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Neste texto, discutiremos alguns aspectos da primeira parte das conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917) por sigmund freud, dedicada aos atos falhos. Através desta discussão, indicaremos um modo de construção e endereçamento da obra ao leitor, enfrentando obstáculos específicos, como a dificuldade de ensinar a psicanálise, aversão a certos pressupostos psicanalíticos e dificuldades na formação médica. Freud propõe a inclusão do leitor na interpretação dos fenômenos psíquicos, além de uma 'instrução sobre a técnica psicanalítica'.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de aula
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Suely Aires Professora de teoria e clínica psicanalítica na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), doutora em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), membra do Grupo de Trabalho de Filosofia da Psicanálise da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF), membra fundadora do Centro de Pesquisa Outrarte (IEL-Unicamp) E-mail: suely.aires7@gmail.com
Resumo: No presente artigo, buscaremos discutir alguns aspectos da primeira parte das Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917) , dedicada aos atos falhos, de modo a indicar um dado modo de construção e endereçamento de Freud ao ouvinte/leitor. Pretendemos acompanhar o desenrolar argumentativo das palestras e destacar a construção de um procedimento de leitura que necessariamente implica o lugar do intérprete. Nessa direção, destacamos três passos constitutivos da argumentação freudiana: a suposição de uma alteridade, a equivalência entre sentido, significação e intenção e a apresentação de pressupostos teóricos ao longo de seu procedimento de leitura. Palavras-chave: atos falhos; Freud; psicanálise.
Abstract: In this article, we will try to discuss some aspects of the first part of the Introductory Lectures to Psychoanalysis (1916-1917) , dedicated to the faulty acts, in order to indicate a certain way of construction and addressing of Freud to the listener/reader. We intend to follow the argumentative development of the lectures and highlight the construction of a reading procedure that necessarily implies the place of the interpreter. In this direction, we highlight three constitutive steps of the Freudian argument: the assumption of an alterity, the equivalence between meaning, meaning and intention, and the presentation of theoretical assumptions throughout its reading procedure. Keywords: parapraxis; Freud; psychoanalysis.
[…] é seu ardente desejo [do autor] que o livro envelheça rapidamente – que o que nele, uma vez, foi novidade, possa tornar-se geralmente aceito e que o que nele estiver imperfeito possa ser substituído por algo melhor. Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade , 1905
As conferências introdutórias de Freud, apresentadas no inverno de 1915-1916 e 1916-1917, foram destinadas a um público amplo, formado por médicos interessados nos fundamentos da psicanálise e leigos curiosos quanto a essa nova “ciência”. Trabalhando com temas gerais e iniciando suas apresentações pela psicopatologia da vida cotidiana – atos falhos e lapsos – , Freud produziu um material acessível e de fácil compreensão. Sua proposta de divulgação da psicanálise obteve sucesso: as conferências introdutórias foram amplamente lidas e traduzidas, tendo havido “[…] pelo menos quinze traduções, inclusive para o chinês, o japonês, o servo-croata, o hebraico, o iídiche e o Braille” (Gay, 1989, p. 340). No presente texto, buscaremos discutir alguns aspectos da primeira parte das Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917), dedicada aos atos falhos, de modo a indicar um dado modo de construção e endereçamento da obra ao leitor. Pretendemos ainda acompanhar o desenrolar argumentativo das palestras e destacar a construção de um procedimento de leitura que necessariamente implica o lugar do intérprete.
1) Uma alteridade suposta
“Senhoras e senhores: Não sei o quanto cada um dos senhores sabe sobre psicanálise […]. Todavia, os termos com que anunciei estas conferências […] obrigam- me a tratá-los como se nada soubessem […]” (Freud, 1916/2014, p. 19). Inicia-se assim a primeira das conferências de Freud, prenunciando seu lugar de endereçamento ao outro, o qual se mantém e se modifica ao longo de sua fala. Na condição de nada saber, o público suposto necessitará de explanações e exemplos que permitam certa apreensão da psicanálise. No entanto, essa tarefa, segundo Freud (1916/2014, p. 26 e ss.), enfrenta obstáculos específicos: a dificuldade própria ao ensino da psicanálise, a aversão que certos pressupostos psicanalíticos provocam, as dificuldades da formação médica que tem como base a anatomia, a biologia e que, por consequência, pouco valor dá à dimensão psíquica. Dificuldades que impelem Freud a uma mudança de posição frente ao seu público: “Apenas não se irritem se, de início, eu os tratar como neuróticos” (Freud, 1916/2014, p. 20). Ao tratá-los como neuróticos, Freud faz um duplo movimento: alerta os ouvintes quanto às dificuldades do processo, o tempo que este vai demandar, os esforços que vai exigir e a ausência de garantias de sucesso. E, por conseguinte, os desaconselha a escutá-
cada ouvinte que se encontra na audiência, visando à necessária contextualização dos fenômenos psíquicos em relação à cadeia associativa daquele que cometeu o ato falho. Esse movimento só se torna possível, no entanto, se houver um questionamento do sujeito em relação ao sentido do ato falho, colocando-se em certa exterioridade frente ao fenômeno. Trata-se, portanto, da construção de sentido em uma relação de alteridade. Não por acaso, Freud assevera que:
Avançaremos muito mais se nos deixarmos analisar por um analista qualificado, experimentando os efeitos da análise em nosso próprio Eu e nos valendo da oportunidade de aprender com o outro a técnica mais refinada do procedimento. Mas, embora excelente, é claro que esse caminho só pode ser percorrido por um indivíduo, jamais por toda uma sala de aula. (Freud, 1916 /2014, p. 25-26).
Ressaltamos, no entanto, que, a despeito da alteridade constituída, o sentido dos atos falhos só poderá ser explicitado, para cada ato falho, por aquele que produziu esse fenômeno. Cada ouvinte/leitor deverá se lançar na aventura de produzir uma interpretação do ocorrido a partir de uma chave de leitura que tem princípios e pressupostos teóricos gerais e um percurso associativo singular. A apreensão geral do fenômeno, para um público não afeito à psicanálise, se tornará uma tarefa a ser construída, não sendo, portanto, demonstrável (Freud, 1916/2014, p. 25). É nesse sentido que Freud pode afirmar: “Senhoras e senhores: Começaremos não com pressupostos, mas com uma investigação” (Freud, 1916/2014, p. 31). A investigação proposta por Freud refere-se à busca de sentido, na condição de reconhecer que determinados fenômenos psíquicos ocorrem não apenas em neuróticos, mas em qualquer indivíduo saudável e, portanto, poder afirmar a existência de processos inconscientes universais. Como policiais, cabe seguir pistas (Freud, 1916/2014, p. 34) e se perguntar a razão de um dado lapso ocorrer precisamente dessa maneira e não de outra. Tendo como guia tal questão, busca-se a determinação de cada ato falho e pressupõe-se a existência de uma razão inconsciente para o ocorrido. Com esse movimento aparentemente simples, Freud institui, como possibilidade de leitura dos fenômenos, a noção de inconsciente, de determinismo psíquico e, por conseguinte, a necessária técnica da associação livre em lugar da prática de introspecção.
2) Sentido, significado e intenção
Em sua conferência, Freud enumera diferentes atos falhos: Versprechen [lapso verbal], Verlesen [lapso de leitura], Verhören [lapso de audição], Vergessen [lapso de memória], Verlegen [extravio de objeto], Verlieren [perda de objeto] e alguns equívocos [ Irrtümer ]. O íntimo parentesco desses acontecimentos “se expressa [em alemão] na designação com o mesmo prefixo ( ver- ), são de natureza desimportante, e a maioria possui duração bastante fugaz, sem grande significado na vida das pessoas” (Freud, 1916 /2014, p. 32-33). Cabe a Freud destacar que, em sua diversidade, esses diferentes fenômenos têm, em geral, caráter temporário, sendo algo banal e cotidiano, sem relação com enfermidades neurológicas ou da memória. A atenção de Freud recairá sobre o significado dos atos falhos, em especial sobre o significado dos lapsos verbais, em pessoas comuns. O lapso verbal será considerado por Freud como o mais apropriado para investigação, pois, ao enunciar algo distinto do que intencionava, o que cada sujeito encontra é perplexidade ou irritação. Por vezes, esse fenômeno sequer é reconhecido pelo falante, sendo revelado pela reação do interlocutor. A perplexidade ou irritação, como breve resposta afetiva, leva o sujeito a se questionar sobre o que esse fenômeno específico quer dizer. Quem aí fala? É esse ponto de enigma que interessa a Freud em sua argumentação e que permite diferenciar sua proposição teórica das produções de outros autores sobre o tema nos campos da linguística e da psiquiatria: não se trata do ato falho, em si, como objeto direto de estudo, mas da intencionalidade do falante diante do fenômeno; intencionalidade desconhecida à atenção consciente, mas suposta em um recurso à noção de inconsciente. Se, de início, Freud examina as condições em que o lapso acontece, as influências que o determinam, o tipo de operação e de deformação do conteúdo, recorrendo a autores e estudos sobre o tema, seu passo original consiste em buscar a explicitação do sentido do ato falho. O sentido de um processo psíquico como o ato falho “nada mais é que a intenção a que esse processo serve e a posição dele em uma cadeia psíquica” (Freud, 1916/2014, p. 52). A equivalência entre sentido, significado e intenção, proposta por Freud, sustenta-se no pressuposto de que há mais de uma intenção em jogo. A interferência ou confronto de duas intenções diferentes permite que uma dada expressão ou frase seja enunciada, a despeito da intenção consciente do falante. Teoricamente, o confronto entre intenções se apoia na suposição de que há uma distinção entre sistemas
p. 57) – que permite a compreensão do ato falho em sua dimensão reveladora para além do que o sujeito conscientemente confirma. Avançando nessa direção, Freud discute a significação do fenômeno, como mensagem endereçada pelo falante ao público em seu contexto social, e que inquieta aquele que cometeu o ato falho, pois mantém-se como enigma inicialmente formulado – o que isso quer dizer? A intenção, reconhecida posteriormente, é tornada equivalente ao significado do ato falho. É nesse sentido que a distinção entre intenção e descrição posterior (Cioffi, 1998, p. 207) merece ser ressaltada, pois se coloca em relação à perplexidade e à aceitação por parte do sujeito. A interpretação proposta por Freud pode ser entendida como esclarecimento de um ponto de sentido que fez enigma para o sujeito que produziu o ato falho; ou seja, o fim da perplexidade parece indicar uma intenção realizada, mas, ao mesmo tempo, pode ser apenas a aceitação de um dado modo de interpretação que acomoda o sentido. Freud parece tratar a aceitação do paciente em relação às razões de um ato falho como critério de validade que corrobora sua intenção inconsciente. Ou, dito de outro modo, na leitura proposta por Cioffi (1998), a hipótese psicanalítica parece confundir uma hipótese de compreensão do lapso com uma descrição posterior que o justifica, fazendo com que o fenômeno entre na rede de significações de um sujeito, na cadeia psíquica que o insere em certa racionalidade que considera o inconsciente.
3) Uma hipótese necessária: o recalque^1
No entanto, uma outra possibilidade se apresenta e merece ser investigada por Freud. As situações em que o falante, aquele que cometeu o ato falho, repudia a interpretação apresentada. Como, nesse caso, validar a interpretação? O analista, ao interpretar a intenção de um ato falho, cujo sentido não é corroborado pelo sujeito, não se aproximaria das produções de paranoicos que se sustentam em indícios (Freud, 1916/2014, p. 89) e que produzem sentido, ainda que não estejam em consonância com a realidade? A produção de sentido e a certeza de seu valor, independentemente da confirmação na realidade, não colocariam o analista na condição de um paranoico de
(^1) Utilizaremos o termo recalque como tradução de Verdrängung para nos referirmos ao processo psíquico que repele ou mantém no inconsciente as representações incompatíveis que gerariam desprazer para o aparelho psíquico. Nesse sentido, cabe conceber o recalque no triplo registro da metapsicologia: do ponto de vista tópico, dinâmico e econômico (Laplanche & Pontalis, 1986). No entanto, nas citações diretas, manteremos a escolha do tradutor, que opta por utilizar o termo repressão como tradução para Verdrängung.
gênio? Como afirmar o sentido de um ato falho a despeito da rejeição e do reconhecimento da intencionalidade do falante que cometeu esse mesmo ato? É ainda sobre o lapso verbal – como representante de todo o gênero de atos falhos (Freud, 1916/2014, p. 82) – que Freud se detém para destacar que a convivência de tendências opostas pode não ser claramente reconhecida pelo sujeito. Se os atos falhos resultam da interferência mútua de duas intenções diversas, das quais uma sofreu perturbação, e outra produz a perturbação, convém perguntar como as intenções perturbadoras incidem sobre a fala do sujeito. Até esse momento, Freud conduz a conferência tomando os ouvintes como parceiros de investigação, seguidores de pistas, a quem caberia aprender a reconhecer os sinais. Apenas na introdução, ele destacou o risco da discordância e os exortou a não o escutar uma segunda vez. Agora, mostra-se útil apresentar a hipótese de um processo psíquico que escapa radicalmente ao sujeito. Reportando-se aos lapsos verbais, Freud afirma:
Se examinarmos toda uma série de exemplos com esse fim, eles logo se dividirão em três grupos distintos. Ao primeiro grupo pertencem aqueles casos em que a tendência perturbadora é conhecida de quem fala e, além disso, foi sentida por ele anteriormente ao lapso verbal. […] O segundo grupo se constitui dos casos em que o falante reconhece igualmente como sua a tendência perturbadora, mas não sabe que, pouco antes do lapso, ela se encontrava ativa nele. […] No terceiro grupo, a interpretação dada à intenção perturbadora é rechaçada com veemência pelo falante. (Freud, 1916/2014, p. 85)
O rechaço do falante é justamente a confissão de sua pertinência. Não apenas Freud reduz a importância da confirmação por parte daquele que cometeu o ato falho, como pretende sustentar imperturbavelmente sua interpretação, tendo como apoio os indícios. Diferentemente de uma paranoia combinatória (Freud, 1916/2014, p. 89), Freud reconhece os limites de sua interpretação e, em substituição à confirmação da intenção por parte do sujeito, recorre ao sentido socialmente compartilhado, aos equívocos de linguagem na literatura (Freud, 1916/2014, p. 47-51), aos pensamentos que ocorrem ao interlocutor diante do ato falho cometido. Não se trata, nesse sentido, de uma afirmação de sentido unívoco em que o analista-intérprete teria sempre razão, mas um modo de
descarga aceitável da agressividade do falante, é um dos poucos momentos em que Freud se detém de forma mais pormenorizada sobre o tema (Freud, 1916/2014, p. 56-57). Para abordar a evitação do desprazer, Freud recorre a outro fenômeno: o esquecimento de nomes próprios e estrangeiros. Trata-se, para Freud, da possibilidade de argumentar em prol da aversão da memória em se lembrar de acontecimentos e fatos vinculados ao sentimento de desprazer. A referência ao esquecimento temporário mostra- se mais profícua por furtar-se à argumentação em torno do confronto entre duas intenções, ambas buscando realização. O esquecimento permite indicar de forma mais clara a operação de recalque por meio da retirada de um dado conteúdo da consciência, o qual não se dá a ver nem mesmo de forma disfarçada. Essa intenção de evitar o desprazer, apresentada como “fuga psíquica do desprazer” (Freud, 1916/2014, p. 101), é identificada como motivação última e eficaz para a produção de atos falhos e sintomas, sendo reconhecida como um dos princípios do funcionamento psíquico (Freud, 1911/2010b). Nesse contexto, Freud apresenta a vida psíquica como um campo de batalhas para tendências opostas que, em seu jogo dinâmico, permite diferentes configurações. Se, tal como fez Freud, juntarmos o princípio do prazer, o determinismo psíquico que se deixa reconhecer no caminho associativo percorrido e a noção de recalque – ou seja, se apresentarmos o inconsciente em sua dimensão tópica, como instância psíquica com leis próprias (Freud, 1915/2010a) – , temos apresentado o arcabouço conceitual que sustenta a psicanálise como técnica interpretativa.
4) Um procedimento linguístico, uma estratégia retórica
Por que dar aos atos falhos, ao fenômeno cotidiano, o lugar de abertura das conferências introdutórias? Dentre outras razões, podemos supor que tais fenômenos, assim como os sonhos, tema da conferência seguinte, podem ser reconhecidos facilmente pelo ouvinte/leitor. Para tanto, basta que ele, o ouvinte, faça uso do método interpretativo apresentado por Freud, que, em sua consistência interna, permite o reconhecimento desses fenômenos como fatos psíquicos e não meros restos de uma atividade consciente. Trata- se de um modelo interpretativo a ser seguido, guardado na memória (Freud, 1916/2014, p. 89), e que possibilita uma compreensão de fenômenos psíquicos mais complexos, tais como os sintomas em uma teoria geral das neuroses, última parte de suas Conferências introdutórias. Iniciar a apresentação da teoria psicanalítica, a um público leigo, tendo como objeto os atos falhos é uma estratégia retórica de Freud.
A técnica freudiana, o método de investigação e interpretação, o modelo a ser seguido, pode, a nosso ver, ser compreendido como um procedimento de linguagem (Foucault, 2006). Distinguindo-se de uma fórmula ou protocolo (Deleuze, 1997), o procedimento freudiano é, por excelência, um procedimento que envolve o sentido – como intenção – e a suposição da operação de recalque^2. A equivocidade em jogo no método de investigação e interpretação freudiano permite que o funcionamento linguístico na psicanálise rompa parcialmente com a designação, implicando, no entanto, a produção de uma significação e a possibilidade de uma tradução ou transcrição entre instâncias psíquicas (Freud, 1915/2010c). Nesse contexto, o procedimento freudiano reafirma a equivalência entre sentido, significado e intenção no campo da linguagem e, por conseguinte, produzindo um giro interpretativo. Nas Conferências introdutórias (1916-1917), o procedimento freudiano sustenta- se grosso modo em três movimentos que se mostram contínuos: (1) reconhecer o fenômeno, questionar sua causa, investigar o fenômeno em si mesmo e as razões que o fizeram vir à tona – passo a ser dado pelo ouvinte; (2) investigar o sentido, associar palavras, linguagem e esquecimento, considerar a possível existência de intenções contrárias e conceber a relação de prazer e desprazer entre instâncias psíquicas – passo a ser dado pelo analista; (3) efetivar a interpretação do fenômeno em um movimento que aproxima e reduplica ouvinte/leitor e analista, produzindo encontro e reconhecimento do sentido, com liberação de afeto. Após o terceiro e último passo, não se torna mais possível distinguir claramente o ouvinte-intérprete do analista-intérprete. Pelo menos, não após ter acompanhado o argumento freudiano até o seu fim. Apenas aquele ouvinte/leitor que decidiu não escutar Freud uma segunda vez, como ele mesmo exortou ao início de sua conferência sobre os atos falhos, pode manter a distância que o impede de se fazer intérprete do fenômeno psíquico, cujo sentido deve ser procurado na cadeia associativa produzida pelo próprio sujeito. Caso ele, o ouvinte/leitor, tenha seguido os passos freudianos, nesse procedimento, restará ao fim como intérprete dos próprios fenômenos e cada ato falho parecerá ter sentido, em uma relação simultânea de alteridade e singularidade. O retorno da interpretação sobre si mesma e a reduplicação do lugar do intérprete
(^2) Diferencia-se, nesse aspecto, do procedimento linguístico da psicose, cujo modo de funcionamento rompe com a designação, a significação e a tradução (Foucault, 2006), o que faz do procedimento psicótico um protocolo de experimentação ou de atividade (Deleuze, 1997).
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