



























Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Este documento discute o papel das feministas na ciência e tecnologia, enfatizando a importância da construção social do conhecimento. Os autores citados questionam a doutrina ideológica do método científico e a filosofia da epistemologia, argumentando que elas foram inventadas para distrair a atenção dos verdadeiros objetivos do conhecimento. Além disso, são discutidas as teorias de perspectiva e a importância de uma objetividade que privilegie a contestação e a desconstrução. O documento também aborda a importância da política e ética na busca por conhecimento racional.
Tipologia: Notas de estudo
1 / 35
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
cadernos pagu (5) 1995: pp. 07-41.
a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial *
A pesquisa feminista acadêmica e ativista tentou repetidas vezes responder à questão sobre o que nós queremos dizer com o termo, intrigante e inescapável, "objetividade". Temos gasto muita tinta tóxica e árvores transformadas em papel para difamar o que eles queriam dizer com o termo e como isso nos machuca. O "eles" imaginado constitui uma espécie de conspiração invisível de cientistas e filósofos masculinistas, dotados de bolsas de pesquisa e de laboratórios; o "nós" imaginado são os outros corporificados, a quem não se permite não ter um corpo, um ponto de vista finito e, portanto, um viés desqualificador e poluidor em qualquer discussão relevante, fora de nossos pequenos círculos, nos quais uma revista de circulação de "massa" pode alcançar alguns milhares de leitores, em sua maioria com ódio da ciência. Eu, pelo menos, confesso que essas
** Professora do Programa de História da Consciência da Universidade da Califórnia em Santa Cruz.
Saberes Localizados
fantasias paranóicas e ressentimentos acadêmicos espreitam sob algumas reflexões intrincadas impressas com meu nome na literatura feminista sobre a história e a filosofia da ciência. Nós, as feministas nos debates sobre ciência e tecnologia, somos os "grupos de interesse especial" da era Reagan no âmbito rarefeito da epistemologia, no qual o que tradicionalmente tem vigência como saber é policiado por filósofos que codificam as leis canônicas do conhecimento. E, é claro que um grupo de interesse especial é, na definição Reaganóide, qualquer sujeito histórico coletivo que ouse resistir à atomização desnudadora da Guerra nas Estrelas, do hipermercado, do pós-moderno, da cidadania simulada pela mídia. Max Headroom não tem corpo, portanto, só ele vê tudo no grande império do comunicador da Rede Global. Não é de admirar que Max tenha um senso de humor ingênuo e uma espécie de sexualidade alegremente regressiva, pré-edipiana, uma sexualidade que, de modo ambivalente - e perigosamente incorreto - nós imaginávamos ser reservada aos prisioneiros perpétuos de corpos fêmeos e colonizados, e talvez também aos hackers de computador, machos, brancos, na solitária prisão eletrônica. Parece-me que as feministas, seletiva e flexivelmente, têm se utilizado, e sido apanhadas, por dois pólos de uma tentadora dicotomia em relação à objetividade. Certamente aqui falo por mim, especulando sobre se há um discurso coletivo sobre esses assuntos. Por um lado, estudos recentes sobre ciência e tecnologia tornaram disponível um argumento muito forte sobre a construção social de todas as formas de conhecimento, mais especialmente, e com maior segurança, das formas científicas.^1
(^1) Veja-se, por exemplo, KNORR-CETINA, Karin e MULKAY, Michael (eds.): Science observed: perspectives on the social study of science. Beverly Hills, Sage, 1983; BIJKER Wieber e outros: The social construction of technological systems. Cambridge, M.A., MIT Press, 1987; e especialmente LATOUR, Bruno: Les microbes, guerre et paix, suivi des irrédutions. Paris, Metailié, 1984. Citando Sexta-feira de Michel Tournier (1967), a polêmica aforística, brilhante e
Saberes Localizados
modernista, quando as células pareciam ser células e os organismos, organismos. Pace, Gertrude Stein. Mas daí veio a lei do pai e a solução do problema da objetividade, resolvida por referentes sempre já ausentes, significados diferidos, sujeitos divididos e o infindável jogo dos significantes. Quem não teria crescido torto? Gênero, raça, até o próprio mundo - tudo parece apenas o efeito da distorção da velocidade no jogo dos significantes num campo de forças cósmico. Todas as verdades tornam-se efeitos distorcidos da velocidade num espaço hiper-real de simulações. Mas não podemos nos permitir esses jogos específicos com as palavras - os projetos de criação de conhecimento confiável a respeito do mundo "natural" não podem ser entregues ao gênero paranóico ou cínico da ficção científica. Quem tem interesses políticos não pode permitir que o construcionismo social se desintegre nas emanações radiantes do cinismo. De qualquer modo, os construcionistas sociais puderam sustentar que a doutrina ideológica do método científico e toda a verborragia filosófica a respeito da epistemologia tinham sido inventadas para distrair nossa atenção de chegar ao conhecimento do mundo efetivamente através da prática da ciência. Deste ponto de vista, a ciência - o jogo real, aquele que devemos jogar - é retórica, é a convicção de atores sociais relevantes de que o conhecimento fabricado por alguém é um caminho para uma forma desejada de poder bem objetivo. Tais convicções devem levar em conta a estrutura dos fatos e artefatos, tanto quanto os atores mediados pela linguagem no jogo do conhecimento. Aqui, artefatos e fatos são partes da poderosa arte da retórica. Prática é convicção e o foco é muito na prática. Todo conhecimento é um nódulo condensado num campo de poder agonístico. O programa forte da sociologia do conhecimento junta-se aos adoráveis e sujos instrumentos da semiologia e da desconstrução para insistir na natureza retórica da verdade, aí incluída a verdade científica. A História é uma
Donna Haraway
estória que os entusiastas da cultura ocidental contam uns aos outros; a ciência é um texto contestável e um campo de poder; o conteúdo é a forma.^2 Ponto. A forma na ciência é retórica artefactual-social de fabricar o mundo através de objetos efetivos. Esta é uma prática de convicções que mudam o mundo e que tomam a forma de incríveis objetos novos - como os micróbios, os quarks e os genes. Mas tenham elas ou não a estrutura e as propriedades de objetos retóricos, as entidades científicas do final do século vinte
(^2) Para uma elucidação elegante e muito útil de uma versão não caricatural desse argumento, ver WHITE, Hayden: The content of the form: narrative discourse and historical representation. Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1987. Ainda quero mais e um desejo não satisfeito pode ser uma semente poderosa para mudar as estórias.
(^3) Na análise em que explora as descontinuidades entre o modernismo e o pós-modernismo na etnografia e na antropologia - cujas questões principais são a permissão ou proibição de criar um conhecimento comparativo entre "culturas", desde alguma perspectiva epistemológica apoiada seja dentro, fora, ou numa relação dialógica com qualquer unidade de análise - Marilyn Strathern ("Out of context: the persuasive fictions of anthropology", IN Current Anthropology 28:3,1987) fez a importante observação de que não é a etnografia escrita que é semelhante a um trabalho artístico como objeto de conhecimento, mas a cultura. Os objetos de conhecimento naturais-técnicos, românticos e modernistas, na ciência e em outras práticas culturais,ficam de um lado da linha divisória. A formação pós-moderna fica do outro, com sua "anti-estética" de "objetos" do conhecimento e da prática permanentemente divididos, problematizados, sempre retrocedendo e sendo diferidos, objetos que incluem signos, organismos, sistemas, egos e culturas. "Objetividade" numa moldura pós-moderna não pode tratar de objetos não problematizados; deve tratar de próteses específicas e da tradução. Objetividade, que originalmente dissera respeito à criação do conhecimento comparativo (como dar nome às coisas de modo que elas fossem estáveis e semelhantes entre si), torna-se um problema da política de redefinição de fronteiras, de maneira a permitir conversas e conexões não inocentes.O que está em questão nos debates sobre o modernismo e o pós-modernismo é o padrão de relações entre e no interior de corpos e da linguagem.
Donna Haraway
décadas de teoria feminista para perceber o inimigo aí. Nancy Hartsock (1983) percebeu tudo isto com cristalina clareza em seu conceito de masculinidade abstrata. Eu, e outras, começamos querendo um instrumento afiado para a desconstrução das alegações de verdade de uma ciência hostil,através da demonstração da especificidade histórica radical e, portanto, contestabilidade, de todas as camadas da cebola das construções científicas e tecnológicas, e terminamos com uma espécie de terapia de eletrochoque epistemológica que, longe de nos conduzir às questões importantes do jogo de contestação das verdades públicas, nos derrubou vítimas do mal da personalidade múltipla auto-induzida. Queríamos uma maneira de ir além da denúncia da ciência enviesada (o que, aliás, era muito fácil), e além da separação das boas ovelhas científicas dos maus bodes do viés e do abuso. Parecia promissor alcançar isso através do argumento construcionista o mais forte possível, que não deixava frestas para a redução das questões à oposição entre viés versus objetividade, uso versus abuso, ciência versus pseudo-ciência. Desmascaramos as doutrinas de objetividade porque elas ameaçavam nosso nascente sentimento de subjetividade e atuação histórica coletiva e nossas versões "corporificadas" da verdade, e acabamos por ter mais uma desculpa para não aprendermos nada da Física pós Newton e mais uma razão para parar com a velha prática feminista de auto- ajuda de consertar nossos carros. Afinal, trata-se apenas de textos, vamos devolvê-los aos rapazes. Além disso, esses mundos textualizados pós-modernos são assustadores e preferimos que a nossa ficção científica seja um pouco mais utópica, quem sabe como Woman on the edge of time, ou até Wanderground. Algumas de nós tentamos manter a sanidade nesses tempos fraturados e fraturantes mantendo uma versão feminista da objetividade. Aqui, motivado por muitos dos mesmos desejos
Saberes Localizados
políticos, está o outro pólo sedutor do dúbio problema da objetividade. O marxismo humanista foi poluído em sua origem pela sua teoria ontológica estruturante de dominação da natureza na auto-construção do homem e pela sua, intimamente relacionada, impotência para historicizar qualquer coisa que as mulheres fizessem que não fosse por salário. Mas o marxismo ainda era um recurso promissor na forma de uma higiene mental epistemológica feminista, que buscava nossas próprias doutrinas de uma visão objetiva. A perspectiva marxista oferecia instrumentos para elaborarmos nossas versões das teorias de perspectiva, insistência na corporificação, uma rica tradição de críticas da hegemonia, sem a desqualificação dos positivismos e relativismos, e teorias nuançadas da mediação.^5 Algumas versões da psicanálise ajudaram imensamente esta abordagem, particularmente a teoria anglófona das relações objetais, que provavelmente fez mais pelo feminismo socialista americano durante algum tempo do que qualquer coisa escrita por Marx ou Engels, e muito menos Althusser ou qualquer um dos últimos pretendentes à herança do tratamento da questão da ciência e ideologia.^6
(^5) Teorias de perspectiva (standpoint theories): teorias desenvolvidas pelo feminismo a partir da afirmação de que o lugar de onde se vê (e se fala) - a perspectiva - determina nossa visão (e nossa fala) do mundo. Tais teorias tendem a sugerir que a perspectiva dos subjugados representa uma visão privilegiada da realidade.(Nota de Sandra Azeredo)
(^6) Para essa discussão são cruciais os textos de HARDING, Sandra, 1986; KELLER, Evelyn Fox: Reflections on gender and science. New Haven, Yale University Press. 1985; HARTSOCK, Nancy: "The feminist standpoint: developing the ground for a specifically feminist historical materialism", IN HARDING, S. e HINTIKKA, M. (eds.): Discovering reality: feminist perspectives on epistemology, metaphysics, methodology and philosophy of science. Dordrecht, Reidel. 1983, e Money, sex and power , New York, Longman and Boston, Northeastern University Press. 1984; FLAX, Jane: "Political philosophy and the patriarchal unconscious: a psychoanalytic perspective on epistemology and metaphysics", IN HARDING e HINTIKKA, 1983, e "Postmodernism and gender relations in feminist theory", IN Signs , 12:4, 1987; KELLER, E.F. e GONTKOWSKI, C.. "The mind's eye", IN HARDING e HINTIKKA, 1983; ROSE, Hilary: "Women's work, women's knowledge", IN MITCHELL, Juliet e OAKLEY, Ann (eds.): What is feminism? A re-examination. New York, Pantheon. 1986; HARAWAY D.: "Manifesto for
Saberes Localizados
"real", um mundo que possa ser parcialmente compartilhado e amistoso em relação a projetos terrestres de liberdade finita, abundância material adequada, sofrimento reduzido e felicidade limitada. Harding chama esse desejo necessariamente múltiplo de necessidade de um projeto de ciência sucessora e de insistência pós-moderna na diferença irredutível e na multiplicidade radical dos conhecimentos locais. Todos os componentes do desejo são paradoxais e perigosos, e sua combinação é tanto contraditória quanto necessária. As feministas não precisam de uma doutrina de objetividade que prometa transcendência, uma estória que perca o rastro de suas mediações justamente quando alguém deva ser reponsabilizado por algo, e poder instrumental ilimitado. Não queremos uma teoria de poderes inocentes para representar o mundo, na qual linguagens e corpos submerjam no êxtase da simbiose orgânica. Tampouco queremos teorizar o mundo, e muito menos agir nele, em termos de Sistemas Globais, mas precisamos de uma rede de conexões para a Terra, incluída a capacidade parcial de traduzir conhecimentos entre comunidades muito diferentes - e diferenciadas em termos de poder. Precisamos do poder das teorias críticas modernas sobre como significados e corpos são construídos, não para negar significados e corpos, mas para viver em significados e corpos que tenham a possibilidade de um futuro. As ciências naturais, sociais e humanas sempre estiveram implicadas em esperanças como essas. A ciência sempre teve a ver com a busca de tradução, convertibilidade, mobilidade de significados e universalidade - o que chamo de reducionismo quando uma linguagem (adivinhe de quem) é imposta como o parâmetro para todas as traduções e conversões. O que o dinheiro faz no âmbito das trocas do capitalismo, o reducionismo faz nos poderosos âmbitos mentais das ciências globais: finalmente há apenas uma equação. Esta é a fantasia mortal que as feministas e outros identificaram em algumas versões das doutrinas de objetividade a serviço de ordenações hierárquicas e
Donna Haraway
positivistas a respeito do que pode ter validade como conhecimento. Esta é uma das razões pelas quais os debates a respeito da objetividade são relevantes, seja metaforicamente ou não. Imortalidade e onipotência não são nossos objetivos. Mas poderíamos fazer uso de algumas explicações confiáveis, aplicáveis, sobre as coisas, que não fossem redutíveis a lances de poder e a jogos de retórica de alto coturno, agonísticos, ou à arrogância cientificista, positivista. Esta proposta se aplica quer estejamos falando a respeito de genes, classes sociais, partículas elementares, gêneros, raças, ou textos; aplica-se às ciências exatas, naturais, sociais e humanas, apesar das ambiguidades escorregadias das palavras objetividade e ciência conforme circulamos pelo terreno discursivo. Em nosso esforço por escalar o pau de sebo que leve a uma doutrina utilizável de objetividade, eu e a maioria das outras feministas nos debates sobre a objetividade, temos alternadamente, ou até simultaneamente, nos agarrado a ambos os lados dessa dicotomia que Harding descreve como projetos de ciência sucessora versus explicações pós-modernas sobre a diferença e que esbocei aqui como construtivismo radical versus empiricismo crítico feminista. É claro que é difícil subir quando se está agarrado a ambos os extremos de um poste, simultânea ou alternadamente. Portanto, é hora de mudar a metáfora.
Donna Haraway
Os olhos têm sido usados para significar uma habilidade perversa - esmerilhada à perfeição na história da ciência vinculada ao militarismo, ao capitalismo, ao colonialismo e à supremacia masculina - de distanciar o sujeito cognoscente de todos e de tudo no interesse do poder desmesurado. Os instrumentos de visualização na cultura multinacional, pós- moderna, compuseram esses significados de des-corporificação. As tecnologias de visualização aparentemente não tem limites; o olho de um primata comum como nós pode ser infindavelmente aperfeiçoado por sistemas de sonografia, imagens de ressonância magnética, sistemas de manipulação gráfica vinculados à inteligência artificial, microscópios eletrônicos com scanners, sistemas de tomografia ajudados pelo computador, técnicas de avivar cores, sistemas de vigilância via satélite, vídeos domésticos e no trabalho, câmeras para todos os fins, desde a filmagem da membrana mucosa do estômago de um verme marinho vivendo numa fenda entre plataformas continentais até o mapeamento de um hemisfério planetário em outro lugar do sistema solar. A visão nesta festa tecnológica transforma-se numa glutoneria desregulada; todas as perspectivas cedem passagem a uma visão infinitamente móvel, que parece ser não mais apenas a respeito do truque mítico de deus de ver tudo de lugar nenhum, mas da transformação do mito em prática comum. E, como o truque de deus, este olho fode o mundo para criar tecno-monstros. Zoe Sofoulis (1988) o chama de olho canibal dos projetos extra-terrestres masculinistas para um renascimento excremental. Um tributo a essa ideologia da visão direta, devoradora, generativa e irrestrita, cujas mediações tecnológicas são celebradas simultaneamente e apresentadas como inteiramente transparentes, o volume celebrando o centésimo aniversário da National Geographic Society, encerra seu levantamento da literatura de aventura da revista, realizada através de suas surpreendentes fotografias, com dois capítulos justapostos. O
Saberes Localizados
primeiro é sobre o "Espaço", apresentado através da epígrafe: "A escolha é o universo - ou nada"(Bryan, 1987, p.352^8 ). De fato. Este capítulo narra os feitos da corrida espacial e exibe as "fotos", em cores avivadas, dos outros planetas reagrupados por meio de sinais digitais transmitidos através de um vasto espaço, para que o leitor tenha a "experiência" do momento da descoberta numa visão imediata do "objeto".^9 Esses objetos fabulosos chegam até nós simultaneamente como registros indubitáveis do que está lá, simplesmente, e como festejos heróicos da produção tecno-científica. O capítulo seguinte é o gêmeo do espaço externo: "Espaço interior", apresentado através da epígrafe: "A matéria das estrelas tornou-se realidade" (Bryan, 1987, p.454). Aqui, o leitor é levado para o âmbito do infinitamente pequeno, objetificado através da radiação fora do comprimento das ondas "normalmente" percebidas pelos primatas hominídeos, isto é, pelos raios laser e microscópios eletrônicos, cujos sinais são processados nas maravilhosas fotos coloridas das células T de defesa e dos vírus invasores. Mas é claro que esta apresentação da visão infinita é uma ilusão, um truque de deus. Insistindo metaforicamente na particularidade e corporificação de toda visão (ainda que não necessariamente corporificação orgânica e incluindo a mediação tecnológica), e sem ceder aos mitos tentadores da visão como um caminho para a des-corporificação e o renascimento, gostaria de sugerir como isso nos permite construir uma doutrina utilizável, mas não inocente, da objetividade. Quero uma escrita feminista do corpo que enfatize metaforicamente a visão outra vez, porque precisamos resgatar este sentido para encontrar nosso caminho através de todos os truques e poderes
(^8) BRYAN, C.D.B.: The National Geographic Society: 100 years of adventure and discovery. New York, Abrams. 1987.
(^9) Devo minha compreensão da experiência dessas fotografias a Jim Clifford, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, que identificou seu efeito "Terra à vista"!" sobre os leitores.
Saberes Localizados
"olhos" disponíveis nas ciências tecnológicas modernas acabam com qualquer idéia da visão como passiva; esses artifícios protéticos nos mostram que todos os olhos, incluídos os nossos olhos orgânicos, são sistemas de percepção ativos, construindo traduções e modos específicos de ver, isto é, modos de vida. Não há nenhuma fotografia não mediada, ou câmera escura passiva, nas explicações científicas de corpos e máquinas: há apenas possibilidades visuais altamente específicas, cada uma com um modo maravilhosamente detalhado, ativo e parcial de organizar mundos. Todas essas fotografias do mundo não deveriam ser alegorias da mobilidade infinita e da permutabilidade, mas da elaborada especificidade e diferença e do amoroso cuidado que as pessoas tem de ter ao aprender como ver fielmente do ponto de vista do outro, mesmo quando o outro é a nossa própria máquina. Isto não é distanciamento alienante; é uma alegoria possível para versões feministas da objetividade. Compreender como esses sistemas visuais funcionam, tecnicamente, socialmente e psiquicamente, deveria ser um modo de corporificar a objetividade feminista. Muitas correntes no feminismo tentam estabelecer bases teóricas para uma confiança especial na perspectiva dos subjugados; há boa razão para se acreditar que a visão é melhor abaixo das brilhantes plataformas espaciais dos poderosos (Hartsock, 1983a; Sandoval, sd; Harding, 1986; Anzaldúa, 198710 ). Vinculado a essa suspeita, este texto é um argumento a favor do conhecimento situado e corporificado e contra várias formas de postulados de conhecimento não localizáveis e, portanto, irresponsáveis. Irresponsável significa incapaz de ser chamado a prestar contas. Há grande valor em definir a possibilidade de ver a partir da periferia e dos abismos. Mas aqui
(^10) SANDOVAL, Chela: Yours in struggle: women respond to racism, a report on the national Women's Studies Association. Oakland, Ca, Center for Third World Organizing, sd; ANZALDÚA, Gloria: Borderland/La frontera. São Francisco, Spinsters/Aunt Lute. 1987.
Donna Haraway
há um sério perigo em se romantizar e/ou apropriar a visão dos menos poderosos ao mesmo tempo que se alega ver desde a sua posição. Ter uma visão de baixo não é algo não problemático ou que se aprenda facilmente; mesmo que "nós" "naturalmente" habitemos o grande terreno subterrâneo dos saberes subjugados. Os posicionamentos dos subjugados não estão isentos de uma re- avaliação crítica, de decodificação, desconstrução e interpretação; isto é, seja do modo semiológico, seja do modo hermenêutico da avaliação crítica. As perspectivas dos subjugados não são posições "inocentes". Ao contrário, elas são preferidas porque, em princípio, são as que tem menor probabilidade de permitir a negação do núcleo crítico e interpretativo de todo conhecimento. Elas têm ampla experiência com os modos de negação através da repressão, do esquecimento e de atos de desaparição - com maneiras de não estar em nenhum lugar ao mesmo tempo que se alega ver tudo. Os subjugados têm uma possibilidade decente de reconhecer o truque de deus e toda a sua brilhante - e, portanto, enceguecedora - iluminação. As perspectivas dos subjugados são preferidas porque parecem prometer explicações mais adequadas, firmes, objetivas, transformadoras do mundo. Mas como ver desde baixo é um problema que requer, pelo menos, tanta habilidade com corpos e linguagens, com as mediações da visão, quanto têm as mais "altas" visualizações tecno-científicas. A preferência por tal posicionamento é tão hostil às várias formas de relativismo quanto às versões mais explicitamente totalizantes das alegações de autoridade científica. Mas a alternativa ao relativismo não é a totalização e a visão única que, finalmente, é sempre a categoria não marcada cujo poder depende de um sistemático estreitamento e obscurecimento. A alternativa ao relativismo são saberes parciais, localizáveis, críticos, apoiados na possibilidade de redes de conexão, chamadas de solidariedade em política e de conversas compartilhadas em epistemologia. O relativismo é uma
Donna Haraway
modernas deve ser lida como um argumento de que este encontro entre o elemento fantástico de esperança por um conhecimento transformador e o controle rigoroso e o estímulo de uma firme avaliação crítica reiterada são, em conjunto, a base de qualquer proposta crível de objetividade ou racionalidade não crivada por negações e repressões de tirar o fôlego. É até possível ler o registro das revoluções científicas em termos dessa doutrina feminista de racionalidade e objetividade. A ciência foi utópica e visionária desde o início; esta é a razão pela qual "nós" precisamos dela. A adesão a posicionamentos móveis e ao distanciamento apaixonado depende da impossibilidade de políticas e epistemologias de "identidade" inocentes como estratégias para ver desde o ponto de vista dos subjugados, de modo a ver bem. Não se pode "ser" uma célula ou uma molécula - ou mulher, pessoa colonizada, trabalhadora e assim por diante - se se pretende ver e ver criticamente desde essas posições. "Ser" é muito mais problemático e contingente. Além disso, não é possível realocar-se em qualquer perspectiva dada sem ser responsável por esse movimento. A visão é sempre uma questão do poder de ver - e talvez da violência implícita em nossas práticas de visualização. Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos? Essas observações se aplicam também ao testemunho a partir da posição de um "eu". Não estamos imediatamente presentes para nós mesmos. O auto-conhecimento exige uma tecnologia semiótica-material relacionando significados e corpos. A auto-identidade é um mau sistema visual. A fusão é uma má estratégia de posicionamento. Os rapazes das ciências humanas chamam esta dúvida a respeito da auto-presença de "morte do sujeito", este ponto unívoco de ordenação da vontade e da consciência. Essa avaliação me parece bizarra. Prefiro chamar essa dúvida gerativa de abertura de sujeitos, agentes e territórios de estórias não isomórficas, inimagináveis da perspectiva do olho ciclópico, auto-saciado do sujeito dominante. O olho ocidental tem sido fundamentalmente
Saberes Localizados
um olho errante, uma lente viajante. Essas peregrinações com frequência foram violentas e insistentes em espelhos para um eu conquistador - mas nem sempre. As feministas ocidentais também herdam alguma habilidade ao aprender a participar da revisualização de mundos virados de ponta cabeça pelos desafios transformadores da terra feitos à visão dos mestres. Não é preciso começar do nada. O eu dividido e contraditório é o que pode interrogar os posicionamentos e ser responsabilizado, o que pode construir e juntar-se à conversas racionais e imaginações fantásticas que mudam a história.^12 Divisão, e não o ser, é a imagem privilegiada das epistemologias feministas do conhecimento científico. "Divisão", neste contexto, deve ser vista como multiplicidades heterogêneas, simultaneamente necessárias e não passíveis de serem espremidas em fendas isomórficas ou listas cumulativas. Esta geometria é pertinente no interior dos sujeitos e entre eles. A topografia da subjetividade é multidimensional bem como, portanto, a visão. O eu cognoscente é parcial em todas suas formas, nunca acabado, completo, dado ou original; é sempre construído e alinhavado de maneira imperfeita e, portanto, capaz de juntar-se a outro, de ver junto sem pretender ser outro. Eis aqui a promessa de objetividade: um conhecedor científico não procura a posição de identidade com o objeto, mas de objetividade, isto é, de conexão parcial. Não há maneira de "estar" simultaneamente em todas, ou inteiramente em uma, das posições privilegiadas (subjugadas) estruturadas por gênero,
(^12) Joan Scott lembrou-me que Teresa de Lauretis ("Feminist studies/ critical studies: issues, terms, and contexts", IN Feminist Studies/critical studies. Bloomington, Indiana University Press. 1986, pp.14-15) expressou isso da seguinte maneira: "Diferenças entre as mulheres podem ser melhor compreendidas como diferenças no interior das mulheres... Mas, uma vez compreendidas em seu poder constitutivo - isto é, uma vez que se compreende que essas diferenças não apenas constituem a consciência e os limites subjetivos de cada mulher, mas que, juntas, definem o objeto feminino do feminismo em sua própria especificidade, em sua contradição inerente e pelo menos por ora inconciliável - essas diferenças não podem, então, ser outra vez desmanchadas através de uma falsa identidade, uma mesmice de todas as mulheres como a Mulher, ou como uma representação do Feminismo como uma imagem coerente e disponível."