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Análise do Ritual Tupinambá: Etno-História, Poética Modernista e Cinema Novo, Notas de aula de Cultura

Este artigo analisa o ritual antropofágico tupinambá a partir de três perspectivas: etnográfica e histórica, poética modernista e sua reedição no cinema novo tropicalista. A pesquisa propõe a prevalência da constante antropofágica como marcador da cultura brasileira, que se manifesta por meio de conflito, apologia à diferença, produção de figuras de alteridade e atitude anti-hierárquica. O artigo aborda o filme 'como era gostoso o meu francês' de nelson pereira dos santos e sua influência no modernismo brasileiro.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Reginaldo85
Reginaldo85 🇧🇷

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Audiovisual, cultura e alteridade em Como era gostoso o meu francês.
Prof.a Regina Mota
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Resumo
Este artigo, inspirado pelo filme “Como era gostoso o meu francês” (SANTOS, 1970),
analisa o ritual antropofágico Tupinambá em três eixos, que correspondem à perspectiva
etnográfica e histórica, à poética modernista e a sua reedição no cinema novo
tropicalista. Nossa hipótese de pesquisa é a prevalência da constante antropofágica
como um dos marcadores da cultura brasileira, que se manifesta pelo conflito enquanto
método crítico, pela apologia à diferença, na produção de figuras de alteridade, e pela
assunção de uma atitude anti-hierárquica com respeito aos “bons costumes civilizados”.
Nesse sentido é que a proposta do “retorno ao primitivo”, de Oswald de Andrade,
preconizada oitenta anos no Manifesto Antropófago (1928), é aqui atualizada num
pensamento que privilegia o campo do audiovisual em sua potência noética.
Palavras-chave: cinema brasileiro, antropofagia, alteridade.
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As diferenças não existem para serem respeitadas, ignoradas ou
subsumidas, mas para servirem de isca aos sentimentos, de alimento
para o pensamento. Lures for feelings, food for thought". (Bruno
Latour)
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A escolha teórica dessa investigação assume a perspectiva antropofágica como operador
conceitual, permitindo a análise histórica do ritual antropófago Tupinambá e estética da
poética modernista e tropicalista, dentro de um princípio que reúne e faz coincidir o
fazer artístico e o pensamento sobre o mundo.
O filme “Como era gostoso o meu francês”, de Nelson Pereira dos Santos, sugere
diversas chaves de leitura construídas em narrativas que se sobrepõem: a fábula de Hans
Staden, os desenhos de De Brye, a carta de Villegagnon a Calvino, epígrafes de
viajantes, cantos e costumes nativos, com o privilégio de um uso transgressivo do
dispositivo cinematográfico, materializado na inquietude de uma câmera de mão que
coreografa a ação e rompe com a noção de ponto de vista de um narrador que tudo sabe
e conduz o público rumo a um sentido determinado.
Um contraponto seria O descobrimento do Brasil (1936), película dirigida por
Humberto Mauro e musicada por Heitor Villa-Lobos, na qual a visão cinematográfica e
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Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social e do Departamento
de Comunicação Social - FAFICH/UFMG. Participa há cinco anos do grupo FIBRA – Filosofia do Brasil
– FAFICH/UFMG, Brasil.
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http://abaete.wikia.com/wiki/Cita%C3%A7%C3%B5es_e_Ep%C3%ADgrafes#Sobre_o_admir.C3.A1ve
l_novo_mundo_da_universidade_produtiva_.28viva_o_Qualis.21.21.21.29.
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Audiovisual, cultura e alteridade em Como era gostoso o meu francês.

Prof.a Regina Mota^1

Resumo

Este artigo, inspirado pelo filme “Como era gostoso o meu francês” (SANTOS, 1970), analisa o ritual antropofágico Tupinambá em três eixos, que correspondem à perspectiva etnográfica e histórica, à poética modernista e a sua reedição no cinema novo tropicalista. Nossa hipótese de pesquisa é a prevalência da constante antropofágica como um dos marcadores da cultura brasileira , que se manifesta pelo conflito enquanto método crítico, pela apologia à diferença , na produção de figuras de alteridade , e pela assunção de uma atitude anti-hierárquica com respeito aos “bons costumes civilizados”. Nesse sentido é que a proposta do “retorno ao primitivo”, de Oswald de Andrade, preconizada há oitenta anos no Manifesto Antropófago (1928), é aqui atualizada num pensamento que privilegia o campo do audiovisual em sua potência noética.

Palavras-chave: cinema brasileiro, antropofagia, alteridade.

"As diferenças não existem para serem respeitadas, ignoradas ou subsumidas, mas para servirem de isca aos sentimentos, de alimento para o pensamento. Lures for feelings, food for thought ". (Bruno Latour)^2

A escolha teórica dessa investigação assume a perspectiva antropofágica como operador conceitual, permitindo a análise histórica do ritual antropófago Tupinambá e estética da poética modernista e tropicalista, dentro de um princípio que reúne e faz coincidir o fazer artístico e o pensamento sobre o mundo.

O filme “Como era gostoso o meu francês”, de Nelson Pereira dos Santos, sugere diversas chaves de leitura construídas em narrativas que se sobrepõem: a fábula de Hans Staden, os desenhos de De Brye, a carta de Villegagnon a Calvino, epígrafes de viajantes, cantos e costumes nativos, com o privilégio de um uso transgressivo do dispositivo cinematográfico, materializado na inquietude de uma câmera de mão que coreografa a ação e rompe com a noção de ponto de vista de um narrador que tudo sabe e conduz o público rumo a um sentido determinado.

Um contraponto seria O descobrimento do Brasil (1936), película dirigida por Humberto Mauro e musicada por Heitor Villa-Lobos, na qual a visão cinematográfica e

(^1) Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social e do Departamento de Comunicação Social - FAFICH/UFMG. Participa há cinco anos do grupo FIBRA – Filosofia do Brasil

  • FAFICH/UFMG, Brasil. (^2) http://abaete.wikia.com/wiki/Cita%C3%A7%C3%B5es_e_Ep%C3%ADgrafes#Sobre_o_admir.C3.A1ve l_novo_mundo_da_universidade_produtiva_.28viva_o_Qualis.21.21.21.29.

musical reconstrói uma imagem projetada pelos europeus exploradores sobre a realidade do novo mundo, como manifestação de uma oposição intransponível, a não ser pela dominação dos bárbaros destituídos de fé pelos civilizados cristãos. Essa obra nos faz ver o que eles viram: um ponto de vista fixo e ordenador, herdeiro ainda das representações renascentistas.

O filme de Nelson Pereira dos Santos convida o espectador a inverter sua posição diante dos acontecimentos, envolvendo-o na construção de uma memória coletiva que alterna a visão histórica colonial, recriando uma narrativa satírica entre o documental e o ficcional, deixando uma margem de manobra a ser preenchida pelo público. Assim, na linguagem cinematográfica, esse inacabado propõe uma desconfiança de quem olha o passado por essa janela, que não se pretende transparente nem real. A reconstituição de época é atravessada de signos da contemporaneidade, a propor ao mesmo tempo um elo atemporal e colocando em dúvida a própria construção narrativa.

O retorno ao primitivo

O modernismo brasileiro, que movimentou corações e mentes no país no início do século XX, introduziu o debate da potência de um pensamento que unia a praxis artística ao trabalho intelectual e colocava em questão os modos de apropriação do conhecimento na periferia dos centros legitimados de produção de cultura. O ápice conceitual do movimento se deu com o enunciado da antropofagia cultural, que valorizava e relevava os procedimentos transgressivos e criativos, expressando, no seu conjunto, uma estética antropológica de resistência.

O Manifesto Antropófago (1928), escrito e publicizado por Oswald de Andrade, inverte o senso comum da nossa história, demonstrando, na sua propedêutica formal, os traços, as cicatrizes e as escarifações de uma humanidade que se constituiu em oposição ao seu assujeitamento, transformando os valores impostos em alimento de sua transformação.

Nos anos 1960, o movimento do cinema novo brasileiro revisita o modernismo, aprofundando o aspecto da presença da constante representada pela antropofagia cultural. Constante que atravessa não apenas as práticas culturais do Brasil, mas de toda a Ameríndia, cujo melhor exemplo se materializa na “expressão americana” do barroco da contraconquista, no dizer do pensador cubano, José Lezama Lima (1988). O modo de

indígena. Essa escolha nos dá uma chave de entrada à obra , que aposta no estranhamento, no lugar de facilitar o expediente da identificação. O primeiro operador da produção da figura de alteridade no filme é a língua. Os brancos capturados em conflitos com os nativos eram submetidos a provas. Enfileirados, franceses e portugueses eram observados, tocados , e recebiam ordens para dizer frases destinadas a revelar , aos ouvidos dos índios captores , se eram inimigos ou aliados.

Testar e comprovar diferenças era parte dos procedimentos tanto dos brancos como dos índios, a partir de crenças opostas. Para os índios , a questão era saber se os brancos eram mortais ou imortais, ou seja, espíritos. Para os brancos , tratava-se de comprovar ou não a humanidade dos selvagens. Numa obra famosa que inspirou vários pensadores do começo do século XX, Lèvy Bhrul (1920)^5 descreve as funções mentais das sociedades que ele supunha serem inferiores, a julgar por seus costumes, incomuns aos europeus. Numa visão positivista, o antropólogo afirmou a existência , entre os selvagens , de processos cognitivos análogos à boa razão dos civilizados. Sua descoberta do pensamento místico incentivou e inspirou as pesquisas de pensadores como Karl Jung (inconsciente coletivo) e Sergei Eisenstein (pensamento por imagens) , entre outros.

Esse choque de visões uns marcando a diferença pela razão e outros pelo espírito vai ser problematizado no falso documentário que constitui a abertura do filme, de forma a criar uma opacidade na percepção do espectador, que precisa desconfiar e tecer suas próprias conjecturas sobre a verossimilhança do conteúdo histórico no qual o filme se baseia. Isso pesa menos na história, fabulada a partir da narrativa de Hans Staden^6 , do que na reconstituição desse encontro ocorrido no século XVI, do qual não temos propriamente um relato indígena. Esse vácuo permite ao realizador recorrer a figuras

plagas, então selvagens, um império que se chamaria França Antártica. O mentor espiritual da expedição era o teólogo protestante João Calvino. (^5) Em 1910, o antropólogo descreveu As funções mentais nas sociedades inferiores , sob a influência da teoria sociológica de Emille Durkheim, com o propósito de elaborar uma ciência dos costumes. Os títulos de suas obras são ilustrativos do lugar da interpretação científica: A mentalidade primitiva (1922) e a Alma primitiva (1927) serviram de mote para a ironia da apologia do retorno ao primitivo defendida no Manifesto Antropófago , de Oswald de Andrade (1928). (^6) Hans Staden foi um viajante alemão que , em 1550 , naufragou no litoral de Santa Catarina e acabou capturado pelos índios Tupinambá. Por causa de algumas manobras, conseguiu sobreviver, depois de viver nove meses entre os nativos. Assim, verdade ou imaginação, pôde narrar o mais divulgado relato sobre o ritual antropofágico. (ALMEIDA, 2002)

poéticas, no intuito de perspectivar a visão indígena , em detrimento da visão do colonizador.

Nelson Pereira dos Santos adensa a narrativa inicial , contrapondo a imagem idílica ao texto e à retórica calvinista, explicitando o conflito humano decorrente do moralismo religioso, que servia de ratio para justificar a ocupação das terras americanas, invadidas pela barbárie da cruz e da espada. Fato é que uma parte dos europeus que aqui chegava preferia virar índio. Era preciso conter esse tipo de conversão, já que o convite de viver livremente como os nativos ganhava inúmeros adeptos, como registram as cartas desesperadas dos jesuítas, sobretudo quando se tratava de aderir aos maus costumes , como a antropofagia.

O tema principal do filme, o canibalismo indígena Tupinambá, é introduzido pelas gravuras de De Bry^7 , que descrevem etapas e detalhes do ritual, acompanhadas dos créditos e de sonoridades de cantos indígenas religiosos. Segundo Lestringnant, foi o Brasil dos canibais que inventou a América: “É do Brasil que surgiu essa princesa desnuda e emplumada, com os braços carregados de membros ensanguentados, que faz sua entrada na galeria prosográfica dos continentes” (BANDEIRA, 2007:67). A América dos caribes é tudo aquilo que o civilizado não é , ao mesmo tempo fascínio e horror, medo e desejo, beleza e selvageria, eternizada em imagens que são testemunho de um encontro que se funda na relação com a diferença.

Antropofagia e alteridade

A fábula narrada em “Como era gostoso o meu francês” já traz no título o tom saboroso que traduz o significado da prática do ritual antropofágico para os Tupi da costa brasileira, no período da colonização. Para o grupo Tupinambá, o outro era seu destino , já que a sociedade não existia fora de uma relação imanente com a alteridade, como afirma Eduardo Viveiros de Castro (2001:220). Essa abertura intensa e extensa ao outro era uma demonstração de sua incompletude ontológica essencial , tanto de sociabilidade como de humanidade, fazendo com que a ordem interior e a identidade fossem hierarquicamente subordinadas à exterioridade e à diferença.

(^7) O holandês e gravador Theodore De Bry reproduziu em metal as cenas do ritual antropofágico publicadas no relato de Staden , para a coleção Grandes Viagens , dedicada à descoberta do Novo Mundo.

guerreiro , já que a antropofagia só se dava entre potências iguais. Era inconcebível aos Tupi a arrogância dos povos eleitos ou a compulsão de reduzir o outro à própria imagem, como afirma Castro.

“Se os europeus desejaram os índios para servir como animais ou como homens europeus e cristãos em potência, os Tupi desejaram os europeus em sua alteridade plena, que lhes pareceu como uma possibilidade de autotransfiguração, um signo da reunião do que havia sido separado na origem da cultura, capaz portanto de vir alargar a condição humana, ou mesmo de ultrapassá-la. Foram, então, talvez os ameríndios que tiveram a visão do paraíso no desencontro americano.” (CASTRO, 2002:225)

Por isso, o dispositivo cultural da guerra de vingança, entre outros rituais, era a base de toda a vida dessa sociedade, que se realizava com a captura, a troca, a devoração e a transubstanciação do inimigo, incorporado como alteridade. Tornar-se outro e mover o mundo pela incorporação da diferença promovem o significado do sacrifício do indivíduo para a manutenção do corpo social da tribo. A honra, como valor primordial da cultura Tupinambá, se dava pela captura da alteridade no exterior do socius e sua subordinação à lógica social interna pelo dispositivo do endividamento matrimonial – o cunhadismo, cálculo de benefícios e ganhos, como afirma Castro (2002).

A hospitalidade entusiástica concedida aos europeus dava-se na voracidade ideológica , como expressão da mesma propensão de absorver o outro e no processo de alterar-se. No filme , essa característica é ilustrada com a chegada do aliado e negociante francês à tribo, encenada dentro da oca por um ritual de mulheres que choram sua ausência , num fingimento deveras, contando suas desventuras, perda de membros da tribo em conflitos com os portugueses , inimigos de ambos, franceses e Tupinambá. O europeu, confortavelmente descalço , acomodado na rede, alimentado e acarinhado por várias nativas, a ouvir compassivamente e a emitir murmúrios em tupi , compõe o quadro da troca e do intercâmbio de interesses comerciais e políticos. O drama é suspenso por Cunhambebe, o cacique, como faria um diretor de cinema – corta! Choro interrompido, o branco e o índio passam a discutir seus negócios , que incluem pau-brasil e pimenta , trocados por instrumentos de trabalho, tecidos e contas.

A noção corrente de que os nativos eram facilmente enganados no sistema de trocas é desconstruída pela visão estratégica do cacique, que visa ganhos de empoderamento , o que inclui pólvora e armamentos, sempre protelados pelos piratas franceses. A disputa

que se trava entre os dois franceses, o aliado e o capturado, ilustra a ganância, a falta de solidariedade entre os nada civilizados mair , que culmina com o assassinato do comerciante.

Só a antropofagia nos une Depois de oito meses junto à tribo, o cativo está pronto para ser devorado. A cena do ensaio do ritual é orquestrada por uma das melhores fotografias do cinema brasileiro. Dib Lutfi, autor dos disparos, cria planos-sequência que levaram os americanos a pensar que os brasileiros tinham inventado um novo equipamento, já que humanos não seriam capazes de produzir tais movimentos de câmera.

Seboipebe, a esposa ritual , e Jean, o cativo, correm para uma pedra dentro do mar , acompanhados dessa anima que produz o registro. A encenação da sua morte é, ao mesmo tempo, uma brincadeira e um convite ao amor, a unir pela destruição aqueles contrários. A metáfora sexual realiza o rito de renovação espiritual indígena e , no caso do cinema tropicalista, a afirmação de sua poética.

Esse filme, realizado em uma das piores fases da repressão política e da censura no Brasil, assume , em todos os seus procedimentos , o aspecto transgressor da linguagem, explicitado em formas conflitivas , materializadas ora na fala, ora na ação ou na imagem, invertendo sempre a história oficial. São bravos, altivos, espertos e muito bem- humorados os nativos , mas não encarnam características de heróis épicos, e assim se aproximam de figuras desdobradas da mesma origem, como Macunaíma (ANDRADE, 2004). Não há qualquer aceitação de domínio desigual, como a que era imposta pelos invasores portugueses. Entre os aliados franceses e os Tupinambá , as relações eram simétricas, de troca e acerto de interesses baseados em diferenças que acionavam desejos mútuos.

O falso documentário se faz pelo uso do intertexto , com epígrafes que comentam o filme, “criando uma encenação satírica cinematográfica, que produz a oscilação entre verdade histórica e fabulação, entre seriedade documental e a comédia”, na análise de Maria Cândida Almeida (2002:154).

A belicosidade Tupinambá também serve para a figuração dos inimigos retratados no ódio aos portugueses, relação de fricção com os franceses e de guerra de vingança contra os Tupiniquim, seus inimigos sacros. A encenação das batalhas impressiona não

sobretudo no teatro, na música, nas artes plásticas, na literatura e no cinema dos anos

Eduardo Viveiros de Castro (2007:168) afirma sobre a poética tropicalista, à qual o filme se filia:

“O tropicalismo unia, finalmente, Vicente Celestino e John Cage, a cultura popular e a cultura erudita, passando estrategicamente pela cultura pop, que foi a grande batalha deles. Tudo isso veio evidentemente da antropofagia oswaldiana, a reflexão meta-cultural mais original produzida na América Latina até hoje. A antropofagia foi a única contribuição que anacronizou completa e antecipadamente o célebre topos cebrapiano-marxista sobre as ‘ideias fora de lugar’. Ela jogava os índios para o futuro e para o ecúmeno; não era uma teoria do nacionalismo, da volta às raízes, do indianismo. Era uma teoria realmente revolucionária...”

Talvez esse futuro, encenado no Manifesto Antropófago em 1928, esteja prestes a chegar. Hoje , podemos ouvir, ver, ler e assistir às visões que os índios têm de si e do branco. Os conflitos de interesses têm visibilidade e os processos de transformação contínua se refletem no crescimento demográfico, resultado da conquista por melhores condições de vida da população indígena. O número de tribos em terras demarcadas e em reservas sugere que eles não irão mais se diluir, a ponto de desaparecer.

Para Ailton Krenak^8 , Como era gostoso o meu francês é um dos depoimentos mais positivos sobre o encontro dos índios e dos brancos no período da colonização , porque o filme problematiza os conflitos, no lugar de determinar vencedores e vencidos, e assim cria uma memória poética que hoje pode ser compartilhada por todos. Em sua opinião, a película faz parte de um acervo de obras que se preocupavam em refletir aspectos políticos e culturais do Brasil e do continente americano e que hoje compõem uma referência estética e histórica comum.

Hoje, o Brasil tem ainda 220 grupos étnicos indígenas, que constituem, juntamente com os afrodescendentes que também preservam suas tradições culturais, um patrimônio para toda a humanidade.

(^8) Ailton Krenak é líder da causa indígena e ambiental, coordenador da União das Nações Indígenas (conselho que reúne 180 tribos) e assessor do Governo de Minas Gerais para as questões indígenas. Em depoimento a Helena Salem, gravado para os extras do filme Como era gostoso o meu francês.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Maria Cândida. Tornar-se outro. O topos canibal na literatura brasileira. São Paulo, Anna Blume, 2002. ANDRADE, Oswald. Obras Completas. A Utopia Antropofágica. São Paulo, Globo,

ANDRADE, Mário. Macunaíma. Belo Horizonte, Garnier, 2004.

BANDEIRA, Júlio. Canibais no Paraíso. Rio de Janeiro, Mar de Idéias, 2007. CASTRO, Eduardo Viveiros. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac e Naif, 2002.

CASTRO, Eduardo Viveiros. Eduardo Viveiros de Castro. (Encontros). Rio de Janeiro, Beco do Azougue Editoria, 2008. LIMA, Lezama. A expressão americana. São Paulo, Brasiliense, 1988.

Filme PEREIRA DOS SANTOS, N. Como era gostoso o meu francês. Cópia em DVD. Rio de Janeiro: Sagres/Riofilmes.