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O Banqueiro Anarquista Fernando Pessoa Tínhamos acabado de jantar. Defronte de mim o meu amigo, o banqueiro, grande comerciante e açambarcador notável, fumava como quem não pensa. A conversa, que fora amortecendo, jazia morta entre nós. Procurei reanimá-la, ao acaso, servindo-me de uma ideia que me passou pela meditação. Voltei-me para ele, sorrindo.
- É verdade: disseram-me há dias que V. em tempos foi anarquista...
- Fui, não: fui e sou. Não mudei a esse respeito. Sou anarquista.
- Essa é boa! V. anarquista! Em que é que V. é anarquista?... Só se V. dá à palavra qualquer sentido diferente...
- Do vulgar? Não; não dou. Emprego a palavra no sentido vulgar.
- Quer V. dizer, então, que é anarquista exatamente no mesmo sentido em que são anarquistas esses tipos das organizações operárias? Então entre V. e esses tipos da bomba e dos sindicatos não há diferença nenhuma?
- Diferença, diferença, há... Evidentemente que há diferença. Mas não é a que V. julga. V. duvida talvez que as minhas teorias sociais sejam iguais às deles?...
- Ah, já percebo! V., quanto às teorias, é anarquista; quanto à prática...
- Quanto à prática sou tão anarquista como quanto às teorias. E quanto à prática sou mais, sou muito mais, anarquista que esses tipos que V. citou. Toda a minha vida o mostra.
- Hein?!
- Toda a minha vida o mostra, filho. V. é que nunca deu a esta cousas uma atenção lúcida. Por isso lhe parece que estou dizendo uma asneira, ou então estou brincando consigo.
- Ó homem, eu não percebo nada!... A não ser..., a não ser que V. julgue a sua vida dissolvente e anti-social e dê esse sentido ao anarquismo...
- Já lhe disse que não - isto é, já lhe disse que não dou à palavra anarquismo um sentido diferente do vulgar.
- Está bem... Continuo sem perceber... Ó homem, V. quer-me dizer que não há diferença entre as suas teorias verdadeiramente anarquistas e a prática da sua vida a prática da sua vida como ela é agora? V. quer que eu acredite que V. tem uma vida exatamente igual à dos tipos que vulgarmente são anarquistas?
- Não; não é isso. O que eu quero dizer é que entre as minhas teorias e a prática da minha vida não há divergência nenhuma, mas uma conformidade absoluta. Lá que não
tenho uma vida como a do tipo dos sindicatos e das bombas - isso é verdade. Mas é a vida deles que está fora do anarquismo, fora dos ideais deles. A minha não. Em mim
- sim, em mim, banqueiro, grande comerciante, açambarcador se V. quiser -, em mim a teoria e a prática do anarquismo estão conjuntas e ambas certas. V. comparou-me a esses parvos dos sindicatos e das bombas para indicar que sou diferente deles. Sou, mas a diferença é esta: eles (sim, eles e não eu) são anarquistas só na teoria; eu sou o na teoria e na prática. Eles são anarquistas e estúpidos, eu anarquista e inteligente. Isto é, meu velho, eu é que sou o verdadeiro anarquista. Eles - os dos sindicatos e das bombas (eu também lá estive e saí de lá exatamente pelo meu verdadeiro anarquismo) - eles são o lixo do anarquismo, os fêmeas da grande doutrina libertária.
- Essa nem ao diabo a ouviram! Isso é espantoso! Mas como concilia V. a sua vida - quero dizer a sua vida bancária e comercial - coma as teorias anarquistas? Como o concilia V., se diz que por teoria anarquista entende exatamente o que os anarquistas vulgares entendem? E V., ainda por cima, me diz que é diferente deles por ser mais anarquista do que eles - não é verdade?
- Exatamente.
- Não percebo nada.
- Mas V. tem empenho em perceber?
- Todo o empenho. Ele tirou da boca o charuto, que se apagara; reacendeu-o lentamente; tirou o fósforo que se extinguia; depô-lo ao de leve no cinzeiro; depois, erguendo a cabeça, um momento abaixada, disse:
- Oiça. Eu nasci do povo e na classe operária da cidade. De bom não herdei, como pode imaginar, nem a condição, nem as circunstâncias. Apenas me aconteceu ter uma inteligência naturalmente lúcida e uma vontade um tanto ou quanto forte. Mas esses eram doms naturais, que o meu baixo nascimento me não podia tirar. “Fui operário, trabalhei, vivi uma vida apertada; fui, em resumo, o que a maioria da gente é naquele meio. Não digo que absolutamente passasse fome, mas andei lá perto. De resto, podia tê-la passado, que isso não alterava nada do que se seguiu, ou do que lhe vou expor, nem do que foi a minha vida, nem do que ela é agora.” “Fui um operário vulgar, em suma; como todos, trabalhava porque tinha que trabalhar, e trabalhava o menos possível. O que eu era, era inteligente. Sempre que podia, lia coisas, discutia coisas, e, como não era tolo, nasceu-me uma grande insatisfação e uma grande revolta contra o meu destino e contra as condições sociais que o faziam assim. Já lhe
por estas considerações que nasceu o meu anarquismo de então - o anarquismo que, já lhe disse, mantenho hoje sem alteração nenhuma.” Parou outra vez um momento, como a pensar como prosseguiria. Fumou e soprou o fumo lentamente, para o lado oposto ao meu. Voltou-se, e ia a prosseguir. Eu, porém, interrompi-o.
- Uma pergunta, por curiosidade... Por que é que V. se tornou propriamente anarquista? V. podia ter-se tornado socialista, ou qualquer outra cousa avançada que não fosse tão longe. Tudo isso estava dentro da sua revolta... Deduzo do que V. disse que por anarquismo V. entende (e acho que está bem como definição do anarquismo) a revolta contra todas as convenções e fórmulas sociais e o desejo e esforço para a abolição de todas...
- Isso mesmo.
- Por que escolheu V. essa fórmula extrema e não se decidiu por qualquer das outras... das intermédias?...
- Eu lhe digo. Eu meditei tudo isso. É claro que nos folhetos que eu lia via todas essas teorias. Escolhi a teoria anarquista - a teoria extrema, como V. muito bem diz – pelas razões que vou dizer em duas palavras. Fitou um momento cousa nenhuma. Depois se voltou para mim.
- O mal verdadeiro, o único mal, são as convenções e as ficções sociais, que se sobrepõem às realidades naturais - tudo, desce a família ao dinheiro, desde a religião ao Estado. A gente nasce homem ou mulher - quero dizer, nasce para ser, em adulto, homem ou mulher; não nasce, em boa justiça natural, nem para ser marido, nem para ser rico ou pobre, como também não nasce para ser católico ou protestante, ou português ou inglês. São todas estas coisas em virtude das ficções sociais. Ora essas ficções sociais são más por quê? Porque são ficções, porque não são naturais. Tão mau é o dinheiro como o Estado, a constituição de família como as religiões. Se houvesse outras, que não fossem estas, seriam igualmente más, porque também seriam ficções, porque também se sobreporiam e estorvariam as realidades naturais. Ora qualquer sistema que não seja o puro sistema anarquista, completamente, é uma ficção também. Empregar todo o nosso desejo, todo o nosso esforço, toda a nossa inteligência para implantar, ou contribuir para implantar, uma ficção social em vez de outra, é um absurdo, quando não seja mesmo um crime, porque é fazer uma perturbação social com o fim expresso de deixar tudo na mesma. Se acharmos injustas as ficções sociais, porque esmagam e oprimem o que é natural no homem, para que empregar o
nosso esforço em substituir-lhes outras ficções, se o podemos empregar para destruí-las todas? “Isto me parece que é concludente. Mas suponhamos que o não é; suponhamos que nos objetam que isto tudo estará muito certo, mas que o sistema anarquista não é realizável na prática. Vamos lá a examinar essa parte do problema.” “Por que é que o sistema anarquista não seria realizável? Nós partimos todos os avançados, do princípio, não só de que o atual sistema é injusto, mas de que há vantagem, porque há injustiça, em substituí-lo por outro mais justo. Se não pensamos assim, não somos avançados, mas burgueses. Ora de onde vem este critério de justiça? Do que é natural e verdadeiro, em oposição às ficções sociais e às mentiras da convenção. Ora o que é natural é o que é inteiramente natural, não é metade, ou um quarto, ou um oitavo de natural. Muito bem. Ora, de duas coisas, uma: ou o natural é realizável socialmente ou não é; em outras palavras, ou a sociedade pode ser natural, ou a sociedade é essencialmente ficção e não pode ser natural de maneira nenhuma. Se a sociedade pode ser natural, então pode haver a sociedade anarquista, ou livre, e deve haver, porque é ela a sociedade inteiramente natural. Se a sociedade não pode ser natural, se (por qualquer razão que não importa) tem por força que ser ficção, então do mal o menos; façamo-la, dentro desse ficção inevitável, o mais natural possível. Qual é a ficção mais natural? Nenhuma é natural em si, porque é ficção; a mais natural, neste nosso caso, será aquela que pareça mais natural, que se sinta como mais natural? É aquela que estamos habituados. (V. compreende: o que é natural é o que é do instinto; e o que não sendo instinto, se parece em tudo com o instinto é o hábito. Fumar não é natural, não é uma necessidade do instinto). Ora qual é a ficção social que constitui um hábito nosso? É o atual sistema, o sistema burguês. Temos, pois, em boa lógica, que ou achamos a sociedade natural, e seremos defensores do anarquismo; ou não a julgamos possível, e seremos defensores do regime burguês. Não há hipótese intermédia. Percebeu?...''
- Sim, senhor; isso é concludente.
- Ainda não é bem concludente... Ainda há outra objeção, do meu gênero, a liquidar... Pode concordar-se que o sistema anarquista é realizável, mas pode duvidar-se que ele seja realizável de chofre - isto é, que se possa passar da sociedade burguesa para a sociedade livre sem haver um ou mais estados ou regimes intermédios. Quem fizer essa objeção aceita como boa, e como realizável, a sociedade anarquista; mas palpita-lhe que tem que haver um estado qualquer de transição entre a sociedade burguesa e ela.
Um regime revolucionário, enquanto existe, e seja qual for o fim a que visa ou a ideia que o conduz, é materialmente só uma coisa - um regime revolucionário. Ora um regime revolucionário quer dizer uma ditadura de guerra, ou, nas verdadeiras palavras, um regime militar despótico, porque o estado de guerra é imposto à sociedade por uma parte dela - aquela parte que assumiu revolucionariamente o poder. O que é que resulta? Resulta que quem se adaptar a esse regime, como a única coisa que ele é materialmente, imediatamente, é um regime militar despótico, adapta-se a um regime militar despótico. A ideia, que conduziu os revolucionários, o fim, a que visaram, desapareceu por completo da realidade social, que é ocupada exclusivamente pelo fenômeno guerreiro. De modo que o que sai de uma ditadura revolucionária - e tanto mais completamente sairá, quanto mais tempo essa ditadura durar - é uma sociedade guerreira do tipo ditatorial, isto é, um despotismo militar. Nem mesmo podia ser outra coisa. E foi sempre assim. Eu não sei muita história, mas o que sei acerta com isto; nem podia deixar de acertar. O que saiu das agitações políticas de Roma? O Império Romano e seu despotismo militar. O que saiu da Revolução Francesa? Napoleão e seu despotismo militar. E V. verá o que sai da Revolução Russa... Qualquer coisa que vai atrasar dezenas de anos a realização da sociedade livre... Também o que era de se esperar de um povo de analfabetos e de místicos?...''
Enfim, isto já está fora de conversa... V. percebeu o meu argumento?''
- Percebi perfeitamente.
- V. compreende, portanto que eu cheguei a esta conclusão: Fim: a sociedade anarquista, a sociedade livre; meio: a passagem, sem transição, da sociedade burguesa para a sociedade livre. Esta passagem seria preparada e tornada possível por uma propaganda intensa, completa, absorvente, de modo a predispor todos os espíritos e enfraquecer todas as resistências. É claro que por “propaganda” não entendo só a pela palavra escrita e falada: entendo tudo, ação indireta ou direta, quanto pode predispor para a sociedade livre e enfraquecer a resistência à sua vinda. Assim, não tendo quase resistência nenhuma que vencer, a revolução social, quando viesse, seria rápida, fácil, e não teria que estabelecer nenhuma ditadura revolucionária, por não ter contra quem aplica-la. Se isto não pode ser assim, é que o anarquismo é irrealizável; e, se o anarquismo é irrealizável, só é defensável e justa, como já lhe provei, a sociedade burguesa.'' “Ora aí tem V. por que e como eu me tornei anarquista, e por que e como rejeitei, como falsas e antinaturais, as outras doutrinas sociais de menor ousadia.”
``E pronto... Vamos lá continuar a minha história. '' Fez explodir um fósforo, e acendeu lentamente o charuto. Concentrou-se, e de aí apouco prosseguiu. Havia vários outros rapazes com as mesmas opiniões que eu. A maioria era de operários, mas havia um ou outro que o não era; o que todos éramos era pobres, e, que me lembre, não éramos muito estúpidos. A gente tinha certa vontade de propaganda, de espalhar as nossas ideias. Queríamos para nós e para os outros - para a humanidade inteira - uma sociedade nova, livre destes preconceitos todos, que fazem os homens desiguais artificialmente e lhes impõem inferioridades, sofrimentos, estreitezas, que a Natureza lhes não tinha imposto. Por mim, o que eu lia confirmava-me nestas opiniões. Em livros libertários baratos - os que haviam ao tempo, e eram já bastantes - li quase tudo. Fui a conferências e comícios dos propagandistas do tempo. Cada livro e cada discurso me convenciam mais da certeza e da justiça das minhas ideias. O que eu pensava então - repito-lhe, meu amigo - é o que penso hoje, a única diferença é que então o pensava só, hoje o penso e o pratico.
- Pois sim; isso, até onde vai, está muito bem. Está muito certo que V. se tornasse anarquista assim, e vejo perfeitamente que V. era anarquista. Não preciso mais provas disso..., como é que saiu de aí sem contradição... Isto é, mais ou menos já calculo...
- Não, não calcula nada... Eu sei o que V. quer dizer... V. baseia-se nos argumentos que acaba de ouvir, e julga que eu achei o anarquismo irrealizável e por isso, como lhe disse, só defensável e justa a sociedade burguesa - não é?...
- Sim, calculei que fosse mais ou menos isso...
- Mas como o podia ser, se desde o princípio da conversa lhe tenho dito e repetido que sou anarquista, que não só o fui mas o continuo sendo? Se eu me tivesse tornado banqueiro e comerciante pela razão que V. julga, eu não era anarquista, era burguês.
- Sim, V. tem razão... Mas então como diabo...? Vá lá, vá dizendo...
- Como lhe disse, eu era (fui sempre) mais ou menos lúcido, e também um homem de ação. Essas são qualidades naturais; não, mas puseram no berço (se é que tive berço), eu é que as levei para lá. Pois bem. Sendo anarquista, eu achava insuportável ser anarquista passivamente, só para ir ouvir discursos e falar nisso com os amigos. Não: era preciso fazer qualquer coisa! Era preciso trabalhar e lutar pela causa dos oprimidos e das vítimas das convenções sociais! Decidi meter ombros a isso, conforme pudesse. Pus-me a pensar como é que eu poderia ser útil à causa libertária. Pus-me a traçar o meu plano de ação.
as resistências da burguesia. Escuso de lhe repetir as razões que levam inevitavelmente a esta conclusão, a dentro do anarquismo; já lhe expus e V. já a percebeu.
- Sim.
- Essa revolução seria preferivelmente mundial, simultânea em todos os pontos, ou os pontos importantes, do mundo; ou não sendo assim, partindo rapidamente de uns para outros, mas em todo o caso, em cada ponto, isto é, em cada nação, fulminante e completa. “Muito bem. O que poderia eu fazer para esse fim? Só por mim, não a poderia fazer a ela, à revolução mundial, nem mesmo poderia fazer a revolução completa na parte referente ao país onde estava. O que podia era trabalhar, na inteira medida do meu esforço, para fazer a preparação para essa revolução. Já lhe expliquei como: combatendo, por rodos os meios acessíveis, as ficções sociais; não estorvando nunca ao fazer esse combate ou a propaganda da sociedade livre, nem a liberdade futura, nem a liberdade presente dos oprimidos; criando já, sendo possível, qualquer coisa da futura liberdade.” Puxou fumo; fez uma leve pausa; recomeçou.
- Ora aqui, meu amigo, pus eu a minha lucidez em ação. Trabalhar para o futuro, está bem, pensei eu; trabalhar para os outros terem liberdade, está certo. Mas então eu? Eu não sou ninguém? Se eu fosse cristão, trabalhava alegre mente pelo futuro dos outros, porque lá tinha a minha recompensa no céu; mas também, se eu fosse cristão, não era anarquista, porque então as tais desigualdades sociais não tinham importância na nossa curta vida: eram só condições da nossa provação, e lá seriam compensadas na vida eterna. Mas eu não era cristão, como não sou, e perguntava-me: mas por quem é que eu vou me sacrificar nisto tudo? Mais ainda: por que é que eu me vou sacrificar? “Vieram-me momentos de descrença; e V. compreende que era justificada... Sou materialista, pensava eu; não tenho mais vida que esta; para que hei de ralar-me com propagandas e desigualdades sociais, e outras histórias, quando posso gozar e entretiver- me-me muito mais se não me preocupar com isso? Quem tem só esta vida, quem não crê na vida eterna, quem não admite lei senão a Natureza, quem se opõe ao Estado porque ele não é natural, ao casamento porque ele não é natural, ao dinheiro porque ele não é natural, porque cargas-d'água é que defende o altruísmo e o sacrifício pelos outros, ou pela humanidade, se o altruísmo e o sacrifício também não são naturais? Sim, a mesma lógica que me mostra que um homem não nasce para ser casado, ou para ser português, ou para ser rico ou pobre, mostra-me também que ele não nasce para ser
solidário, que ele não nasce senão para ser ele-próprio, e, portanto o contrário de altruísta e solidário, e, portanto exclusivamente egoísta. '' Eu discuti a questão comigo mesmo. Repara tu, dizia eu para mim, que nascemos pertencentes à espécie humana, e que temos o dever de ser solidários com todos os homens. Mas a ideia de dever' era natural? De onde é que vinha esta ideia de dever'? Se esta ideia de dever me obrigava a sacrificar o meu bem-estar, a minha comodidade, o meu instinto de conservação e outros meus instintos naturais, em que divergia a ação dessa ideia da ação de qualquer ficção social, que produz em nós exatamente o mesmo efeito?''
Esta ideia de dever, isto de solidariedade humana; só podia considerar-se natural se trouxesse consigo uma compensação egoísta, porque então, embora em princípio contrariasse o egoísmo natural, se dava a esse egoísmo uma compensação, sempre, no fim de contas, o não contrariava. Sacrificar um prazer, simplesmente sacrificá-lo, não é natural; sacrificar um prazer a outro, é que já está dentro da Natureza: é, entre duas cousas naturais que se não podem ter ambas, escolher uma, o que está bem. Ora que compensação egoísta, ou natural, podia dar-me a dedicação à causa da sociedade livre e da futura felicidade humana? Só a consciência de dever cumprido, do esforço para um fim bom; e nenhuma destas coisas é uma compensação egoísta, nenhuma destas coisas é um prazer em si, mas um prazer, se o é, nascido de uma ficção social, como pode ser o prazer de ser imensamente rico, ou o prazer de ter nascido em um boa posição social.'' “Confesso-lhe, meu velho, que me vieram momentos de descrença... Senti-me desleal à minha própria doutrina, traidor a ela... Mas em breve passei sobre tudo isto. A ideia de justiça cá estava, dentro de mim, pensei eu. Eu sentia-a natural. Eu sentia que havia um dever superior à preocupação só cá do meu destino. E fui para diante na minha intenção.''
- Não me parece que essa decisão revelasse uma grande lucidez da sua parte... V. não resolveu a dificuldade... V. foi para diante por um impulso absolutamente sentimental...
- Sem dúvida. Mas o que lhe estou contando agora é a história de como me tornei anarquista, e de como o continuei sendo, e continuo. Vou-lhe expondo lealmente as hesitações e as dificuldades que tive, e como as venci. Concordo que, naquele momento, venci a dificuldade lógica com o sentimento, e não com o raciocínio. Mas V. há de ver que, mais tarde, quando cheguei à plena compreensão da doutrina anarquista, esta dificuldade, até então logicamente sem resposta, teve a sua solução completa e absoluta.
Quero dizer que, depois de alguns meses desta propaganda, comecei a reparar numa nova complicação, e esta é que era a mais séria de todas, esta é que era séria a valer... “V. recorda-se, não é verdade? Daquilo em que eu, por um raciocínio rigoroso, assentei que devia ser o processo de ação dos anarquistas... Um processo, ou processos, quaisquer pelo qual se contribuísse para destruir as ficções sociais sem, ao mesmo tempo, estorvar a criação da liberdade futura, sem, portanto, estorvar em coisa nenhuma a pouca liberdade dos atuais oprimidos pelas ficções sociais; um processo que, sendo possível, criasse já alguma coisa da liberdade futura...'' “Pois bem: uma vez assente este critério, nunca mais deixei de tê-lo presente... Ora, na altura da nossa propaganda em que estou falando, descobri uma coisa. No grupo de propaganda - não éramos muitos; éramos quarenta, salvo erro - dava-se este caso: criava-se tirana.”
- Criava-se tirania?... Criava-se tirania como?
- Da seguinte maneira... Uns mandavam em outros e levavam-nos para onde queriam; uns impunham-se a outros e obrigavam-nos a ser o que eles queriam; uns arrastavam outros por manhas e por artes para onde eles queriam. Não digo que fizessem isto em coisas graves; mesmo, não havia coisas graves ali em que o fizessem. Mas o fato é que isto acontecia sempre e todos os dias, e dava-se não só em assuntos relacionados com a propaganda, como fora deles, em assuntos vulgares da vida. Uns iam insensivelmente para chefes, outros insensivelmente para subordinados. Uns eram chefes por imposição; outros eram chefes por manha. No fato mais simples isto se via. Por exemplo: dois dos rapazes iam juntos por uma rua fora; chegavam ao fim da rua, e um tinha que ir para a direita e outro para a esquerda; cada um tinha conveniência em ir para o seu lado. Mas o que ia para a esquerda dizia para o outro, “venha V. comigo por aqui''; o outro respondia, e era verdade, ``Homem, não posso; tenho que ir por ali'' por esta ou aquela razão... Mas afinal, contra sua vontade e sua conveniência, lá ia com o outro para a esquerda... Isto era uma vez por persuasão, outra vez por simples insistência, uma terceira vez por outro motivo qualquer... Isto é, nunca era por uma razão lógica; havia sempre nesta imposição e nesta subordinação qualquer coisa de espontâneo, de como que instintivo... E como neste caso simples, em todos os outros casos; desde os menos até aos mais importantes... V. vê bem o caso?
- Vejo. Mas que diabos há de estranho nisso? Isso é tudo quanto há de mais natural...
- Será. Já vamos a isso. O que lhe peço que note é que é exatamente o contrário da doutrina anarquista. Repare bem que isto se passava num grupo pequeno, num grupo sem influência nem importância, num grupo a quem não estava confiada a solução de nenhuma questão grave ou decisão sobre qualquer assunto de vulto. E repare que se passava num grupo de gente que se unira especialmente para fazer o que pudesse para o fim anarquista - isto é, para combate, tanto quando possível, as ficções sociais, e criar, tanto quando possível, a liberdade futura. V. reparou bem nestes dois pontos?
- Reparei.
- Veja agora bem o que isto representa... Um grupo pequeno, de gente sincera (garanto- lhe que era sincera!), estabelecido e unido expressamente para trabalhar pela causa da liberdade, tinha, no fim de uns meses, conseguido só uma coisa de positivo e concreto - a criação entre si de tirania. E repare que tirania... Não era uma tirania derivada da ação das ficções sociais, que, embora lamentável, seria desculpável, até certo ponto, ainda que menos em nós, que combatíamos essas ficções, que em outras pessoas; mas enfim, vivíamos em meio de uma sociedade baseada nessas ficções e não era inteiramente culpa nossa se não pudéssemos de todo fugir à sua ação. Mas não era isso. Os que nos mandavam outros, ou os levavam para onde queriam, não faziam isso pela força do dinheiro, ou da posição social, ou de qualquer autoridade de natureza fictícia, que se arrogassem; fazia-no por uma ação de qualquer espécie fora das ficções sociais, uma tirania nova. E era uma tirania exercida sobre gente essencialmente oprimida já pelas ficções sociais. Era, ainda por cima, tirania exercida entre si por gente cujo intuído sincero não era senão destruir tirania e criar liberdade. “Agora ponha o caso num grupo muito maior, muito mais influente, tratando já de questões importantes e de decisões de caráter fundamental. Ponha esse grupo a encaminha os seus esforços, como o nosso, para a formação de uma sociedade livre. E agora me diga se através desse carregamento de tiranias entrecruzadas V. entrevê qualquer sociedade futura que se pareça com uma sociedade livre ou com uma humanidade digna de si própria...”
- Sim: isso é muito curioso...
- É curioso, não é?...E olhe que há pontos secundários também muito curiosos... Por exemplo: a tirania do auxílio...
- A quê?
- A tirania do auxílio. Havia entre nós quem, em vez de mandar-nos outros, em vez de se impor aos outros, pelo contrário os auxiliava em tudo quanto podia. Parece o
realizável a sociedade anarquista, então deve existir, por ser mais natural que qualquer outra salvo aquela, a sociedade burguesa. “Mas seria esta tirania, que nascia assim entre nós, realmente derivada das qualidades naturais? Ora o que são as qualidades naturais? São o grau de inteligência, de imaginação, de vontade, etc., com que cada um nasce - isto no campo mental, é claro, porque as qualidades naturais físicas não vêm para o caso. Ora um tipo que, sem ser por uma razão derivada das ficções sociais, manda noutro, por força que o faz por lhe ser superior em uma ou outra das qualidades naturais. Domina-o pelo emprego das suas qualidades naturais. Mas há uma coisa a ver: esse emprego das qualidades naturais será legítimos, isto é, será natural?'' ``Ora qual é o emprego natural das nossas qualidades naturais? O servir os fins naturais da nossa personalidade. Ora dominar alguém será um fim natural da nossa personalidade? Pode sê-lo; há um caso em que pode sê-lo: é quando esse alguém está para nós num lugar de inimigo. Para o anarquista, é claro, quem está num lugar de inimigo, é qualquer representante das ficções sociais e da sua tirania; mais ninguém, porque todos os outros homens são homens como ele e camaradas naturais. Ora, V. bem vê, o caso da tirania, que tínhamos estado criando, era exercido sobre homens como nós, camaradas naturais, e, mais ainda, sobre homens duas vezes nossos camaradas, porque o eram também pela comunhão do mesmo ideal. Conclusão: esta nossa tirania, se não era derivada das ficções sociais, também não era derivada das qualidades naturais; era derivada duma aplicação errada, duma perversão, das qualidades naturais. E essa perversão, de onde é que provinha?” “Tinha que provir de uma de duas cousas: ou de o homem ser naturalmente mau, e portanto todas as qualidades naturais serem naturalmente pervertidas; ou de uma perversão resultante da longa permanência da humanidade numa atmosfera de ficções sociais, todas elas criadoras de tirania, e tendente, portanto, a tornar já instintivamente tirânico o uso mais natural das qualidades mais naturais. Ora, destas duas hipóteses, qual é que seria a verdadeira? De um modo satisfatório - isto é, rigorosamente lógico ou científico - era impossível determinar. O raciocínio não pode entrar com o problema, porque ele é de ordem histórica, ou científica, e depende do conhecimento de fatos. Por seu lado, a ciência também nos não ajuda, porque, por mais longe que recuemos na história, encontramos sempre o homem vivendo sob um ou outro sistema de tirania social, e portanto sempre num estado que nos não permite averiguar como é o homem quando vive em circunstâncias pura e inteiramente naturais. Não havendo maneira de
determinar ao certo, temos que pender para o lado da maior probabilidade; e a maior probabilidade está na segunda hipótese. É mais natural supor que a longuíssima permanência da humanidade em ficções sociais criadoras de tirania faça cada homem nascer já com as suas qualidade naturais pervertidas no sentido de tiranizar, do que supor que qualidades naturais podem ser naturalmente pervertidas, o que, de certo modo, representa una contradição. Por isso o pensador decide-se, como eu me decidi, com uma quase absoluta segurança, pela segunda hipótese.'' “Temos, pois, que uma coisa é evidente... No estado social presente não é possível um grupo de homens, por bem intencionados que estejam todos, por preocupados que estejam todos só em combater as ficções sociais e em trabalhar pela liberdade, trabalharem juntos sem que espontaneamente criem entre si tirania, sem criar entre si uma tirania nova, suplementar à das ficções sociais, sem destruir na prática tudo quanto querem na teoria, sem involuntariamente estorvar o mais possível o próprio intuito que querem promover. O que há a fazer? É muito simples... É trabalharmos todos para o mesmo fim, mas separados.''
- Separados?
- Sim. V. não seguiu o meu argumento?
- Segui.
- E não acha lógica, não acha fatal esta conclusão?
- Acho, sim, claro... Disse eu: trabalharmos todos para o mesmo fim, mas separados. Trabalharmos todos para o mesmo fim anarquista, cada um contribui com o seu esforço para a destruição das ficções sociais, que é para onde o dirige, e para a criação da sociedade livre do futuro; e trabalhando separados não podemos, de modo nenhum, criar tirania nova, porque nenhum tem ação sobre o outro, e não pode, portanto, nem, dominando-o, diminuir-lhe a liberdade, nem, auxiliando-o, apegar-lhe. “Trabalhando assim separados e para o mesmo fim anarquista, temos as duas vontades - a do esforço, e a da não criação de tirania nova. Continuamos unidos, porque o estamos moralmente e trabalhamos do mesmo modo para o mesmo fim; continuamos anarquistas, porque cada um trabalha para a sociedade livre; mas deixamos de ser traidores, voluntários ou involuntários, à nossa cousa, deixamos mesmo de poder sê-lo, porque nos colocamos, pelo trabalho anarquista isolado, fora da influência deletéria das ficções sociais, no seu reflexo hereditário sobre as qualidades que a Natureza deu.” “É claro que toda esta tática se aplica ao que eu chamei de período de preparação para a revolução social. Arruinadas as defesas burguesas, e reduzida a sociedade inteira ao
entre si, um simulacro novo da tirania que diziam querer combater? Pois que o fizessem, os parvos, se não serviam para mais. Eu é que não ia ser burguês por tão pouco. ``Estava estabelecido que, no verdadeiro anarquismo, cada um tem que, por suas próprias forças, criar liberdade e combater as ficções sociais. Pois por minha própria forças eu ia criar liberdade e combater as ficções sociais. Ninguém queria seguir-me no verdadeiro caminho anarquista? Seguiria eu por ele. Iria eu só, com os meus recursos, com a minha fé, desacompanhado até do apoio mental dos que tinham sido meus camaradas, contra as ficções sociais inteiras. Não digo que fosse um belo gesto, nem um gesto heroico. Foi simplesmente um gesto natural. Se o caminho tinha que ser seguido por cada um separadamente, eu não precisava de mais ninguém para o seguir. Bastava o meu ideal. Foi baseado nestes princípios e nestas circunstâncias que decidi, por mim só, combater as ficções sociais.'' Suspendeu um pouco o discurso, que se lhe tornara quente e fluido. Retomou-o de ali a pouco, com a voz já mais sossegada.
- É um estado de guerra, pensei eu, entre mim e as ficções sociais. Muito bem. O que posso eu fazer contra as ficções sociais? Trabalho sozinho, para não poder, de modo nenhum, criar qualquer tirania. Como posso eu colaborar sozinho na preparação da revolução social, na preparação da humanidade para a sociedade livre? Tenho que escolher um de dois processos, dos dois processos que há; caso, é claro, não possa servir-me de ambos. Os dois processos, são a ação indireta, isto é, a propaganda, e a ação direta, de qualquer espécie. ``Pensei primeiro na ação indireta, isto é, na propaganda. Que propaganda poderia eu fazer só por mim? À parte esta propaganda que sempre se vai fazendo em conversa, com este ou aquele, ao acaso e servindo-nos de todas as oportunidades, o que eu queria saber era se a ação indireta era um caminho por onde eu pudesse encaminhar a minha atividade de anarquista energicamente, isto é, de modo a produzir resultados sensíveis. Vi logo que não podia ser. Não sou orador e não sou escritor. Quero dizer, sou capaz de falar em público, se for preciso, e sou capaz de escrever um artigo de jornal; mas o que eu queria averiguar era se o meu feitio natural indicava que, especializando-me na ação indireta, de qualquer das duas espécies ou em ambas, eu poderia obter resultados mais positivos para a ideia anarquista que especializando os meus esforços em qualquer outro sentido. Ora a ação é sempre mais proveitosa que a propaganda, exceto para os indivíduos cujo feitio os indica essencialmente como propagandistas - os grandes oradores, capazes de eletrizar multidões e arrastá-las atrás de si, ou os grandes
escritores, capazes de fascinar e convencer com os seus livros. Não me parece que eu seja muito vaidoso, mas, se o sou, não me dá, pelo menos, para me envaidecer daquelas qualidades que não tenho. E, como lhe disse, nunca me deu para me julgar orador ou escritor. Por isso abandonei a ideia da ação indireta como caminho a dar à minha atividade anarquista. Por exclusão de partes, era forçado a escolher a ação direta, isto é, o esforço aplicado à prática da vida, à vida real. Não era a inteligência, mas a ação. Muito bem. Assim seria.'' Tinha eu pois que aplicar à vida prática o processo fundamental de ação anarquista que eu já tinha esclarecido - combater as ficções sociais sem criar tirania nova, criando já, caso fosse possível, qualquer coisa da liberdade futura. Ora como diabo se faz isso na prática?''
Ora o que é combater na prática? Combater na prática é a guerra, é uma guerra, pelo menos. Como é que se faz guerra às ficções sociais? Antes de mais nada, como é que se faz guerra? Como é que se vence o inimigo em qualquer guerra? De uma de duas maneiras: ou matando-o isto é, destruindo-o; ou aprisionando-o, isto é, subjugando-o, reduzindo-o à inatividade. Destruir as ficções sociais não podia eu fazer; destruir as ficções sociais só o podia fazer a revolução social. Até ali, as ficções sociais podiam estar abaladas, cambaleando, por um fio; mas destruídas, só o estariam com a vinda da sociedade livre e a queda positiva da sociedade burguesa. O mais que eu poderia fazer nesse sentido era destruir - destruir no sentido físico de matar - um ou outro membro das classes representativas da sociedade burguesa. Estudei o caso, e vi que era asneira. Suponha V. que eu matava um ou dois, ou uma dúzia de representante da tirania das ficções sociais... O resultado? As ficções sociais ficariam abaladas? Não ficariam. As ficções sociais não são como uma situação política que pode depender de um pequeno número de homens, de um só homem por vezes. O que há de mau nas ficções sociais são elas, no seu conjunto, e não os indivíduos que as representam senão por serem representantes delas. Depois, um atentado de ordem social produz sempre uma reação; não só tudo fica na mesma, mas, as mais das vezes, piora. E, ainda por cima, suponha como é natural, que, depois de um atentado, eu era caçado; era caçado e liquidado, de uma maneira ou outra. E suponha que eu tinha dado cabo de uma dúzia de capitalistas. Em que vinha isso tudo dar, e resumo? Com a minha liquidação, ainda que não por morte, mas por simples prisão ou degredo, a causa anarquista pedia um elemento de combate; e os doze capitalistas, que eu teria estendido, não eram doze elementos que a sociedade burguesa tinha perdido, porque os elementos