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AUTO DA COMPADECIDA. ARIANO SUASSUNA. O Auto da Compadecida foi encenado pela primeira vez a 11 de setembro de 1956, no Teatro Santa.
Tipologia: Notas de aula
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O Auto da Compadecida foi encenado pela primeira vez a 11 de setembro de 1956, no Teatro Santa Isabel, pelo Teatro Adolescente do Recife, sob direção de Clênio Wanderley.
O Auto da Compadecida foi escrito com base em romances e histórias populares do Nordeste. Sua encenação deve, portanto, seguir a maior linha de simplicidade, dentro do espírito em que foi concebido e realizado. O cenário (usado na encenação como um picadeiro de circo, numa idéia excelente de Clênio Wanderley, que a peça sugeria) pode apresentar uma entrada de igreja à direita, com uma pequena balaustrada ao fundo, uma vez que o centro do palco representa um desses pátios comuns nas igrejas das vilas do interior.. A saída para a cidade é à esquerda e pode ser feita através de um arco. Nesse caso, seria conveniente que a igreja, na cena do julgamento, passasse a ser entrada do céu e do purgatório. O trono de Manuel, ou seja, Nosso Senhor, Jesus Cristo, poderia ser colocado na balaustrada, erguida sobre um praticável servido por escadarias. Mas tudo isso fica a critério do ensaiador e do cenógrafo, que podem montar a peça com dois cenários, sendo um para o começo e outro para a cena do julgamento, ou somente com cortinas, caso em que se imaginará a igreja fora do palco, à direita, e a saída para a cidade à esquerda, organizando-se a cena para o julgamento através de simples cadeiras de espaldar alto, com saída para o inferno à esquerda e saída para o purgatório e para o céu à direita. 21 Em todo caso, o autor gostaria de deixar claro que seu teatro é mais aproximado dos espetáculos de circo e da tradição popular do que do teatro moderno. Agradece ainda o autor a seus amigos Jean Louis Marfaing, José Paulo Moreira da Fonseca e Henrique Oscar as críticas que fizeram ao quadro final da peça e que resultaram em sua modificação para a forma em que vai finalmente escrita aqui. Ao abrir o pano, entram todos os atores, com exceção do que vai representar Manuel, como se tratasse de uma tropa de saltimbancos, correndo, com gestos largos, exibindo-se ao público. Se houver algum ator que saiba caminhar sobre as mãos, deverá entrar assim. Outro trará uma corneta, na qual dará um alegre toque, anunciando a entrada do grupo. Há de ser uma entrada festiva, na qual as mulheres dão grandes voltas e os atores agradecerão os aplausos, erguendo os braços,
como no circo. A atriz que for desempenhar o papel de Nossa Senhora deve vir sem caracterização, para deixar bem claro que, no momento, é somente atriz. Imediatamente após o toque de clarim, o Palhaço anuncia o espetáculo.
PALHAÇO, grande voz Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade. Toque de clarim. PALHAÇO A intervenção de Nossa Senhora no momento propício, para triunfo da misericórdia. Auto da Compadecida! Toque de clarim A COMPADECIDA A mulher que vai desempenhar o papel desta excelsa Senhora, declara-se indigna de tão alto mister. Toque de clarim. PALHAÇO Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê- lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo salvo e tem direito a certas intimidades. Toque de clarim. PALHAÇO Auto da Compadecida! O ator que vai representar Manuel, isto é, Nosso Senhor Jesus Cristo, declara- se também indigno de tão alto papel, mas não vem agora, porque sua aparição constituirá um grande efeito teatral e o público seria privado desse elemento de surpresa. Toque de clarim. PALHAÇO Auto da Compadecida! Uma história altamente moral e um apelo à misericórdia. JOÃO GRILO Ele diz “à misericórdia”, porque sabe que, se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada. PALHAÇO Auto da Compadecida! (Cantando.) Tombei, tombei, mandei tombar! ATORES, respondendo ao canto Perna fina no meio do mar. 24 PALHAÇO 0i, eu vou ali e volto já.
ATORES, saindo Oi, cabeça de bode não tem que chupar. PALHAÇO o distinto público imagine à sua direita uma igreja, da qual o centro do palco será o pátio. A saída para a rua é à sua esquerda. (Essa fala dará idéia da cena, se adotar uma encenação mais simplificada e pode ser conservada mesmo que se monte um cenário mais rico.) O resto é com os atores. Aqui pode -se tocar uma música alegre e o Palhaço sai dançando. Uma pequena pausa e entram Chicó e João Grilo. JOÃO GRILO E ele vem eu Estou desconfiado, Chicó. Você é tão sem confiança! CHICÓ Eu, sem confiança? Que é isso, João, está me desconhecendo? Juro como ele vem. Quer benzer o cachorro da mulher para ver se o bicho não morre. A dificuldade não é ele vir, é o padre benzer. O bispo está aí e tenho certeza de que o Padre João não vai querer benzer o cachorro. 25 JOÃO GRILO Não vai benzer? Por quê? Que é que um cachorro tem de mais? CHICÓ Bom, eu digo assim porque sei como esse povo é cheio de coisas, mas não é nada de mais. Eu mesmo já tive um cavalo bento. JOÃO GRILO Que é isso, Chico? (Passa o dedo na garganta.) Já estou ficando por aqui com suas histórias. É sempre uma coisa toda esquisita. Quando se pede uma explicação, vem sempre com “não sei, só sei que foi assim”. CHICÓ Mas se eu tive mesmo o cavalo, meu filho, o que é que eu vou fazer? Vou mentir, dizer que não tive? JOÃO GRILO Você vem com uma história dessas e depois se queixa porque o povo diz que você é sem confiança. CHICÓ Eu, sem confiança? Antônio Martinho está para dar as provas do que eu digo. 26 JOÃO GRILO Antônio Martinho? Faz três anos que ele morreu. CHICÓ Mas era vivo quando eu tive o bicho JOÃO GRILO Quando você teve o bicho? E foi você quem pariu o cavalo, Chico? CHICÓ Eu não. Mas do jeito que as coisas vão, não me admiro mais de nada. No mês passado uma mulher
teve um, na serra do Araripe, para os lados do Ceará. JOÃO GRILO Isso é coisa de seca. Acaba nisso, essa fome: ninguém pode ter menino e haja cavalo no mundo. A comida é mais barata e é coisa que se pode vender. Mas seu cavalo, como foi? CHICÓ Foi uma velha que me vendeu barato, porque ia se mudar, mas recomendou todo cuidado, porque o cavalo era bento. E só podia ser mesmo, porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto. Uma vez corremos atrás de uma garrota, das seis da manhã até as seis da tarde, sem parar nem um momento, eu a cavalo, ele a pé. Fui derrubar a novilha já de noitinha, mas quando acabei o serviço e enchocalhei ares, olhei ao redor, e não conhecia o lugar onde estávamos. Tomei uma vereda que havia assim e aí tangendo o boi... JOÃO GRILO O boi? Não era uma garrota? CHICÓ Uma garrota e um boi. JOÃO GRILO E você corria atrás do dois de uma vez? CHICÓ, irritado Corria, é proibido? JOÃO GRILO Não, mas eu me admiro é eles correrem tanto tempo juntos, sem me apertarem. Como foi isso? CHICÓ Não sei, só sei que foi assim. Saí tangendo os bois e de repente avistei uma cidade. É uma história que eu não goste nem de contar. JOÃO GRILO Conte, conte sempre, você está em casa. 28 CHICÓ Você sabe que eu comecei a correr da ribeira do Taperoá, na Paraíba. Pois bem, na entrada da rua perguntei a um homem onde estava e ele me disse que era Própria, de Sergipe. JOÃO GRILO Sergipe, Chicó? CHICÓ Sergipe, João. Eu tinha corrido até lá no meu cavalo. Só sendo bento mesmo. JOÃO GRILO Mas Chicó, e o rio São Francisco? CHICÓ Lá vem você com sua mania de pergunta, João. JOÃO GRILO Claro, tenho que saber. Como foi que você passou? CHICÓ Não sei, só sei que foi assim. Só podia estar seco nesse tempo, porque não me lembro quando
Então fica tudo na paz do Senhor, com cachorro benzido e todo mundo satisfeito. PADRE Digam ao major que venha. Eu estou esperando. Entra na igreja. CHICÓ Que invenção foi essa de dizer que o cachorro era do major Antônio Morais? JOÃO GRILO Era o único jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do major que se péla. Não viu a diferença? Antes era “Que maluquice, que besteira!”, agora “Não vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus!”. CHICÓ Isso não vai dar certo. Você já começa com suas coisas, João. E havia necessidade de inventar que era empregado de Antônio Morais? JOÃO GRILO Meu filho, empregado do major e empregado de um amigo do major é quase a mesma coisa. O padeiro vive dizendo que é amigo do homem, de modo que a diferença é muito pouca. Além disso, eu podia perfeitamente ter sido mandado pelo major, porque o filho dele está doente e pode até precisar do padre.
CHICÓ João, deixe de agouro com o menino, que isso pode se virar por cima de você. 35 JOÃO GRILO E você deixe de conversa. Nunca vi homem mais mole do que você, Chicó. O padeiro mandou você arranjar o padre para benzer o cachorro e eu arranjei sem ter sido mandado. Que é que você quer mais? CHICÓ Ih, olha como isso está pegado com o patrão! Faz gosto um empregado dessa qualidade. JOÃO GRILO Muito pelo contrário, ainda hei de me vingar do que ele e a mulher me fizeram quando estive doente. Três dias passei em cima de uma cama para morrer e nem um copo dágua me mandaram. Mas fiz esse trabalho somente porque se trata de enganar o padre. Não vou com aquela cara. CHICÓ Com qual? Com a do padre? JOÃO GRILO Com as duas. Estou acertando as contas com o padre e a qualquer hora acerto com o patrão. Eu conheço o ponto fraco do homem, Chicó. CHICÓ Qual é? É a besteira? 36
Nada disso, se o ponto fraco das pessoas daqui fosse somente a besteira, ninguém estava livre de mim. Você mesmo é um leso de marca, Chicó. Só não boto você no bolso por que sou seu amigo. CHICÓ E qual é o ponto fraco do patrão? Estas duas últimas falas são cortáveis, a critério do encenador. JOÃO GRILO Chicó, deixe de ser hipócrita, que você sabe. CHICÓ Juro que não sei, João. JOÃO GRILO É a mulher, Chicó, e você sabe muito bem disso. Você mesmo sabe que a mulher dele... CHICÓ João, fale baixo, que o padre pode ouvir. Essas coisas num instante se espalham. JOÃO GRILO Deixe de besteira, Chicó, todo mundo já sabe que a mulher do padeiro engana o marido. CHICÓ João, danado, ou você fala baixo ou eu o esgano já, já. JOÃO GRILO Mas todo mundo não sabe mesmo? CHICÓ Sabe, mas não sabe que foi comigo, entendeu? E mesmo ela já me deixou por outro. Uma vez, João, e não posso me esquecer dela. Mas não quer mais nada comigo. JOÃO GRILO Nem pode querer, Chicó. Você é um miserável que não tem nada e. a fraqueza dela é dinheiro e bicho. CHICÓ Dinheiro e bicho? JOÃO GRILO Sim. Tenho certeza de que ela não o teria deixado se você fosse rico. Nasceu pobre, enriqueceu com o negócio da padaria e agora só pensa nisso. Mas eu hei de me vingar dela e do marido de uma vez. CHICÓ Por que essa raiva dela? JOÃO GRILO Ó homem sem vergonha! Você inda pergunta? Está esquecido de que ela o deixou? Está esquecido da exploração que eles fazem conosco naquela padaria do inferno? Pensam que são o cão só porque enriqueceram, mas um dia hão de me pagar. E a raiva que eu tenho é porque quando estava doente, me acabando em cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava para o cachorro. Até carne passada na manteiga tinha. Para mim, nada, João Grilo que se danasse. Um dia eu me vingo.
João, deixe de ser vingativo que você se desgraça. Qualquer dia você inda se mete numa embrulhada séria. JOÃO GRILO E o que é que tem isso? Você pensa que eu tenho medo? Só assim é que posso me divertir. Sou louco por uma embrulhada. CHICÓ Permita então que eu lhe dê meus parabéns, João, porque você acaba de se meter numa danada. JOÃO GRILO Eu? Que há? 39 CHICÓ O major Antônio Morais vem subindo ladeira. Certamente vem procurar o padre. JOÃO GRILO Ave-Maria! Que é que se faz, Chicó? CHICÓ
Não sei, não tenho nada a ver com isso. Você, que inventou a história e que gosta de embrulhada, que resolva. JOÃO GRILO Cale a boca, besta. Não diga uma palavra e deixe tudo por minha conta. (Vendo Antônio Morais no limiar, esquerda.) Ora viva, seu major Antônio Morais, como vai Vossa Senhoria? Veio procurar o padre? (Antônio Morais, silencioso e terrível, encaminha-se para a igreja mas João toma-lhe a frente.) Se Vossa Senhoria quer, eu vou chamá-lo. (Antônio Morais afasta João do caminho com a bengala, encaminhando-se de novo para a igreja. João, aflito, dá a volta, tomando-lhe a frente e fala, como último recurso.) É que eu queria avisar para Vossa Senhoria não ficar espantado: o padre está meio doido. ANTÓNIO MORAIS, parando Está doido? O padre? 40 JOÃO GRILO, animando-se Sim, o padre. Está dum jeito que não respeita mais ninguém e com mania de benzer tudo. Vim dar um recado a ele, mandado por meu patrão, e ele me recebeu muito mal, apesar de meu patrão ser quem é. ANTÓNIO MORAIS E quem é seu patrão? JOÃO GRILO O padeiro. Pois ele chamou o patrão de cachorro e disse que apesar disso ia benzê-lo. ANTÔNIO MORAIS Que loucura é essa? JOÃO GRILO Não sei, é a mania dele agora. Benze tudo
e chama a gente de cachorro. ANTÓNIO MORAIS Isso foi porque era com seu patrão. Comigo é diferente. JOÃ GRILO Vossa Senhoria me desculpe, mas eu penso que não. ANTÓNIO MORAIS Você pensa que não? 41 JOÃO GRILO Penso, sim. E digo isso porque ouvi o padre dizer: “Aquele cachorro, só porque é amigo de Antônio Morais, pensa que é alguma coisa”. ANTÔNIO MORAIS Que história é essa? Você tem certeza? JOÃO GRILO Certeza plena. Está doidinho, o pobre do padre. ANTÓNIO MORAIS Pois vamos esclarecer a história, porque alguém vai pagar essa brincadeira. Quanto à mania de benzer, não faz mal, ele me será até útil. Meu filho mais moço está doente e vai para o Recife, tratar-se. Tem uma verdadeira mania de igreja e não quer ir sem a bênção do padre. Mas fique certo de uma coisa: hei de esclarecer tudo e se você está com brincadeiras para meu lado, há de se arrepender. Padre João! Padre João!
Sai pela direita. No mesmo instante, CHICÓ tenta fugir, mas João agarra-o pelo pescoço. JOÃO GRILO Não, você fica comigo. Vim encomendar a bênção do cachorro por sua causa e você tem
42 de ficar. E mesmo, Chicó, você já está acostumado com essas coisas, já teve até um cavalo bento! CHICÓ É, mas acontece que o major Antônio Morais pode ter alguma coisa de cavalo, de bento é que ele não tem nada. JOÃO GRILO Deixe de ser frouxo e fique aqui. ANTÔNIO MORAIS, voltando Ah, padre, estava aí? Procurei-o por toda parte. PADRE, da igreja. Ora quanta honra! Uma pessoa como Antônio Morais na igreja! Há quanto tempo esses pés não cruzam os umbrais da casa de Deus! ANTÔNIO MORAIS Seria melhor dizer logo que faz muito tempo que não venho à missa. PADRE Qual o que, eu sei de suas ocupações, de sua saúde...
Chama-se já está arranjado. Agora, eu queria um favorzinho do senhor padre. PADRE Eu já estava esperando por uma dessas. Nessa minha profissão a gente se acostuma de tal modo com isso de dar e tomar... O próprio direito à graça só se consegue cumprindo os mandamentos 48 JOÃO GRILO O que eu vou pedir é coisa muito mais fácil do que cumprir os mandamentos. PADRE Diga então o que é! JOÃO GRILO O cachorro de meu patrão está muito mal e eu queria que o senhor benzesse o bichinho. PADRE De novo? Mas é possível? JOÃO GRILO É mais do que possível. O senhor não ia benzer o do major Antônio Morais? PADRE E de quem é que você está falando? JOÃO GRILO De meu patrão. PADRE E seu patrão não é Antônio Morais? JOÃO GRILO Não. 49 PADRE Mas você ainda agora disse isso aqui, João. JOÃO GRILO Eu? Quem disse isso foi Chicó. Chicó dá um grande salto de surpresa. PADRE E quem é seu patrão? JOÃO GRILO O padeiro. PADRE E o cachorro dele também está doente? JOÃO GRILO Está. PADRE Também, oh terra para ter cachorro doente só é essa! JOÃO GRILO E a mania agora é benzer, benzer tudo quanto é de bicho, Ouvem-se, fora, grandes gritos de mulher. 50 JOÃO GRILO É a velha, com o cachorro. Como é, o senhor benze ou não benze? PADRE
Pensando bem, acho melhor não benzer. O bispo está aí e eu só benzo se ele der licença. (À esquerda aparece a mulher do padeiro e o padre corre para ele.) Pare, pare! (Aparece o padeiro.) Parem, parem! Um momento. Entre o senhor e entre a senhora: o cachorro fica lá! MULHER Ai, padre, pelo amor de Deus, meu cachorro está morrendo. É o filho que eu conheço neste mundo, padre. Não deixe o cachorrinho morrer, padre. PADRE, comovido Pobre mulher! Pobre cachorro! João Grilo estende-lhe um lenço e ele se assoa ruidosamente. PADEIRO O senhor benze o cachorro, Padre João? JOÃO GRILO Não pode ser, O bispo está aí e o padre só benzia se fosse o cachorro do major Antônio Morais, gente mais importante, porque senão o homem pode reclamar. 51 PADEIRO Que história é essa? Então Vossa Senhoria pode benzer o cachorro do major Antônio Morais e o meu não? PADRE, apaziguador Que é isso, que é isso? PADEIRO Eu é que pergunto: que é isso? Afinal de contas eu sou presidente da Irmandade das Almas, e isso é alguma coisa. JOÃO GRILO É, padre, o homem aí é coisa muita. Presidente da Irmandade das Almas! Para mim isso, é um caso claro de cachorro bento. Benza logo o cachorro e tudo fica em paz. PADRE Não benzo, não benzo e acabou-se! Não estou pronto para fazer essas coisas assim de repente. Sem pensar, não. MULHER, furiosa Quer dizer, quando era o cachorro do major, já estava tudo pensado, para benzer o meu é essa complicação! Olhe que meu marido é 52 presidente e sócio benfeitor da Irmandade Almas! Vou pedir a demissão dele! PADEIRO Vai pedir minha demissão! MULHER De hoje em diante não me sai lá de casa nem um pão para a Irmandade! PADEIRO Nem um pão! MULHER
E olhe que os pães que vêm para aqui são de graça! PADEIRO São de graça! MULHER E olhe que as obras da igreja é ele quem está custeando! PADEIRO Sou eu que estou custeando! PADRE, apaziguador Que é isso, que é isso! 53 MULHER O que é isso? É a voz da verdade, padre João. O senhor agora vai ver quem é a mulher do padeiro! JOÃO GRILO Ai, ai, ai e a Senhora, o que é que é do padeiro? MULHER A vaca... CHICÓ A vaca?! MULHER A vaca que eu mandei para cá, para fornecer leite ao vigário tem que ser devolvida hoje mesmo. PADEIRO Hoje mesmo! PADRE Mas até a vaca? Sacristão, sacristão! JOÃO GRILO A vaca também é demais. (Arremedando o padre.) Sacristão, sacristão! O Sacristão aparece à porta. É um sujeito magro, pedante, pernóstico, de óculos azuis que ele ajeita com as duas mãos de vez em quando, com todo cuidado. Pára no limiar da cena, vindo da igreja, e examina todo o pátio. JOÃO GRILO Sacristão, a vaca da mulher do padeiro tem que sair! 54 SACRISTÃO Um momento. Um momento. Em primeiro lugar, o cuidado da casa de Deus e de seus ar redores. Que é isso? Que é isso? Ele domina toda a cena, inclusive o Padre que tem Uma confiança enorme na empáfia) segurança e hipocrisia do secretário. MULHER E PADEIRO, ao mesmo tempo, em resposta pergunta do Sacristão É o padre... SACRISTÃO, afastando os dois com a mão e olhando para a direita Que é aquilo? Que é aquilo? Sua afetação de espanto é tão grande, que todos se voltam para direção em que ele olha. SACRISTÃO Mas um cachorro morto no pátio da casa de Deus? 55 PADEIRO
Morto? MULHER, mais alto Morto? SACRISTÃO Morto, sim. Vou reclamar à Prefeitura. PADEIRO, correndo e voltando-se do limiar verdade, morreu. MULHER Ai, meu Deus, meu cachorrinho morreu. Correm todos para a direita, menos João Grilo e Chicó. Este vai para a esquerda, olha a cena que se desenrola lá fora, e fala com grande gravidade na voz. CHICÓ É verdade, o cachorro morreu. Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre. JOÃO GRILO, suspirando. Tudo o que é vivo morre. Está aí uma coisa que eu não sabia! Bonito, Chicó, onde foi que você ouviu isso? De sua cabeça é que não saiu, que eu sei. 56 CHICÓ Saiu mesmo não, João. Isso eu ouvi um padre dizer uma vez. (Esta cena, a partir daqui, é cortável, a critério do encenador, até a frase “Mas deixe de agonia, que o povo vem aí”.) Foi no dia em que meu pirarucu morreu. JOÃO GRILO Seu pirarucu? CHICÓ Meu, é um modo de dizer, porque, para falar a verdade, acho que eu é que era dele. Nunca lhe contei isso não? JOÃO GRILO Não, já ouvi falar de homem que tem peixe, mas de peixe que tem homem, é a primeira vez. CHICÓ Foi quando eu estive no Amazonas. Eu tinha amarrado a corda do arpão em redor do corpo, de modo que estava com os braços sem movimento. Quando ferrei o bicho, ele deu um puxavante maior e eu caí no rio. 57 JOÃO GRILO O bicho pescou você!... CHICÓ Exatamente, João, o bicho me pescou. Para encurtar a história, o pirarucu me arrastou rio acima três dias e três noites. JOÃO GRILO
Estou aqui dizendo que, se é desse jeito, vai ser difícil cumprir o testamento do cachorro, na parte do dinheiro que ele deixou para o padre e para o sacristão. SACRISTÃO Que é isso? Que é isso? Cachorro com testamento? JOÃO GRILO Esse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia. Nesses últimos tempos, já doente para morrer, botava uns olhos bem compridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. Até que meu patrão entendeu, com a minha patroa, é claro, que ele queria ser abençoado pelo padre e morrer como cristão. Mas nem assim ele sossegou. Foi preciso que o patrão prometesse que vinha encomendar a bênção e que, no caso de ele morrer, teria um enterro em latim. Que em troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de réis para o padre e três para o sacristão. SACRISTÃO, enxugando uma lágrima. Que animal inteligente! Que sentimento nobre! (Calculista.) E o testamento? Onde está? JOÃO GRILO Foi passado em cartório, é coisa garantida. Isto é, era coisa garantida, porque agora o padre vai deixar os urubus comerem o cachorrinho e, se o testamento for cumprido nessas condições, nem meu patrão nem minha patroa estão livres de serem perseguidos pela alma. CHICÓ, escandalizado Pela alma? JOÃO GRILO Alma não digo, porque acho que não existe alma de cachorro, mas assombração de cachorro existe e é uma das mais perigosas. E ninguém quer se arriscar assim a desrespeitar a vontade do morto. 64 MULHER, duas vezes. Ai, ai, ai, ai, ai! JOÃO GRILO E CHICÓ, mesma cena. SACRISTÃO, cortante Que é isso, que é isso? Não há motivo para essas lamentações. Deixem tudo comigo. Entra apressadamente na igreja. PADEIRO Assombração de cachorro? Que história é essa? JOÃO GRILO Que história é essa? Que história é essa é que o cachorro vai se enterrar e é em latim. PADEIRO Pode ser que se enterre, mas em assombração de cachorro eu nunca ouvi falar. CHICÓ Mas existe. Eu mesmo já encontrei uma. PADEIRO, temeroso
Quando? Onde? CHICÓ Na passagem do riacho de Cosme Pinto. 65 PADEIRO Tinham me dito que o lugar era assombrado, mas nunca pensei que se tratasse de assombração de cachorro. CHICÓ Se o lugar é assombrado, não sei. O que eu sei é que eu ia atravessando o sangrador do açude e me caiu do bolso nágua uma prata de dez tostões. Eu ia com meu cachorro e já estava dando a prata por perdida, quando vi que ele estava assim como quem está cochichando com outro. De repente o cachorro mergulhou, e trouxe o dinheiro, mas quando fui verificar só encontrei dois cruzados. PADEIRO Oi! E essas almas de lá têm dinheiro trocado? CHICÓ Não sei, só sei que foi assim. O Sacristão e o Padre saem da igreja. SACRISTÃO Mas eu não já disse que fica tudo por minha conta? 66 PADRE Por sua conta como, se o vigário sou eu? SACRISTÃO O vigário é o senhor, mas quem sabe quanto o testamento sou eu. PADRE Hem? O testamento? SACRISTÃO Sim o testamento. PADRE Mas que testamento é esse? SACRISTÃO O testamento do cachorro. PADRE E ele deixou testamento? PADEIRO Só para o vigário deixou dez contos. PADRE Que cachorro inteligente! Que sentimento nobre! 67 JOÃO GRILO E um cachorro desse ser comido pelos urubus! É a maior das injustiças. PADRE Comido, ele? De jeito nenhum. Um cachorro desse não pode ser comido pelos urubus. Todos aplaudem, batendo palmas ritmadas e discretas e o Padre agradece, fazendo mesuras. Mas de repente lembra-se do Bispo. PADRE, aflito. Mas que jeito pode-se dar nisso? Estou com tanto
medo do bispo! E tenho medo de cometer um sacrilégio! SACRISTÃO Que é isso, que é isso? Não se trata de nenhum sacrilégio. Vamos enterrar uma pessoa altamente estimável, nobre e generosa, satisfazendo, ao mesmo tempo, duas outras pessoas altamente estimáveis (Aqui o padeiro e a mulher fazem uma curvatura a que o sacristão responde com outra igual), nobres (Nova curvatura.) e, sobretudo, generosas. (Novas curvaturas.) Não vejo mal nenhum nisso. PADRE É, você não vê mal nenhum, mas quem me garante que o bispo também não vê? SACRISTÃO O bispo? PADRE Sim, o bispo. É um grande administrador, uma águia a quem nada escapa. JOÃO GRILO Ah, é um grande administrador? Então pode deixar tudo por minha conta, que eu garanto. PADRE Você garante? JOÃO GRILO Garanto. Eu teria medo se fosse o anterior, que era um santo homem. Só o jeito que ele tinha de olhar para a gente me fazia tirar o chapéu. Mas com esses grandes administradores eu me entendo que é uma beleza. SACRISTÃO E mesmo não será preciso que Vossa Reverendíssima intervenha. Eu faço tudo. PADRE Você faz tudo? 69 SACRISTÃO Faço. MULHER Em latim? SACRISTÃO Em latim. PADEIRO E o acompanhamento? JOÃO GRILO Vamos eu e Chicó. Com o senhor e sua mulher, acho que já dá um bom enterro. PADEIRO Você acha que está bem assim? MULHER Acho. PADEIRO Então eu também acho. SACRISTÃO Se é assim, vamos ao enterro. (João Grilo estende a
mão a Chicó, que a aperta calorosamente.) Como se chamava o cachorro? 70 MULHER, chorosa Xaréu. SACRISTÃO, enquanto se encaminha para a direita em tom de canto gregoriano. Absolve, Domine, animas omnium fidelium defunctorum ab omni vinculi delictorum. TODOS Amém. Saem todos em procissão, atrás do sacristão, com exceção do padre, que fica um momento silencioso, levando depois a mão à boca, em atitude angustiada, e sai correndo para a igreja. Aqui o espetáculo pode ser interrompido, a critério do ensaiador, marcando-se o fim do primeiro ato. E pode-se continuá-Lo, com a entrada do Palhaço. PALHAÇO Muito bem, muito bem, muito bem. Assim se conseguem as coisas neste mundo. E agora, enquanto Xaréu se enterra “em latim”, imaginemos o que se passa na cidade. Antônio 72 Morais saiu furioso com o padre e acaba de ter uma longa conferência com o bispo a esse respeito. Este, que está inspecionando sua diocese, tem que atender a inúmeras conveniências. Em primeiro lugar, não pode desprestigiar a Igreja, que o padre, afinal de contas, representa na paróquia. Mas tem também que pensar em certas conjunturas e transigências, pois Antônio Morais é dono de todas as minas da região e é um homem poderoso, tendo enriquecido fortemente o patrimônio que herdou, e que já era grande, durante a guerra, em que o comércio de minérios esteve no auge. De modo que lá vem o bispo. Peço todo o silêncio e respeito do auditório, porque a grande figura que se aproxima é, além de bispo, um grande administrador e político. Sou o primeiro a me curvar diante deste grande príncipe da Igreja, prestando-lhe minhas mais carinhosas homenagens. Curva-se profundamente e o Bispo entra pela direita, acompanhado pelo Frade. O Bispo é um personagem medíocre, profundamente enfatuado, enquanto o Frade, a quem todos tratam com desprezo mal disfarçado, é a alegria e bondade em pessoa. Ante a curvatura do Palhaço, o Bispo faz um gesto soberano, mandando-o erguer-se. O Frade aponta o Palhaço e dispara na risada, tapando a boca com a mão, mas o Bispo olha-o severamente e o Frade baixa a cabeça, intimidado. Nova curvatura do Palhaço, novo gesto do Bispo. PALHAÇO, animado pelo acolhimento Muito bem, olá, como está Vossa Reverendíssima, como vai essa prosápia, essa bizarria.
entender sou eu. PADRE A culpa é do Grilo. BISPO Do grilo? PADRE De João Grilo. BISPO Quem é João Grilo? PADRE Um canalhinha amarelo que mora aqui e trabalha na padaria. Chegou dizendo que o cachorro de Antônio Morais estava doente e que ele queria que eu o benzesse. Quando o homem chegou, a confusão foi a maior do mundo. Agora eu entendo tudo. Mas ele me paga. JOÃO GRILO, cantando fora: Lampião e Maria Bonita. Pensava que nunca morria: Morreu à boca da noite, Maria Bonita ao romper do dia. Entram João Grilo e Chicó. JOÃO GRILO Padre João, querido Padre João, está tudo pronto e nós muito satisfeitos com o senhor. PADRE João Grilo, querido João Grilo, nós também estamos satisfeitíssimos com o senhor. JOÃO GRILO Qual, quem sou eu, um pobre Grilo que não vale nada... É bondade de Vossa Reverendíssima. PADRE É mesmo, é bondade minha, porque você não passa de um amarelo muito safado! JOÃO GRILO Está ouvindo, Chicó? Eita, eu, se fosse você, reagia. CHICÓ Eu? 79 JOÃO GRILO Sim, eu, se fosse você, reagia. Não admito que ninguém diga isso de um amigo meu na minha frente. CHICÓ Mas o amigo é você! JOÃO GRILO E então? Reaja, Chicó, seja homem! CHICÓ Eu, não. Reaja você! JOÃO Grilo Você não é homem não, Chicó? CHICÓ Eu sou homem mas sou frouxo. JOÃO GRILO Muito bem, se é assim, eu falo. Por que Vossa Reverendíssima me chamou de safado?
Porque você é um amarelo muito safado. JOÃO GRILO Pois se esqueceram de botar isso na minha certidão de idade! O Padre tenta agredir João mas o Frade o impede. PADRE Como é que você veio me dizer que o cachorro de Antônio Morais estava doente, fazendo-me chamar a mulher dele de cachorra? JOÃO GRILO Ah, e a safadeza é essa? Isso é nada, Padre João! Muito pior é enterrar o cachorro em latim, como se ele fosse cristão, e nem por isso eu vou chamá-lo de safado. PADRE, enorme grito Ai! BISPO Que é isso? PADRE Uma dor que me deu de repente. Ai! JOÃO GRILO Coitado, não tem que ver o grito que minha patroa dava enquanto se fazia o enterro do cachorro. PADRE Ai, João Grilo, meu querido, me acuda que estou morrendo. JOÃO GRILO Eu? Quem sou eu para socorrer padre, eu, um amarelo muito safado! PADRE Eu retiro o que disse, João. JOÃO GRILO Retirando ou não retirando, o fato é que o cachorro enterrou-se em latim. BISPO Um cachorro? Enterrado em latim? PADRE Enterrado latindo, Senhor Bispo. Au, au, au, não sabe? BISPO Não sei não senhor, nunca vi cachorro morto latir... Que história é essa? 82 PADRE Ai! Ai! Ai SACRISTÃO, entrando Que é isso? Que é isso? JOÃO GRILO É o bispo que quer saber que história é essa. SACRISTÃO, fazendo mesuras Senhor Bispo, excelente e reverendíssimo Senhor Bispo... Qual história? JOÃO GRILO Essa de padre e sacristão se juntarem para enterrar um cachorro em latim.
Ai! JOÃO GRILO Que aperreio é esse? A desgraça agora foi que começou! BISPO Então houve isso? Um cachorro enterrado em latim? JOÃO GRILO E então? É proibido? BISPO Se é proibido? Deve ser, porque é engraçado demais para não ser. É proibido! É mais do que proibido! Código Canônico, artigo 1627, parágrafo único, letra k. Padre, o senhor vai ser suspenso. PADRE Ai! 83 JOÃO GRILO Vossa Excelência Reverendíssima vai suspender o padre? BISPO Vou, por que não? Acha pouco o que ele fez? Uma vergonha! Uma desmoralização! PADRE Ai! BISPO E o sacristão também vai pular fora de seu emprego! SACRISTÃO Ai! BISPO Quanto o senhor, Senhor João Grilo, vai ver agora o que é administrar. O senhor vai-se arrepender de suas brincadeiras, jogando a Igreja contra Antônio Morais. Uma vergonha, uma desmoralização! JOÃO GRILO É mesmo, é uma vergonha. Um cachorro safado daquele se atrever a deixar três contos para o sacristão, quatro para o padre e seis para o bispo, é demais. BISPO, mão em concha no ouvido Como? JOÃO GRILO Ah! E o senhor não sabe da história do testamento ainda não? Bispo Do testamento? Que testamento? CHICÓ O testamento do cachorro. BISPO Testamento do cachorro? PADRE, animando-se. Sim, o cachorro tinha um testamento. Maluquice de sua dona. Deixou três contos de réis para o sacristão; quatro para a paróquia e seis para a
diocese. BISPO É por isso que eu vivo dizendo que os animais também são criaturas de Deus. Que animal interessante! Que sentimento nobre! PADRE, arriscando Para atender à vontade da dona, deixei que o sacristão acompanhasse o... 85 BISPO, sorridente O enterro! PADRE, sorridente Sim, o enterro. BISPO Em latim? SACRISTÃO Nada, eu disse aí umas quatro ou cinco coisas que sabia, coisa pouca. JOÃO GRILO, gregoriano Não sei quê, não sei quê, defunctorum. CHICÓ, mesmo tom Amém. Bispo É preciso deliberar. É assunto para se discutir com muito cuidado. Vamos reunir o concílio. Encaminha-se para a igreja. O Sacristão quer ir logo depois dele, mas o Padre o impede e toma para si o lugar de honra. O Frade os segue. SACRISTÃO, do limiar, antes de entrar na Igreja Na verdade, vê-se logo que é um grande administrador. 86 CHICÓ Você ainda se desgraça numa embrulhada dessas. Eles viram a bexiga? JOÃO GRILO, exibindo-a Que nada, está aqui. CHICÓ Se a mulher do padeiro descobrir que você tirou a bexiga do cachorro antes do enterro... JOÃO GRILO Que é que tem isso? Eu estava precisando dela para um negócio que estou planejando e a necessidade desculpa tudo. O cachorro já estava morto, não precisava mais dela, eu tirei porque estava precisando! Ela não tem nada a reclamar. CHICÓ É, o cachorro já estava morto, mas você sabe como esse povo rico é cheio de agonia com os mortos. Eu, às vezes, chego a pensar que só quem morre completamente é pobre, porque com os ricos a agonia continua por tanto tempo depois da morte, que chega a parecer que ou eles não morrem direito ou a morte deles é outra. JOÃO GRILO Você ainda não viu nada! Eu ter tirado a bexiga do
Quem não tem cão caça com gato e eu arranjei um gato que é uma beleza para a senhora. MULHER Um gato? JOÃO GRILO Um gato. MULHER E é bonito? JOÃO GRILO Uma beleza. MULHER Ai, João, traga para eu ver! Chega a me dar uma agonia. Traga, João, já estou gostando do bichinho. Gente, não, é povo que não tolero, mas bicho dá gosto. JOÃO GRILO Pois então vou buscá-lo. MULHER Espere. Sabe do que mais, João? Não vá buscar o gato que isso só me traz aborrecimento e despesa. Não viu o que aconteceu com o cachorro? Terminei tendo que fazer o testamento. 93 JOÃO GRILO Ah, mas aquilo é porque foi o cachorro. Com meu gato é diferente... MULHER Diferente por quê? JOÃO GRILO Porque, em vez de dar despesa, esse gato dá lucro. MULHER Fora vaca, cavalo e criação, bicho que dá lucro não existe. JOÃO GRILO Não existe se não... Eu fico meio encabulado de dizer! MULHER Que é isso, João, você está em casa! Diga! JOÃO GRILO É que o gato que eu lhe trouxe, descome dinheiro. MULHER Descome dinheiro? 94 JOÃO GRILO Descome, sim. MULHER Essa eu só acredito vendo. JOÃO GRILO Pois vai ver. Chicó! MULHER Ah, e é história de Chicó? Logo vi. JOÃO GRILO Nada de história de Chicó, mas foi ele quem guardou o bicho. Chicó! CHICÓ, entrando com o gato.
Tome seu gato. Eu não tenho nada com isso. João dá-lhe uma cotovelada e apresenta o gato à mulher. JOÃO GRILO Está aí o gato. MULHER E daí? JOÃO GRILO É só tirar o dinheiro. MULHER Pois tire. 95 JOÃO GRILO virando o gato para Chicó, com o rabo levantado. Tire aí, Chicó. CHICÓ Eu não, tire você. JOÃO GRILO Deixe de luxo, Chicó, em ciência tudo é natural. CHICÓ Pois se é natural, tire. JOÃO GRILO Então tiro. (Passa a mão no traseiro do gato e tira uma prata de cinco tostões.) Está aí, cinco tostões que o gato lhe dá de presente. MULHER Muito obrigada, mas se você não se zanga quero ver de novo. JOÃO GRILO De novo? MULHER Vi você passar a mão e sair com o dinheiro mas agora quero ver é o parto. JOÃO GRILO O parto? 96 MULHER Sim, quero ver o dinheiro sair do gato. JOÃO GRILO Pois então veja MULHER, depois da nova retirada. Nossa Senhora, é mesmo. João, me arranje esse gato pelo amor de Deus. JOÃO GRILO Arranjar é fácil, agora, pelo amor de Deus é que não pode ser, porque sai muito barato. Amor de Deus é coisa que eu tenho, dê ou não lhe dê o gato. MULHER Quer dizer que não tem jeito de eu arranjar esse gato? JOÃO GRILO De modo nenhum, há um jeito e é até fácil. MULHER Pois diga qual é, João. JOÃO GRILO Deixe eu entrar no testamento do cachorro.
Pois você entra. Por quanto vende o gato? 97 JOÃO GRILO Um conto, está bom? MULHER Esta não, está caro. JOÃO GRILO Mas por um gato que descome dinheiro! MULHER Já fiz a conta, vou levar dois mil dias só para tirar o preço. JOÃO GRILO Mas ele descome mais de uma vez por dia, a senhora não viu? MULHER Mas ele pode morrer. Só dou quinhentos e se você não aceitar será demitido da padaria. JOÃO GRILO Está certo, fica pelos quinhentos. MULHER Tome lá. Passe o gato, Chicó. Meu Deus, que gatinho lindo! Agora a coisa é outra, tenho um filho de novo e vou tirar o prejuízo. 98 Sai contentíssima. CHICÓ João,adeus. Eu vou-me embora. JOÃO GRILO Nada disso, tome lá a metade do dinheiro e deixe de ser mole. CHICÓ Homem, eu não tenho coragem de continuar sempre, é melhor fugir logo, enquanto tudo está em paz. JOÃO GRILO Não adianta, Chicó, você já entrou na história e agora é tarde porque a mulher descobre já. Quantas pratas você conseguiu meter? CHICÓ Três! JOÃO GRILO Então o negócio estoura já. CHICÓ Meu Deus, se eu sair com vida dessa história, subo a serra do Pico de joelhos. JOÃO GRILO Deixe de moleza, Chicó; Você encheu a bexiga de sangue? 99 CHICÓ, apontando a barriga Enchi, está aqui. JOÃO GRILO Então está tudo garantido. Entram o Bispo, o Padre, o Frade e o Sacristão. BISPO
Não resta nenhuma dúvida, foi tudo legal, certo e permitido. Código Canônico, artigo 368, parágrafo terceiro, letra b. SACRISTÃO Quer dizer que não agi mal? BISPO Muito pelo contrário, você agiu muito bem. JOÃO GRILO E aqui está a prova de que você agiu muito bem. (Entregando os pacotes.) “Bispo e padre” e “sacristão”. SACRISTÃO, falsamente admirado Que é isso? Que é isso? JOÃO GRILO O testamento do cachorro, a prova de que você agiu bem, de acordo com o Código Canônico, artigo não sei quanto, parágrafo sete, letra b. PADRE Ah, você sabe ler, João? JOÃO GRILO Não, conheci pelo peso. PADRE, dividindo o pacote Senhor Bispo... Bispo Não há pressa, não há pressa... Mesmo assim, recebe o dinheiro, conta-o e embolsa-o, rapidamente. JOÃO GRILO E fica mais uma vez tudo em paz, na santa paz do Senhor, com o cachorro enterrado em latim e todo mundo satisfeito. CHICÓ Isso é o que você diz, João, mas acho que a opinião do padeiro é outra muito diferente. JOÃO GRILO E quem está pedindo a opinião do padeiro? CHICÓ Ninguém, mas mesmo sem ninguém pedir, ele vem ali doido para dar. 101 PADEIRO Ah, você está aí? (Pega João pela camisa.) O gato não descome dinheiro coisa nenhuma, descome o que todo gato descome. Mas você me paga! JOÃO GRILO Que é isso? Que é isso? O senhor não tem vergonha de dizer essas coisas diante do bispo? Descome, não descome! Que conversa mais imoral! Que chamego é esse? PADEIRO, furioso Imoral é você, vendendo aquele gato! JOÃO GRILO E eu tenho culpa de sua mulher só gostar de bicho? PADEIRO Só gostar de bicho não, que ela casou comigo. JOÃO GRILO
Que grande administrador! SEVERINO Um momento, ninguém corra. O primeiro que tentar fugir, morre. O que é isso que está aí deitado, é algum cônego? BISPO, abrindo os olhos, cioso do posto Bispo. SEVERINO Ótimo. Nunca tinha matado um bispo, o senhor vai ser o primeiro. 107 BISPO, desmaiando Ai! SEVERINO, dando-lhe um pontapé Levante-se e deixe de chamego. Xilique comigo não pega. (O Bispo levanta-se vagarosamente.) Vossa Reverendíssima vai-me desculpar, mas deixe ver os bolsos. BISPO Não tenho nada, o capitão compreende... SEVERINO, cortante Mesmo assim eu quero ver. E deixe de me chamar de capitão, que eu não gosto. BISPO E como hei de chamá-lo então? SEVERINO Severino, que é meu nome de batismo. PADRE É que nós não temos coragem de chamar uma pessoa tão importante de Severino. SEVERINO Isso tudo é porque quem está com o rifle sou eu. Se fosse qualquer um de vocês, eu era chamado era de Biu. Deixem de conversa, que isso comigo não vai. Mostre os bolsos. (Tirando o dinheiro.) Seis contos! Mas é possível? Já vi que o negócio de reza está prosperando por aqui. 108 JOÃO GRILO Depois que se começou a enterrar cachorro então, faz gosto! SEVERINO E tudo isto foi para se enterrar um cachorro? JOÃO GRILO Foi. SEVERINO Nesse caso o padre deve ter também alguma coisa para seu amigo Severino. PADRE Tenho, não vou negar. Aqui estão dois contos, Senhor Severino. É o que posso lhe dar, no momento. SEVERINO, irônico É mesmo, padre? Não é possível! Numa terra em que o bispo tem seis contos, o padre deve ter no
mínimo uns três. (Severo.) Deixe ver os bolsos. Olhe lá, eu não disse? Fazendo jogo sujo, hem, padre? Quem diria, um ministro de Deus! Enfim, isso é um fim de mundo. E o sacristão, que é que me diz disso tudo? 109 SACRISTÃO Só tenho a lamentar minha pobreza, não me permite ajudar os amigos. SEVERINO Mais pobre do que Vossa Senhoria é Severino do Aracaju, que não tem ninguém por ele, a não ser seu velho e pobre papo-amarelo. Mas mesmo assim eu quero ajudá-lo, porque Vossa Senhoria é meu amigo. (Tirando o dinheiro.) Três contos! Estou quase pensando em deixar o cangaço. Eu deixava vocês viverem, o bispo demitia o sacristão e me nomeava no lugar dele. Com mais uns cinqüenta cachorros que se enterrassem, eu me aposentava. (Sonhador.) Podia comprar uma terrinha e ia criar meus bodes. Umas quatro ou cinco cabeças de gado e podia-se viver em paz e morrer em paz, sem nunca mais ouvir falar no velho papo-amarelo. BISPO Mas é uma grande idéia, Severino. SEVERINO É uma grande idéia agora, porque a polícia fugiu. Mas ela volta com mais gente e eu não dava três dias para o senhor bispo fazer o enterro do novo sacristão. 110 MULHER sedutora Então venha trabalhar comigo na padaria. Garanto que não se arrepende SEVERINO, severo Mostre a mão esquerda. MULHER, cariciosa Pois não, com muito gosto. SEVERINO É uma aliança? MULHER É, sou casada com essa desgraça aí, mas estou tão arrependida! Só gosto de homens valentes e esse é uma vergonha. SEVERINO Vergonha é uma mulher casada na igreja se oferecer desse jeito. Aliás, já tinha ouvido falar que a senhora enganava seu marido com todo mundo. PADEIRO O quê? É possível? JOÃO GRILO Está aí Chicó que o diga. CHICÓ Eu? 111 SEVERINO
A coisa de que eu tenho mais raiva no mundo é de mulher assim. Sabe o que é que eu faço com as que encontro com esse costume? MULHER Não. SEVERINO Ferro na tábua do queixo. MULHER Ai! PADEIRO Não ligue ao que ela diz, mas o senhor podia vir mesmo trabalhar comigo na padaria. Não se ganha muito, mas dá para viver. SEVERINO Então ganha-se pouco na padaria? PADEIRO Muito pouco, eu mesmo não tenho aqui, veja. SEVERINO Não preciso, eu acredito.O que você tinha deixou no cofre e eu tirei tudo, de passagem por lá. 112 PADEIRO Ai! SEVERINO Não vejo motivo para essas agonias. Estou no meu direito, porque a polícia fugiu e eu tomei a cidade. JOÃO GRILO Dou toda a razão a você, Severino, mas está ficando tarde e eu tenho o que fazer. Vamos embora, Chicó. Vocês, até logo e muito boa viagem para todos. SEVERINO Um momento, amarelinho, quero falar com o senhor você (A Chicó.) Você também não se apresse. JOÃO GRILO Homem, eu já sei qual é a conversa que você quer ter comigo. Tome logo meus duzentos e cinqüenta mil-réis e deixe eu ir-me embora. Dê os seus também, Chicó, e vamos sair daqui que o calor está aumentando. SEVERINO Nada disso. Você agora fica e vai morrer com os outros. Está-me chamando de ladrão? Severino do Aracaju pode ser assassino, mas não mata ninguém sem motivo. Até hoje só matei para roubar. É assim que garanto meu sustento. Mas você me chamou de ladrão e vai se arrepender. 113 BISPO Quer dizer que o senhor vai nos matar a todos? SEVERINO Vou, por que não? BISPO Mas você não disse que só mata para garantir seu sustento? SEVERINO
E não é o que estou fazendo? BISPO É um louco. Socorro! Socorro! SEVERINO Pode gritar à vontade, garanto que não vem ninguém. Mas somente por causa desse grito, Vossa Excelência vai ser o primeiro. Tenha a bondade de passar para ali, porque Severino do Aracaju não mata ninguém de fronte da igreja. FRADE Severino! SEVERINO Senhor! FRADE Deixe eu confessar esse povo. SEVERINO O senhor frade vai me perdoar, mas não tenho tempo. A polícia pode voltar e tenho que matar vocês de um por um. FRADE Então vou absolver todos condicionalmente, e peço ao padre que faça o mesmo comigo. BISPO Débil mental! (A Severino.) Cavalheiro... SEVERINO, fazendo uma vênia. Senhor Bispo... Não adianta olhar para os lados, porque, se não sair, morre aqui mesmo. Seja homem, dê um exemplo a seus dois secretários que estão em tempo de se acabar de medo. O Padre e o Sacristão começam a rezar. O Bispo ergue a cabeça e quer sair com dignidade, mas as pernas lhe tremem de tal modo que ele vai tropeçando. 115 SEVERINO Sustente as pernas, Senhor Bispo! Que vergonha, chega dá desgosto se matar um homem desse! Vá, vá logo!! O Bispo sai pela esquerda. Severino faz um aceno para o Cangaceiro. Este sai, atrás do Bispo. Um tiro. Severino baixa a cabeça afirmativamente, sorrindo com a eficiência da execução.O Cangaceiro reaparece, fazendo um gesto horizontal e cortante com a mão. SEVERINO Senhor Padre, pela ordem, é a sua vez. PADRE, descobrindo o rosto. Pode cuidar logo do sacristão. SACRISTÃO Nada disso, a vez é do Senhor. SEVERINO Para não haver discussão, vão os dois de uma vez. PADRE, a João Grilo. Tudo isso por sua culpa, com suas histórias de cachorro bento e cachorro enterrado! 116