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As Regras de Ouro dos Casais Saudáveis: O Logos no Discurso de Autoajuda, Notas de estudo de Construção

Este documento analisa as estratégias retóricas ligadas ao logos no discurso de autoajuda, na promoção de virtudes nas relações entre casais. O texto aborda conceitos como eudaimonia, mediania, autoajuda e argumentos quase-lógicos, e compara as virtudes defendidas por aristóteles e pelo orador augusto cury.

O que você vai aprender

  • Como o logos é utilizado no discurso de autoajuda para persuadir o público?
  • Quais são as virtudes apresentadas por Aristóteles e pelo orador Augusto Cury e como elas se comparam?
  • Como Aristóteles e Augusto Cury definem a virtude e sua relação com a felicidade?
  • Quais são as estratégias retóricas utilizadas no discurso de autoajuda para promover virtudes nas relações entre casais?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Neilson89
Neilson89 🇧🇷

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As regras de ouro dos casais saudáveis:
o logos no discurso de autoajuda
Claudiana dos Santos
Neilton Falcão de Melo
Introdução
E
m linhas gerais, as estratégias pensadas pelo orador envolvem conceitos fundamen-
tais que tornam o discurso persuasivo. Na prática, como ressalta Meyer1, é um jogo
em que “o sedutor [orador] visa diminuir a [possível] distância [entre si e seu ouvinte] e
procede como se esta tivesse sido abolida ou já não tivesse importância. Na visão desse
autor, o orador não vai direto ao ponto daquilo que deseja, prefere propor possibilidades
de recusa ou patamares de consentimento, levando, assim, o ouvinte [o seduzido] a achar
que sua escolha é de livre vontade.
Dentre os discursos que circulam nas diferentes esferas da sociedade, há um espaço
de destaque para a ascensão do discurso de autoajuda. A construção discursiva desse
gênero envolve diferentes estratégias persuasivas, a saber: encontrar o sucesso, a felici-
dade, o desenvolvimento pessoal, a arte de falar em público, descobrir os segredos da
mente milionária, influenciar pessoas, encontrar o parceiro/a amoroso/a dos sonhos,
educar os filhos, cuidar da saúde física e mental, dentre outras conquistas. Desse modo,
o orador busca o assentimento do ouvinte/leitor e, por conseguinte, almeja fazê-lo mo-
ver-se para a ação desejada.
Partindo dessa perspectiva, o presente trabalho tem como principal objetivo analisar
as estratégias retóricas ligadas ao logos na promoção de virtudes nas relações entre ca-
sais. O corpus analisado são os capítulos ser simpático e ser carismático pertencentes ao
livro As regras de ouro dos casais saudáveis, do escritor Augusto Cury. A escolha desses
capítulos é muito importante, pois representam, na esteira aristotélica, duas virtudes que
constituem uma base de conexões fortes e poderosas em qualquer âmbito das relações
1 Meyer, 1998, p. 136.
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As regras de ouro dos casais saudáveis:

o logos no discurso de autoajuda

Claudiana dos Santos

Neilton Falcão de Melo

Introdução

E

m linhas gerais, as estratégias pensadas pelo orador envolvem conceitos fundamen- tais que tornam o discurso persuasivo. Na prática, como ressalta Meyer^1 , é um jogo em que “o sedutor [orador] visa diminuir a [possível] distância [entre si e seu ouvinte] e procede como se esta tivesse sido abolida ou já não tivesse importância”. Na visão desse autor, o orador não vai direto ao ponto daquilo que deseja, prefere propor possibilidades de recusa ou patamares de consentimento, levando, assim, o ouvinte [o seduzido] a achar que sua escolha é de livre vontade. Dentre os discursos que circulam nas diferentes esferas da sociedade, há um espaço de destaque para a ascensão do discurso de autoajuda. A construção discursiva desse gênero envolve diferentes estratégias persuasivas, a saber: encontrar o sucesso, a felici- dade, o desenvolvimento pessoal, a arte de falar em público, descobrir os segredos da mente milionária, influenciar pessoas, encontrar o parceiro/a amoroso/a dos sonhos, educar os filhos, cuidar da saúde física e mental, dentre outras conquistas. Desse modo, o orador busca o assentimento do ouvinte/leitor e, por conseguinte, almeja fazê-lo mo- ver-se para a ação desejada. Partindo dessa perspectiva, o presente trabalho tem como principal objetivo analisar as estratégias retóricas ligadas ao logos na promoção de virtudes nas relações entre ca- sais. O corpus analisado são os capítulos ser simpático e ser carismático pertencentes ao livro As regras de ouro dos casais saudáveis, do escritor Augusto Cury. A escolha desses capítulos é muito importante, pois representam, na esteira aristotélica, duas virtudes que constituem uma base de conexões fortes e poderosas em qualquer âmbito das relações

1 Meyer, 1998, p. 136.

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humanas, sobretudo, questões éticas e morais entre casais contemporâneos. Com efeito, essas questões têm uma estreita ligação com o logos, visto que a partir da estrutura do logos, as marcas da subjetividade implicam em uma imagem do orador 2. Assim, por si só o logos contém uma contraparte ética e moral. Para a nossa análise, além da lógica do sedutor, recorremos aos lugares retóricos e aos argumentos quase-lógicos, no Tratado da Argumentação, de Perelman e Olbrechts-Tyteca^3. Essa investigação está dividida em seis tópicos: o primeiro, discorre sobre os conceitos de eudaimonia e mediania; o segundo, trata do logos; o terceiro, aborda sobre as acepções da autoajuda; o quarto, trata dos argumentos quase-lógicos postulados por Perelman e Olbrechts-Tyteca; o quinto, sobre a amostragem e a análise retórica do corpus; o sexto, apresenta as considerações finais. Assim, todos esses pontos descritos estão organizados para mostrar como o discurso de autoajuda atua intrinsecamente de forma persuasiva, por meio do logos, na promoção de virtudes nas relações entre casais contemporâneos.

A eudaimonia e a mediania

O filósofo grego Aristóteles (384 a 322 a.C.) escreveu, há mais de dois mil anos, que todos nós, seres humanos, agimos em função de um bem e colocamos esse bem como a finalidade de todas as nossas ações. Na obra Ética a Nicômaco^4 , essa finalidade é identificada como eudaimonia, termo grego que pode ser entendido como algo bom, o bem supremo, vida plena, viver bem, felicidade. Esse termo também se refere a uma concepção ética da Antiguidade voltada para o alcance da felicidade como finalidade moral. Em suma, a realização da eudaimonia, conforme descrita por Aristóteles, é uma atividade da alma em conformidade com a virtude. No entanto, Aristóteles acentua que para ser feliz o indivíduo deve ser virtuoso, visto que a virtude é parte essencial da definição de felicidade. Aristóteles afirma ainda que para atingir essa felicidade, no seu sentido pleno, é indispensável a prática da mediania, uma forma virtuosa da ação humana que se esquiva dos vícios, uma ação de excelência dentro da justa medida, do meio-termo^5. Assim, para atingir essa meta, o ser humano deve ser prudente, moderado, envolver-se em atividades conduzidas pelo exercício racional, no qual as virtudes estão associadas à felicidade, a ações de cooperação com a verdade e a razão, o que certamente não é uma tarefa fácil e requer esforço.

2 Galinari, 2014. 3 Perelman e Olbrechts-Tyteca, 2005. 4 Aristóteles, Ética a Nicômaco, 2014. 5 Magalhães; Ferreira, 2000.

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O logos

O teólogo Claiton André Kunz 11 afirma que, com raras exceções entre os historia- dores, a proposição do vocábulo logos como conceito filosófico é atribuída a Heráclito de Éfeso. No entanto, em nenhum dos fragmentos a que se teve acesso, até o momento, Heráclito define o que é logos. O que se tem, na verdade, são pistas deixadas nesses fragmentos que ajudam na compreensão do seu conceito. As pesquisas desse autor dão conta de que esse termo grego pode ser traduzido por uma gama imensa de palavras na língua portuguesa, entre elas, estão: discurso, deus, razão, palavra, alma e consciência. Desse modo, parece-nos que logos abarca um leque de acepções, o que nos leva a refletir sobre o potencial que os filósofos designavam a esse vocábulo. Frisamos que se trata de uma possibilidade sobre a noção de logos, pois todas as possíveis definições apresentam defesas históricas e textuais plausíveis, porém inconclusivas. Destacamos também que com o passar do tempo esse termo foi ganhando novas acepções. Moder- namente, logos é mais utilizado no sentido de discurso. Não é à toa que na Retórica^12 , Aristóteles adota o logos na sua tríade retórica (ethos, pathos e logos) como uma das provas que o orador utiliza para atingir as emoções e o intelecto do auditório, pois nele estão contidos os mecanismos discursivos e argumen- tativos que, de forma explícita ou implícita, possibilitam a esse orador conquistar a adesão do público^13. Na retórica aristotélica essa prova pelo discurso não precisa, ne- cessariamente, corresponder à verdade. A questão ética, nesse caso, cabe ao caráter do orador. Todavia, para a busca da eudaimonia como descreve Aristóteles, são requeridas três qualidades que afiançam o discurso e tornam o orador virtuoso: phrónesis, areté e eúnoia. Consideramos que o conceito de eudaimonia é relevante neste trabalho porque explora o alcance das virtudes e, consequentemente, da felicidade, com base na justa medida da ação. Notadamente, falar de Aristóteles não há como fugir do imbricamento entre as três provas retóricas e sua ligação com outros termos, como é o caso da prova pelo logos, que pode ter relação com a questão ética (ou não), que está relacionada com o conceito de eudaimonia. A phrónesis está diretamente conectada ao logos, considerada pelo mestre de Estagira como a parte mais elevada da alma racional do ser humano. De acordo com Ferreira, é uma espécie de prova em que o orador demonstra características como sensatez, prudência

11 Kunz, 2019. 12 Aristóteles, Retórica, 2015 [Coleção Folha. Grandes nomes do pensamento; v. 1]. 13 Ferreira, 2019.

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e “sabedoria prática refletida no bom uso da mediania entre virtudes e vícios”14. Com efeito, a inteligência do orador aparece aliada a uma ação prática que move o auditório. A areté corresponde às virtudes humanas que precisam ser evidenciadas no discurso. O orador deve parecer sincero, moderado, justo, franco e corajoso ao expor suas ideias e pontos de vista. Porém, esse tipo de virtude deve se enquadrar nos critérios da raciona- lidade prática [phrónesis] e dos aspectos de virtuosidade contidos na mediania, no meio termo entre as virtudes e os vícios. O virtuoso, por exemplo, não se mostra covarde ou temerário, pois conhece a justa medida entre esses dois vícios e encontra, na coragem, o meio termo favorável para seus propósitos. Essa virtude está conectada ao ethos, visto que revela a identidade do orador. A eúnoia, por sua vez, é a benevolência, está ligada ao pathos. Suas características se dão pelo “gesto solidário de simpatia que se infiltra no discurso como um caminho para mover o auditório a partir de um plano [...] fundamen- tado no corpo dos recursos persuasivos que provocam efeitos discursivos positivos às intenções do orador”15. Por exemplo: o orador mostra-se educado, tolerante, amável e confiável a tal ponto que desperta a simpatia do auditório, que se identifica com as suas atitudes e, assim, adere aos seus apelos. Em suma, na perspectiva aristotélica, o orador provoca o auditório por meio da materialidade discursiva, o logos. Com efeito, por meio do logos, o orador debate, com- partilha, convence, persuade, seduz, demonstra, confirma, nega, defende ou refuta ideias e teses, entre tantas outras ações, além de criar a plausibilidade e a lógica aparente que influencia o auditório à adesão. Esse é um dos fatores determinantes que nos levaram, neste artigo, a analisar estratégias retóricas por meio do logos nos discursos de autoajuda, na promoção de virtudes nas relações entre casais.

Ponderações acerca dos argumentos quase-lógicos

Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca, a argumentação quase-lógica é caracterizada por ser não formal, mas apresenta-se como comparável a raciocínios formais, sem sê-los de fato. Assim, esse tipo de argumentação (quase-lógica) “se apresentará de uma forma mais ou menos explícita. Ora o orador designará os raciocínios formais aos quais se refere prevalecendo-se do pensamento lógico, ora estes constituirão apenas uma trama subjacente” 16.

14 Ibidem, p. 17. 15 Ibidem, p. 17. 16 Perelman e Olbrechts-Tyteca, 2005, p. 220.

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Portanto, todos os tipos de argumentos mencionados e esses lugares retóricos e, ao mesmo tempo da argumentação, são utilizados pelo orador, no corpus analisado, como recursos persuasivos para alcançar a adesão do seu público-alvo por meio das escolhas lexicais e da construção discursiva que denotam o poder persuasivo do discurso de autoajuda.

A literatura de autoajuda

Hodiernamente, existe uma gama de discursos que difundem os diferentes métodos e caminhos para alcançarmos a felicidade. Encontramos com muita facilidade manuais e guias que ensinam a ter acesso a essa tal “felicidade”. Tais instrumentos, em sua maior parte, estão associados ao gênero autoajuda e lideram o mercado cultural de livros. No Brasil, em 2020, encontramos dados estatísticos feitos pela Nielsen Bookscan. Os índi- ces comprovam que dos quinze livros mais procurados de 23 de março até 12 de julho, durante a pandemia, dez são de autoajuda, sobretudo financeira 19. O ranking mostra o brasileiro Thiago Nigro no topo, com Do Mil ao Milhão Sem Cortar o Cafezinho. Trata-se, pois, de um acolhimento altamente lucrativo, haja vista a perpetuação de um mercado que oferece “conhecimento e informações” de maneira acessível. De acordo com Rüdiger^20 , o contexto abarcado pela literatura de autoajuda atribui ao indivíduo, seja ele bom ou ruim, a decisão de meditar sobre sua realidade pessoal, bem como a buscar “modos e direções de mudança pessoal que, não obstante, deve ser organizado pela pessoa que o recebe em relação aos seus próprios problemas”. Ao mesmo tempo que esse indivíduo ganha a suposta autonomia, assistimos ao fenômeno vinculado “a verdadeiras empresas de engenharia da alma que, recorrendo às mais diversas mídias, terminaram transformando o desenvolvimento da personalidade e a procura por autor- realização em motivo de prática popular, dependente do moderno mercado da cultura”^21. O espelhamento do discurso de autoajuda não deixa dúvidas no que se refere a atender às demandas por autorrealização instiladas no indivíduo pela modernidade. Exemplo disso, é a publicação do livro As regras de ouro dos casais saudáveis, do escritor Augusto Cury, que vislumbra discursivamente a busca do equilíbrio e da felicidade nas relações conjugais, incitando um estilo de vida pseudovirtuoso. Segundo Magalhães e Ferreira^22 , estudos confirmam que:

19 Informação disponível em:<https://istoe.com.br/livros-de-autoajuda-pessoal-e-financeira-dominam-o-ranking-da- quarentena/>. Acesso: 08set. 2021. 20 Rüdiger, 1995, p. 15. 21 Ibidem, p. 16. 22 Magalhães; Ferreira, 2000, p. 167.

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Hoje, centenas de livros de autoajuda, por exemplo, tematizam a felicidade e retoricamente instruem os homens sobre como praticar variadas perspectivas do estar confortavelmente no mundo. Normalmente, tais publicações são criadas para um indivíduo, um ser entre outros e, grosso modo, os caminhos indicados são imediatistas e aparentemente alcançáveis: o prazer, a riqueza, as honras, o poder. Outros, poucos, inflamam nos homens uma visão aristotélica de felicida- de: a busca do sumo Bem, o melhor dos bens que existe e é objeto de um saber supremo, uma ciência superior às outras ciências: a Política.

As reflexões de Magalhães e Ferreira ilustram as controvérsias que envolvem a produ- ção do gênero autoajuda, no tocante aos caminhos “verdadeiros” na busca da felicidade. Pensando como Aristóteles, o estudo da virtude encaminha o homem político para o bem e a obediência das leis. Já a felicidade, trafega entre “o viver bem ou o dar-se bem com o ser feliz [o bem agir]”^23. Com base nisso, na próxima seção deste trabalho, anali- saremos como o orador desenvolve a argumentação acerca da felicidade e das relações saudáveis. Não nos dirigimos ao estudo de casos conjugais, mas à análise de um discurso “ajudador”, por intermédio de um orador que propaga um discurso regulamentador das relações saudáveis, pautadas por ditames humanos, morais, religiosos e institucionais.

Amostragem e análise retórica do discurso de autoajuda

A obra de autoajuda analisada neste trabalho foi publicada pela editora Academia, com segunda edição no ano de 2014, cuja autoria é atribuída a Augusto Cury. Em nosso trajeto metodológico, optamos pela análise de dois capítulos da obra, intitulados de: ser simpático e ser carismático. Até o sexto capítulo do livro, o orador instrui seu interlo- cutor sobre as regras de ouro que descrevem os cárceres emocionais, as armadilhas da mente humana e as emboscadas psíquicas a que os casais frequentemente se submetem e destroem seus relacionamentos, como se fossem tipos de vícios que atravessam as re- lações dos casais. Nos dois capítulos selecionados como corpus deste trabalho, o orador propõe ferramentas e instrumentos de superação no treinamento do Eu como construtor das relações saudáveis, tentando propor uma série de comportamentos que tendem ao equilíbrio para manutenção das relações saudáveis. Nesse momento, parece-nos importante apresentar, de forma resumida, um quadro das virtudes apresentadas por Aristóteles, assim como as apresentadas pelo orador Au-

23 Aristóteles, 2014, p.49.

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faz do locutor no momento em que este toma a palavra” 24. Essa construção prévia, em nosso corpus, é respaldada pela posição institucional do orador: psiquiatra e psicólogo, reconhecido mundialmente, que por intermédio do logos confirma a autoridade e a legitimidade de seu ofício, na condição de orador/escritor. Nos capítulos iniciais da obra, transitamos por argumentos de quantidade e exempli- ficação 25 que enaltecem a virtude intelectual do orador. A prática do ofício é respaldada por mais de 20 mil sessões de psicoterapia e consultas psiquiátricas. O orador faz menção à aplicação da teoria da inteligência socioemocional (multifocal) que o habilita a ser au- toridade no estudo do processo de construção de pensamentos, formação do eu, papéis inconscientes da memória, educação da emoção e formação de pensadores. Em uma primeira leitura, identificamos como esse orador constrói uma lógica dis- cursiva acerca dos hábitos dignos de louvor, com vistas à felicidade conjugal. O verossímil e o plausível corroboram no entendimento da noção de virtudes. Percebemos que a articulação de estratégias argumentativas no discurso de autoajuda aparece afetada pelo discurso pedagógico, pois a todo instante há advertências e ensina- mentos de como ser simpático e carismático. O exórdio desse discurso é marcado por um ciclo repetitivo de aconselhamento que cria um modelo de auditório inexperiente e dependente. Vejamos o que Perelman e Olbrechts-Tyteca declaram a esse respeito:

O orador tendo muitas das vezes de assumir o papel de mentor, daquele que aconselha, repreende, dirige, deve zelar por não provocar em seu público um sentimento de inferioridade e de hostilidade para consigo: é preciso que o audi- tório tenha a impressão de decidir com plena liberdade^26.

Tal atribuição não é identificada no discurso analisado, logo, o interlocutor é aquele que não sabe decidir e precisa conhecer o funcionamento das relações saudáveis por intermédio dos argumentos utilizados pelo orador. Verificamos um discurso perpassado pelo excesso, contrapondo-se ao que Aristóteles nos diz: “deve-se escolher a mediania e não o excesso nem a deficiência, e que a mediania é determinada pela reta razão”^27. Começamos essa demonstração do excesso por meio das seguintes sequências ar- gumentativas:

24 Amossy, 2018, p. 25. 25 De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), a argumentação pelo exemplo consiste em recorrer a um caso concreto para proceder a generalizações. 26 Perelman e Olbrechts-Tyteca, 2005, p. 396. 27 Aristóteles, Ética a Nicômaco, 2014, p. 219.

As regras de ouro dos casais saudáveis: o logos no discurso de autoajuda 167

SA1: “Os simpáticos distribuem livremente sorrisos e cumprimentos, os caris-

máticos distribuem elogios e promoções [...]. Os simpáticos são poetas do bom humor, os carismáticos são poetas da promoção dos outros [...]”. (p.72)

SA2: “Ser simpático é ser um poeta do bom humor. É acima de tudo distribuir gratuita e generosamente sorrisos e cumprimentos para a parceira ou parceiro. É realçar a durabilidade e a agradabilidade do amor”. (p.74)

SA3: “Os simpáticos dão o que dinheiro não compra para seus íntimos, dão sua alegria, seu ânimo, sua coragem de lutar, sua capacidade de crer na vida mesmo nos dias dramáticos. Os antipáticos abortam o ânimo, fomentam o pessimismo, promovem a timidez e a insegurança. Os simpáticos, por distribuírem sorrisos e cumprimentos, são fontes de sonhos e inspiração. Os antipáticos, por serem sisudos e críticos, são vendedores de tristezas e preocupações”. (p.75)

Identificamos, nos excertos mencionados, a promoção do ideal de felicidade. Na SA1, o orador utiliza-se do argumento comparativo e do argumento de definição. O comparativo para evidenciar as posições de um indivíduo simpático e um carismático (um distribui sorrisos e cumprimentos, o outro, elogios e promoções). O argumento de definição para conceituá-los (um é poeta do bom humor, o outro, poeta da promoção dos outros). Na SA2, temos o argumento da definição alicerçado por processos de identificação de um indivíduo feliz em uma construção sistematizada. Na SA3, o orador retoma a argumentação por intermédio da comparação , só que dessa vez entre os com- portamentos de simpáticos e antipáticos, sendo o primeiro descrito através de práticas virtuosas, enquanto o segundo é dotado de comportamentos míseros, o que diríamos ser viciosos. Na SA3, podemos constatar também o argumento pelo sacrifício , visto que, independentemente das intempéries do dia a dia, os simpáticos “dão o que dinheiro não compra, [...], mesmo nos dias dramáticos”. Ou seja, para fazer os seus íntimos felizes, os simpáticos fazem esforços imensuráveis, logo, são verdadeiros abnegados. Ainda na SA3, podemos identificar que, implicitamente, o orador faz uso do lugar retórico da essência , visto que os simpáticos são simbolicamente apresentados como seres virtuosos, superiores aos antipáticos, ou seja, estariam mais próximos da eudaimonia aristotélica. Dando sequência às análises, destacamos dois trechos que demonstram as virtudes intelectuais do orador. Na primeira, o seu conhecimento teórico e prático aparece em

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Encontra-se nesse jogo discursivo uma espécie de fórmula mágica que consegue en- quadrar os papéis sociais dos casais^29. Conforme Almeida^30 , não existe a fórmula mágica para uma relação vir a ser perfeita, visto que um relacionamento a dois é atravessado por ciúmes, dependência do outro, egoísmo dos parceiros, falta de paciência e pode não acabar bem. Por outro lado, Almeida defende que as dificuldades de convivência podem ser equilibradas por intermédio do exercício da paciência e da tolerância. Na oitava regra de ouro, o orador embasa a argumentação no conceito e papéis de- sempenhados pelos carismáticos. O orador utiliza-se de um raciocínio demonstrativo, a partir de premissas que produzem efeito de sentido de verdade. Vejamos:

SA6:Por sua vez, o carismático está num degrau mais alto na construção das relações saudáveis e felizes. Ele é um poeta da ascensão dos outros. Ele investe diária e continuamente na sua esposa, marido, namorado ou namorada, filhos, alunos, amigos, pais, colaboradores. Como? Distribuindo elogios e promoções. Ele promove características nobres da personalidade, realça o que há de melhor nas reações ainda incipientes e diminutas e alarga as fronteiras das janelas light. [...] Os carismáticos, portanto, são propagadores da felicidade dos outros. [...] Um parceiro anticarismático, além de não promover os outros, chafurda na lama do ciúme. (p.77-78)

SA7:Talvez menos de um em cada cem casais conquista permanentemente uma medalha de bronze e de prata ao mesmo tempo. Em outras palavras, eles são empáticos e carismáticos durante alguns anos de relação e apenas tempo- rariamente distribuem sorrisos e cumprimentos e mais raramente distribuem promoções e elogios. Você conquistou essas duas medalhas? Todos os dias eu procuro conquistá-las. (p.80)

Nos dois excertos, observa-se que as escolhas discursivas do orador tendem a atrair a atenção dos interlocutores, a partir da expressividade retórica e, consequentemente, torná-los dóceis e benevolentes. A racionalidade do logos, assim, perpassa pela mo-

29 Na visão de Augusto Cury, os casais precisam investir em três estágios que impactam diretamente no social: ser sim- pático, carismático e empático. Esses estágios são valores defendidos pelo orador ao enquadrá-los como deveres que condicionam o comportamento do/a parceiro/a envolvido/a na relação. 30 Almeida, 2015.

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bilização de valores do auditório, por exemplo, ser o parceiro ou parceira que investe na felicidade do Outro. O discurso de uma psicologia motivacional atribui ao casal a responsabilidade de fazer dar certo, sem considerar os fatores previsíveis e imprevisíveis que interferem na felicidade conjugal. Esses valores baseados no reconhecimento, elogios e promoções são atravessados por aspectos emotivos, logo, o Eu é responsabilizado pela felicidade do Outro. Para tanto, visando obter o assentimento às teses apresentadas o orador utilizou-se do logos e do pathos. Quanto ao uso dos argumentos, na SA6, observa-se a utilização do lugar retórico da quantidade em: “o carismático está num degrau mais alto na construção das relações saudáveis e felizes”. Números nunca se furtam de serem persuasivos. Dentro da perspec- tiva retórica, a forma como o orador organiza, como distribui o argumento, de forma a trazer o convencimento e a dizer quem são os responsáveis pelo problema (casais anticarismáticos) ou pela solução (casais carismáticos), é tudo premeditado. No caso, afirma-se que o carismático é melhor que o não carismático por razões quantitativas. Observa-se nesse excerto o uso de estratégias que valorizam o quantitativo, visto que a pessoa carismática precisa agregar inúmeros comportamentos para sustentar a relação saudável. Ainda na SA6, depreende-se que o lugar retórico da essência também está presente, mas de forma implícita, visto que dentro da classe de seres humanos os caris- máticos representam o que estaria mais próximo da eudaimonia aristotélica. Podemos observar na SA6 o lugar retórico da ordem , pois há uma causa e, em seguida, o efeito produzido por ela. Detalhando melhor, a causa seria as ações do carismático: “distribui elogios e promoções [...], realça o que há de melhor nas reações ainda incipientes e diminutas e alarga as fronteiras das janelas light”; os efeitos da causa seria a felicidade das pessoas íntimas: “Os carismáticos, portanto, são propagadores da felicidade dos outros”. As ações e os efeitos são importantes, mas os efeitos só acontecem por conta das ações, assim, o anterior é superior ao posterior. Nessa SA6, temos também o argumento pela compa- ração , assim como, pela definição. Destarte, as palavras e expressões direcionadas aos carismáticos dificilmente não obteriam boa aceitação dos ouvintes, pois são modelos eficazmente almejados.

Na SA7, o orador argumenta sobre a dificuldade que as pessoas têm para se tornarem carismáticas. Nessa sequência, o orador faz uso do lugar retórico da quantidade em dois momentos: “Talvez menos de um em cada cem casais conquista permanentemente uma medalha de bronze e de prata ao mesmo tempo” e “Todos os dias eu procuro conquistá-las”. E aqui depreende-se que o orador se coloca como superior a quem, simbolicamente, não conquista essas referidas medalhas. Ou seja, ele afirma que faz parte desse um por cento, portanto, é raro. Assim,

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utilizados pelo orador com vistas a persuadir o auditório, representado pelos supostos leitores do referido livro da modalidade genérica denominada de autoajuda. A partir de um plano retórico, visando uma identidade com o auditório, o orador traduz a partir da sua ótica as virtudes e os vícios nas relações conjugais modernas. E para isso, o discurso do orador precisa ser digno de credibilidade, como defende Aristóteles, pois o discurso que aparenta ser verdadeiro torna essa construção bem mais fácil. O orador busca, assim, legitimar a sua tese por estratégias que abrangem a hierarquização de valores diluídos socialmente, no caso específico, o “tão sonhado” sucesso e felicidade na relação conjugal. Constatamos que a materialização das virtudes foi corporificada no discurso do orador por meio dos argumentos de definição e comparação para conceituar, sobretudo, o que seria um indivíduo simpático e um carismático, como ele se comporta e como age com seus parceiros ou parceiras. Além desses, encontramos o argumento de sacrifício para validar os esforços que os indivíduos fazem para tornar as pessoas íntimas felizes, sejam elas, maridos, esposas, filhos. Observamos também como elemento para a cor- porificação dos discursos, a presença de lugares retóricos, como o lugar da quantidade, lugar da essência, lugar da qualidade e lugar da ordem. Essa corporificação é a presença do logos, que a partir de sua verdade construída/reforçada discursivamente e das ações que ele sugere, é possível perceber o ethos que daí aflora, assim como as emoções passíveis de serem deflagradas (o pathos). Partindo do que argumenta o orador, consideramos que, na perspectiva do plano aristotélico, os simpáticos e os carismáticos valem-se da phrónesis, visto que agem de forma ponderada, fugindo dos excessos e dos vícios; valem-se da areté, já que são vir- tuosos; valem-se da eúnoia, pois são altruístas. Dito de outro modo, agem sempre pelo princípio da mediania (da justa-medida), assim como pela eudaimonia (felicidade), sendo, por exemplo, agradáveis e admiráveis. Por outro lado, esses argumentos, que são utilizados para mostrar as virtudes a partir das ações daqueles que são simpáticos e ca- rismáticos, escancaram os efeitos provocados pelos vícios da grande maioria dos casais, que são antipáticos e anticarismáticos. Outro aspecto relevante consistiu na observação de como a construção da imagem pública (psicólogo e criador da Teoria da Inteligência Multifocal) influenciou na construção discursiva de um orador digno de fé. Diante da utilização desses inúmeros recursos persuasivos, observamos que o orador (ethos) alicerça seu discurso (logos) oferecendo as condições necessárias para atingir o auditório (pathos) naquilo que para ele é uma virtude, nesse caso, ter um relacionamento saudável. O orador se coloca como virtuoso e constrói um ethos baseado nas imagens discursivas de alguém dotado de prudência, que aconselha, que julga os comportamentos bons e ruins. Além disso, direciona discursivamente o que deve ser escolhido e o que

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deve ser evitado. No entanto, não mostra como manter um equilíbrio na descrição de comportamentos e virtudes que envolvam os aspectos de formação da conjugalidade. Observamos que a busca pela felicidade pode ser vista sob diferentes prismas, como bem preconizou Aristóteles, englobando a vida política, contemplativa e a vida dos prazeres. Logo, a literatura de autoajuda tem sido responsável por propagar modelos de felicidade que pouco se aplicam ao conceito de felicidade estudado por Aristóteles, enquanto uma atividade virtuosa da alma. A abordagem da felicidade propagada nesse gênero é mediada por questões mercadológicas. Finalizamos dizendo que nosso estudo se concentrou, sobretudo, nas primícias do logos, mas não podemos esquecer que a análise retórico-argumentativa representativa deste trabalho está embasada na interrelação existente entre logos, ethos e pathos.

Referências

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