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amor de perdição, Notas de estudo de Genética

Le principe de la Souveraineté réside essentiellement dans la Nation. ... 2 Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, edição genética e crítica de Ivo Castro ...

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Helena Carvalhão Buescu
Revolução e família: amor de perdição
Duas citações, mais do que epígrafes:
Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen1
Art. 1er. Les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits. Les distinc-
tions sociales ne peuvent être fondées que sur l’utilité commune.
Art. 2. Le but de toute association politique est la conservation des droits na-
turels et imprescriptibles de l’Homme. Ces droits sont la liberté, la propriété, la
sûreté, et la résistance à l’oppression.
Art. 3. Le principe de la Souveraineté réside essentiellement dans la Nation.
Nul corps, nul individu ne peut exercer d’autorité qui n’en émane expressément.
Não sofras com paciência; luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia,
quando o poder paternal é uma afronta.
— Camilo Castelo Branco, Amor de perdição2 (1862)
Amor de perdição (AP) (como Viagens na minha
terra, de Almeida Garrett) é um romance – embora ambos o se-
jam por razões diferentes. Interessando aqui AP, a tese (comum)
de que seria uma novela só faria (pouco) sentido se o leitor se
concentrasse apenas na intriga a que convencionalmente AP é reduzido: uma
história que se esgota no seu teor e crescendo melodramático, e num concei-
to também ele redutor (se nos lembrarmos das discussões sobre o conceito
filosófico de paixão, que recrudescem nos séculos XVII e XVIII e levam por
exemplo Descartes, o homem da razão, a escrever também um Traité des pas-
Helena Carvalhão Buescu é professora catedrática do Centro de Estudos comparatistas da Fa-
culdade de Letras da Universidade de Lisboa, Portugal.
1 Disponível em <www.legifrance.gouv.fr>. Acesso em 13 ago. 2015.
2 Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, edição genética e crítica de Ivo Castro, Lisboa:
INCM, 2007, carta de Simão a Teresa, cap. VIII, p. 275.
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Helena Carvalhão Buescu

Revolução e família: amor de perdição

Duas citações, mais do que epígrafes:

Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen^1 Art. 1 er. Les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits. Les distinc- tions sociales ne peuvent être fondées que sur l’utilité commune. Art. 2. Le but de toute association politique est la conservation des droits na- turels et imprescriptibles de l’Homme. Ces droits sont la liberté, la propriété, la sûreté, et la résistance à l’oppression. Art. 3. Le principe de la Souveraineté réside essentiellement dans la Nation. Nul corps, nul individu ne peut exercer d’autorité qui n’en émane expressément.

Não sofras com paciência; luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia, quando o poder paternal é uma afronta. — Camilo Castelo Branco, Amor de perdição^2 ( 1862 )

A

mor de perdição (AP) (como Viagens na minha terra, de Almeida Garrett) é um romance – embora ambos o se- jam por razões diferentes. Interessando aqui AP , a tese (comum) de que seria uma novela só faria (pouco) sentido se o leitor se concentrasse apenas na intriga a que convencionalmente AP é reduzido: uma história que se esgota no seu teor e crescendo melodramático, e num concei- to também ele redutor (se nos lembrarmos das discussões sobre o conceito filosófico de paixão, que recrudescem nos séculos XVII e XVIII e levam por exemplo Descartes, o homem da razão, a escrever também um Traité des pas-

Helena Carvalhão Buescu é professora catedrática do Centro de Estudos comparatistas da Fa- culdade de Letras da Universidade de Lisboa, Portugal. 1 Disponível em <www.legifrance.gouv.fr>. Acesso em 13 ago. 2015. 2 Camilo Castelo Branco, Amor de perdição , edição genética e crítica de Ivo Castro, Lisboa: INCM, 2007 , carta de Simão a Teresa, cap. VIII, p. 275.

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sions ) de paixão como paixão amorosa. É certo que há paixões amorosas, e este romance também delas trata. O problema é que elas não são as únicas, longe disso.^3 Muitos críticos vêm hoje insistindo neste alargamento hermenêutico do romance: Abel Barros Baptista na “revisão” que propõe de AP , mas também Paulo Motta Oliveira ou Flávia Corradin –^4 como veremos seguindo pistas que Cleonice Berardinelli deixou em alguns dos seus textos críticos. A questão é tão simplesmente esta: AP , contendo embora uma pequena (se bem que intensa) história de uma paixão amorosa, não se resume a ela. É a quantidade de fios narrativos incongruentes e por vezes contraditórios (e ain- da mais intensas histórias de paixões de poder, ódio, vingança, misantropia e opressão) que Camilo sabiamente faz convergir para o triângulo Simão-Tere- sa-Mariana que me leva a considerar que ler esta obra de acordo com o géne- ro romanesco lhe faz mais justiça, pela riqueza, pelas contradições (às vezes irresolúveis), pela sobreposição de planos de entre os quais se destaca aquilo a que podemos chamar, de acordo com as duas citações com que comecei, a Revolução. Existe algo de mais passional do que a paixão revolucionária? A Revolução Francesa teve início em 1789 (e do mesmo ano é a sua Décla- ration , que acima citei). A primeira edição de AP é de 1862. Mas a história que o romance narra é a história da transição do Antigo para o Novo Regime, tal como vista a partir de uma pequena perspectiva de uma família portugue- sa – na verdade, três famílias portuguesas de província, tradicionais, que se vêem confrontadas com poderosos ventos de mudança. Na verdade, a história familiar nela nuclearmente contada (embora haja remissões para factos ante- riores, todos eles significativos) começa em 1779 , dez anos antes da Revolução Francesa, ano em que casam os pais de Simão, Domingos Botelho e D. Rita Preciosa. E cinco anos antes da Revolução, em 1784 , nasce Simão, o segundo filho do casal e protagonista do romance. A história vem pois das raízes do

3 Cf. Helena Buescu, “O trágico mas o cómico: o exemplo de Le Bourgeois - Gentilhomme ”, Revista da Faculdade de Letras , n. 9 , 5 ª série, 1988 , p. 29 - 32. 4 Cf. as lúcidas observações de Flávia Corradin em “Camilo Castelo Branco revisitado pela moderna dramaturgia portuguesa”, in Paulo Motta Oliveira (org.), Figurações dos oitocentos , São Paulo: Ateliê Editorial, 2008 , p. 71 - 93 : “A obra camiliana está marcada, muito mais do que pela historinha, às vezes melodramática que as enreda, pelo menos se pensarmos nas novelas passionais ou nos (melo)dramas burgueses, por uma visão do mundo a revelar o Oitocentos português.” (p. 91 )

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mos dizer o mesmo de AP? Talvez sim e talvez não (como gostaria de respon- der o próprio Camilo). Como vimos, talvez sim se considerarmos o estrito plano que nos é apresentado à boca-de-cena – a história amorosa passional, restrita, de desenlace único e melodramático (a morte em espectáculo) para todas as personagens principais. Parece ainda ser uma novela porque o único tempo que nos é aparentemente contado é o que rapidamente turbilha até ao desenlace; e ainda porque, embora o espaço mude (Lamego, Viseu, Coimbra, Porto, Lisboa, casas, conventos e prisões, para mencionar apenas alguns desses lugares), nenhum parece ter suficiente solidez per se. E no entanto. No entanto, se lermos AP a partir de um ângulo mais alargado, que não prescinda da intriga de paixão amorosa mas a ela não se restrinja, como faz Cleonice Berardinelli para Anátema , é defensável dizer que AP é também um romance. Trata-se de uma intriga de família, sabendo-se que esta é uma das mais condensadas células sociais, simbólicas e, sempre, políticas: um micro- cosmos em que todo o mundo surge reflectido. Desenrola-se num espaço com pontos apenas designados, um espaço em que é a própria abstracção alegóri- ca que de alguma forma nos permite nele ler uma sinédoque (e alegoria) do Estado-Nação chamado Portugal, na transição para as convulsões da contem- poraneidade. Põe em acção um tempo sacudido e cavalgante que deixa ver, da perspectiva mais lata, não apenas o que aconteceu, no início do século XIX, ao tio de Camilo, envolvido numa teia de amores, desamores e vinganças; mas também (e sobretudo) o que está efectivamente a acontecer em Portugal, no período cheio de turbulências sociais que é aquele em que a intriga tem lu- gar. A AP se poderia aplicar a irónica auto-designação que Camilo aplica a Anátema , recordada por Cleonice Berardinelli.^7 Trata-se, diz Camilo, de “uma espécie de caranguejo literário” que, para contar o presente, vai também ele às arrecuas até meados do século anterior, momento em que verdadeiramente “arranca” o presente da história (e passado de Camilo, não esqueçamos, por que é isso também que está em jogo). Não só AP é um romance, pois. Mas, como veremos, ele pertence já a um género sedimentado por alturas de 1862 , quando é escrito, o romance histórico. Não à maneira tradicional do grande Herculano e todos os que se lhe seguiram

7 Ibid., p. 234.

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(mesmo Garrett, embora com diversões). Mas um romance histórico que se propõe já como uma “revisão” e transformação daquilo que esse género oito- centista modelar tinha sido. Começo por isso por esta última designação: um romance histórico encas- toa uma intriga pessoal no seio de uma acção historicamente reconhecível. Aparentemente, nada disto acontece em AP. Nenhuma das personagens tem algum tipo de papel directo e protagonista nas lutas e turbulências históricas do seu tempo – e vale lembrar que elas foram muitas. No entanto, e como vimos, o romance começa (se tivermos em conta a data do casamento dos pais de Simão, mas há datas anteriores), em 1779. Já apontámos a razão por que isto é significativo: trata-se de assinalar que na verdade o romance co- meça ANTES da grande comoção ocidental que foi a Revolução Francesa e a consequente queda do Antigo Regime. Não são apenas duas gerações que se afrontam, em duas famílias. Mas duas gerações que, em duas famílias, as do Botelho e as do Albuquerque, representam dois tempos historicamente opos- tos e incompatíveis. Mas também duas gerações que, no caso da família popu- lar, João da Cruz e Mariana, encontram o único lugar possível de compatibi- lidade. Se há paixão amorosa não contaminada pelo poder e pela política, é a de Mariana. Nos casos de Simão e Teresa, a paixão pode ser, como é, amorosa, mas é também uma paixão política e de autoridade e opressão, no sentido estrito e lato da palavra. O tempo histórico de Simão, Teresa e Mariana é já o período pós-revolucionário, em que tudo muda, e em que sobretudo mudam as relações de poder que governam todas as relações sociais, bem como todas as relações interpessoais. Apenas em João da Cruz e Mariana encontramos, em lugar da opressão, a solidariedade e a compreensão que permitem uma solidez familiar que em mais lado nenhum encontramos no romance. O que vem depois do Antigo Regime? É este o cerne histórico de AP. Ora, a consciência do que “vem depois” é, como lembrou várias vezes Manuel Gus- mão, uma das formas mais densas do devir histórico. A revolução política não é apenas um dado exterior à acção: esta não poderia ter acontecido, como vi- mos, sem aquela. A ida da fidalga, aia do paço, para Viseu é um vislumbre do que se passava em Portugal antes da Revolução Francesa: uma sociedade oligárquica e de poder absoluto, em que a aristocracia (ou os que assim se queriam afirmar, como no caso) se comportavam com arrogância de classe, manifestando o seu poder de forma aberta, ostensiva e impune.

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termos do art. 2 da Déclaration , sabe que lhe é legítimo “resistir à opressão”? Nenhum argumento é tentado, porque não é já questão argumentável. Tor- nou-se “apenas” legítima. Embora adquira neste romance proporções de grande alcance, tal não é novidade na obra de Camilo. Grandes leitores da sua obra, como Cleonice Berardinelli, referiram já o modo como o alargamento do espaço em ro- mances como Anátema “passa (...) do físico ao social ”.^10 A obra romanesca, novelística e contista de Camilo Castelo Branco é, na verdade, um grande fresco social do Portugal que entra, cheio de paradoxos e contradições, na época contemporânea, assistindo ainda ao desaparecimento, transformação ou mesmo paródia de alguns dos procedimentos e características definidores do Antigo Regime. As diversas formas de violência, vingança, abuso de po- der, humilhação, insulto social e pessoal de que a obra camiliana se faz eco representam, assim, tantos outros modos de compor o fresco político-social que só faz sentido porque é nele que as pessoas figuradas se movem, vivem, lutam, amam e morrem. Por outro lado, as constantes e explícitas intervenções do autor-Camilo em AP , desde o subtítulo (“Memórias duma família” – com certeza a dele, Camilo), os prefácios (das segunda e quinta edições) e a introdução da primei- ra edição até à efabulação propriamente dita, mais não fazem do que repetir aquilo que muitos leitores camilianos, de Jacinto do Prado Coelho a Maria de Lourdes Ferraz ou Abel Barros Baptista, de Cleonice Berardinelli a Sérgio Nazar ou Paulo Motta Oliveira, têm detectado como decisivo na produção ca- miliana. Do ponto de vista que aqui me interessa, isto pode ser descrito da seguinte forma: a existência de um autor “intrometido”, que constantemente edita, ironiza, comenta a intriga e o que nela se passa, constrói dentro do texto uma posição de leitura que, pelo seu afastamento temporal, marca a distância histórica entre quem conta e aquilo que é contado. Ora, tal posição é essencial para o romance histórico: trata-se não apenas de contar uma história, mas de a contar a partir de um preciso ponto histórico, textualmente marcado pela presença de um autor que a si mesmo se inclui dentro do contado (eu, Camilo, prisioneiro e fatal sobrinho de Simão...). Esta imersão do sujeito de observação é, sabemo-lo, tipicamente moderna: já não existe o “ponto de vista de Deus”,

10 Cleonice Berardinelli, op. cit., p. 235.

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exterior ao mundo. Pelo contrário, a ironia romântica, tão bem desenvolvida por Ferraz,^11 marca dentro do texto as cesuras e continuidades do processo histórico, através das costuras abertas explicitadas pela existência de um autor que, longe de se esconder, se mostra. O que temos, a este respeito, em AP? Te- mos que não se trata apenas de uma história sobre a passagem turbulenta do final do século XVIII para o século XIX. Porque se trata também do sentido que esta passagem faz, da forma como é vista, no momento ( 1861 , quando é escrito na Cadeia da Relação do Porto, 1862 , quando é publicado) em que o romance é autorado por alguém que a si mesmo se inscreve com o nome de Camilo Castelo Branco. Ora, o sentido social que essa narrativa faz é também este: Domingos Bo- telho é, para todos os efeitos, um fidalgo de linhagem, proprietário de um dos mais antigos solares de Vila Real de Trás-os-Montes. O seu casamento com d. Rita Preciosa, em 1779 , filha de um capitão de cavalos e neta de outro, social- mente alçada (assim o acha ela) por ser aia do paço, pode considerar-se como parodicamente típico das alianças de interesses que o século XVIII vê multipli- car-se entre o que se convencionou chamar “noblesse de robe” e “noblesse de sang”. Curiosamente, esta última, embora seja a mais antiga, é já em AP pejora- tivamente designada como “brocas”, uma alcunha pouco dignificante. E aque- la é, também já de forma paradoxal, a que sustenta a arrogância dos novos senhores da ascensão social – veja-se a chegada de d. Rita Preciosa a Vila Real e as arrogantes críticas que faz ao histórico solar do marido. No entanto, nada disto perdurará, diz Camilo. Quer os que estavam em decadência quer os que se julgavam em ascendência serão dentro em pouco varridos da cena social (onde, na óptica de Garrett, que sobre tudo isto segura e profundamente pen- sou, em breve restariam dois grandes grupos, os barões e os deputados, ou seja, os administrativos da “democracia”). Outros tempos, outros senhores. Na verdade, a “heterodoxia” que Cleonice Berardinelli^12 reconhece em Camilo e Garrett provém do facto de que eles não podem ser lidos fora do grande cenário social que agitou o país na primeira metade social do sé-

11 Maria de Lourdes A. Ferraz, A ironia romântica. Estudo de um processo comunicativo , Lisboa: INCM, 1987. 12 Cleonice Berardinelli, “Garrett e Camilo. Românticos heterodoxos?”, Convergência , n. 1 , 1976 , p. 63 - 78.

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Também, acrescente-se, nenhuma jovem como Mariana poderia assumir a posição de dona do seu próprio destino, amoroso, pessoal e social. Uma jovem que não “devia” ter quaisquer pensamentos de amor acima da sua classe, e no entanto tem. Mas que não se limita a isso. Ao assumi-los, até perante o próprio pai, João da Cruz, este uma das personagens mais densas de todo o romance, Mariana anuncia um novo momento histórico, em que o cruzamento entre as classes sociais de alguma forma faz pressentir procedimentos democráticos, com todas as suas consequências, por vezes contraditórias. Tortuosas, talvez mesmo. Mas não foi Tocqueville quem pristinamente viu que a “democracia na América”, ao implicar a rasura das tradicionais divisões de classe, faria er- guer dois outros pilares de igualdade e desigualdade social, chamados compe- titividade e dinheiro? Mariana é a amante impossível de 1804. Mas muitas ou- tras Marianas reivindicarão, no futuro (literário e social), o inalienável direito à expressão daquilo que forem. Até, por exemplo, em Portugal, virem a tomar o nome das “três Marias”.