






Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Este livro revisita a obra de ecléa bosi, que explora a memória pessoal e os eventos do dia-a-dia, registrados na lembrança e contados para outrem. Bosi discute a importância da memória bergsoniana, que captura as coisas em constante transformação, e a maneira como as lembranças pessoais se relacionam com o contexto social. Ela reflete sobre a importância de criar um contexto de confiança para coletar depoimentos e salvar os pormenores, que podem revelar a coerência de uma pessoa. O autor também discute a importância de se mantter atento às distorções que a memória social impõe.
O que você vai aprender
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
1 / 12
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
Psicologia USP, 2004, 15(3), 233-244 233
este livro de admirável sensibilidade humana, Ecléa Bosi explora o campo de experiência pessoal com os eventos do dia-a-dia, registrados na lembrança, contados para outrem. Não é a memória que se tranca em si- mesma, mas a que partilha seus conteúdos quando há um ouvido disponível e atento, e que os define, no próprio ato de contar. Há uma história oficial, a dos manuais e das datas importantes que todos nós quando estudantes, e sob protesto, tivemos de decorar. A a que se refere Ecléa é outra história, a de cada um, construída ao longo da vida, a partir de um cotidiano muitas vezes corriqueiro mas sempre relevante.
A toda hora, somos capazes de recuperar aspectos de nosso passado: é como se nos contássemos histórias a nós-mesmos, alguns chegam a registrá- las em forma de diário. Mas o relato primordial é o que pode ser feito a ou- tras pessoas: através dele, o que vivemos e que é bem nosso ganha uma di- mensão social, obtém testemunhas (mesmo que a posteriori ), faz com que os outros ampliem sua experiência, através das nossas palavras. Há troca e cumplicidade. Viver, para Contar (a vida), o título das memórias de Gabriel García Márques, serve para todos nós. Viver algo notável gera a necessidade de contar: você sabe o que eu vi? você sabe o que me aconteceu? E tudo o que nos acontece é notável porque nos concerne. É interessante notar que estudiosos supõem ter a linguagem se originado, em nossa espécie, a partir da representação de situações sociais; talvez se possa dizer, parafraseando García Márquez, que se nos lembramos é para poder contar.
Falar nem sempre é pragmático, no sentido de coordenar a ação sobre o mundo, falar aproxima as pessoas e as coloca num campo de significados comuns. É um contacto de experiências no qual toma mos um prazer especial (não nos definiu o psicólogo Dunbarcomo uma espécie palradora, em que os relacionamentos sociais se reforçam através do bate-papo ?), graças ao qual reduzimos a solidão à qual nos condena a nossa individualidade e os mun- dos próprios que construimos para nós-mesmos. Não se trata de uma memó- ria-hábito, mas uma memória de eventos únicos, uma memória bergsoniana das coisas em constante transformação, da qual nos fala Ecléa.
Digo “nos fala” porque o tom do relato é que marca a maneira de E- cléa compor os ensaios que fazem parte do livro. Ela escreve como quem conta, vai acrescentando as idéias em pequenas frases sempre dentro da li- nha narrativa e a gente lê com a sensação de que está na presença de fatos de uma experiência que também poderia ser nossa. Ecléa não se esconde atrás do que diz, em formalidade desnecessária (mesmo quando, às vezes, escreve como quem dá uma aula), seu texto remete aos trajetos seguidos, aos enga- jamentos pessoais que o originaram. “Durante anos sucessivos meu alunos de Psicologia Social... representaram a novela “O Capote” de Nicolai Go- gol” (p. 127) ou “Faz alguns anos recolhi a memória do tempo... a memória do trabalho de velhos moradores de São Paulo” (p. 69).
Perpassa o texto um senso poético especial. Ecléa tem talento para captar o pormenor, redimindo e dignificando o cotidiano. É assim que se refere, de forma suave, à paz da cidade, quando cai a noite: “A seqüência de movimentos na calçada segue ritmos que aceleram e se abrandam em horas certas e vão se extinguindo devagar quando as janelas se iluminam e as ruas se esvaziam. Depois, as janelas vão-se apagando e fechando, menos alguma que resiste ainda, da qual escapa um som que finalmente silencia” (p. 72). ; e é assim que, graças a uma imagem que nos surpreende, infunde força de transformação àquilo que parece ter a eternidade do concreto: “[o bairro tem] sua infância, juventude, velhice... as casas crescem do chão e vão mu- dando: canteiros, cercas, muros, escadas, cores novas, a terra vermelha e depois o verde umbroso. Arbustos e depois árvores, calçadas, esquinas... uma casa pintada de azul que irradia a luz da manhã, os terrenos baldios, as
Mas a perspectiva na qual se coloca Ecléa transcende, sem abandoná- la, a perspectiva individual. Cada relato remete a situações em que o depo- ente se envolveu em interação com outras pessoas, reflete as crenças que adquiriu em seu grupo, se ancora temporalmente aos eventos que fizeram notícia e qualificaram a época, sobre campeonatos de futebol, sobre aciden- tes e crimes, sobre escândalos e política (sem querer associar ambos, embo- ra...), sobre a passagem do cometa Halley, sobre a marcha das mulheres pela família e pela propriedade, sobre o movimento das diretas já, sobre o impea- chment do presidente Collor, sobre o atentado do 11 de setembro etc. A vida “privada” constitui o testemunho de um tempo coletivo, e o psicólogo social pode remontar, a partir das práticas da privacidade, para o contexto social do qual se nutrem e que elas ajudam a definir. Nesta empresa, a psicologia es- tabelece zonas de transição e de interdisciplinaridade com a história e as outras ciências sociais.
Acho preciosas e reveladoras as “sugestões para um jovem pesquisa- dor” (cartas a um jovem poeta?) que Ecléa dá, a partir de intuições cultiva- das ao longo de anos de pesquisa, em contextos diversos, mas sempre cen- tradas no encontro e na criação de interações privilegiadas. Não são as regras que um capítulo de metodologia costuma conter e não se preocupam com a quantificação das coisas. São práticas num outro sentido. Lembram o quanto é essencial criar um contexto de confiança e de apego para poder aproximar-se dos modos como alguém se vê e vê os eventos nos quais to- mou parte. Trata-se de um exercício de alteridade. Não há nada que eu ache mais impressionante a respeito da consciência humana do que esta capaci- dade que temos – se houver o desejo e se forem propícias as condições – de apreender o jeito de os outros serem, adotando por um momento sua pers- pectiva, decentrando nossa percepção, como diria Piaget.
Quais são as dicas que Ecléa propõe? Em primeiro lugar, obter infor- mações objetivas a respeito do assunto de que irá falar o depoente, assim não estaremos metendo os pés pelas mãos a respeito da história e da geogra- fia das coisas que serão relatadas. Em seguida, efetuar uma aproximação pessoal aos contextos aos quais ele pertence, indo, se possível à sua casa, e “sair com ele, caminhar ao seu lado nos lugares em que os episódios le m-
Resenha
brados ocorreram” (p. 60), (este andar, evidentemente, pode ser virtual, se os eventos relatados forem distantes, no tempo, no espaço). Cabe efetuar uma conversa prévia (ou pré-entrevista, mas não fica claro o quanto o “pré” já não é começo) para adquirimos informação a respeito do que constitui o cerne de suas preocupações, dos termos que usa e do modo de reconstituir o passado que é bem dele. E, sobretudo, formar laços de amizade. Estes laços são tão necessários quanto inevitáveis. Ocorrem porque, ao perguntarmos sobre o passado do depoente, estamos nos colocando na posição de pessoa que se interessa por ele e quer partilhar a sua experiência. É a aventura con- junta de reviver e o que fala implicitamente agradece ao que escuta, por ter- lhe fornecido uma oportunidade para saber o que tinha a dizer (não afirma Alain que precisamos de palavras para saber o que pensamos ?).
Tudo tem de ser anotado. Reencontro, nesta sugestão de Ecléa, minha própria alegria de naturalista, sempre pronto a registrar o muito que pode ser visto. A manutenção de um diário, na pesquisa sobre memórias, salva, na memória do pesquisador, os pormenores que apenas na aparência e à cons- ciência apressada são irrelevantes. Sugiro sempre aos meus alunos que, quando possível, gravem suas entrevistas: ouvir depois é descobrir a riqueza das nuances, dos silêncios, das reticências, daquilo que não se pretendia tal- vez transmitir mas que passou assim mesmo. Ecléa ressalta a importância das hesitações e dos silêncios. “Os lapsos e incertezas das testemunhas são o selo da autenticidade... A fala emotiva e fragmentada é portadora de signifi- cações que nos aproximam da verdade. Aprendemos a amar esse discurso tateante, suas pausas, suas franjas com fios perdidos quase irreparáveis” (pp. 63-65). No trabalho de colher um depoimento, com atenção “intensa e leve”, cabe perceber a forma como o depoente ordena as suas lembranças, os as- pectos da narrativa que ele ressalta, os que ele deixa mais pobres, os mo- mentos de transição nos quais se revelam as passagens de sua vida. E os seus esquecimentos. Tudo serve para que surja um campo global de signifi- cação, extraído dos muitos fragmentos colhidos, numa totalidade que Ecléa qualifica de gestáltica. Finalmente, mais do que uma sugestão, um ponto ético: mostrar o depoimento, depois de transcrito, a quem o deu, para que
Resenha
(p. 23). Ecléa sempre se mantém atenta ao que afasta o relato da realidade social, ofuscando-a. Denuncia a imposição sutil e perversa, que faz com que alguém veja os eventos sociais relevantes do modo como convém aos que detêm a mídia, o poder. “Quando um acontecimento político mexe com a cabeça de um determinado grupo social, a memória de cada um de seus membros é afetada pela interpretação que a ideologia dominante dá a este acontecimento. Portanto, uma das faces da memória pública tende a permear as consciências individuais” pp. 21-22).
Imagens, sentimentos, idéias e valores “politicamente corretos” ali- mentam a memória da pessoa e dão permanência às relações de classe e às explicações cômodas em termos das vantagens proporcionadas a alguns. Há alienação em relação à autenticidade afetiva. “O burguês, enquanto agente e produto do universo de valores de troca, não pode refugiar-se autenticame n- te na esfera da intimidade afetiva, pois até mesmo os seus objetos biográfi- cos podem converter-se – e freqüentemente se convertem – em peças de um mecanismo de reprodução de status” (p. 29). O mecanismo é perverso, uma vez que convence inclusive a quem prejudica: “cada indivíduo pensa que é um caso à parte quando opina: mas ele acentua a sua particularidade enqua n- to exalta o poder que o alienou” (p. 124).
O que também me preocupa é degradação da experiência no que ela tem de pessoal e de crítico. Estamos na era da informação excessiva. Tão distribuída é a atenção que ela se torna superficial e incapaz de constituir os esquemas pelos quais nos é dado integrar os conteúdos parciais do conheci- mento. Além disso, a mídia aposta naquilo que atrai a atenção de forma fu- gaz, no nível suficiente para a elevação pontual de índices de audiê ncia, gera modas que passam, assuntos de que as pessoas falam mas que esquecem muito rapidamente. Trata-se de ganhar de outro canal, de outro programa e a destreza na arte da competição vale mais do que o cuidado pelo conteúdo transmitido. A divulgação banaliza os crimes, os atentados, as guerras e até a miséria. Vivemos mergulhados numa informação descartável e numa insta- bilidade de atitudes e de posicionamentos que nos torna presas para o mar- keting , ele bem estruturado.
“Uma história de vida não é feita para ser arquivada ou guardada nu- ma gaveta como coisa, mas existe para transformar a cidade onde ela flores- ceu” (p. 69). Em frases como esta que encontramos amiúde no livro, se ex- pressa o engajamento que Ecléa não considera posterior à démarche científica , mas como intrínseca a ela, sua motivação e seu guia. A história oral não é apenas o recolhimento do testemunho pessoal, ela é uma maneira de resgatar “as camadas da população excluídas da história”. Há mais do que curiosidade científica no ato de dar a palavra a alguém.
No mínimo, a denúncia. O artigo sobre o campo de Terezin, na então Tchecoslováquia, que eu já tinha tido a oportunidade de ler na Revista Estu- dos Avançados do Instituto de Estudos Avançados da USP, não foi elabora- do a partir de depoimentos diretos, mas o modo como Ecléa conta esta incrí- vel história, o seu uso de relatos indiretos, de documentos e de imagens a tornam tão concreta como se ela tivesse ouvido os fatos da própria boca dos protagonistas (um fato deveras difícil uma vez que a maioria destas pessoas não sobreviveu à sua estada em Theresinstadt).
O que se denuncia, além da crueldade nazista, é o uso do disfarce e da mentira, da propaganda na pior acepção. Para tranqüilizar a opinião pública já bastante inquieta a respeito do destino dos judeus, quando já estava adia n- tado o processo de sua eliminação, organizam os ministros do Führer em meados de 1944 uma visita de membros da Cruz Vermelha à cidade de Terezin, na verdade um campo do qual partiam centenas de pessoas para o extermínio. Encontram os visitantes uma cidade limpa, dirigida por judeus, com orquestras e corais, atividades esportivas, jardim de infância moderno, enfim, “uma cidade normal de província” da qual os habitantes se apresen- tavam sorrindo e a respeito da qual davam depoimentos positivos. Todos, evidentemente, sabiam o que sofreriam caso se desviassem deste roteiro de bom comportamento.
Vale a pena ler o texto de Ecléa a respeito. Escrito como se fosse um documentário, deixa a emoção transparecer ao invés de escancará-la, permi- te ao leitor se expor à atmosfera de ameaça e discriminação, sentindo-a por conta própria. É um testemunho do quanto pode se dobrar alguém, quando
nês a personagem central de L’Année Dernière à Marienbad , de Alain Res- nais. E ele responde: “Oui, c’est mon nom. Ton nom à toi, c’est Nevers” e ambos recuperam assim, recuando no tempo, sua identidade primordial.
Terminarei esta resenha (que mais do que uma reflexão sobre a men- sagem de Ecléa é uma reflexão de sua mensagem) com lembranças e uma árvore, uma figueira. As lembranças remontam às aulas de Psicologia Expe- rimental que tivemos como alunos de uma das primeiras turmas de Psicolo- gia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Era no início da década de 1960, não há como esconder as datas, não é? O curso dispunha de algumas salas, num belo prédio tradicional (o antigo Palacete Jorge Street) da alameda Glete, esquina com a rua Guaianazes, onde os cursos da Geologia, da História Natural e da Química também funcionaram. Descíamos alguns degraus – era o porão do prédio – e entrávamos numa sala com uma mesa central, ao redor da qual cabia toda a turma, eram poucos os alunos! para aulas sobre percep- ção, aprendizagem, psicologia comparativa. Alí, soubemos das idéias dos gestaltistas Koffka, Köhler, Lewin e também nos iniciamos na Etologia com Tinbergen e Lorenz. A sala, assim como outras menores, serviam de labora- tório, no final do corredor foi instalado o sauveiro do Professor Walter Hugo de Andrade Cunha, onde, nos tubos e panelas de vidro, as formigas nos dei- xavam admirados com o seu incessante labor. Sentados à mesa de seminá- rio, em reuniões à parte que marcávamos à noite, Walter, Arno Engelmann e eu discutíamos o modelo teórico de Miller, Galanter e Pribam, tal como ex- posto no livro Plans and the Structure of Behavior , em prenúncio do cogni- tivismo. Fernando Leite Ribeiro, Katsumaza Hoshino, Alcides Gadotti e eu lá planejamos um experimento sobre mapas cognitivos em ratos, de inspira- ção tolmaniana, só muito mais tarde realizado. Em duas salinhas, instale i um biotério improvisado e o meu primeiro laboratório, no qual fui investigando com curiosidade a natureza do comportamento exploratório. O espaço era pouco mas extraordinária a densidade de idéias, não nos abandonava um instante o senso de conquista intelectual. Há muito mais a dizer sobre a Gle- te como origem do que hoje são linhas de ensino e pesquisa no Instituto de Psicologia, mas deixemos isso para outro depoimento. Quero evocar o por- tão com uma guarita por onde entrávamos na Glete, e a bela figueira que
Resenha
ficava, na extremidade do pátio, perto do muro, expandindo seus galhos e sua folhagem para fora, formando uma cobertura para a calçada.
No começo dos anos 1970, sem motivo válido, atingindo a memória que lá se encontrava, foi destruído o palacete para dar lugar a um estaciona- mento de carros. Mas sobrou a figueira, fui visitá-la, há carros por toda a volta, mas ela ainda está bela e frondosa e o pessoal do estacionamento sabe que alí esteve, um dia, a Faculdade.
FIGUEIRA DA GLETE (Figueira das Geociências, 21.11.2003), um broto, memória viva.