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Este texto explora o processo do fantasma na obra 'bate-se numa criança' de sigmund freud, analisando a cena do espancamento e sua relação com o complexo de édipo. O autor discute as diferentes facetas do fantasma, incluindo a posição de servidão abjecta do sujeito e a identificação com o pai gozador. A análise também aborda a relação entre o pai e o filho, e o papel do pai imaginário na cena.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
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«Bate-se numa Criança»: o processo do fantasma Noêmia Santos Crespo 1
Poderoso, sombrio, enigmático, O Processo pode ser lido de muitas maneiras. Escutando a fala dos colegas que me precederam, algo de uma recorrência, de um entrecruzamento de temas e de interpretações, apareceu- me com clareza. Por outro lado, e paradoxalmente, é como se cada um tivesse lido um livro diferente. Talvez porque o mesmo livro tenha lido de modo diferente a singularidade de cada leitor... De minha parte, decidi tomá-lo como se fosse o texto de um sonho. Ou seria um pesadelo? A cena do sonho é dominada por um Tribunal sufocante e omnipresente, Grande Outro absoluto, «eternamente pairando», contra o qual toda resistência é inútil ou capaz de torná-lo ainda «mais fechado, mais atento, mais severo, mais maligno» (Kafka, 1997:132). Para esse Outro insondável, inacessível “ao senhor, a mim e a todos nós” (p.170), «não existem normas» (p.133); instância encarregada de aplicar a Lei, encontra-se acima e fora da Lei, subsumindo em suas teias o conjunto dos mortais comuns: «tudo pertence ao tribunal» (p.162) O relato principia quando o protagonista, Josef K, é notificado de que está sendo acusado e processado pelo Tribunal. Jamais saberá o teor da acusação. Jamais terá oportunidade de defender-se. Jamais poderá pagar a sua dívida, senão com a própria pele. Está seguro da sua inocência, mas a máquina do processo funciona de forma tal que transforma qualquer inocência em culpa; «é o processo que se converte aos poucos em veredicto» (p. 228). O Tribunal não pode ser dissuadido; é totalmente inacessível às provas, e «não se esquece de nada» (p. 170). «Um único carrasco poderia substituir o Tribunal inteiro», conclui o acusado (p. 165). Tudo o que se
(^1) Psicanalista membro da Escola Letra Freudiana. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-RJ. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFES.
Afreudite - Ano III, 2007 - n.º5/ pp. 107-
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Noêmia Santos Crespo
Afreudite - Ano III, 2007 - n.º5/
oferece a Josef K ante a ferocidade do Tribunal é uma posição de servidão abjecta, canina, que ele recusa – para no final ser morto à faca, «como um cão» (p. 246). Morte aviltante em si mesma - «como se a vergonha devesse sobreviver a ele» (idem): desdobra-se numa verdadeira segunda morte, degradação da honra para toda a eternidade. O sujeito do sonho está disperso no texto, representado no protagonista e em outros personagens cuja humilhação e derrisão ele contempla. Não falta nem mesmo uma cena de espancamento, que parece funcionar em moto contínuo (p. 99) e nos lembra imediatamente o fantasma fundamental teorizado por Freud: «Bate-se numa criança» (Freud,1981). Recuperemos brevemente o argumento de Freud nesse artigo. A cena que compõe a versão consciente desse fantasma exibe uma autoridade anónima, sem rosto definido, flagelando as nádegas de uma criança igualmente anónima. Tal cena dá prazer ao sujeito que a evoca, reduzido a um olho que contempla, e serve de pano de fundo imaginário para actividades masturbatórias. Freud procura retraçar as origens desta cena fantasmática. Os pacientes que a relatam recuperam uma versão mais antiga, recalcada, envergonhada, onde se revelam as identidades do espancador e do espancado: nesta cena, é o pai do sujeito que aparece surrando uma criança odiada, irmão ou rival. O subtexto desta variante do fantasma é mais ou menos o seguinte: «O pai bate na outra criança, ele só ama a mim». Esta cena também dá prazer ao sujeito que a evoca. Mas é um prazer culpado e censurado. Reencontramo-la no texto do Processo : a abertura súbita de uma porta mostra a Josef K um carrasco vestido em roupas de couro espancando dois guardas – os mesmos que o protagonista denunciara ao juiz de instrução, por terem comido seu café da manhã e tentado roubar suas roupas. Aqui, o agente de uma Lei obscena flagela os guardas usurpadores, como o pai surra o irmão odiado no primeiro tempo do «Bate-se numa criança». O protagonista protesta, tenta suspender a punição, cuja crueldade lhe parece excessiva; porém, quando um dos guardas espancados solta um grito lancinante, é Josef quem toma o chicote e golpeia pessoalmente o personagem que gritava. Denuncia assim o seu gozo na cena, sádico e vingativo – um gozo de carrasco.
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Se o pai de um sujeito lhe parece indigno de ocupar sua posição de pai, assume aos olhos do filho a imagem de um rival facilmente superável. Ora, os personagens que ocupam os cargos de autoridade masculina em O Processo – figuras que Freud situaria na «série paterna» – são praticamente todos corruptos, iníquos, degradados; enfatuados, porém abjectos. Quem seria, no conteúdo latente do texto, o verdadeiro réu da acusação do Processo, senão o pai daquele que o escreve? «Não mereces ocupar a função de representante da Lei, nem de esposo da minha mãe. És um impostor, usurpador incapaz de legitimar a própria posição. Eu faria bem melhor se estivesse em teu lugar!» Existe, porém, um subtexto alternativo para a cena do fantasma em que o sujeito se contempla castigado pelo pai: «Meu pai me bate porque me ama». É o que Freud desenvolve no texto Bate-se numa criança , onde prevalecem as catexias libidinais que ligam o sujeito ao pai, não mais à mãe. O sujeito supõe que o pai bate nele porque goza com isso; tem prazer em privá-lo, em subjugá-lo. O espancamento metaforiza um estupro no dialecto da pulsão pré-genital anal e sádica. Aqui, o sujeito se identifica ao objecto abandonado, submetido à vontade do Outro, e procura o gozo que lhe falta pelo desvio do gozo do Outro. Mais que o representante da Lei, o pai imaginário que o fantasma põe em cena faz a Lei com seu capricho. Ele mesmo está fora dessa lei; é omnipotente e cruel, como o pai da horda primeva no mito freudiano Totem e Tabu. O fantasma «Meu pai me espanca» dá consistência imaginária a essa omnipotência, da qual segundo Freud o neurótico alimenta uma nostalgia permanente; possibilita, desse modo, acesso a um mais-de-gozar, além do princípio do prazer. Se o pai é omnipotente, está fora da lei, escapa à castração, posso identificar-me com ele, e compensar-me desse modo por todas as minhas privações. Ele goza em meu lugar, dou-lhe procuração imaginária para isso. Que nada lhe falte, que não tenha limites. Ofereço-me prazerosamente como coadjuvante imaginário nesta cena onde ele goza dessa omnipotência às minhas custas; projeto-me nele, faço dele meu representante, e gozo seu gozo suposto. Se o estupro é inevitável... «O fantasma, suporte do desejo, aprisiona em sua trama um resto de gozo inacessível ao sujeito» (Vidal, 1991: 136)
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«Bate-se numa criança»: o processo do fantasma
A prática da letra
Não seria o Tribunal do Processo um nome desse pai gozador, omnipotente e cruel, para o sujeito que o sonha, ou melhor, que o escreve? Não será O Processo um texto tão desconfortável por ler, como texto, no leitor, a maquinaria do fantasma fundamental – ou mesmo a montagem da pulsão, que fecha o circuito de sua satisfação no gozo virtualmente masoquista de fazer-se objecto do Outro? A força do texto de Kafka marcou de tal forma a cultura que tornou-se o significante de uma advertência quanto às potencialidades demoníacas e despóticas de todo dispositivo designado para fazer valer a Lei. Dada a inconsistência e falta de garantias do Outro, todo dito de autoridade repousa em sua própria enunciação (Lacan, 1998:827). Todo poder confina com a possibilidade do seu abuso. A Lei é não-toda por força da estrutura, o que impõe ao sujeito o perpétuo afazer de contrapor-se ao gozo nocivo que teima em transbordar os limites do Nome-do-Pai. Freud, porém, nos adverte quanto à cumplicidade inconsciente que, apoiada no fantasma do “Bate-se numa criança”, pode levar um sujeito a convocar, provocar contra si mesmo e gozar, sem o saber, dos mesmos abusos, humilhações e sevícias contra os quais se rebela. A satisfação resultante desse mecanismo tenderá a resvalar para o excesso e a devastação, necessitando temperar-se por um saber sobre algo de sua verdade.
Bibliografia
FREUD, Sigmund (1900/1981) - “La Interpretación de los Sueños”. In Obras Completas, vol. I. Madri, Biblioteca Nueva.
FREUD, Sigmund (1915-17/1981) - “Los Sueños”: Lecciones Introductorias al Psicoanalisis , X a XV. In Obras Completas, vol. II. Madri, Biblioteca Nueva.
FREUD, Sigmund (1919/1981) - “Pegan a un Niño. Apotación al conocimiento de la génesis de las perversiones sexuales”. In Obras Completas, vol. III. Madri, Biblioteca Nueva.
KAFKA, Franz (1997) – O Processo. São Paulo, Editora Brasiliense.
LACAN, Jacques (1998) - “Subversão do sujeito e dialéctica do desejo no inconsciente freudiano”. In Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora.
VIDAL, Eduardo (1991) - “Masoquismo originário: ser de objecto e semblante”. In Pulsão e Gozo. Revista da Escola Letra Freudiana no. 10/11/12.