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Este texto reflete sobre as representações sociais de jovens da periferia de são paulo, baseado no documentário 'casa do zezinho'. O texto discute a intenção de divulgação da filantropia da instituição e a reprodução de representações ideológicas sobre os jovens residentes nas áreas marginais da cidade. Além disso, o texto explora a construção da identidade dos jovens através do rap e a reflexão sobre a constituição das subjetividades deles. A casa do zezinho é apresentada como o lugar simbólico que condensa todas as desigualdades da periferia.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de aula
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As representações sociais acerca dos jovens da periferia: uma breve reflexão sobre o documentário A Ponte Ana Claudia Florindo^1
Resumo O artigo apresenta uma breve análise do documentário A Ponte, elaborado a partir da experiência assistencial da ONG Casa do Zezinho, localizada na periferia da zona sul de São Paulo. A obra parece ter como finalidade a proposição de uma discussão sobre a segregação e os contrastes sociais produzidos pela ponte do rio Pinheiros, marco simbólico da cisão entre a região periférica da cidade e a área elitizada do entorno da Avenida Engenheiro Luis Carlos Berrini. No entanto, conforme as cenas vão se desenrolando, a realidade do filme revela-se marcada pela intenção de divulgação da filantropia desenvolvida pela instituição, além da reprodução de representações ideológicas acerca dos jovens residentes nas áreas marginais da cidade pautadas na valorização de uma educação promotora de sua inserção no mercado de trabalho e de um ensino vinculado a situações de aprendizagem baseadas em atividades práticas, ligadas a experiências cotidianas, distantes de um pensamento reflexivo e crítico, capaz de possibilitar a emancipação política da juventude.
Palavras-chave: educação, jovem, emancipação política, documentário, ideologia.
Abstract The article show a brief analysis of the documentary A Ponte , made from the experience of NGO Casa do Zezinho, located on the outskirts of the southern area of São Paulo city. The work seems to have intended to propose a discussion about segregation and social contrasts produced by the Pinheiros river bridge, guide symbolic split between the suburb and the rich area around Avenida Engenheiro Luis Carlos Berrini. However, according to scenes, the documentary looks like just to show the philanthropy developed by the institution, beyond the reproduction of ideological representations about the poor young people, linked to an education that seeks to insert
(^1) Pesquisadora do Projeto de Políticas Públicas: Rappers, os novos mensageiros urbanos na periferia de São Paulo: a contestação estético-musical que emancipa e educa, financiado pela FAPESP (2011/2013). É mestranda na área de Psicologia e Educação, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, sob orientação da Professora Doutora Mônica do Amaral. Desenvolve o trabalho de pesquisa intitulado O rap como possibilidade de letramento: a construção da identidade e a reflexão sobre a constituição das subjetividades dos jovens da periferia de São Paulo. Realiza oficinas de estudo na Casa do Zezinho, investigando o potencial de letramento dos jovens por meio do rap.
them into the labor market and a teaching bound on practical activities related to day- by-day, far from a critical and reflective thought able of allow the political emancipation of youth.
Keywords: education, young, political emancipation, documentary, ideology.
Um início de diálogo
O cinema documentário é colocado no centro deste trabalho como símbolo de uma discussão sobre a dimensão ideológica envolvida na construção da imagem dos jovens da periferia, suas necessidades, aprendizagem e formação, a partir da linguagem materializada em discurso pelos sujeitos atuantes em seu processo educacional. A título de referência, utilizo as representações produzidas por uma organização não-governamental conhecida como Casa do Zezinho , na região do Capão Redondo, zona sul de São Paulo, a partir de um documentário denominado A Ponte , cujo conteúdo revela, entre outras ideias, a natureza de funcionamento da instituição e sua finalidade enquanto espaço de formação de crianças e jovens. Como pesquisadora de um projeto de políticas públicas, com parceria entre a Universidade de São Paulo e a Casa do Zezinho , envolvendo o rap e o letramento, parece-me fundamental analisar o modo como a própria instituição parceira interpreta o seu projeto educacional. Daí o interesse pelo documentário. A análise deste material fílmico torna-se, então, o ponto de partida para compreender a visão de mundo dos sujeitos envolvidos nesta complexa relação: jovens com dificuldades de aprendizagem na língua escrita, educadores e uma instituição filantrópica numa área carente de apoio político, recursos financeiros, sociais e econômicos. A proposta é pensar como os jovens são representados, em seu processo de aprendizagem, a partir das vozes e atos intencionais presentes na práxis dos educadores que lidam com suas dificuldades e não-aprendizagens, mesmo tratando-se de indivíduos que partilham das condições vividas pelos estudantes e apostam em suas potencialidades, além de investigar como os jovens são identificados pela ONG, quais são os impactos das imagens simbólicas construídas nesta interação sobre a identidade do jovem que, aparentemente, apresenta problemas com a alfabetização e as relações destas concepções com o processo de ensino implementado nas situações de aprendizagem.
crianças e jovens, entre 6 e 21 anos, que frequentam as escolas públicas da região. Funciona todos os dias da semana desenvolvendo diversas atividades nas diferentes áreas do conhecimento: Português, Matemática, Ciências Humanas, Ciências Naturais, Informática, entre outras. O “filme documentário” parece ter como objetivo questionar o caráter simbólico da ponte do rio Pinheiros, um espaço que serve como objeto simbólico de divisão social, confinando os “ricos e os pobres” em seus devidos lugares: os ricos nos prédios de alto padrão do entorno da “Berrini” e os pobres imersos no mundo periférico do Parque Santo Antônio. Discussão legítima considerando a produção do espaço urbano e metropolitano da cidade de São Paulo em que a população mais pobre foi “forçada” a se locomover e se estabelecer nos fundões da zona sul, caracterizando verdadeiros espaços de miséria:
“Dispostos geograficamente em locais afastados e próximos às fronteiras distritais e às zonas de manaciais, a localidade mais distante em relação ao centro velho e histórico de São Paulo é a favela, encontrada no chamado ‘fundão’, o qual identifica-se com a denominação recente de hiper-periferia para uma vasta área de crescimento de bolsões de pobreza que continuaram se expandindo após as políticas de urbanização empreendidas pelo Estado nas periferias anteriores e que se encontram próximos a áreas ricas da cidade” (TORRES, 2003, APUD CARRIL, 2006, p. 144).
No entanto, conforme as cenas do documentário vão se traduzindo em imagens, observa-se que o sentido da produção parece não ser apenas o de promover uma reflexão sobre as desigualdades sociais e territoriais provocadas pela referida ponte, mas de oferecer um produto de divulgação da obra realizada pela ONG Casa do Zezinho. Frente à hipótese do filme ter sido produzido para dar visibilidade à instituição, pode-se inferir sobre a intecionalidade da escolha dos produtores de A Ponte : tanto Wainer como Oliveira, responsáveis por sua criação, são profissionais experientes ligados à área de promoção social e comercial de artistas nacionais, especializados na projeção de seus trabalhos. Além disso, na época, 2006, a ONG mantinha uma forte ligação com o Mano Brown e o diretor da Sindicato Paralelo Filmes, principal produtor de todos os videoclipes da banda Racionais Mc’s. Mano Brown, inclusive, além de possivelmente
funcionar como um elo entre a produtora e a instituição, é um dos personagens principais da obra. Com uma música instrumental suave, que libera a consciência para imersão num universo confortável de sensações, as primeiras imagens apresentadas contrastam com a nostalgia que se pretende criar: mostram o Parque Santo Antônio na madrugada, com o céu ainda escuro e com um movimento ininterrupto de pessoas, ônibus e carros. Em alguns momentos, a música é suspensa para a entrada do som ambiente, com a finalidade de tornar mais real as imagens. O bairro só ganha luz quando Tia Dag começa a narrar a sua experiência como educadora da periferia. É neste instante que aparece a ponte do rio Pinheiros, vista do lado da Berrini, com tomadas aéreas belíssimas e do lado do Parque Santo Antônio, as favelas, tendo como plano principal da cena o espaço da Casa do Zezinho. A CZ é concebida e apresentada, assim, como o lugar simbólico que condensa todas as desigualdades da periferia e serve como referência para se pensar “novos rumos” para o enfrentamento das injustiças sociais sofridas pelos pobres. O filme documentário converte-se na representação de uma relidade representada, segundo a ótica da instituição. O rio Pinheiros é comparado ao Muro de Berlim, porque do mesmo modo que este dividiu um país em parte Oriental e Ocidental, o rio também divide o lugar do rico e do pobre. Dado geográfico, válido e inquestionável, o que passarei a questionar é o uso dessa informação no campo estético, em favor de determinada função ideológica e intencionalidade, porque não, de natureza “capitalista”. Observa-se em um outra cena de A Ponte , o Secretário do Desenvolvimento Social, Floriano Pesaro, sentado em uma confortável sala de um prédio localizado provavelmente em uma área mais central da cidade, analisando a problemática da ocupação desordenada da região do Parque Santo Antônio: “A zona sul é a pior zona, em virtude de um processo histórico de ocupação na cidade de São Paulo, em meados da década de 80, que foi muito prejudicial ao desenvolvimento”. A ideia transmitida em sua fala pareceu culpabilizar a população pelos problemas da urbanização, colocando-os como responsáveis por iniciar uma ocupação que prejudicou o desenvolvimento da zona sul, pelo fato de terem “invadido” as áreas de mananciais. Em outro trecho, Pesaro comenta, ainda, que o governo teve que atuar de forma repressiva para combater a anarquia instaurada pelos pobres porque não conseguia
A ONG, concebida como a própria ponte, é apresentada como um caminho de superação da segregação social, preenchendo o vazio criado pela divisão espacial da cidade. De alguma forma, o “ideal da salvação” é compartilhado por todos que participaram da composição do documentário (rappers, empresários, lideranças da comunidade, ex-zezinhos), entendendo, também, que a ação social praticada pela entidade é uma possibilidade de emancipação política, mesmo que não seja posta em questão ou mesmo em debate a forma de se educar o sujeito baseada numa experiência do fazer e não do pensar, mais próxima da formação de um trabalhador-consumidor do que de um cidadão propriamente dito. Os produtores lançaram mão de diversos recursos técnicos para trazer uma problematização mais próxima da realidade, apresentando, inclusive, depoimentos de lideranças do bairro e da região, como o escritor Ferréz, o padre Jaime, o rapper Mano Brown, sobre a questão do confinamento dos pobres, negros numa periferia desprovida de qualquer auxílio do Estado, “esquecidos”, há muitos anos às margens do sistema. Entre as falas mais significativas destacam-se: “Se o Estado não faz, nós fazemos”, diz João Batista Cardoso, dono do Moinho Santo André e vice-presidente da instituição. “O problema é de todo mundo, não é só da favela, todos sofrem as consequências”, assegura Ferréz, escritor. “Nós estamos fazendo um trabalho aqui e a sociedade faz o quê?, afirma Tia Dag, educadora. “Uma hora o rico tem que descer do carro blindado”, sustenta Floriano Pesaro, secretário do desenvolvimento social. “A sociedade não pode perder o espírito de indignação e aceitar a desigualdade como natural”, acrescenta padre Jaime Crown. Tia Dag sustenta em determinado trecho que o jovem integrante da ONG não é paulistano, não é paulista, é periferia, porque a cidade não o recebe, enquanto que, a identidade dele está associada à Casa do Zezinho. E segue-se uma série de depoimentos de ex-zezinhos sobre a ótima experiência educacional vivenciada na instituição, com imagens dos espaços da CZ ou dos ex- educandos em suas próprias casas. Dentre eles, destacam-se o relato de Nenê, que se formou em Letras e atua como professor na escola onde foi expulso; escreveu ainda um livro sobre a periferia e a favela chamado Zona de Guerra, descrevendo fatos reais
experimentados por ele; Jaciara, uma estudante que saiu das ruas para tentar ser alguém na vida, ingressando na Casa do Zezinho, diz que seus dias são mais alegres na instituição; um jovem que se formou em Educação Física, começou uma pós-graduação em Fisiologia do Exercício e diz se sentir encaminhado profissionalmente. Enfim, o pobre pode sonhar na CZ. Eis a ideologia da ONG. A educação dos jovens é vista como possibilidade de inserção no mercado de trabalho e no consumo de bens. A pedagogia alicerçada sobre bases de uma formação para uma aprendizagem prática e não para a reflexão, promove situações didáticas vinculadas a artes manuais, tarefas cotidianas e ligadas à vida diária, além dos cursos de profissionalização. O ideal de educação que se concretiza como um instrumento à serviço do aprender para o fazer e não como forma de emancipação política mostra-se posto em prática. Uma outra questão desponta neste contexto: pensando sobre as representações apontadas pelo filme, inclusive as que dizem respeito ao entendimento dos educadores sobre como os jovens da Casa do Zezinho podem aprender, que ideia de liberdade é proposta aos sujeitos submetidos a uma educação que pressupõe o fazer como centro do processo de aprendizagem? Apesar da proposta teórica da Casa do Zezinho estar baseada no pensamento de Paulo Freire, alguns posicionamentos demonstram um certo distanciamento da concepção de educador. O autor, em sua pedagogia, deixa claro o papel da ação relacionada à reflexão na superação da condição de oprimido, à medida que a reflexão sobre a realidade passa a ser objeto de questionamento nas situações de ensino e a ação do sujeito participante do processo de aprendizagem passa a ser diferente, interferindo em sua atuação e em seu entendimento sobre o mundo.
“Quanto mais as massas populares desvelam a realidade objetiva e desafiadora sobre a qual elas devem incidir sua ação transformadora, tanto mais se ‘inserem’ nela criticamente” (FREIRE, 2011, p. 54).
Em uma atuação voltada para os jovens de periferia, a problematização sobre os opressores e oprimidos e as relações complexas envolvidas nesta trama social deveriam
de si como pessoa, nem a consciência da classe oprimida” (FREIRE, 2001, p. 44-45).
No filme pensado pela ONG, o que se observa é que existe uma imposição de um movimento de aderência dos jovens à figura do opressor, uma vez que, subliminarmente, o conjunto simbólico das ações dos educadores da casa tende a validar o sucesso social como uma oportunidade do educando se vincular a alguma empresa associada ou não à instituição. As imagens sugerem que o jovem da periferia, que pretende ser bem-sucedido, deve almejar a oportunidade de entrada no mercado de trabalho, assumindo o padrão de comportamento exigido pelos empresários parceiros. De quem são, na realidade, estes objetivos: do opressor ou do oprimido? Dos jovens, das empresas ou da ONG? O que querem na verdade os jovens que vivem no Capão Redondo? Há uma escuta para estes interesses ou são ensinados a querer o que querem que eles queiram? Enfatizo e questiono a possível troca de papéis sociais, em virtude da tendência criada no documentário a caminhar na contramão do que se propõe a analisar: a situação de pobreza dos fundões da zona sul. Mais uma questão: não há como negar que a população mais pobre foi esquecida pelo poder público, sem criar as condições mínimas de vida em áreas de maior concentração populacional e mais periféricas da cidade, constituindo verdadeiras hiperperiferias, como esclarece Carril:
“A concepção de hiperperiferia, nesse sentido, significa a formação de bolsões de pobreza compostos por famílias que não puderam pagar pela valorização do bairro urbanizado. Na prática, denota que a população foi sendo empurrada cada vez mais para espaços de miséria, levada à imobilidade espacial devido à falta de recursos financeiros até para pagar o transporte, numa tendência de confinamento territorial” (2006, p 144-145).
Em contrapartida, não há como negar, também, que foi criado o espaço do rico, que vive do outro lado da ponte.
“Apesar da presença de símbolos que pertencem ao atual período técnico- científico informacional, paira sobre a metrópole um eclipse que encobre o olhar para a não-cidade. Um núcleo de requinte, recheado de prédios inteligentes, instrumentos eficazes de informação e redes que a conectam à
economia e ao espaço mundial, envolvendo transporte, comunicação, cultura e consumo que convivem com a miséria. Veja-se o exemplo da valorização das terras margeadas pelo rio Pinheiros, nas avenidas Engenheiro Luis Carlos Berrini e Roberto Irineu Marinho (houve troca recente do nome da avenida), que empurra a favela para o ‘fundão’” (CARRIL, 2006, p. 161).
Todavia, é assim que o documentário dá a direção psicológica ao espectador, conduzindo-o a uma vivência de emoções capaz de causar a construção de uma realidade que pode não se vincular a um espaço geográfico e histórico existente. A aparência do oprimido é retratada e vista, em sua essência, a partir do olhar do opressor. Parece crucial pensar, com cuidado, sobre o paradigma educacional que pode estar permeando a trama da estrutura educacional na Casa do Zezinho. Uma instituição que se mobiliza a promover o jovem, inserindo-o socialmente num espaço de formação precisa preocupar-se com o discurso que está se materializando em sua ação de ensino para que o oprimido possa realmente ter voz no processo de aprendizagem. O que se evidencia no documentário é que, em alguns momentos, mesmo quem trabalha a favor do oprimido, pode assumir a condição de opressor, aderindo seus ideais ao papel representado por eles socialmente. Uma outra educadora da casa, Corina Macedo, comenta que as escolas de qualidade eram as “vocacionais” da década de 60, porque além de currículo regular mantinham aulas complementares que contemplavam as tarefas necessárias para a vida diária; eram escolas que consumiam a mesma verba das outras, mas investiam num trabalho prático.
“Mas, se para a concepção ‘bancária’ a consciência é, em sua relação com o mundo, esta ‘peça’ passivamente escancarada a ele, à espera de quem entre nela, coerentemente concluirá que ao educador não cabe nenhum outro papel que não o de disciplinar a entrada do mundo nos educandos. Seu trabalho será, também, o de imitar o mundo. O de ordenar o que já faz espontaneamente. O de ‘encher’ os educandos de conteúdos. É o de fazer depósito de ‘comunicados’ – falso saber – que ele considera como verdadeiro saber. E porque os homens, nesta visão, ao receberem o mundo que neles entra, já são seres passivos, cabe à educação apassivá-los mais ainda e adaptá-los ao mundo. Quanto mais adaptados, para a concepção ‘bancária’, tanto mais ‘educados’, porque adequados ao mundo” (FREIRE, 2001, p. 88).
vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos ” (2011, p. 40-41).
O ser menos também pode vir disfarçado em outras representações presentes no filme. É interessante observar como as imagens da periferia, dos barracos, das vielas, das roupas estendidas nos varais, das casas mal construídas, uma em cima da outra, sem definição de espaço, como uma massa uniforme e disforme, selecionadas pelo documentário contrasta com a estrutura arquitetônica da Casa do Zezinho. Lá existe piscina, quadra e diferentes espaços de interação. O jovem que entra na Casa encontra uma realidade muito parecida com as casas do outro lado da ponte, parecendo ingressar em um outro mundo. Mas o espaço é para a convivência da comunidade e da coletividade ou para a configuração de um lugar com interesses privados? Está à serviço do Estado, da Sociedade, do Capital ou da Periferia, entendida como um território à margem? Fischman apresenta a seguinte ideia:
“Entender que o olho não apenas vê, mas é socialmente disciplinado pela ordem, divisão, “criação” das possibilidades da organização do mundo e do sentido da identidade individual, ao questionar como os olhos veem, é possível questionar também como os sistemas de ideias “tornam” realidade o que é visto, pensado e sentido. Tais perguntas sobre a razão – ou seja, a construção social da razão (e as relações de poder embutidas nesta) – são os princípios pelos quais o agente “vê” e age para efetuar uma mudança” (POPKEWITZ, 1992, APUD FISCHMAN 2004, p. 119).
Se formos analisar o símbolo da Casa do Zezinho representado pelo arco íris, não caberia, ainda, uma outra pergunta: onde está a cor preta? Grande parte da população negra de São Paulo encontra-se na periferia, a favela é tida como um dos espaços mais negros da cidade, onde a presença da população branca é menor do que em outras regiões. Os negros compõem a formação étnica da
população pobre e sofrem um duplo preconceito: econômico e racial, transcendendo a noção de classe social.
“O afro-descendente vem sendo penalizado não apenas quanto à dificuldade de ingressar no mercado de trabalho, mas também por localizar-se em espaços segregados, de miséria e de escola pública sem investimentos. A baixa escolaridade e a má qualificação profissional lhes restringem oportunidades no mercado de trabalho. Assim, cabe analisar quais têm sido as perspectivas, a forma de organização e de luta dessa comunidade no espaço urbano, sua expressão e seus significados” (CARRIL, 2006, p. 145).
Em dados recentes, é possível notar a condição das populações pobres segundo a cor no país. O IPEA (2007) aponta que, em 2005, a população negra era de 49,6% da população brasileira, constituindo cerca de 92 milhões de pessoas vivendo em condições inaceitáveis.
“Negros nascem com peso inferior a brancos, têm maior probabilidade de morrer antes de completar um ano de idade, têm menor probabilidade de freqüentar uma creche e sofrem de taxas de repetência mais altas na escola, o que leva a abandonar os estudos com níveis educacionais inferiores aos dos brancos. Jovens negros morrem de forma violenta em maior número que jovens brancos e têm probabilidades menores de encontrar um emprego. Se encontrarem um emprego, recebem menos da metade do salário recebido pelos brancos, o que leva a que se aposentem mais tarde e com valores inferiores, quando o fazem. Ao longo de toda a vida, sofrem com o pior atendimento no sistema de saúde e terminam por viver menos e em maior pobreza que brancos” (IPEA 2007, p. 281).
Não parece que ignorar a cor preta do arco íris é querer negar a origem afrodescendente desta população, a sua cultura, seus costumes, a exclusão social e sua relação com a formação da população paulistana, paulista e brasileira? Carril, mais uma vez, esclarece:
“O conceito de negritude contém tanto um dado biológico, ser negro, quanto o ideológico, a consciência de pertencer a um grupo de pessoas excluídas da
parecia corresponder às necessidades, anseios, preocupações e medos das elites brancas, hoje ganhou outras conotações – é um tipo de discurso que atribui aos negros o desejo de branquear ou de alcançar os privilégios da branquetude por inveja, imitação e falta de identidade étnica positiva. O principal elemento conotativo dessas representações dos negros construídas pelos brancos é o de que o branqueamento é uma doença ou patologia peculiar a eles” (2002, p. 17).
O ator, que desempenha papel de coadjuvante no documentário, mas que aponta uma espaço de fuga no rizoma de todas estas representações que acabam por reforçar a condição de oprimido do jovem da periferia e conquista a posição de personagem principal na revelação de uma intencionalidade verdadeiramente emancipatória e libertadora dos ‘zezinhos’ é o rapper Mano Brown. Suas intervenções no filme são aparentemente mais orientadas politicamente. É o que mais discute a pobreza de forma contextualizada, desmistificando algumas determinações sociais e desvelando as questões relacionadas à identidade de quem mora na periferia. Intencionalmente ou não, suas imagens sempre aparecem em movimento, no carro, circulando pelo Parque Santo Antônio e dialogando com os transeuntes anônimos. “Quanto mais esclarecido você é, mais frustrado fica com a realidade da periferia, não temos escolas, a escola é para poucos, mas se tem escola, tem mais oportunidade”, afirma Mano Brown. Em todas as situações em que a Tia Dag reproduz valores de certa imobilidade social do jovem da periferia e de sua falta de acesso a bens de consumo, o rapper traz a sua contrapartida e sempre inscreve a juventude no campo da renovação social, da possibilidade de fazer dar certo. Fica feliz ao ser questionado por um adolescente do bairro sobre a letra de seu último sucesso e a relação com as questões da comunidade: “É bom ver que o pessoal está se politizando”. O rap, neste sentido, se materializa como um estilo musical poderoso no tocante à politização de uma concepção estética, provocando rotas de escape do “discurso oficial” e oferecendo um espaço de discussão sobre as perspectivas da periferia e seus significados sociais. O potencial crítico do rap, como espaço de contestação, expressando a voz de quem experimenta a vida na periferia, pode simbolizar o que Benjamim chama de “reversão dialética”, na qual a massa é capaz de pensar sobre sua condição de indivíduo
consumindo a arte como mercadoria, transformando o valor de uso da música, por exemplo, como fator de educação e formação dos jovens da periferia, assumindo o caráter político do movimento Hip Hop. Gatti aborda as ideias de Benjamim sobre a arte de massa, ressaltando a questão da dialética de “distanciamento e aproximação”, propulsora do conceito de reversão dialética. A música, de acordo com tal conceito, entendida e criticada como um instrumento de reprodução dos elementos ideológicos de uma dada sociedade, revela-se como uma ferramenta capaz de expor as especificidades do sistema econômico-social postas em jogo, e ser utilizada como mecanismo de conscientização e emancipação política da massa. No caso específico do rap, são verdadeiros atos de linguagem enunciados pelas letras, na qual o rapper fala na realidade, teatraliza sua palavra, colocando-se no coração da ação para que o dito tenha força de transformação e conscientização social e que o recado, dado em forma de poema, convoque a massa à participação na realidade:
“O pensamento aproxima-se mimeticamente de seu objeto de crítica, assimilando-se perigosamente a ele, até o ponto de sucumbir à sua força regressiva, como se essa fosse a única estratégia ainda disponível para sustentar um mínimo de distância crítica capaz de salvar suas potencialidades salvadoras” (2009, p. 299).
O conhecido rapper dos Racionais MC’s parece produzir algo parecido com esta reversão dialética em A Ponte, e por meio dela, os discursos mais politizados e emancipatórios aparecem, como já mencionei anteriormente.
Os desdobramentos teóricos
A ideia de estrutura interna e estrutura externa de uma obra é comumente utilizada na análise e crítica de obras literárias, no entanto, recorro a estes critérios, inicialmente, para justificar a minha leitura do documentário, pois entendo que, assim como o texto, as imagens e a montagem das cenas também conseguem materializar um dado discurso, revelar um certo pensamento e constituir um significado. Como explica Antonio Candido:
A autenticidade e individualidade da obra de arte eram marcadas pela aura, um estado mágico que identificava, ao mesmo tempo, a unidade, a presença no espaço em que estava exposta e a sua duração, mantendo a obra de arte imersa no berço da tradição. A partir do século XX as técnicas de reprodução alteraram significativamente o cenário de produção da arte e o que antes era apreciado de modo contemplativo pela burguesia, passa a ser objeto de reprodução e perde o caráter de existência única. Como explica Benjamin:
“No começo, era o culto que exprimia a incorporação da obra de arte num conjunto de relações tradicionais. Sabe-se que as obras de arte mais antigas nasceram a serviço de um ritual, primeiro mágico, depois religioso. Então, trata-se de um fato de importância decisiva a perda necessária da aura, quando, na obra de arte, não resta mais nenhum vestígio de sua força ritualística” (1996, p. 16).
O rompimento com o “fascínio religioso” no contexto da arte autônoma, segundo o autor, tende a emancipar a sua função, construindo uma esfera de politização da arte: as condições de tempo e espaço de exibição tornam-se diferentes, representam possibilidades de exposição a um número considerável de observadores. A obra parece estar mais próxima do coletivo e entra num movimento de endereçamento às massas. O cinema produzido no contexto de reprodutibilidade técnica assume o sentido de uma arte revolucionária, que pode, ao mesmo tempo, apresentar a realidade vivida com lentes de aumento, explicitando fatos e fenômenos da vida cotidiana antes não considerados como objeto de valor e representar o mundo de acordo com determinados critérios e crenças ideológicas, alterando significativamente as formas de recepção e percepção do público. Sobre isso, Habermas acrescenta:
“Sem dúvida Benjamin, como Marcuse, vê na arte de massa do fascismo, que surge com a pretensão de ser política, o perigo de uma falsa dissolução da arte autônoma. Essa arte propagandística dos nazistas liquida efetivamente a arte como uma esfera autônoma, mas atrás do véu da politização ela está a serviço, na verdade, da estetização do poder político bruto. Ela substitui o valor de culto da arte burguesa pelo valor produzido por intermédio de mera manipulação. O fascínio religioso só é rompido para ser sinteticamente
renovado: a recepção da massa transforma-se em sugestão de massa” (1980, p. 175).
Adorno não entende a arte na época das técnicas de reprodução como uma emancipação da arte autônoma, mas sim como uma degeneração da arte, ao constatar que o mercado, promotor da arte desritualizada, produziu uma indústria cultural capaz de padronizá-la e oferecê-la como mercadoria ao público visto como consumidor passivo. Em seus estudos sobre o jazz, o autor observou a regressão auditiva experenciada pelos homens, com músicas criadas a partir de acordes e melodias simplificadas, padrão de notas linear, repetições contínuas, sem qualidade musical, servindo aos princípios do sucesso comercial e aos comandos dos editores, compositores e empresários das rádios e gravadoras. Segundo Adorno, instaurava-se a época de música como valor de troca: o importante não era a qualidade musical, mas o poder de consumo que assumia o produto musical, a técnica, nesta perspectiva, passava a atender mais à lógica de reprodução mecânica da arte e a sua comercialização do que à ideia de imanência da arte.
“O conceito de fetichismo musical não se pode deduzir por meios puramente psicológicos. O fato de que ‘valores’ sejam consumidos e atraiam afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sequer compreendidas e apreendidas pelo consumidor constitui uma evidência da sua característica de mercadoria” (ADORNO, 1996, p. 180).
Nessa consolidação da arte como mercadoria a escolha do indivíduo se perde e constitui-se um processo de homogeneização do gosto e da obrigatoriedade de consumo de um certo padrão de produção se constitui, determinando o que pode ser considerado bom ou ruim. O sujeito pensa estar selecionando o que deseja, e, na verdade, é levado a isso pautado pela dinâmica absoluta do capital. A música é retirada de seu contexto puro, original e fabricada a partir de recortes, arranjos baratos e representações mais palatáveis ao grande público.
“A consciência da grande massa dos ouvintes está em perfeita sintonia com a música fetichizada. Ouve-se a música conforme os preceitos estabelecidos pois, como é óbvio, a depravação da música não seria possível se houvesse