo administrativo disciplinar, in exemplis ) e Legislativo (pro- cesso de impeachment , verbi gratia ).
Além disso, tal como se asseverou, a possibilidade de as partes influenciarem simetricamente o conteúdo das decisões, por intermédio do confronto bilateral entre tese e antítese (diálogo), reclama a idéia de equilíbrio ( par condicio^35 ), que deve igual- mente singularizar a dialeticidade essencial ao contraditório^36.
(^33) Sem ambições de esmiuçar o tema, que é rico em polêmicas filosóficas (Aristóteles, Platão, Kant etc.), tem-se que para este trabalho a dialeticidade aludida traduz-se na síntese dos opostos (Fichte, Hegel etc.), que advém do seguinte método: afirmação de algo (tese); contraposição do que se afirmou (an- títese); aceitação ou negação da afirmativa (tese) ou negativa oferecida (síntese). Cf. Villey, Michel. Filosofia do direito: definições e fins do direito: os meios do direito , trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. 34 São Paulo: Martins Fontes, 2003. Marcelo Lima Guerra enfatiza que “um módulo seqüencial é dotado de estrutura dialética – tornan- do-se, assim, uma espécie característica de módulos seqüenciais – quando na sequência de atos em que se traduz tal módulo estão previstas (vale dizer, asseguradas ) possibilidades simétricas de realiza- ção de atos, por ambos os destinatários do ato ou resultado final desse módulo, que sejam aptos a determinar o próprio conteúdo desse ato ou resultado final”. O Conceito de processo como seqüência de 35^ atos em contraditório e a processualidade do ordenamento , trabalho inédito, p. 2. Relacionada com o oferecimento de mesmas oportunidades e ferramentas jurídicas, essa paridade não assume contornos absolutos. A fim de que a par condicio se efetive é preciso que os sujeitos este-
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c) com o advento da Constituição Federal de 1988, passou-se a sustentar a exis- tência de um esquema processual amplo ou “processualidade em sentido amplo”, capaz de alcançar todo e qualquer agir estatal, contudo, e em consonância com as premissas do vertente estudo, é mais apropriado cogitar de um esquema procedimen- tal amplo, na medida em que a atuação estatal com base em procedimentos (módulos seqüenciais) é que se alastrou, sendo que a aplicação de tal fórmula numa estrutura dialética (processo) é algo mais restrito, próprio de específicas situações;
além do tratamento diretamente relacionado como fenômenos envoltos por procedimento (módulos seqüenciais) ou procedimentos em contraditório (módulos seqüenciais dialéticos), percebe-se que o signo “processo”, de forma especial, foi utili- zado com significações as mais diversas no âmbito da vigente Constituição Federal;
somente ao exercitar (típica ou atipicamente) a função judicante é que torna-se possível cogitar da existência de fenômenos processuais stricto sensu , e, em conse- qüência disso, subjugar tal agir a um regime jurídico peculiar, razão pela qual se opta por utilizar a expressão “processualidade atípica”;
f) O exercício de função estatal, que deve dar-se em conformidade com o princí- pio do devido processo legal, ocorre segundo módulos seqüenciais (“procedimen- tos”), diferentemente do que acontece com a instauração de módulos seqüenciais dia- léticos (“processo”), pois estes só tem vez quando o Estado deseja agir restringindo liberdades e bens, compreendidas tais palavras num alcance mais amplo.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional, 5. ed., Coimbra, Almedina, 1992, p. 1036.
COMOGLIO, Luigi Paolo. La garanzia constituzionale dell’a azione ed il processo civile , Padova, CEDAM.
FIGUEREDO, Lucia Valle. Estado de direito e devido processo legal, in Revista TRF 3ª Região , 1997, n. 32
HABERMAS, Jurgen. Três modelos normativos de democracia, trad. Anderson Fortes Almeida e Acir Pimenta Madeira, in Caderno da Escola do Legislativo , Belo Horizonte, n. 3, jan/jun, 1995, p. 111-112.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno , 7. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais,
_________. A processualidade no direito administrativo , São Paulo, Revista dos Tribunais, 1993.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional , Coimbra, Coimbra Editora, 1988, t. IV
SUNFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público , 3. ed., São Paulo, Malheiros, 1997