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Este texto discute sobre a relação entre a lei jurídica e a consciência moral, utilizando referências a obras literárias de victor hugo. O autor aborda a noção de imperativo moral, a multiplicidade de leis e o papel do ensino jurídico na sociedade. Além disso, ele analisa como as obras de hugo trazem questões sociais, morais, religiosas e filosóficas em torno da pena capital.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
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“JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP MARIA JÚLIA PEREIRA
ARARAQUARA – SP 2020
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara – como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: História Literária e Crítica Orientador: Prof. Dr. Adalberto Luis Vicente Bolsa: CNPq ARARAQUARA – SP 2020
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara – como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: História Literária e Crítica Orientador: Prof. Dr. Adalberto Luis Vicente Bolsa: CNPq Data da defesa: 20/05/ MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Adalberto Luis Vicente Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (UNESP) Membro Titular: Prof. Dr. André Luiz Alselmi Centro Universitário Barão de Mauá (CBM) Membro Titular: Profa. Dra. Guacira Marcondes Machado Leite Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (UNESP)
Suplentes: Prof. Dr. Antônio Donizeti Pires Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (UNESP) Profa. Dra. Norma Domingos Faculdade de Ciências e Letras de Assis (UNESP) Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara
Aos que têm fome e sede de justiça. Aos perseguidos em nome da justiça.
Justice. La Justice! Oh! cette idée entre toutes auguste et vénérable, ce suprême équilibre, cette droiture rattachée aux profondeurs, ce mystérieux scrupule puisé dans l’idéal, cette rectitude souveraine compliquée d’un tremblement devant l’énormité éternelle béante devant nous, cette chaste pudeur de l’impartialité inaccessible, cette pondération où entre l’impondérable, cette acception faite de tout, cette sublimation de la sagesse combinée avec la pitié, cet examen des actions humaines avec l’œil divin, cette bonté sévère, cette résultante lumineuse de la conscience universelle, cette abstraction de l’absolu se faisant réalité terrestre, cette vision du droit, cet éclair d’éternité apparu à l’homme, la Justice! Victor Hugo (2002b, p. 546) Great is Justice! Justice is not settled by legislators and laws – it is in the soul; It cannot be varied by statutes any more than love or pride or the attraction of gravity can, It is immutable.. it does not depend on majorities.... majorities or what not come at last before the same passionless and exact tribunal. For justice are the grand natural lawyers and perfect judges.... it is in their souls, It is well assorted.... they have not studied for nothing.... the great includes the less, They rule on the highest grounds.... they oversee all eras and states and administrations. The perfect judge fears nothing.... he could go front to front before God, Before the perfect judge all shall stand back.... life and death shall stand back
.... heaven and hell shall stand back. Walt Whitman (2019, p. 208)
O distanciamento entre a justiça em sentido ético e a lei jurídica é fruto da racionalidade iluminista e engendrou o legalismo, notadamente no contexto francês da primeira metade do século XIX, consolidando socialmente a concepção de justiça legalista, isto é, a ideia da lei jurídica como lídima expressão do justo. Contudo, esse fetichismo legal torna-se questionável ao se constatar que a lei não somente contradiz o justo, como também engendra injustiças. Tal questão aparece nas obras política e literária de Victor Hugo por meio da querela entre o direito
1.1 A concepção de justiça legalista: a lei jurídica como o critério de justiça 15 1.2 Justiça e legalismo em Victor Hugo: Le Droit et la Loi 27 1.3 As marcas da injustiça em Les Misérables: la misère e la damnation sociale 45 CAPÍTULO 2 – MYRIEL E ENJOLRAS: RUPTURA COM AS REGRAS 66 2.1 Un juste: Monseigneur Bienvenu 66 2.2 Myriel: o transformador transformado 80 2.3 L’amoureux de marbre de la Liberté: Enjolras 95 2.4 Discurso e ação de Enjolras: revolução como ruptura absoluta com as regras
3.1 Jean Valjean damné: infração da lei 125 3.2 Pour vivre j’ai volé un pain: transformação e redenção de Jean Valjean 142 3.3 Le devoir implacable: Javert como encarnação do legalismo 160 3.4 Javert déraillé: ruptura com o legalismo 173 CONSIDERAÇÕES FINAIS 185 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 188 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 194
Este trabalho é fruto de um estudo a partir do qual se buscou compreender como a questão da justiça é tratada e retratada em Les Misérables (1862), de Victor Hugo. Para tanto, foram analisadas as considerações sobre tal questão, nas obras literária e política do autor, sobretudo a partir do embate entre o direito, expressão transcendente da justiça, e a lei jurídica, retrato de uma sociedade desigual, que se organiza por meio de um sistema judiciário reprodutor de suas injustiças. A obra hugoana tem forte apelo universal, não somente pelos temas nela retratados e por sua vastidão e variedade – poemas, peças de teatro, romances, epopeias, discursos políticos, textos historiográficos, ensaios filosóficos e críticos –, mas também pela estrutura que evoca a épica, o drama e a lírica por meio da construção de um discurso narrativo frequentemente composto de problemas sociopolíticos e socioeconômicos de uma época. Isso é especialmente notório em Les Misérables, visto que as trajetórias dos heróis Jean Valjean e Enjolras, assim como de todos os miseráveis do romance, são indissociáveis da injustiça derivada da condenação penal e social. A penalidade baseada na igualdade formal^1 , apesar de significar historicamente uma conquista de caráter democrático e republicano, difundida notadamente a partir da Revolução francesa, implicou um sistema de justiça que engendra injustiças, reforçando a miséria e a proscrição social. Hugo denuncia a lei jurídica como mecanismo para a manutenção da desigualdade em uma sociedade burguesa emergente, que entende a lei como expressão legítima da justiça. Evidencia-se, assim, que o triunfo dos ideais revolucionários de liberdade e igualdade é meramente formal. O autor ainda assinala, a partir das trajetórias do bispo Myriel e do inspetor de polícia Javert, o problema moral do dever de obediência à lei jurídica. Por um lado, o bispo busca reparar a injustiça sofrida por Valjean, compreendendo que cumprir a lei terrena significa contrariar o Evangelho (lei divina), pois o injustiçaria ainda mais. Por outro lado, o dever legal e moral de Javert coincidem: o ilegal, para ele, equivale ao injusto, e, portanto, ao imoral. Na condição de autoridade pública, encarna a lei jurídica, devendo-lhe obediência absoluta. Diante do altruísmo de Jean Valjean – perseguido que salva seu algoz – o inspetor é confrontado com uma justiça que transcende a lei dos homens. Uma evidência de que essa abordagem hugoana foi visionária é o fato de esse embate entre os limites do justo e do legal ter sido expressamente questionado, por juristas e filósofos, no pós-guerra, isto é, quase um século após a publicação (^1) Ou igualdade jurídica, princípio que visa ao tratamento igualitário de todos os cidadãos perante a lei (o Estado), opondo-se aos privilégios previstos legalmente, no Antigo Regime, em razão da origem aristocrata ou da posição clerical.
2002, p. 51-52). Assim, a ficção se torna inegável a partir desse ser que confere concretude à camada imaginária, evidenciando a construção ficcional. Na narrativa, o narrador aparenta se diferenciar da personagem, podendo, assim, surgir “formas de discurso ambíguas”, pensadas simultaneamente a partir da perspectiva da personagem e do narrador fictício (ROSENFELD, 2002, p. 21-22). Ademais, a personagem romanesca apresenta uma natureza essencialmente formal: na dicotomia conceitual estabelecida por Genette (1972) entre história (conteúdo narrativo) e discurso que compõem a narrativa, as personagens pertencem ao plano da história e constituem um de seus pilares fundamentais (VIEIRA, 2008). Com efeito, em razão de tal natureza, há, no texto ficcional, sinais linguísticos que revelam como a narrativa – a épica ou o romance – estrutura-se de modo diverso do enunciado não ficcional. Dentre esses sinais estão usos de advérbios de tempo, verbos caracterizadores de processos psíquicos, discurso indireto livre, manutenção da terceira pessoa e outros. Ao serem organizados conjuntamente, os indícios linguísticos atuam de modo a possibilitar a coexistência da perspectiva das personagens – produtora de seus pensamentos – e do relato impessoal do narrador (ROSENFELD, 2002). Considerando que o discurso ou texto narrativo se constitui por meio da história (GENETTE, 1972), busca-se, neste trabalho, abordar as relações entre o conteúdo e o texto narrativo na obra Les Misérables (1862), de Victor Hugo, a partir da trajetória de quatro personagens – ação e transformação que realizam na narrativa (TODOROV, 1980) – como reações a uma concepção de justiça legalista engendrada no período histórico relativo à história do romance: entre a queda de Napoleão I (1815) e a insurreição republicana de 1832. Nesse sentido, este estudo se organiza em três capítulos divididos em subcapítulos. Antes disso, no entanto, é preciso destacar que diante das várias edições da obra, em língua francesa e portuguesa, foi feita a opção pela edição mais completa e recente: a edição crítica da editora Gallimard, coleção Bibliothèque de la Pléiade, publicada em maio de 2018 e organizada por Henri Scepi com a colaboração de Dominique Moncond’huy. Também foi consultada a edição crítica de 1985, publicada pela editora Robert Laffont, reimpressa em 2002 e organizada por Jacques Seebacher e Guy Rosa com a colaboração de pesquisadores participantes do grupo de estudos dedicado à obra hugoana (Groupe Hugo). Assim, passa-se a uma breve apresentação do conteúdo de cada um dos três capítulos que formam esta dissertação. No capítulo 1, são abordadas a concepção de justiça legalista e a questão da justiça na obra literária e política de Victor Hugo. Inicialmente se considera o aparecimento do Código de Napoleão, assim como a escola da exegese francesa – forte expressão do legalismo – visto
que ambos foram inspirados pelas “concepções filosófico-jurídicas do Iluminismo”. Esses processos são frutos de uma cultura fundamentalmente racionalista, que se tornou realidade na França graças ao fato de as ideias iluministas converterem-se “em forças histórico-políticas, dando lugar à Revolução Francesa” (BOBBIO, 2006, p. 64-65). Desse modo, para os objetivos deste estudo, faz-se mister mencionar certas reflexões de filósofos e pensadores iluministas como Kant, Montesquieu e Saint-Just. Quanto ao pensamento kantiano, é fundamental assinalar que aqui não se trata de estabelecer uma relação direta entre o legalismo e a lei jurídica como critério de justiça estabelecido por Kant. Contudo, considerando a influência do iluminismo para a codificação e também para a escola exegética – movimentos que engendraram uma concepção de justiça atrelada à aplicação estrita da lei aos fatos – pretende-se tratar dessa ideia do dever de obediência à lei jurídica levada às últimas consequências como parte integrante do que se denomina, no presente trabalho, concepção de justiça legalista. Para Hugo, tal concepção é indissociável da questão social, sendo denunciada como expressão de uma sociedade iníqua, distante da verdadeira justiça (da equidade), e assinalada em Les Misérables como consolidadora da proscrição social e da miséria. Portanto, considerando a abordagem sobre a justiça e a lei na obra de Hugo, além da denúncia da injustiça presente em Les Misérables, os demais capítulos deste trabalho, subdivididos em quatro subcapítulos cada, são dedicados especificamente à análise das personagens em questão. Assim, pretende-se evidenciar como a personagem Javert encarna o legalismo ao longo do romance, porém o rechaça no momento derradeiro de sua trajetória. Almeja-se, ainda, demonstrar como Jean Valjean, Enjolras e Myriel respondem a essa ideia de justiça que entende a lei jurídica como genuína expressão do justo para, então, evidenciar como essas quatro personagens são construídas como reações à concepção de justiça legalista, na medida em que esta engendra injustiças. No capítulo 2, busca-se evidenciar como Myriel – o bispo – e Enjolras – líder da insurreição republicana retratada no romance – transformam, por meio de suas ações, a narrativa, na medida em que são agentes transformadores da comunidade em que estão inseridos. O agir de ambos é teleologicamente orientado pela busca por uma concepção de justiça social, pela ideia de justiça como equidade (igualdade), e, nesse sentido, reagem à concepção de justiça legalista ao romper com as regras expressas na tradição, nos usos e costumes, na lei jurídica e até mesmo na forma de governo. A equidade é capaz de restaurar o mundo pela prática do Evangelho, que torna todos iguais por meio do mandamento do amor cristão. Também é capaz de nutrir o amor ao povo (à causa republicana) e à utopia pela
Considerando que a dimensão espaço-temporal da narrativa em Les Misérables é historicamente determinada entre 1815 (queda do império napoleônico) e 1832 (insurreição republicana de cinco e seis de junho), no presente capítulo são desenvolvidos apontamentos sobre o legalismo nesse contexto socio-histórico francês pós-revolucionário a fim de se discutir o que se denomina, nesta pesquisa, concepção de justiça legalista engendrada em uma conjuntura iluminista, propícia às conquistas de direitos civis tais como a igualdade perante a lei. Apesar disso, a ideia da lei jurídica como expressão do justo, quando levada às últimas consequências, favoreceu um mecanismo de condenação social essencialmente injusto. As injustiças engendradas nesse contexto recaíram, sobretudo, nas camadas mais desfavorecidas da sociedade francesa, agravando a miséria e a proscrição social dela decorrente. Busca-se ainda evidenciar como Victor Hugo aborda a questão da justiça em seus projetos político e estético a partir daquilo que compreende como o embate entre o direito – expressão do justo – e a lei – expressão da sociedade. Em Le Droit et la Loi, o autor assinala o distanciamento da lei jurídica em relação à justiça, pois, representando os anseios de uma sociedade iníqua, ela reproduz desigualdades. Além disso, o poeta-parlamentar denuncia, em outras manifestações políticas e na obra literária, as consequências nefastas desse embate, dentre elas a penalidade impositora de penas cruéis, como os trabalhos forçados e a morte. Finalmente, enfatizando Les Misérables, obra objeto de estudo do presente trabalho, pretende-se assinalar como a miséria e a condenação social – indissociáveis entre si e relacionadas à lei jurídica que manifesta a organização sociopolítica – constituem, na narrativa, as marcas da injustiça fundamentais para o desenrolar dos acontecimentos, notadamente para as ações e transformações nas trajetórias das personagens pertencentes ao grupo dos miseráveis. 1.1 A concepção de justiça legalista: a lei jurídica como o critério de justiça Para a compreensão de uma concepção de justiça derivada do Iluminismo, é fundamental observar que o projeto político iluminista está relacionado à filosofia da justiça política – que abrange o princípio da liberdade – e à busca por legitimação e limitação expressa dos poderes derivados de uma ordem do direito e do Estado. Esse “projeto político da modernidade” não se encerra no Iluminismo europeu, mas está intimamente ligado a ele e medeia tendências políticas modernas opostas, o anarquismo e o positivismo, apoiando-se principalmente na liberdade de ação (HÖFFE, 1991, p. 22-23). Dessa forma, o que Höffe (1991, p. 23) compreende como “filosofia kantiana do direito e do estado” é, assim como a ética
kantiana, um ponto de partida importante para a compreensão do que se denomina concepção de justiça legalista neste trabalho. No contexto da filosofia crítica, existe a procura por uma metafísica compatível “com a ciência física de Galileu”. A crítica procede da metafísica dos costumes, preocupação essencial do pensamento kantiano. Nessa perspectiva, “nenhuma teoria da moral, nenhuma ética até Kant procurou assentar-se em princípios a priori, por isso universais, garantidores da sua validade”. Diante disso, a ética kantiana busca “princípios próprios para sua fundamentação”, combatendo a ética empírica e eudemônica (aristotélica) por meio da razão, influência nítida do iluminismo, e do dever, que, entendido como “reverência à lei”, é suficiente para dar validade à ação moral, ou seja, é o “dever pelo dever” que interessa à ética kantiana. Assim, razão e dever são os elementos centrais de tal ética e não se encontram no ser ou no objeto, mas sim no pensar e no sujeito (SALGADO, 1995, p. 144-146). Para Kant, “todo ser dotado de razão tem capacidade moral e não necessita de nenhum código ditado pelos filósofos para conhecer a lei moral e decidir-se pelo bem ou pelo mal, cumprindo-a ou não”. Dessa forma, a virtude está no interior de cada indivíduo e pode ser alcançada pela razão, o que Kant conclui graças à influência de Rousseau: os conceitos de volonté générale (vontade geral) e igualdade para todos levam ao reconhecimento da capacidade moral de qualquer pessoa, independentemente de seu contexto, de sua cultura, ou educação, já que, por serem racionais, são dotadas de uma vontade que não sofre alterações em razão do meio ou do grau de instrução (SALGADO, 1995, p. 149). Joaquim Salgado (1995, p. 153) ainda assinala que o termo ética tem dois sentidos na filosofia kantiana. O primeiro, mais amplo, diz respeito à “ciência das leis da liberdade” ou “leis éticas”, que se dividem em “morais e jurídicas”. Em sentido estrito, “ética é a teoria das virtudes, e, como tal, diferencia-se do direito”. Portanto, a ética em sentindo amplo contém o direito e a ética em sentido estrito, que, por sua vez, é entendida como moral ou leis morais. No prefácio da Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant (2009, p. 16-17) afirma ser necessário desenvolver uma filosofia moral capaz de ressaltar a ideia comum do dever e das leis morais, evidenciando que uma lei com valor moral, fundamento de uma obrigação, tem de ter em si uma necessidade absoluta: o princípio da obrigação não é circunstancial, “mas sim a priori exclusivamente nos conceitos da razão pura”. “Uma Metafísica dos Costumes é, pois, indispensavelmente necessária” para analisar “a fonte dos princípios práticos que residem a priori na nossa razão” e também para se estabelecer o fio condutor e exato julgamento dos costumes, “pois aquilo que deve ser moralmente bom, não basta que seja conforme à lei moral”, mas tem ainda que ser cumprido por dedicação à mesma
origem fundada plenamente a priori na razão pura e também prática; pois não podem ser consideradas somente como empíricas, fundadas na experiência sensível (KANT, 2009, p. 44). Isto é, os conceitos morais fundamentam-se a priori na razão, não podendo advir de nenhum conhecimento empírico e contingente. É da própria razão que decorre a dignidade dos conceitos e das leis morais. Nessa perspectiva, somente um ser racional é dotado de vontade: ele é capaz de agir segundo leis e princípios estabelecidos. A vontade é a razão prática na medida em que, para derivar as ações das leis morais, a razão é essencial. Isso significa que “a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer, como bom” (KANT, 2009, p. 48-50). O ser racional tem capacidade moral, pois nesse ser está pressuposta “a vontade pura”, a denominada “boa vontade”, aquela livre das inclinações, considerada como fim em si mesma e não no conteúdo da ação ou em outros fatores externos a ela. Assim sendo, “a boa vontade não é medida pelos seus efeitos”; ou seja, “o motivo estranho à razão não pode fundamentar a moralidade da ação, ainda que esse motivo seja o mais digno possível” (SALGADO, 1995, p. 158-159), o que significa que a bondade da ação não tem relação com seus efeitos: mesmo que uma ação gere más consequências, ela pode, moralmente, ser considerada uma boa ação. Dessa forma, a lei moral só faz sentido para os seres humanos em virtude de sua natureza racional. O fundamento de tal lei está exclusivamente na razão. No entanto, sua postulação e aplicação em relação a um “ser que não é somente racional, mas também sensível”, faz com que ela se manifeste como um “dever ser” expresso por um “imperativo”, o qual consiste em um mandamento da lei da razão, que, por sua vez, trata-se da “representação de um objetivo” qualquer e não apenas moral (SALGADO, 1995, p. 203-205). Nesse sentido, é desenvolvida a ideia dos imperativos, os quais são expressos pelo verbo dever (sollen), e evidenciam “a relação de uma lei objetiva da razão para uma vontade que, segundo a sua constituição subjetiva, não é por ela necessariamente determinada”. Kant assevera que os imperativos são: hipotético, quando constitui a necessidade prática de uma ação que funciona como meio para se alcançar o que se deseja; e categórico, quando representa uma ação necessária por si mesma, “sem relação com qualquer outra finalidade”, não limitada por nenhuma condição (KANT, 2009, p. 52). Tendo em vista que o imperativo categórico não pode ser dado pela experiência, é fundamental buscá-lo totalmente a priori, pois só o imperativo categórico tem o caráter de uma lei moral – no sentido de prescrição – prática. Além dessa lei, esse imperativo contém a máxima que determina a conformação a ela devida, sendo, dessa forma, postulado nos seguintes termos: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei
universal” (KANT, 2009, p. 62). Desse postulado geral derivam três formas de expressão do imperativo categórico: i) “a da equiparação da máxima à universalidade da lei da natureza”, assentada na universalidade ou igualdade; ii) “a da consideração da pessoa como fim em si mesma”, fundamentada na necessidade de se distribuir a liberdade igualmente entre todos os seres racionais; iii) “a da autonomia”, que coloca a vontade como legisladora universal e “vincula toda ação humana à liberdade” (SALGADO, 1995, p. 218). Diante disso, é possível inferir que a plenitude da ideia do substantivo dever (Sollen) aparece no imperativo categórico, pois ele não deriva da experiência, a qual só nos mostra “como as coisas são e não como devem ser”. Tal imperativo consiste em “uma proposição prática a priori, isto é, princípio formal da razão pura prática, na medida em que se dirige a condições subjetivas, embora seja objetivo, necessário” e que exprime necessariamente o dever ser (SALGADO, 1995, p. 211-212). Portanto, para a ética kantiana, os conceitos morais fundamentam-se a priori na razão, não sendo possível desejar como lei moral aquilo que só funciona diante de particularidades, pois essa lei deve ser sempre suscetível à universalização, não podendo ser extraída de exemplos, visto que é impossível saber se eles servem de modelo para a moralidade antes de julgá-los segundo os princípios morais. Dessa ideia decorre que o imperativo categórico não advém da experiência; ou seja, é buscado apenas na razão, pois tem o caráter de uma lei moral – no sentido de prescrição – prática. Além da própria lei moral, esse imperativo contém a máxima que determina a conformação devida a ela. Nessa perspectiva, Bobbio (1997, p. 53-54) assinala critérios explícitos e implícitos para distinção entre direito e moral na obra de Kant. Um desses critérios é o conteúdo da lei moral e da lei jurídica no que diz respeito à forma da obrigação, essencial para distinguir a legalidade da moralidade. Dessa maneira, é preciso destacar que a moralidade se faz presente quando a ação é cumprida somente pelo dever. Já a legalidade se dá quando a ação é conforme a lei, mas cumprida por inclinações ou interesses alheios à ideia de dever. Assim, “a legislação que faz de uma ação um dever, e também faz deste dever o motivo”, é ética (em sentido estrito) ou moral. Por outro lado, “a legislação que não inclui o motivo do dever na lei”, admitindo outro motivo qualquer, diferente do próprio dever, é jurídica e se trata de uma “legislação que constrange”, que apresenta coerção, pois os deveres ou obrigações que ela produz são externos: não importa que se cumpra o dever puramente pelo dever como postula a lei moral, ele é cumprido sob pena de ser aplicada alguma sanção (KANT, 2010, p. 50-52). Isso equivale a dizer que a lei jurídica é “menos exigente” que a lei moral, pois ela apenas visa a “garantir a esfera da liberdade externa de todos os indivíduos igualmente”, sem exigir que se cumpra o dever pelo dever (SALGADO,