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A evolução do conceito de liberdade, direitos e justiça, desde a grécia antiga até o pensamento moderno. Aborda autores como aristóteles, agostinho, hobbes, locke e kant, analisando suas diferentes perspectivas sobre a natureza da liberdade, o papel do estado e a relação entre direitos individuais e o bem comum. O texto também discute a importância do governo da lei, a liberdade religiosa e a propriedade como pilares da justiça social.
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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Fernando Quintana Os cientistas políticos devem ocupar-se com aquilo que os comovem : a relação ética e política.
Esta introdução mostra o lugar da teoria política diante de outros enfoques que se ocupam do estudo da política: “Quem nas ciências humanas fala de teoria está condenado a enfrentar sempre e repetidamente a questão da relação entre a ciência e a filosofia ” (grifo nosso) (Brandão, 1998: 271). Além do mais, aborda aspectos metodológicos sobre o tema de nossa disciplina: a relação ética e política.
A teoria política tem se defrontado com outras formas de saber: a filosofia e a ciência política, a primeira procura responder uma questão especulativa: a razão de ser da política enquanto a segunda uma questão prática: o que deve prever o estudo da política. Duas abordagens, metafísica e empírica, que nem sempre dialogam entre si tornando difícil a desejada comunicação entre ambas:
[...] a filosofia política permite ao politólogo adquirir uma maior consciência sobre as categorias filosófico-políticas empregadas em lugar de outras. Por seu turno, a ciência política oferece à filosofia política uma ajuda nada desdenhável derivada do que as explicações causais permitem para a reflexão filosófica (Cansino, 2008: 38).
Seguindo o ensaio do cientista político Giovani Sartori, ciência e filosofia política (1981), podemos dizer que a filosofia política é um exercício formal argumentativo, uma especulação teórica da política, um saber inclusivo, geral ou abrangente enquanto a ciência política um exercício empírico demonstrativo, uma verificação da realidade, um saber exclusivo, limitado ou especializado.
A filosofia política se ocupa de “grandes temas” ou, segundo o filósofo político Leo Strauss de “questões perenes” - o seu interesse é, portanto, retrospectivo, ex ante , voltada para o passado e, isso à diferença da ciência política que se ocupa de objetos de estudo concretos, o seu interesse é prospectivo, ex post , voltada para o futuro.
A filosofia política é uma reflexão exógena da política que se funda em orientações prescritivas, normativas, um conhecimento não aplicado mas que consegue, contudo, levantar questões essenciais e, portanto “difícil de ser compreendida” em contraste com a ciência política, uma reflexão endógena do político que se funda em evidências ou constatações empíricas, um conhecimento aplicado que visa sobretudo resolver problemas concretos e, portanto “difícil de ser feita”.
A filosofia política usa uma linguagem conotativa , um sentido subjetivo das palavras, no dizer de George Sorel “ultrarepresentantivo” das palavras, em que estas podem ter vários significados - fecundidade das palavras -, procedendo assim a filosofia política transfigura os fatos por ser uma reflexão que se afasta da realidade em
contraste com a ciência política que usa uma linguagem denotativa , um sentido objetivo das palavras, em que estas indicam o que representam - fecundidade dos fatos -, procedendo assim a ciência política configura os fatos por ser uma reflexão mais próxima da realidade.
A filosofia política, baseada numa linguagem abstrata , se interessa pelo por que dos fenômenos políticos - o conhecimento especulativo, filosófico, busca a essência das coisas enquanto a ciência política, baseada numa linguagem perceptiva , se interessa por como são os fenômenos políticos - o conhecimento empírico, científico, busca responder como é a realidade.
A filosofia política, com sua capacidade preventiva , é uma abordagem mais engajada e apaixonada na medida em que procura prever, em nível teórico, o que pode acontecer colocando algo como desejável ou indesejável em contraste com a ciência política que, com sua capacidade preditiva , mais pragmática e desapaixonada, visa antecipar, em nível concreto, o que vai acontecer.
Do exposto, podemos concluir dizendo que a filosofia política é uma abordagem prescritiva, idealista, abstrata, compreende conceituando, conceptum , valoriza as ideias em relação a outras ideias no mundo intelligibilis enquanto a ciência política é uma abordagem descritiva, realista, empírica, explica observando, perceptum , privilegia os fatos em relação a outros fatos no mundo sensibilis.
Com base neste contraste, importa trazer a metáfora do cientista político americano Gabriel Almond: Teoria política - a cafeteria do meio (1990) com o intuito de mostrar que a teoria política, tertium genus , permite aproximar “mesas separadas”: a filosofia e a ciência política e, isso pelo fato de ser “um lugar de encontro” (Cansino, 2008: 38) entre ambas. O “novo” lugar - intermediário - da teoria política sendo destacado por vários autores contemporâneos que resistem a decretar o fim da teoria política ou, mesmo que esteja moribunda (Berlin, Plamenatz, Wolin, etc).
Importa destacar que o estudo da política não foi acompanhado de um método científico como acontece com a ciência política contemporânea em que hipóteses são testadas com base em dados rigorosos coletados da realidade através do uso de métodos quantitativos e estatísticos. As ciências políticas , afirma Norberto Bobbio, já existia antes da ciência política, ela compartilhava o campo de investigação com a história, direito, filosofia (Pinto, 1997: 89). Em outras palavras: o estudo da política aconteceu sem ela contar com métodos rigorosos mas nem por isso incapaz de ter contribuído para o conhecimento.
Esta observação é importante se levamos em conta que nossa disciplina gira em torno do tema ética e política - o que implica lançar mão da teoria política, tertium gens , na medida em que dialoga com outros campos do saber: a história. Trata-se,
Sendo assim, trata-se de “teorizações de primeiro e segundo nível” e, também de “aprender com”, ou seja, fazer teoria política como cidadãos engajados com os problemas reais e concretos do mundo em que vivemos aprendendo com autores de primeiro nível porque “somos de segundo nível tentando fazer o melhor”; e, não só estudiosos preocupados com adquirir informação (Ball, 2004: 20).
As “grandes questões” que serão abordadas adquirem maior densidade e interesse quando inseridas no contexto histórico. Única maneira, em nosso entender, de ir além de uma abordagem especulativa, anistórica ou atemporal de textos, autores e problemas que fica limitada ao sobrevoo de ideias. Única maneira, também, de evitar aquilo que se conveio chamar de falácia do presentismo : avaliar a partir de categorias do presente o que somente é inteligível dentro do próprio contexto.
Apesar de seguir o método textualista baseado na reconstrução dos argumentos dos autores, com especial ênfase nos problemas e questões que levantam, não por isso descuidamos o contexto que contribui para um melhor entendimento dos mesmos. Tal postura, textualista / contextualista , implica então relacionar o texto com a época em que foi elaborado ou, como sustentam os membros da New History , “todo texto deve compreender-se em relação com algo ” (grifo do autor) (Vallespín, 2002: 25).
Convém acrescentar que os temas a serem estudados em nossa disciplina podem ser objeto de uma abordagem valorativa ou pragmática: como devem ser as normas e instituições da sociedade ou como funcionam as normas e instituições na realidade, etc.
Assim, as avaliações morais (bom/mau) podem ser usadas pragmaticamente segundo valores relativos ou normativamente segundo valores absolutos cabendo descobrir em que sentido elas são empregadas. Tal tarefa é necessária se levamos em conta a “mudança imperceptível” que se dá nos teóricos e filósofos da política e da moral que passam de uma linguagem descritiva, pragmática, baseada na cópula apofântica (“é/não é”) para uma linguagem prescritiva, normativa, baseada na cópula deôntica (“deve/não deve”):
Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar (...) fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é , não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois, como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que parece inteiramente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes. Mas já que os autores não costumam usar essa precaução, tomarei a liberdade de recomendá-la aos leitores; estou persuadido de que essa pequena atenção seria suficiente para subverter todos os sistemas correntes de moralidade, e nos faria ver que a distinção entre vício (mau) e virtude (bom) não está fundada meramente nas relações dos objetos, nem é percebida pela razão (grifo do autor) (Hume, 2001: 509).
A advertência humiana, “o que é justo, bom, toma posse de nosso coração , o que é inteligente, evidente provoca apenas o frio assentimento da razão ”, é relevante porque permite detectar, segundo o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, quando a “linguagem sai de férias”, isto é, quando a linguagem vai além da sua capacidade descritiva-pragmática para uma linguagem prescritiva-normativa. Dois tipos de juízos
Cientes que a passagem do ser ao dever ser exige grande cuidado (MacIntyre, 1994:
Fernando Quintana
Refletir sobre ética e política não pode prescindir da antiguidade clássica na medida em que deixa como um dos principais legados que a política não pode ser pensada fora da moral - o que implica a posta em prática da melhor forma de governo: a república ou politéia (Aristóteles) 1.
À volta ao pensamento da antiguidade clássica, em particular aos escritos do estagirita, obedece também ao fato que sua reflexão contribui ao debate contemporâneo em que teóricos políticos liberais e filósofos morais deontológicos acreditam que o correto tem prioridade sobre o bem enquanto comunitaristas e teleologistas que o bem tem prioridade sobre o correto (Fraser, 2007: 104) ou, parafraseando autores desta última corrente: a ética grega se interessa pelo que devo fazer para viver bem enquanto a ética moderna que devo fazer para atuar corretamente (MacIntyre, 1994: 89).
Tal contraste faz que liberais defendam uma moral e ética baseada em princípios universais enquanto comunitaristas, como Alasdair MacIntyre, uma moral e ética particular ligada ao êthos ou costume de cada sociedade ou, como diria Aristóteles, ao tipo de temperamento e comportamento dos homens que compõem cada pólis.
Além do mais, a moral e ética aristotélicas estão baseadas na virtude da qual depende a vida boa em comunidade em contraste com filósofos modernos e contemporâneos que afirmam que a justiça não deve basear-se numa “concepção particular de virtude” ou da “melhor forma de vida” - a sociedade justa é àquela que “respeita a liberdade de cada indivíduo para escolher a própria concepção do que seja uma vida boa” (Sandel, 2012: 16-17). Trata-se do conflito sobre a melhor maneira de viver: livremente para escolher a melhor forma de vida, virtuosamente para promover o modo de vida de uma boa sociedade (Aristóteles).
Acompanhando vários estudiosos procuraremos mostrar como Aristóteles não separa a política da moral (Prélot, 2006: XVI), que a política depende da ética tanto em seu direcionamento quanto em seus meios (Wolff, 1999: 20), que a ética enquanto conhecimento do justo faz que a política tome sob sua responsabilidade visando o bem (Darbo-Peschanski, 1992: 35), que a política é um terreno de reflexões sobre a conduta humana, as instituições e a sociedade, num marco teórico ligado à ética (Gual, 2002: 150), que a política enquanto doutrina de uma vida boa e justa é a continuação da
(^1) Os termos moral e ética correspondem, em Aristóteles, ao “costumeiro”, “adquirido” - o que significa que as pessoas não nascem morais ou éticas, mas tornam-se através do hábito e a educação ( paidéia ). As virtudes morais dizem respeito à “disposição da alma”, caráter ou temperamento enquanto as virtudes éticas dizem respeito ao “agir”, conduta ou comportamento. Sendo assim, a ética pode ser tida como a externalização da moral: o êthos diz respeito à “maneira de ser e de se conduzir ”, ao “modo de ser e de fazer ”, ele “se traduz pelos hábitos” (Foucault, 2012: 264).
ética (Habermas, 1990: 49), que as decisões e práticas políticas promovem e realizam valores morais ou éticos (Ribeiro, 2006: 9). Em definitivo, como no estagirita:
A ciência política deve ser a ética de toda uma sociedade, cuja consistência deriva de um propósito moral comum; ela deve determinar o que é o ‘bem’ para a sociedade, qual a estrutura que vai assegurar a melhor maneira para alcançá-lo, as ações que melhor contribuem para esse fim. Aristóteles não vê diferença essencial entre a ciência política assim concebida e a ética. O bem do indivíduo é idealmente o bem da sociedade; a virtude de um é idealmente a virtude do outro. Na qualidade de ciência de uma sociedade moral em busca do bem pleno, que só pode ser alcançado pela ação comum, a ciência política é, para Aristóteles, a ética suprema (Barker, 1978: 17).
Tomando duas obras do autor, Ética a Nicômaco e A política , podemos dizer que ética e política são duas “disciplinas práticas” ou “artes” que tem como objetivo a felicidade ou eudaimonía tanto em nível individual quanto social e político^2 :
O seu objeto é o estudo do supremo bem a que podem aspirar os homens, isto é, a felicidade. A ética procura, pois, saber, em primeiro lugar, em que consiste a felicidade; em segundo lugar, qual a forma de organização política que assegure a felicidade geral. Aristóteles procurou responder à primeira indagação em Ética a Nicômaco , e a segunda na Política. Não se trata, portanto, de dois livros sobre assuntos distintos, mas de duas partes de um mesmo assunto (Comparato, 2006: 99).
A relação ética e política, que passa pela melhor forma de governo, obedece como destaca Marcel Prélot à “atmosfera pesada” da época, em particular, pela situação que atravessa Atenas^3 : fim do “século d’ouro” (460-430 a.C.) com a Guerra do Peloponeso (431-405 a.C.) em que Esparta, triunfante, acaba com a democracia de Péricles e Atenas conhece formas ruins de governo (oligarquia, oclocracia )^4 , lutas internas e instabilidade política; a batalha de Queroneia (338 a.C.) em que Felipe II, rei da Macedônia, acompanhado de seu filho Alexandre, vence as forças atenienses e lhe impõe, como a outras cités vencidas, um conselho comum cujos representantes não discutem as decisões. A fortuna das cidades-estados fica selada - o fim da pólis e o triunfo da Cosmópolis (império) com Alexandre Magno.
Neste contexto, fim da democracia ateniense e ocaso da pólis , o estagirita desenvolve sua reflexão visando mostrar como a realidade é, ou seja, os distintos temperamentos e comportamentos, o êthos de cada povo, que se encontram na base das diferentes formas de governos, mas também como podem ser melhorados:
(^2) Cabe esclarecer que a palavra politikós , em Aristóteles, cobre tanto “o que entendemos por político como o que entendemos por social (ela) não discrimina entre ambos os aspectos” (grifo do autor) (MacIntyre: 1994: 64). 3 O Estagirita permanece duas vezes em Atenas, como aluno e professor na Academia de Platão (367- 347 a.C.) e, mais tarde, quando funda o Liceu (336 a.C.), com ajuda de Alexandre o Grande, até que é forçado deixar a cidade acusado de pró-macedônio (323 a.C.). No interregno, durante dois anos (343- 341 a.C,), é professor de Alexandre por convite do pai Felipe II (rei da Macedônia). 4 Ou seja, a “Assembleia democrática dos 5.000”: “governo das multidões rudes, ignaras e despóticas”, segundo Aristóteles que, importa lembrar, mata Sócrates (399 a.C.) por ensinar a máxima: “conhece-te a ti mesmo de um conhecimento verdadeiro”.
que lhe é própria” (a felicidade) (Aristóteles, 1961:76). Assim, virtude e prudência são sinônimas.
As virtudes aristotélicas se relacionam com o sentimento, disposição da alma, o caráter ou temperamento, mas também com o comportamento. Dentre das virtudes morais, adquiridas pelo hábito podemos citar, seguindo a Ética , certos jeitos de ser e condutas que supõem sempre o triunfo do meio-termo ( andréia ) entre dois extremos (o excesso e a falta); o bem entre dos vícios, uma cumeada entre dois abismos, isto é, uma forma de ser moderada e uma forma de agir prudente que constituem talvez um dos traços mais importantes da moral e ética aristotélica.
Assim, por exemplo, a coragem que deve evitar a temeridade e cobardia; a calma : a irascibilidade e apatia; a temperança : a intemperança e insensibilidade; a liberalidade : a prodigalidade e avareza; a honra : a ambição e humildade^6 ; a magnificência : a vulgaridade e mesquinharia; a indignação : a inveja e raiva; a magnanimidade : a soberbia e modéstia; a veracidade : a jactância e falsidade; a jocosidade : a bufonaria e rusticidade^7 ; a amizade : a adulação e grosseria; e, a justiça que diz respeito a um modo ser e agir pautado pelo equilíbrio, pela mediania: o justo ou meio-termo (lembrando o símbolo da justiça representada pela balança). Tais jeitos de ser, cristalizados em comportamentos, são importantes na medida em que permitem determinam o êthos de cada povo, bem como as distintas formas de governo.
A andréia pode ser exemplificada no “olho virtuoso” que, segundo Ética , significa que entre o olho completamente míope e hipermetrope tem-se uma completa hierarquia de graus que passam por um meio, que é a perfeição mesma, isto é, a igual distância dos efeitos extremos que são a hipermetropia (a demasia) e a miopia (a falta).
Dentre as virtudes aristotélicas: a justiça, prudência e amizade podem ser tidas como virtudes cardiais e, isso pelo fato que implicam a externalização dos bons sentimentos ou formas de ser e, portanto trazem efeitos salutares para a vida em comum ou, como diz o estagirita, porque produzem para a sociedade política a felicidade.
Além destas virtudes práticas existe também a sabedoria especulativa, filosófica ou teórica, adquirida pelo ensino, que “produz felicidade porque, sendo ela uma parte da virtude inteira, torna um homem feliz pelo fato de estar na posse e de atualizar-se”.
(^6) Trata-se, neste caso, da honra (adquirida não pela riqueza) mas pela “coragem” do guerreiro, elogiada por Aristóteles e também por Péricles que, discursando sobre a superioridade de Atenas sobre Esparta, antes do início da guerra do Peloponeso, declara: “Saibamos que tanto para as cidades quanto para os indivíduos, os mais graves perigos (a guerra) permitem a conquista da mais alta honra” (Mossé, 1971: 61). 7 Para Aristóteles os “seres humanos são as únicas criaturas que riem”, contudo, o riso defendido pelo estagirita não é o riso “zombeteiro”, praticado pelos jovens, que adoram desprezar, envergonhar os outros, mas o riso “alegre”/”sorridente” que produz prazer, felicidade (Skinner, 2002: 15-16).
Para Aristóteles, a virtude intelectual diz respeito a uma parte da alma: a reta razão que se relaciona com as ciências teóricas (matemática, física, etc), o invariável, sujeito a leis universais através do método indutivo ou dedutivo - o que no campo da ética implica o conhecimento do bem^8. Contudo, importa sublinhar que a sabedoria teórica, a filosofia, à diferença das virtudes práticas, supõe sobretudo o uso da razão cuja meta é o conhecimento ( epistéme ) ou, como acredita Platão, o conhecimento do verdadeiro e do bem que não necessariamente implica “ações úteis, boas e belas”.
Aristóteles sem deixar de elogiar a filosofia entende, na relação theoría e práxis , que a segunda é mais relevante: é acertado, pois, dizer que pela prática de atos bons se gera o homem justo, mas a maioria das pessoas não procede assim refugiam-se na teoria e pensam que estão sendo filósofos e que se tornam bons dessa maneira. E, ainda, com o intuito de mostrar o predomínio da vida prática sobre a vida contemplativa, declara: o intelecto por si mesmo não move coisa alguma, só pode fazê-lo a sabedoria prática que visa a um fim (a felicidade) (Aristóteles, 1987: 31; 102) ou, quando em contraste com Sócrates, que acredita que as virtudes morais são formas de conhecimento, afirma: “o mais importante não é saber que é, mas como agimos: não queremos saber o que é a coragem, queremos ser corajosos” (MacIntyre, 1966: 31).
Sendo assim, a prudência, sabedoria prática, é mais importante que a sabedoria teórica já que faz possível, no dizer do autor, que “a obra de um homem só é perfeita quando está de acordo com a sabedoria prática e com a virtude moral (bons sentimentos), porque esta faz que seja reto o nosso propósito; e aquela que escolhamos os devidos meios” (Aristóteles, 1987: 111-112). A prudência, que acena com a possibilidade de uma “ação útil, boa e bela”, supõe então a junção do bom caráter e da razão. O fato de nela intervir a razão não significa que a prudência seja igual à sabedoria intelectual ou filosófica que visa, vale reiterar, apenas o conhecimento.
De fato, a chamada atividade deliberativa , locus privilegiado do exercício da prudência não procura, como veremos, o conhecimento mas se funda no melhor argumento ou opinião. Em outras palavras: uma coisa é a prática do bem outra é o conhecimento do verdadeiro. Sobre esta diferença, cabe o seguinte comentário:
O bem não é demonstrável como a verdade. Tudo que podemos fazer é contar com um discernimento, espécie de sabedoria prática, que empregamos na tentativa de que nossas opções se orientem pelo critério do melhor possível, sem esperar a segurança proporcionada pela dedução da verdade teórica (Silva, 2011: 71).
A prudência ou sabedoria prática é relevante porque se relaciona com o agir concreto que, norteado por bons sentimentos, consegue resultados - à diferença da teoria ou filosofia que “não move coisa alguma”. Neste sentido, cabe citar a definição dada pelo
(^8) Quanto ao conhecimento do “bem” importa dizer que ele se apresenta de forma objetiva: a natureza ( fúsis ) em que cada um dos elementos que a compõem se encontram em perfeito equilíbrio ou, como dirá Aristóteles em que cada ser cumpre a sua finalidade (voltaremos sobre este ponto).
comunidade política. O termo pólis serve para designar uma agregação de homens em vistas do bem comum: a felicidade, bem como uma organização que experimenta a autárquica (autosuficiência). Uma organização que supõe não apenas viver ( zein ), mas viver bem ( eu zein )^10 e, isso em contraste com as sociedades menores, “argolas de uma cadeia com princípio e fim” (a pólis ), que visam a sobrevivência ( zein ), mas carecem de laço político, não compartilham uma comunidade em pro do bem comum. Além do mais, tais agrupamentos seriam limitados porque segundo o estagirita quanto “mais reduzidos são os grupos, menores são as exigências morais”.
Dentre dos grupos menores cabe citar a família; a phratría (grupo de famílias); e a tribo (grupo de fratrias) que formam uma confederação até chegar à pólis (grupo de tribos), sem perder sua individualidade e independência; em termos religiosos cada um tem seu culto até chegar ao culto comum. A este respeito, cabe trazer o comentário de um importante estudioso d’ A cité antique :
O homem entra em épocas diferentes em cada um dessas quatro sociedades, ele sobe, de certa maneira, de uma para outra. A criança é primeiro aceita na família pela cerimônia religiosa que acontece dez dias após seu nascimento. Depois de alguns anos, entra na fratria através de uma nova cerimônia [diante de uma divindade superior à divindade doméstica]. Por último, à idade de dezesseis ou dezoito anos, ele se apresenta para ser aceito na cidade. Esse dia (...) faz um juramento pelo qual se compromete, dentre outras coisas, a respeitar sempre a religião da cidade. A partir desse dia, é iniciado ao culto público e se torna cidadão (Coulanges, 1984: 145).
Como acontece no plano religioso: pluralidade de cultos por cima dos quais o culto da cité (a deusa Atenas) o mesmo acontece no plano político: pluralidade de governos (chefes, assembleias, etc) por cima dos quais o governo da cidade, que visa o bem de todos.
A politéia em sentido objetivo diz respeito também a uma forma específica, reta, de governo: a república. Ideia endossada por Péricles quando se refere à “democracia ateniense” (460-430 a.C.) nos seguintes termos:
Nossa politéia não tem nada que invejar às leis que regem nossos vizinhos; longe de imitar aos outros, nós damos o exemplo a seguir. Do fato que nossa cidade encontra-se administrada pelo interesse da massa e não de uma minoria, nosso regime chama-se democracia. E no que concerne as diferenças particulares, a igualdade é garantida a todos através das leis; mas no que diz respeito à participação na vida pública, cada um é merecedor de consideração em razão do seu mérito, e a classe a qual pertence importa menos que seu valor pessoal; em definitivo ninguém é incomodado pela pobreza ou pela baixeza da sua condição social, sempre e quando preste serviços à cidade (grifo nosso)(Mossé, 1971: 47).
Para Aristóteles a politéia ou república resulta, paradoxalmente, da combinação de duas formas más ou ruins de governo: a oligarquia e a democracia. De fato, segundo A política , a oligarquia é o governo dos ricos enquanto a democracia dos pobres, com o
(^10) “É evidente, observa Aristóteles em A política , que a pólis não é, meramente, a coabitação de pessoas no mesmo território, a fim de que os cidadãos gozem de segurança e mantenham boas relações de negócio”.
qual o que interessa destacar não é a extensão da soberania, critério quantitativo, quantos governam?, mas o modo de exercício da soberania, critério qualitativo, como se governa? Para quem se governa? Ou seja, em beneficio de uma parte, as formas ruins ou más de governo: um só - tirania; ricos - oligarquia; pobres - democracia ou oclocracia ou, pelo contrário, em beneficio de muitos ou do grande número, as formas retas ou boas: realeza, aristocracia e república ou politéia , respectivamente.
O fato de que poucos ou muitos governem é acidental para determinar a oligarquia ou democracia, uma vez que a verdadeira diferença radica no predomínio dos interesses que as animam: a riqueza ou liberdade total (licenciosidade). Disso resulta que o objetivo do estagirita, ao igual que outros pensadores da antiguidade, é defender uma forma de governo que, segundo assertiva do reformador Sólon, “permita que ricos e pobres sejam protegidos com um forte escudo que cobra a todos, de modo que nenhum triunfe injustamente à custa dos outros” (Finley, 1983:11).
É o que acontece, por exemplo, na oligarquia em que os ricos se tomam por “deuses”, governam acima das leis e em benefício próprio contra os pobres; e na democracia em que os pobres se comportam como “bestas”, governam acima das leis e em benefício próprio contra os ricos. Não esqueçamos, seguindo Aristóteles, que para fazer parte de uma koinonía (comunidade) é necessário que o homem não se baste a si mesmo, isto é, seguindo o autor, que não se tome por deus ou animal.
Como exemplo de formas ruins de governo podemos citar os regimes conhecidos por Atenas depois da Guerra do Peloponeso: “Conselho oligárquico dos 30”, “Assembleia democrática dos 5.000”. Exemplos maus de governo porque, conforme o estagirita, “quando ocorrem revoltas e combates entre pobres e ricos, os que saem vencedores não toleram mais comunicação nem igualdade com os vencidos, mas reservam para si, como prêmio da vitória, o privilégio de governar” (Aristóteles, 2006: 190).
Para superar a ideia de que o estado ( pólis ) é uma arena de interesses conflitantes, o espírito moderado do estagirita elogia uma forma de governo que permita superar o predomínio de interesses parciais. Uma forma - mista - de governo, a república ou politéia , mistura de oligarquia e democracia (ricos e pobres), que é melhor porque se assenta em termos socioeconômicos numa ampla classe média, numa maior inclusão social, com “muitos cidadãos de média fortuna”, segundo Aristóteles, mas também porque combina certos arranjos institucionais que permitem uma maior participação política, que evita o conflito e fortalece o consenso. Além de contar, como veremos, do ponto de vista ético com uma maior quantidade de cidadãos virtuosos.
De fato, o problema da oligarquia e democracia, formas simples e más de governo, é que conhecem a perturbação da ordem, a desordem ( stasis ), a desarmonia ( hybris ), o descomedimento, ou seja, a prática do excesso, o triunfo do vício: os ricos que não querem perder a riqueza e brigam contra os pobres, os pobres que não querem perder
Seguindo Francis Wolff, o problema da democracia e oligarquia é que elas operam uma “quantificação do poder” quando na verdade do que se trata, inspirado no estagirita, é defender uma forma de governo em que se dá uma “qualificação do poder”: as formas retas. Com base nesta premissa, a politéia é uma forma boa não porque o poder seja distribuído equitativamente como querem os oligarcas que dizem “a cada um segundo sua riqueza” ou os pobres que dizem “a cada um segundo sua liberdade” (licencia total), mas porque deixa de lado tais critérios. De fato, nestes casos o poder aparece distribuído não de acordo com a virtude, mas conforme interesses parciais, “da classe dominante”, que pretendem se erigir no interesse geral.
Com base no entendimento que “nem a liberdade (licencia total) nem a riqueza devem ser levados em conta na distribuição do poder” (Wolff, 1999: 123), há que “encontrar” uma forma de governo em que o poder seja exercido por cidadãos virtuosos. Sendo assim, a pergunta correta, seguindo o raciocínio do mesmo autor, é a seguinte: a quem o poder deve ser atribuído em toda justiça não porque será justamente repartido, mas porque será justamente exercido, em benefício de todos.
A este respeito é conhecida à resposta de Aristóteles com as três formas retas ou boas de governo porque baseadas na virtude de um só (realeza); alguns (aristocracia); e, na virtude de muitos (república). Em todos os casos trata-se do governo em favor de todos e respeitoso das leis. Dessa maneira, para o estagirita, é justo todo governo que vise o bem de do maior número em vez daqueles que só beneficiam uma parte da sociedade. Assim, a vida boa, o bom viver ( eu zein ), viver em comum ( koinon ), qualifica o governo de um, alguns ou muitos como verdadeiro regime político.
Contudo, resta saber, qual das três formas é a melhor: “que tipo de regime é o mais capaz de tomar as melhores decisões de governo para a cidade?” (Cardoso, 2006: 6). A resposta do estagirita é o governo de todos em prol de todos: quando a massa, afirma, tomada como um corpo é virtuosa ela é superior àquela de um só ou alguns. A defesa do regime político formado de muitos cidadãos virtuosos implica fazer uma “apologia aristocrática da democracia” ou, parafraseando Francis Wolf: Aristóteles “em vez de pretender que é melhor que o povo governe, ele mostra que o povo governa melhor”:
Aristóteles vem atestar que não é propriamente a democracia - nominal e formalmente o governo de todo o povo, mas, de fato, o da massa dos pobres - que realiza a figura superior do governo de todos [o mais apto a governar para todos e a levar aos fins da comunidade política], mas é o regime constitucional [“ politéia ”]: o governo do “justo meio” entre ricos e pobres, formalmente definido pela promoção da inclusão e comunicação das partes fundamentais [irredutíveis] e antagônicas da cidade (sic) (Cardoso, 2000: 6).
Do exposto até aqui se depreende que a reflexão aristotélica se encontra no ponto de interseção de quatro projetos da teoria política, dois especulativos e dois empíricos, a saber: a) fundamentos da política com finalidades descritivas - a pólis e sua relação com os grupos menores; b) fundamentos da política com finalidades prescritivas - a essência da pólis ; c) regimes políticos com finalidades descritivas - as diferentes formas
de governo; e, d) regimes políticos com finalidades prescritivas - as formas boas de governo que impedem a ruína da pólis. Tais projetos sendo a “marca registrada” da sua obra que parece balançar entre a filosofia com seu ideal reformador e a ciência política com sua análise descritiva e comparativa das diferentes formas de governo^12.
Como exemplo do governo de muitos em favor de muitos podemos citar a democracia ateniense durante o “século de ouro” ou “século de Péricles” (460-430 a.C.) que, na opinião do líder ateniense, se assenta na “busca da felicidade do maior número e não de alguns”. Esta forma de governo, com base nas “reformas cruciais” de Clístenes (508- 507a.C.), faz de Atenas um regime inclusivo, contudo, importa lembrar que mulheres, estrangeiros ( metecos ) e escravos não participam, não são cidadãos; assim de uma população total de trezentas mil pessoas, início do século V a.C, apenas 15% participa como cidadão.
Em Constituição de Atenas o estagirita elogia o líder, Péricles, por ter “entregado o poder ao povo”, na opinião de historiadores: um regime que deu às classes mais baixas a audácia de assumir cada vez mais a liderança na política (Finley, 1988: 58). Porém, a democracia ateniense não se caracteriza só pela maior extensão da soberania, pela maior participação política mas, também porque reflete o costume ou ethos virtuoso de seu povo.
Sendo assim, o estagirita insiste num aspecto muito relevante: a estreita relação que guarda o governo de qualquer comunidade e seu êthos (Babbitt, 2003: 49). Ou, como destacam outros estudiosos a propósito do caráter de cada povo na antiguidade : cada um tinha sua tonalidade ou êthos próprio, cada um desenvolvia um código de conduta peculiar, cada um tinha sua personalidade moral, cada um tinha consciência de si como um todo, que ele próprio criava e sustentava (Barker, 1978: 16). Daí, então, a afamada classificação aristotélica das formas ruins e boas de governo, isto é, baseadas no vício ou na virtude dos que governam, bem como no “jeito de ser” de cada povo.
A continuação, convém registrar algumas características da “democracia ateniense” (460-430 a.C.) na medida em que representa, aos olhos do estagirita, uma forma boa de governo. O elogio desta forma de governo pode ser justificada se levamos em conta a “atmosfera pesada” em que se inscreve a reflexão aristotélica: ocaso do “século de Péricles”, fim da pólis e triunfo da cosmopólis.
As mudanças democráticas introduzidas por Clístenes em Atenas (508 a.C.) faz que o número de tribos passe para dez (das quatro existentes) e, que a população civil seja dividida em trinta grupos de démos (comunas), cada tribo representando as três zonas geográficas da Ática: a cidade, o interior rural e o litoral. Com base nesta repartição, um “espaço cívico inteiramente reconstituído”, os cidadãos passam a ser registrados
(^12) Aristóteles realiza um estudo comparativo de 158 constituições do qual ficou, sobretudo, disponível: A constituição de Atenas (encontrada no século XIX em Egito).
A Eclésia era soberana e seus poderes quase ilimitados, porém diante do risco de ceder ao excesso de demagogos a Boulé , encarregada da redação final das leis, exercia o papel moderador. Nos projetos de lei, submetidos à assembleia, qualquer cidadão podia apresentar impugnações e ementas. As grandes questões como a declaração da guerra, o ostracismo^14 , etc, eram matéria exclusiva de sua competência. O quórum exigido para o funcionamento da assembleia era de 6.000 cidadãos.
A Heliée era composta de cidadãos com mais de trinta anos recrutados por eleição, mas também por sorteio: cada ano seis mil voluntários (600 por tribo) eram sorteados para atuar no tribunal, mais de 300 dias por ano. A função principal consistia em julgar causas apresentadas pela população e atuar como tribunal de apelação das decisões de outros magistrados. Finalmente, o Estratego ou Líder escolhido dentre os cidadãos de cada tribo para compor um colegiado (dez estrategos) que atuavam como ministros ou, como generais em tempos de guerra. O cargo tinha duração de dois anos podendo reeleger-se sem limites de prazo.
Com as reformas introduzidas por Péricles (458 a.C.) o poder da Éclesia é reforçado na medida em que passa a exercer funções dos arcontes^15 ; além disso, a reforma faz que todos os eleitos sejam remunerados (incluídos os 6.000 membros do júri, soldados e funcionários do exército) tornando possível que cerca de 20.000 atenienses possam dedicar-se aos assuntos públicos (Bernet, 2011: 52).
Do “evento criador da democracia ateniense”, as reformas de Clístenes e Péricles, vale destacar, notadamente, a importância da virtude ( areté ), no dizer de Montesquieu: o “princípio ou mola da democracia antiga”, uma forma de agir, segundo o autor, que passa pela contenção do interesse privado em pro do bem comum, pelo respeito do cidadão às instituições e leis. Tal observação do filósofo francês pode ser ilustrada, por exemplo, quando o polités ateniense presta juramento por tribos e démos :
Farei morrer, pela palavra, pela ação, pelo voto e pela minha mão, se puder, aquele que derrubar a democracia ateniense ou, uma vez derrubado o regime, em seguida exercer uma magistratura, ou aquele que se levantar para apossar-se da tirania ou venha ajudar o tirano a se estabelecer. E se for um outro que o mate, eu o considerarei puro diante dos deuses e das potências divinas, como se tivesse matado um inimigo público. Mandarei vender todos os seus bens e darei a metade ao assassino sem frustrá-lo em nada. E se um cidadão morrer matando um dos traidores, ou tentando matá-lo, eu lhes serei reconhecido assim como aos seus filhos [...] E todos os juramentos que foram feitos em Atenas, no exército ou alhures, para a ruína do povo ateniense, eu os anulo e rompo os seus laços (Vidal-Naquet, 2003: 258).
Em relação às funções de governo, Aristóteles entende que atividade legislativa e judiciária deve ficar em mãos de muitos cidadãos e, isso porque a opinião de muitos
(^14) O ostracismo, introduzido por Péricles em Atenas era o procedimento através do qual era expulso ou banido da cidade, por dez anos, todo eleito ou cidadão considerado ruim. Noutras palavras: um castigo a todo àquele que, não opinião da maioria dos membros da Assembleia, não trabalhasse em favor do bem comum. 15 Ex-magistrados da aristocracia ateniense, responsáveis por diferentes áreas de governo.
delibera melhor sobre o universal (a lei) e, julga melhor sobre o particular (o delito) já no tocante à função executiva, além de exigir mais preparo, deve ficar em mãos de poucos para tornar as decisões mais rápidas e não paralisar a atividade administrativa.
Vale destacar que no momento da elaboração da lei e decisão judicial a prudência ou phronésis aparece com toda força, uma vez que a sabedoria prática versa sobre coisas humanas e para isso precisa de homens dotados que saibam, baseados no uso da razão, fazer o melhor para todos (Aristóteles, 1987: 106). De fato, é o que acontece com os encarregados da fazer a lei que cumprem também uma função educadora:
[...] se é pelas leis que nos podemos tornar bons, seguramente o que se empenha em melhorar homens, sejam estes muitos ou poucos, deve ser capaz de legislar. Porquanto reformar o caráter de qualquer um - do primeiro que lhe colocam na frente - não é tarefa para qualquer um; se alguém pode fazer isso, é o homem que sabe, exatamente como na medicina e em todos os outros assuntos que exigem cuidado e prudência (Aristóteles, 1987; 194).
A deliberação, que versa sobre coisas humanas, consiste na procura de meios idôneos para realizar um fim determinado. Contudo, importa dizer mais uma vez que não se trata da escolha de um meio que necessariamente leva a um resultado, ou seja, não é um problema de ciência, epistéme , mas de opiniões, de vários pontos de vista, em que o fim visado é conseguido através de argumentos. A deliberação seja sobre o universal ou particular não implica então um saber infalível, mas que o cidadão desenvolva um saber aproximado sobre o que é possível, ela implica sempre o risco ou fracasso (Aubenque, 1963: 108; 113).
O exercício da prudência pode ser observado na atuação dos juízes ( dikastés ), bem como dos membros do júri que fazem justiça: “dar a cada um o seu” e, isso seguindo dois princípios: aritmético e geométrico, ou seja, uma distribuindo de bens matérias ou imateriais com base num tratamento igual ou proporcional. Em relação a estes dos tipos de justiça vale fazer um breve comentário.
Segundo o Livro V da Ética temos, por um lado, a justiça civil que versa sobre objetos de troca (o contrato), e a justiça penal que versa sobre crimes (o homicídio), em que o juiz decide de maneira igual, de forma aritmética, a parte que corresponde a cada um: no caso do contrato obrigar uma das partes a restituir o que corresponde; no caso do homicídio obrigar o criminoso a cumprir uma pena. Neste contexto, o justo pode ser definido segundo a seguinte premissa: “sofrer o que se faz aos outros será reta justiça” (Darbo-Peschaski, 1993: 46). Na justiça comutativa ou retributiva o que está em jogo é uma “equivalência entre coisas” ou uma “reparação entre pessoas”.
Por outro lado temos a justiça “social” que versa sobre relações de convivência em que o juiz decide de maneira proporcional, de forma geométrica, o que corresponde a cada um, segundo critérios como a necessidade, o mérito, a função e responsabilidade (de cada um). Neste caso, a justiça distributiva ou atributiva, o que está em jogo é uma