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Fortunas Eruditas e Populares do Lunário: Estudo de Transmissão de Conhecimentos, Notas de aula de Literatura

Uma análise histórica sobre o lunário perpétuo, um antigo almanaque europeu que transmitia ensinamentos práticos e religiosos sobre sobrevivência, agricultura, previsão do tempo e educação. A autora franselma fernandes figueirêdo explora as fontes históricas, como as memórias de leituras de antônio gomes ferrão castelo branco, e descreve como o lunário perpétuo foi adaptado e difundido no nordeste do brasil. O texto oferece uma visão interdisciplinar da história, literatura e cultura popular, destacando a importância do conhecimento oral e da tradição na transmissão de saberes.

O que você vai aprender

  • Qual era a importância do conhecimento oral na transmissão de saberes do Lunário Perpétuo?
  • Quais eram as principais informações sobre sobrevivência e agricultura transmitidas pelo Lunário Perpétuo?
  • Quais eram as fontes históricas utilizadas para estudar o Lunário Perpétuo?
  • Como as práticas culturais estavam relacionadas com o Lunário Perpétuo?
  • Como o Lunário Perpétuo foi adaptado e difundido no nordeste do Brasil?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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FIGUEIRÊDO, F. F. As fortunas eruditas e populares do Lunário...
Imburana – revista do Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses/UFRN. n. 9,
jan./jun. 2014
As fortunas eruditas e populares do Lunário Perpétuo
Franselma Fernandes de Figueirêdo
Universidade Federal do Semi-Árido (UFERSA)
Resumo: Desde meados do século XV, pelo menos, notas de leituras relatam a passagem dos
Lunários Perpétuos de mão em mão, entre leitores europeus ou não. No Brasil, muitos são os
Lunários listados pelos historiadores, arrolados em inventários ou mesmo citados em memórias
de leituras, pelo menos desde o início do século XVIII. A partir de então foi sucessivamente
reeditado e tantas vezes emendado e acrescentado, portanto, possuído, lido, relido, recitado,
escutado, comentado e seus ensinamentos devidamente apropriados por inúmeras famílias que
moravam no Nordeste brasileiro. Entre tantos ensinamentos instrutivos, o Lunário pontua
preceitos a respeito da sobrevivência dos humanos, dos animais, da agricultura e da
permanência da religiosa e orienta como fazer previsão de chuvas e como conduzir a
educação das crianças. Neste início de século XXI, no Nordeste brasileiro, os ensinamentos
instrutivos do Lunário, em suas distintas versões, ainda permanecem sendo difundidos bem
mais oralmente pelos “profetas do sertão”, ou “profetas das chuvas”. Um dos “valiosos”
ensinamentos apropriados e permanentemente difundidos por esses profetas é a previsão de
chuvas, segundo os fenômenos da própria natureza, que cobrem desde a direção dos ventos até
ciclos solares e lunares.
Palavras-chave: Lunário Perpétuo; Leitura; Ensinamentos instrutivos; Nordeste.
Résumé: Depuis, tout au moins, le milieu du XVème siècle, des notes de lecture relatent le
passage de main en main de calendriers lunaires perpétuels parmi les lecteurs européens ou
non-européens. Au Brésil, nombreux sont les calendriers lunaires listés par les historiens,
répertoriés dans des inventaires ou même cités dans des mémoires de lectures depuis au moins
le début du XVIIIème siècle. Dès lors, celui-ci a été successivement réédité et de nombreuses
fois amendé et accru, par conséquent, possédé, lu, relu, récité, écouté, commenté et ses
enseignements dûment appropriés par d’innombrables familles qui vivaient dans le nord-est du
Brésil. Parmi les nombreux enseignements instructifs, le Calendrier Lunaire caractérise des
préceptes au sujet de la survie des hommes, des animaux, de l’agriculture et de la permanence
de la foi religieuse et informe comment se fait la prévision des pluies et comment on éduque les
enfants. Au début du XXIème siècle, dans le nord-est du Brésil, les enseignements instructifs du
calendrier lunaire sont toujours diffusés, dans différentes versions, beaucoup plus verbalement
par « les prophètes du sertão », ou « les prophètes de pluie ». L'un des précieux enseignements
appropriés et en permanence diffusés par ces prophètes est la prévision des pluies, selon les
phénomènes de la propre nature, qui vont de la direction des vents jusqu'aux cycles solaires et
lunaires.
Mots-clés: Calendrier lunaire perpétuel; Lecture; Enseignements instructifs; Nord-est.
Desde meados do século XV, pelo menos, notas de leituras relatam a passagem
dos Lunários perpétuos de mão em mão, entre leitores e não leitores europeus. Data do
ano de 1473, em Portugal, a publicação do primeiro Lunário perpétuo, destinado a
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FIGUEIRÊDO, F. F. As fortunas eruditas e populares do Lunário ...

As fortunas eruditas e populares do Lunário Perpétuo

Franselma Fernandes de Figueirêdo Universidade Federal do Semi-Árido (UFERSA)

Resumo: Desde meados do século XV, pelo menos, notas de leituras relatam a passagem dos Lunários Perpétuos de mão em mão, entre leitores europeus ou não. No Brasil, muitos são os Lunários listados pelos historiadores, arrolados em inventários ou mesmo citados em memórias de leituras, pelo menos desde o início do século XVIII. A partir de então foi sucessivamente reeditado e tantas vezes emendado e acrescentado, portanto, possuído, lido, relido, recitado, escutado, comentado e seus ensinamentos devidamente apropriados por inúmeras famílias que moravam no Nordeste brasileiro. Entre tantos ensinamentos instrutivos, o Lunário pontua preceitos a respeito da sobrevivência dos humanos, dos animais, da agricultura e da permanência da fé religiosa e orienta como fazer previsão de chuvas e como conduzir a educação das crianças. Neste início de século XXI, no Nordeste brasileiro, os ensinamentos instrutivos do Lunário , em suas distintas versões, ainda permanecem sendo difundidos bem mais oralmente pelos “profetas do sertão”, ou “profetas das chuvas”. Um dos “valiosos” ensinamentos apropriados e permanentemente difundidos por esses profetas é a previsão de chuvas, segundo os fenômenos da própria natureza, que cobrem desde a direção dos ventos até ciclos solares e lunares.

Palavras-chave : Lunário Perpétuo; Leitura; Ensinamentos instrutivos; Nordeste.

Résumé: Depuis, tout au moins, le milieu du XVème siècle, des notes de lecture relatent le passage de main en main de calendriers lunaires perpétuels parmi les lecteurs européens ou non-européens. Au Brésil, nombreux sont les calendriers lunaires listés par les historiens, répertoriés dans des inventaires ou même cités dans des mémoires de lectures depuis au moins le début du XVIIIème siècle. Dès lors, celui-ci a été successivement réédité et de nombreuses fois amendé et accru, par conséquent, possédé, lu, relu, récité, écouté, commenté et ses enseignements dûment appropriés par d’innombrables familles qui vivaient dans le nord-est du Brésil. Parmi les nombreux enseignements instructifs, le Calendrier Lunaire caractérise des préceptes au sujet de la survie des hommes, des animaux, de l’agriculture et de la permanence de la foi religieuse et informe comment se fait la prévision des pluies et comment on éduque les enfants. Au début du XXIème siècle, dans le nord-est du Brésil, les enseignements instructifs du calendrier lunaire sont toujours diffusés, dans différentes versions, beaucoup plus verbalement par « les prophètes du sertão », ou « les prophètes de pluie ». L'un des précieux enseignements appropriés et en permanence diffusés par ces prophètes est la prévision des pluies, selon les phénomènes de la propre nature, qui vont de la direction des vents jusqu'aux cycles solaires et lunaires.

Mots-clés : Calendrier lunaire perpétuel; Lecture; Enseignements instructifs; Nord-est.

Desde meados do século XV, pelo menos, notas de leituras relatam a passagem dos Lunários perpétuos de mão em mão, entre leitores e não leitores europeus. Data do ano de 1473, em Portugal, a publicação do primeiro Lunário perpétuo , destinado a

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ensinar ciclos solares, lunares, religiosos e civis e assuntos relacionados ao tempo passado, ao presente e ao vindouro. (MARREIRO, 2004). Em 1494, 21 anos depois dessa primeira publicação portuguesa, circulou, em Barcelona, uma edição em italiano do Lunari i repertori del temps , escrito por Bernardo Granolach, considerado uma obra de ímpar curiosidade, por reunir e explicar, de modo popular, os conhecimentos das ciências empíricas modernas. (POEL, s.d).

No século seguinte, o XVI, circulou, na sociedade camponesa italiana, uma edição do Lunario ao modo di Itália calculato composto nella città di Pesaro dal eccmo dottore Marine Camilo de Leonardi , a qual, foi uma das obras possuídas, lidas e, de alguma forma, apropriadas pelo moleiro Menocchio, da aldeia italiana de Montereale, nos domínios de Veneza. Nesse mesmo século, em 1574, também foi publicada a primeira edição de um Lunário em língua espanhola.

A edição portuguesa, composta por Jerônimo Cortês Valenciano, natural de Valência, na Espanha, segundo Cascudo (1953) foi adaptada da edição espanhola de

  1. Essa edição foi impressa em Lisboa, em 1703, na oficina de Miguel Menescal da Costa, uma tipografia, diga-se, do Santo Ofício. Daí em diante, outras edições se seguiram, como a de 1757, publicada em Lisboa pela Oficina Domingos Gonçalves, traduzida em português por Antônio da Silva Brito e emendada conforme o Expurgatório da Santa Inquisição. Muitas outras edições dessa tradução foram reeditadas em Lisboa, ao longo do século XIX, pela Tipografia de José Batista Morando (1861), pela Casa da Viúva Bertrand e Filhos (1866) e pela Veja (1878).

Chartier (2001) faz referência à grande circulação de lunários perpétuos , por muito tempo responsáveis por moldar maneiras de pensar e de contar. Intensamente lidas, relidas e memorizadas, essas obras impressas eram, sobretudo,

[...] objeto de manipulações freqüentes, de repetidas consultas [...]. Suas divisões e seus referenciais organizam, portanto, a escrita íntima, como atesta o exemplo de numerosos jornais [crônicas] e memórias que inscrevem os acontecimentos da existência pessoal ou familiar nos calendários e mapas astronômicos fornecidos [...]. (CHARTIER, 2001, 88).

No Brasil, muitos são os Lunários listados pelos historiadores em remessas para algum destinatário. Vários são arrolados em inventários, ou mesmo citados em memórias de leituras, pelo menos desde o início do século XVIII, período em que foi

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Nesse século de crendices religiosas e até fanáticas, a leitura do Lunário e prognóstico perpétuo também foi intensamente exercitada − ao lado da História da princesa Magalona e da H istória do imperador Carlos Magno e os doze pares de França − por Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro (1830-1897), líder espiritual do movimento messiânico conhecido como Guerra dos Canudos (1896- 1897), em algumas regiões do sertão da Bahia. (MONIZ, 1984).

Adentrando-se o Ceará, especialmente em Juazeiro do Norte, terra do Padre Cícero Romão, as pesquisas de Marreiro (2004) apontam que, na década de 1940, o Lunário e prognóstico perpétuo foi adaptado e retitulado como Lunário moderno ou manual do nordes tino e como O juízo do ano. Essa última adaptação, editada por Manoel Caboclo, atingiu a tiragem de 35 mil cópias e circulou entre os anos de 1960 e

Neste início de século XXI, no Nordeste brasileiro, os ensinamentos instrutivos do Lunário , em suas distintas versões, ainda permanecem sendo difundidos bem mais oralmente pelos “profetas do sertão”, ou “profetas das chuvas”. Um dos “valiosos” ensinamentos apropriados e permanentemente difundidos por esses profetas é a previsão de chuvas, segundo os fenômenos da própria natureza, que cobrem desde a direção dos ventos até ciclos solares e lunares. Um exemplo é dado por Marreiro (2004, p. 6), numa reportagem sobre o “profeta das chuvas” Chico Mariano, morador no sertão do Ceará: “Mariano fez previsão olhando para o céu do mês de julho: se em 1º de julho há nuvens, é janeiro de chuvas. Se o dia 2 é limpo, fevereiro é seco.”

No sertão do Seridó e arredores, moradores de sítios e de rua acatavam os prognósticos meteorológicos do Lunário e prognóstico perpétuo como sentença quase definitiva. Esse almanaque ensina minuciosamente o que são as ciências complicadas dos astros, das doze casas dos planetas, regras para conhecer as horas do dia e da noite, remédios estupefacientes para alguma moléstia nos humanos, nos animais e nas lavouras. E, ainda, oferece bons conselhos, à exceção dos que se refiram ao enfrentamento das desumanas secas.

Para Medeiros Filho e Faria (2001, p. 17), a leitura feita, ouvida e propagada de Lunário e prognóstico perpétuo foi muito bem apropriada pela verve oral entre “[...] os cantadores populares, na parte que eles denominavam ‘ciência’ ou ‘cantar teoria’, gramática, história, doutrina cristã, países da Europa, capitais, mitologia.” Noutro escrito, Faria (2001, p. 59) refere-se à longevidade dessa obra quase mítica: “Até bem

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poucos anos o Lunário Perpétuo representava o livro orientador de maior prestígio por aqueles mundos − influência substituída pelo Almanaque do Pensamento.”

No Rio Grande do Norte oitocentista, Hugulino Nunes da Costa (1832-1895), conhecido como Gulino do Teixeira, e Fabião Hermenegildo Ferreira da Rocha (1848- 1928), o Fabião das Queimadas, eram dois dos muitos declamadores de versos populares que dominavam e conheciam de cor os ensinamentos desse almanaque de gênero autoinstrutivo.

Enfim, os declamadores decoravam letra por letra, ou melhor, cantavam ensinamento por ensinamento das ciências empíricas, por seus esforços de deles apropriarem-se. Por tantas maneiras diferentes de leitura do Lunário e prognóstico perpétuo , feitas por grupos sociais também diferentes, é que Cascudo (1984, p. 22) destaca esse almanaque, como um “[...] incomparável elemento de consulta e de deleite [...]”, muitíssimo lido, escutado e propagado no sertão nordestino, desde que neste chegaram os primeiros desbravadores, trazendo, em seus baús e malas, esse livro de ensinamentos diagnósticos e prognósticos.

No século XIX e no seguinte, o Lunário e prognóstico perpétuo seria transladado para muitas e muitas versões da literatura de cordel, comumente recitadas e vendidas nas feiras livres nordestinas. Esse almanaque − para uns −, manual − para outros −, sucessivamente reeditado e tantas vezes emendado e acrescentado, foi, portanto, possuído, lido, relido, recitado, escutado, comentado, e seus ensinamentos devidamente apropriados por nossos tetravós, bisavós, avós − filhos, netos e bisnetos, de inúmeras famílias que moravam no nordeste brasileiro, em Caicó e arredores, principalmente.

O Lunário e prognóstico perpétuo , especialmente composto por Jerônimo Cortês Valenciano, continuou sendo publicado em Portugal pela Editora Lello e Irmão e, a cada reedição, passava por reformas e acréscimos, como ocorreu na de 1980, analisada neste capítulo. Adquirimos também outra edição (digitalizada), que está no Museu Histórico da cidade de Acari (RN). Esse exemplar, cuidadosamente ilustrado − com 36 figuras −, apresenta marcas que indicam sua publicação ainda no século XIX e seu pertencimento ao Sr. Antonio Clemente, como revela uma anotação na margem superior da página 246.

Na edição de 1980, ilustrada com apenas 23 figuras, reformada e muito acrescentada, por exemplo, foram atualizados cálculos dos tempos e conjunções da lua,

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Para um melhor proveito, ou aproveitamento autoinstrutivo, de seus tantos ensinamentos da Bíblia Sagrada, especialmente aqueles destinados ao ordenamento da vida terrena, o autor do Lunário e prognóstico perpétuo invoca os conhecimentos de Alfragano (astrônomo), Arnaldo de Vila Nova (médico), Avicena (filósofo e médico), Bernardo Granullachs (professor), Cláudio Galeno (médico), Caio Plínio Segundo (naturalista), Hipócrates (médico), Jacopo Sadoleto (papa), Leopoldo de Áustria (imperador romano) e Nicolau Florentino (médico). De suas leituras de Galeno, por exemplo, o autor recorta as fases ou idades da vida humana, articulando-as com o clima e a temperatura:

A primeira idade se chama Infância ou Puerícia, cuja qualidade é quente e úmida; a qual dura desde o nascimento até aos 14 anos. A segunda idade se chama Adolescência, cuja qualidade é quente e seca, e dura desde os 14 anos até aos 25. A terceira idade se chama Juventude ou Mocidade, a qual é muito temperada a princípio, e dura desde os 25 até aos 40 anos. A quarta idade se chama Virilidade constante, cuja qualidade é algum tanto fria a seca: dura desde os 40 até aos 55. A quinta idade se chama Senectude ou Velhice, cuja qualidade é fria, e seca excessivamente, e dura desde os 55 anos até o fim da vida. (VALENCIANO, 1980, p. 12).

Para a sobrevivência biológica e espiritual em qualquer uma dessas idades da vida, o homem que vivia no sertão, principalmente, necessitava dos específicos ensinamentos da ordem dos quatro tempos e de suas qualidades (primavera, verão, outono e inverno), do calendário gregoriano (ou de Gregório XIII), do ciclo solar (ou dominical), e ainda, do calendário das festas mudáveis da Igreja Católica (Septuagésima, Cinza, Páscoa da Ressurreição, Ladainhas ou Rogações, Ascensão de Cristo, Espírito Santo, Santíssima Trindade, Corpo de Deus e Santíssimo Coração de Jesus).

A escrita de uma história da leitura apoiada numa literatura do tipo “faça você mesmo”, enfim, espécie de uma ciência popular, como é o caso do almanaque Lunário e prognóstico perpétuo , requer atentarmos para seus ensinamentos como uma referência familiar, cristã e, sobretudo, comunitária. Como ressalta Chartier (2001), a leitura intensa de uma obra como Lunário e prognóstico perpétuo “[...] produz a eficácia [da leitura] do livro, cujo texto torna-se uma referência familiar, cujas fórmulas dão forma às maneiras de pensar e de contar.” Orientar a tábua das festas mudáveis era assegurar

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os ensinamentos desse livro e, igualmente, assegurar uma maneira de transmitir, assimilar e, assim, recitar seus ensinamentos:

Da Páscoa à Septuagésima vão ...........................64 dias Da Páscoa à Cinza vão ........................................47 – Da Páscoa às Ladainhas vão ...............................37 – Da Páscoa à Ascenção vão ..................................40 – Da Páscoa ao Espírito Santo vão .........................50 – Da Páscoa à Santíssima Trindade vão .................57 – Da Páscoa ao Corpo de Deus vão ........................61 – Da Páscoa ao Santíssimo Coração de Jesus vão ..69 [dias]. (VALENCIANO, 1980, p. 48).

Em grande parte, a leitura, certamente compartilhada, de cada ensinamento do Lunário e prognóstico perpétuo levava adiante prognósticos de tempos passados difundidos pela linguagem escrita, de outras obras (por exemplo, o Almanaque do horticultor ), além de escritos de autores leigos ou católicos (Alexandre I, Almonçor, Gregório IX, Gregório XIII e Júlio Cesar). As leituras e pesquisas tópicas, baseadas no Almanaque do horticultor , orientavam o homem do sertão a lidar com a sobrevivência da vida biológica e a da natureza, pelo cultivo de jardins, hortas, árvores frutíferas e do trato dos animais. Na tábua desses ensinamentos, a fórmula de ler, memorizar, transmitir e repetir estava assim exposta:

Jardins − Neste mês [janeiro] deve continuar o arrancamento das plantas anuais velhas que tenham estendido a sua florescência até mais tarde. [...] As mudanças e transplantações também se fazem nesta época, aproveitando sempre os dias menos ásperos. [...] Hortas − Neste mês devem fazer-se as cavas para os espargos, alcachofras, abóboras e batatas; − cavam-se e estrumam-se os espaços desocupados para expor a terra, o maior tempo possível, aos agentes atmosféricos que as fertilizam e tornam mais própria para todas as culturas. [...] Neste mês semeiam-se alhos, favas, ervilhas, grãos-de- bico e batatas; − estas sementeiras temporãs carecem de mais cuidados para as preservar dos grandes frios; as batatas semeadas nesta época resistem melhor à moléstia que costuma atacá-las. [...] Arvoredos − Nesta época deve apressar-se, quanto possível, a plantação das árvores frutíferas em geral. [...] Quem quiser obter um bom resultado, tanto em relação ao vigor das árvores, como à abundância de frutos, não deve espaçar, além deste mês, a poda e limpeza das árvores frutíferas. [...]

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os médicos antes de tomarem os banhos e assim os banhos serão de grande proveito. As pessoas que sofrem dos pulmões (bofes), do fígado, dos rins, das hemorróidas e dos intestinos, do coração e da bexiga, devem acautelar-se dos banhos salgados e do mar, porque lhes serão em demasia nocivos. (VALENCIANO, 1980, p. 208-209).

A habilidade de preparar chás, xaropes e lambedores caseiros à base de rosas, folhas, flores, sementes e raízes, geralmente nativos, requeria a leitura quase diária, ou mesmo diária, das tábuas de receituários, algumas delas ainda hoje preservadas pelo povo sertanejo. Virtudes e propriedades para viver com mais saúde acudiam, cada uma, pelo devido nome.

As rosas [...] das quais a medicina faz uso: Rosa de cão ou silva- machaRosa-de-cem-folhas ou rosa de alexandriarosa-de-musgo. As folhas destas flores são adstringentes e o chá delas serve para combater as inflamações dos olhos, lavando-os com esse chá e para gargarejos nas moléstias de garganta. A hortelã tem a virtude de matar e lançar fora as lombrigas do ventre e bichos do estômago. A hortelã-pimenta emprega-se contra as cólicas nervosas, diarréias, vômitos espasmódicos, tosses convulsas, asma e como vermífuga ou contra vermes. Anis ou erva doce [...] é dela se usam as sementes ou frutos contra a flatuosidades intestinais, cólicas das crianças, diarréias crônicas, etc. As folhas de alecrim e as sumidades dos ramos floridos são excitantes, e empregam-se contra as digestões difíceis ou laboriosas, tosses úmidas, escrófulas, etc. Arbusto bem conhecido [sabugueiro], cujas flores secas, depois de maduras, são empregadas como sudorífico nos refluxos, constipações, inflamações dos pulmões, sarampo, escarlatina e em todas as moléstias em que convém promover a transpiração. O óleo de rícino é laxante e um dos purgantes mais usuais e goza também de propriedades contra os vermes intestinais. (VALENCIANO, 1980, p. 217, 245, 248, 260, 266, 268).

Leitura do tipo “faça você mesmo”, o Lunário e prognóstico perpétuo ensinava, outrossim, receitas para o tratamento de abscessos ou tumores (papa medicamentosa de semente de linhaça, de batata ou de malva cozida), aftas (purgar o indivíduo com óleo de rícino), ardor no urinar (banho morno de assento, esfregações com óleo canforado no baixo-ventre e papa de linhaça), cálculos ou pedras na bexiga (banho morno e xarope de ópio e de flor de laranjeira), caspas (lavar a cabeça com mistura de aguardente de cana e uma gema de ovo), cólica de crianças (banho morno,

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linhaça cozida sobre ventre, chás de erva-cidreira ou de flores de laranjeira), diarreias (chá de semente de linhaça, clara de ovo batida em meia xícara de água morna com açúcar e papa de linhaça sobre o ventre), hemorróidas (purgantes brandos de óleo de rícino, injeção de água fria ou morna e limonada de citrato de magnésia).

No modo de vida simples do homem e da mulher do século XIX, a leitura do tipo “faça você mesmo” encontrou um terreno favorável para socializar inúmeros ensinamentos úteis relacionados à maneira de fabricar grudes ou colas, tirar nódoas de tinta de escrever, confeccionar pomadas para tingir o cabelo de preto e água para tornar os cabelos castanhos.

A história da leitura relativa às atitudes de viver e sobreviver fervorosamente em lugares sertanejos ou litorâneos longínquos é, portanto, bem intencional. Ela postula uma conciliação da saúde corporal e espiritual de homens e mulheres com o tempo social, a diversidade da natureza, as fases da lua e, mais ainda, com o temor a Deus.

O que teme a Deus fará coisas boas, que são medicinas conservativas da saúde e da alma, e preservativas muitas misérias, trabalhos e enfermidades do corpo. Diz mais o verso [Eclesiástico, Provérbio 15) que, para conservar o santo temor de Deus, convém que nos apartemos e fujamos daqueles que não temem, porque, como diz o Provérbio: Cum santo sanctus eris, & cum perverso perverteris : e assim, perdido o temor, se perde o respeito, e de perder o respeito nasce a total ruína da saúde espiritual e corporal. (VALENCIANO, 1980, p. 210, grifo do autor).

Não obstante, a educação escolar das novas gerações era inseparável da leitura extensiva e da escuta de proezas de homens valentes, de santos e santas patriarcas e matriarcas, das tábuas de receituários, das casas dos planetas, dos prognósticos para cada ano, do calendário gregoriano, do ciclo solar − ou dominical −, do trabalho agrícola, da economia doméstica e até de jogos de entretenimento. Como não poderia deixar de ser, a educação escolar das crianças dependia da leitura de bons livros, que era uma das instâncias de úteis apropriações.

Que os teus filhos saibam ler, para se aconselharem com os bons livros, que aconselham bem e de graça! – Como não é agradável, reunida a família em torno do lar, em uma longa noite de Inverno, ouvir com curiosa atenção a história dos santos patriarcas, a narração da proeza de nossos honrados e valentes pais, a exposição de práticas agrícolas, melhores de que as vossas, e mesmo a leitura dessas linhas

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