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Guias e Dicas
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Psicologia e História: Árvores Genealógicas na Sociedade de Rede, Notas de aula de Construção

Neste texto, a autora reflete sobre a importância da elaboração de árvores genealógicas na modernidade, explorando suas conexões com representações sociais, o conhecimento do senso comum e a comunidade. Através destas reflexões, ela questiona a ideia de que a elaboração de árvores genealógicas é apenas um ato individualista e de reforço de relações sociais de dominação, mostrando que elas podem ser um modo de resistir ao instituído e de construção/reforço de laços comunitários. O texto também explora a interconexão entre o conhecimento do senso comum e os conhecimentos científicos, como na criação de genogramas a partir de árvores genealógicas.

O que você vai aprender

  • Como as árvores genealógicas podem ser um modo de resistir ao instituído e de construção/reforço de laços comunitários?
  • Qual é a importância da elaboração de árvores genealógicas na modernidade?
  • Como o conhecimento do senso comum pode dialogar com o conhecimento científico através de árvores genealógicas?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Michelle87
Michelle87 🇧🇷

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v. 41, n. 3, pp. 385-392, jul./set. 2010
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PSICO
PSICO
Psicologia e história: acerca da construção de árvores
genealógicas ou como retomar lembranças de família
em sociedades de rede
Adriane Roso
Universidade Federal de Santa Maria
Santa Maria, RS, Brasil
RESUMO
Nesse texto, algumas reflexões de cunho teórico são desenvolvidas a respeito da elaboração de árvores genealógicas,
com o intuito de compreender a importância desse objeto representacional na modernidade. Parte-se do pressuposto de
que a elaboração de árvores genealógicas pode ser uma forma de narrativa que veicula representações sociais. Através
delas as pessoas se reelaboram enquanto sujeitos simbólicos e podem reinventar o sentido de viver em comunidade/s.
A discussão é baseada na Teoria das Representações Sociais de Serge Moscovici e no conceito de Sociedade em Rede
de Manuel Castells. Constatou-se que o conhecimento do senso comum pode se expandir em direção à psicologia
de um modo frutífero quando se articula árvores genealógicas com o genograma. Além do mais, concluiu-se que a
elaboração de árvores genealógicas não é necessariamente um ato individualista e de reforço das relações sociais de
dominação, mas um modo de resistir ao instituído e uma tentativa de construção/reforço de laços comunitários.
Palavras-chave: Psicologia; história; representações sociais, comunidade; genealogia, árvore genealógica.
ABSTRACT
Psychology and history: About building genealogical trees or how to retake family memories in network societies
In this text, some theoretical thoughts are developed regarding to the making of genealogy trees, aiming to understand
the importance of this representational object. It is assumed that the making of family trees can be a mode of narrative
that carries out social representations. Through them people re-elaborate themselves as symbolic subjects and they can
reinvent the sense of living in community/ies. The discussion is based on the Theory of Social Representation of Serge
Moscovici and on the concept of Network Society of Manuel Castells. It was observed the knowledge of common
sense may be expanded into psychology in a fructiferous way whereas articulate genealogy trees within genogram.
Furthermore, it was concluded that the making of genealogical trees are not necessarily an individualistic act and a
reinforcement of social relations of domination, but a way to resist to the instituting and an effort of construction/
reinforcement of community embraces.
Keywords: Psychology; history; social representations, community; genealogy, genealogical tree.
RESUMEN
La psicología y la historia: Acerca de construir árboles genealógicos o cómo volver a rodar memorias familiares en
sociedades de red
En este texto, algunos pensamientos teóricos son desarrollados considerando al hacer de árboles genealógicos,
proponiéndose comprender la importancia de este objeto figurativo. Es asumido que el hacer de árboles genealógicas
puede ser un modo de narrativa que lleva a cabo representaciones sociales. Por ellos personas re-elaborado a sí mismos
como sujetos simbólicos y ellos pueden reinventar el sentido de vivir en comunidad/es. La discusión es basada en la
Teoría de Representación Social de Serge Moscovici y en el concepto de la Sociedad Red de Manuel Castells. Fue
observado que el conocimiento de sentido común puede ser expandido en dirección de la psicología en una manera
productiva que articula árboles genealógicos con lo genograma. Además, fue concluido que el hacer de árboles
genealógicos no es necesariamente un acto individualista y un refuerzo de relaciones sociales de dominación, pero
una manera de resistir al instituido y un esfuerzo de construcción/refuerzo de los lazos de la comunidad.
Palabras clave: Psicología; historia; representaciones sociales, comunidad; genealogía; árbol genealógico.
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v. 41, n. 3, pp. 385-392, jul./set. 2010

PSICOPSICO Ψ

Psicologia e história: acerca da construção de árvores

genealógicas ou como retomar lembranças de família

em sociedades de rede

Adriane Roso

Universidade Federal de Santa Maria Santa Maria, RS, Brasil RESUMO Nesse texto, algumas reflexões de cunho teórico são desenvolvidas a respeito da elaboração de árvores genealógicas, com o intuito de compreender a importância desse objeto representacional na modernidade. Parte-se do pressuposto de que a elaboração de árvores genealógicas pode ser uma forma de narrativa que veicula representações sociais. Através delas as pessoas se reelaboram enquanto sujeitos simbólicos e podem reinventar o sentido de viver em comunidade/s. A discussão é baseada na Teoria das Representações Sociais de Serge Moscovici e no conceito de Sociedade em Rede de Manuel Castells. Constatou-se que o conhecimento do senso comum pode se expandir em direção à psicologia de um modo frutífero quando se articula árvores genealógicas com o genograma. Além do mais, concluiu-se que a elaboração de árvores genealógicas não é necessariamente um ato individualista e de reforço das relações sociais de dominação, mas um modo de resistir ao instituído e uma tentativa de construção/reforço de laços comunitários. Palavras-chave: Psicologia; história; representações sociais, comunidade; genealogia, árvore genealógica. ABSTRACT Psychology and history: About building genealogical trees or how to retake family memories in network societies In this text, some theoretical thoughts are developed regarding to the making of genealogy trees, aiming to understand the importance of this representational object. It is assumed that the making of family trees can be a mode of narrative that carries out social representations. Through them people re-elaborate themselves as symbolic subjects and they can reinvent the sense of living in community/ies. The discussion is based on the Theory of Social Representation of Serge Moscovici and on the concept of Network Society of Manuel Castells. It was observed the knowledge of common sense may be expanded into psychology in a fructiferous way whereas articulate genealogy trees within genogram. Furthermore, it was concluded that the making of genealogical trees are not necessarily an individualistic act and a reinforcement of social relations of domination, but a way to resist to the instituting and an effort of construction/ reinforcement of community embraces. Keywords: Psychology; history; social representations, community; genealogy, genealogical tree. RESUMEN La psicología y la historia: Acerca de construir árboles genealógicos o cómo volver a rodar memorias familiares en sociedades de red En este texto, algunos pensamientos teóricos son desarrollados considerando al hacer de árboles genealógicos, proponiéndose comprender la importancia de este objeto figurativo. Es asumido que el hacer de árboles genealógicas puede ser un modo de narrativa que lleva a cabo representaciones sociales. Por ellos personas re-elaborado a sí mismos como sujetos simbólicos y ellos pueden reinventar el sentido de vivir en comunidad/es. La discusión es basada en la Teoría de Representación Social de Serge Moscovici y en el concepto de la Sociedad Red de Manuel Castells. Fue observado que el conocimiento de sentido común puede ser expandido en dirección de la psicología en una manera productiva que articula árboles genealógicos con lo genograma. Además, fue concluido que el hacer de árboles genealógicos no es necesariamente un acto individualista y un refuerzo de relaciones sociales de dominación, pero una manera de resistir al instituido y un esfuerzo de construcción/refuerzo de los lazos de la comunidad. Palabras clave: Psicología; historia; representaciones sociales, comunidad; genealogía; árbol genealógico.

386 Roso, A. Quando eu era criança, havia uma árvore enorme e frondosa, nos fundos de minha casa, da qual nunca esquecerei... Todas as tardes, eu subia nela e me emaranhava em seus galhos. Brincava de faz-de-conta. imaginava que eu era uma cantora famosa, em cima do palco, a cantarolar. Nada mais importava quando eu estava lá no alto, nas estrelas, a sonhar com um mundo que recém aflorava aos meus pequenos pés. E no verão... Ah, no verão! Brotavam lindos frutos. Daqueles que já não mais existem, nem em árvores e nem nos mercados. Grandes, doces, deleitosos. Algum bichados, sim, mostrando que ali dentro não havia veneno e, portanto, vida podia germinar no seu cerne. Na minha árvore, nada poderia me faltar e tudo era permitido sonhar. Ao me apoiar em seu tronco e devorar seus frutos, eu me tornava a árvore. ingeria sua vitalidade, sua serenidade e sapiência. Tal como os indígenas que ingerem sangue do inimigo para tornarem-se tão fortes como eles. Aquela árvore se tornava uma extensão do meu ser: seu tronco me erguia em direção ao futuro, seus galhos proporcionavam conforto e suas raízes ofereciam segurança. Ela me alimentava não somente com seus frutos, mas, essencialmente, com seu poder. E através dela, eu absorvia poder, me tornando também frondosa, poderosa. Mas a árvore era mais do que um lugar de sonhos - ela era principalmente meu refúgio. Subir nela era meu movimento de resistência ao instituído. Quando eu queria protestar à imposição do banho indesejado, a ter que almoçar quando não estava com vontade, a seguir qualquer ordem que não me agradasse. Certo dia, já adolescente então, nos mudamos para uma casa nova, a algumas léguas dali. Não quis levar nada que me pertencia. Ficaram os quadros, as bonecas... tudo o que eu podia deixar, já que o mais importante – minha árvore amiga

- não poderia levar. Não demorou muito para que os novos donos da casa cortassem a minha árvore, sem dó, nem paixão. Algo dentro de mim esbarrocou. chorei muito, tanto quanto chora uma donzela pela perda de seu amor. Doce amiga árvore, Não tenho nenhuma foto de você Nem pó, nem cinzas Invisível aos olhos; manifesta ao coração com a esperança de que algum vento uivante tenha soprado, para longe dali, alguma semente Que, quiçá, tenha brotado em algum quintal De alguma menina rebelde e sonhadora! Podem nos tirar tudo na vida, mas nossas raízes são indestrutíveis. Do mesmo modo como nunca conseguirão destruir a árvore predileta de meu coração, jamais conseguirão apagar uma árvore genealógica.

INTRodução

desenhar é uma atividade imprescindível à espécie humana. As pinturas das cavernas de Altamira e Lascaux atestam a necessidade humana de simbolizar graficamente seus objetos de interesse e sua vida cotidiana. Uma imagem, segundo Carl Gustav Jung (1977) pode ser considerada simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto. Quando a mente explora um símbolo é conduzida a ideias que estão fora do alcance da razão. o desenho de árvores genealógicas existe há séculos. de acordo com Heck e Jahn (in Weigel, 2007), o mais extenso dado histórico de uma schemata genealógica se origina, de um lado, dos arquivos dos quadros dos ancestrais medievais e, por outro, dos arquivos de uma ars combinatoria , tal como a de Lull^1 , a cabalística ou a árvore sefirótica do conhecimento. Enquanto um ícone e um esquema formativo de representações genealógicas, pode ser relacionada à história bíblica da Queda do Homem. A árvore é um símbolo fundamental que acompanha a história da humanidade, e seu desenho é uma forma de comunicação humana. Ela representa, simbolicamente, o crescimento e o desenvolvimento da vida psíquica (Handerson, 1977) e permite a representação. Representar é tornar presente o que está ausente por meio de símbolos (Jovchelovitch, 2008). Ao longo dos séculos, muitas pessoas têm tido o trabalho de juntar as peças, buscar origens, encontrar nomes, famílias e representar tudo isso em uma árvore. o que é representado em uma árvore genealógica são as representações da família. Zonabend (in Woortmann, 1994), em seu estudo sobre os camponeses de Minot (França), destacou que eles, quando falam da família, isto é, quando parlent famille , designam a genealogia sob a forma de uma árvore. A terminologia que situa a família entendida como uma descendência é composta de termos referentes à árvore, tais como tronco ou cepa ( souche ), ramo ( branche ou rameau ), e outros. São termos particularmente evocativos para esses camponeses. o desenho da árvore genealógica não é atividade do passado; é uma atividade moderna, pois ainda nos dias de hoje as pessoas continuam a desenhá-las. Entretanto, essa atividade assume novos contornos na sociedade moderna.

388 Roso, A. árvore genealógica senão transmitir um determinado saber às gerações sucessivas? Quando elaboramos uma árvore genealógica estamos narrando histórias de vida, ao mesmo tempo em que estamos representando o social. A re- presentação, segundo Moscovici (1976, in Marková, 2006), é sempre direcionada aos outros: através do ato de apontar alguma coisa a alguém, ela fala; e através do ato de expressar algo a alguém, ela se comunica. A representação das origens da família pode ser considerada como um “saber produzido na, e pela, vida cotidiana” (Jovchelovitch, 2008, p. 87). Enquanto representação, ela envolve não apenas uma ação concreta (consulta a documentos históricos, compilação de depoimentos; análise de fotografias, etc), mas, também, o elemento da criatividade. Imagina- mos o passado que nos liga, os rostos, o cotidiano outrora vivido. Representamos, individualmente e coletivamente, saberes que retomam o passado: No ato de contar histórias [via genealogia] “os saberes sociais ganham vida e, com eles, as re- presentações do passado e as apresentações da identidade. Contando histórias, as comunidades lembram o que aconteceu (memória social), colocam a experiência em sequência (humanização do tempo), encontram explicações para o que está acontecendo (dar sentido) e jogam com a cadeia que dão forma à vida individual e social (construção do futuro). O contar histórias evoca campos de conhecimento e reconhecimento; é um ato que vive além das histórias individuais, (...)” (Bartlett in Jovchelovitch, 2008, p. 145-6). Ao contar histórias através do delineamento de uma árvore genealógica, estamos falando a vida (e não da vida). Por isso, elas são sempre ativas, estão sempre em construção, não param no tempo. São “como pensamentos em movimento”, “fenômenos dinâmicos e abertos” (Marková, 2006, p. 173). Não somos mais apenas avós, pais, mães, tios, primas ou estruturas formais de parentesco; as partes passam a ter uma relação com o todo. Ou seja, as árvores não são representações estáticas. Justamente por isso é que podemos transformá-las. Não é por acaso que, segundo Handerson (1977), a imagem de árvore simboliza o crescimento e o desenvolvimento da vida psíquica. Essa transformação se efetua a partir do desejo (ou do não-desejo) de vivermos em comunidade. Um lugar que, como salienta Scarparo e Guareschi (2007), é imprevisível; lugar onde as pessoas vivem seu co- tidiano e se relacionam, traduzindo os modos de vida contemporâneos, tanto na fragmentação e naturalização da vida quanto na possibilidade de desejar, conviver e criar. Neste espaço, podem ser articuladas práticas sociais e, quem sabe, o não-lugar delimitado pelas utopias seja apenas um sonho, algo inatingível, mas nos leva a caminhar. é sobre isso que falarei a seguir.

dIÁloGoS ENTRE o SENSo CoMuM

E AS CIêNCIAS: ARTICulAçõES

ENTRE ÁRvoRES GENEAlóGICAS E

GENOGRAMA

O interesse pela genealogia tem sido revigorado nas sociedades em rede pelas mais diversas disciplinas. A antropologia e a psicologia têm se interessado por esse campo de estudo e pesquisa. Em seu estudo antropológico, Woortmann (1994), salienta que existem diferenças significativas entre a genealogia dos novos-ricos urbanos e a dos colonos. A família na cultura dos colonos teuto-brasileiros é percebida como uma árvore que tem raízes, tronco(s), ramos, flores e frutos ou sementes, na qual se privilegia o tronco (cerne). A árvore dos colonos aproxima-se a um rizoma, em processo de reprodução constante. A árvore dos genealogistas situa os antepassados mais remotos nas pontas dos galhos mais altos, localizan- do-se o interessado na extremidade inferior, como o resultado do encontro de dois troncos. Trata-se de uma concepção individualista da árvore, construída em função de um Ego. Para os descendentes de colonos, urbanizados e enriquecidos trata-se da reconstrução das origens germânicas com a busca de laços nobiliárquicos, eventuais brasões etc., num esforço de “invenção de tradição”. o objetivo dessa elite é, em larga medida, legitimar uma nova situação de classe, de “novos ricos”, através de uma antiga situação de status presumido (Woortmann, 1994). ou seja, podemos interpretar que a produção de árvores genealógicas dos novos-ricos urbanos carrega uma função ideológica de reprodução de relações de dominação. A autora traz o suicídio para ilustrar como me- mórias desagradáveis podem se eliminadas das árvo- res: limitando-se o fato ao indivíduo, evita-se even- tuais acusações intrafamiliares que poderiam ameaçar a unidade e identidade da árvore e mantém-se irre- tocável a sua imagem frente ao público. Elimina-se da memória desagradáveis componentes estruturais da si- tuação passada, não muito edificantes para quem deseja edificar uma memória ‘exemplar’ (Woortmann, 1994). O modo de pensar e interpretar a ação de construção de árvores de Woortman é um dos possíveis, que não irei aprofundar aqui. Neste momento, prefiro olhar sob outro prisma – que é a partir da psicologia.

Psicologia e história 389 Recentemente, temos a difusão de genogramas na psicologia enquanto um instrumento científico para coleta de dados em pesquisas qualitativas com famílias. Eles explicitam a estrutura familiar ao longo de várias gerações e das etapas do ciclo de vida familiar (Wendt e Crepaldi, 2008). de fácil execução e por seu formato gráfico, “o genograma facilita a visualização do contexto familiar e de suas principais características, reunindo maiores possibilidades de detecção dos aspectos psicossociais. Nele são registrados dados de importância para o indivíduo, tais como separações, doenças, mortes, acidentes, cirurgias e internações” (Muniz e Eisenstein, 2009, p. 73), assemelhando-se muito às narrativas das árvores genealógicas. A dissertação de Betencourt (1999) trabalha nessa perspectiva. Ela estuda três famílias partindo da própria história da genealogia, evoluindo para o genograma, o que reforça a ideia de que a árvore genealógica enquanto simbolismo encontra significado apenas quando compreendida a partir do contexto sócio- histórico do protagonista do desenho. Além do mais, a criação de genogramas a partir de árvores genealógicas é um exemplo de como um conhecimento do senso comum pode dialogar com o conhecimento científico. um não substitui o outro, ao contrário, eles se complementam. Talvez a associação da árvore genealógica ao genograma seja uma possibilidade de superar o uso da árvore de modo ideológico, apontado por Woortmann (1994). Expandir a interpretação de árvores genealógicas (conhecimento do senso comum) a partir do genograma (conhecimento científico) pode ser um modo de repensar a genealogia familiar e evitar que se reforcem relações de dominação de raça, gênero e de classe social.

CoMuNIdAdE, ÁRvoRES GENEAlóGICAS

E SoCIEdAdE EM REdES

o sociólogo Zygmunt Bauman (2005) afirma que a cultura da modernidade – que ele designa de modernidade líquida – não mais se percebe como uma cultura do saber e da acumulação. Em vez disso, “parece uma cultura do desengajamento, da descontinuidade e do esquecimento” (p. 144), cultura essa que é reinventada com bases na nova estrutura de sociedade em rede. A sociedade em rede, segundo Castells (1999), é caracterizada pela globalização das atividades econômicas decisivas e sua organização em redes; pela flexibilidade e instabilidade do trabalho assim como por sua individualização; pela chamada cultura da “virtualidade real”; e pela transformação das bases materiais da vida, que são o espaço e o tempo mediante a constituição de um espaço de fluxos e de um tempo atemporal. Se antes havia espaço para uma concepção “ro- mântica” de comunidade, isto é a ideia de que a co- munidade podia ser um lugar confortável, aconchegan- te, seguro e onde nos entendíamos bem (Bauman, 2003), na atualidade, “a antiga e conhecida segurança ofereci- da pela experiência comunitária foi profundamente abalada pela perda de parâmetros tradicionais de refe- rência comunitária e pelo ganho de liberdade para explorar novas possibilidades de viver” (Jovchelovitch, 2008, p. 130). dentre essas possibilidades, situa-se a internet que, conforme Castells (2003) é o coração de um novo paradigma sociotécnico, que constitui na realidade a base material de nossas vidas e de nossas formas de relação, de trabalho e de comunicação. O que a internet faz é processar a virtualidade e transformá-la em nossa realidade, constituindo a sociedade em rede. A partir da criação de artefatos tecnológicos, hoje, a agilidade na elaboração e a divulgação de árvores genealógicas é um acontecimento histórico que já faz parte do cotidiano de muitas pessoas informatizadas. Não é por acaso que podemos encontrar tantos sites que oferecem serviços (muitos gratuitos) que auxiliam a montar a árvore genealógica das famílias e softwares de genealogia. Pesquisando no mecanismo de busca Google sobre “árvores genealógicas”, encontramos 2.920. sites e links. Muitos deles facilitam a construção de árvores genealógicas online , através de softwares de genealogia. Nas comunidades do orkut (Beta, português), os resultados de pesquisa para árvore genealógica indicam 211 comunidades. O orkut oferece um aplicativo denominado My Tree que permite que o usuário crie sua própria árvore genealógica e partilhe com pessoas selecionadas ou com a rede geral. Além destes, existem outros sites que não são específicos de árvore genealógica, mas que incluem essa modalidade, como o <http://www.imigrantesitalianos.com.br/ >. A partir do posto acima, podemos considerar que a internet, além de propiciar um acesso mais rápido às informações que antes seriam inacessíveis ou de consulta complexa, interfere na “vivência espacial”, já que podemos nos conectar com pessoas de qualquer parte do globo. Por exemplo, um americano, descendente de brasileiros, pode buscar suas origens brasileiras sem nunca ter pisado no nosso país; basta acessar os sites especializados e iniciar a procura. de fato, atesta Jovchelovitch (2008), a globalização propiciou a criação simultânea de novas comunidades

Psicologia e história 391 Mais do que isso, ela pode ser um recomeço para nos questionarmos sobre que significa viver e estar em comunidade; ou seja, ela possibilita a reconstrução de nossas representações sobre comunidade/s. Se cada ser humano puder retomar aquele desejo infantil de subir em árvores, contemplar a beleza do mundo sob um novo ângulo e reconhecer que o que nos dá sustentação são as raízes, que por isso, e somente por isso, podemos colher frutos, conseguiremos “utilizar as máquinas , todas as máquinas – concretas e abstratas, técnicas, científicas, artísticas –, para fazer muito mais do que revolucionar o mundo: para recriá-lo de ponta a ponta (Guattari, 2007, in Guattari e Rolnik, 2007, p. 335). Quanto mais nos vinculamos às raízes, mais pode- mos nos sentir fortes. A genealogia nos ensina, como bem pontua Souza (s.d.), que cada indivíduo é, em cada momento da história, o herdeiro e o representante universal da raça humana, em toda a sua diversidade cultural, religiosa, étnica e biológica. Cada um de nós é simultaneamente todos os outros, e todos somos um só. Podemos considerar as produções genealógicas como mais um passatempo a preencher as horas vagas em frente à internet ou podemos tomá-las como uma possibilidade de tomada de consciência sobre a nossa existência social – existência enquanto pessoas que se reelaboram enquanto sujeitos simbólicos e que podem reinventar o sentido de viver em comunidade/s, que, quiçá, estão sendo redesenhadas dentro dos parâmetros das sociedades em redes. Talvez não saibamos que tipo de “comunidade” almejamos ou mesmo se há um desejo comum “e moderno” em busca da comunidade, mas creio que seja possível nos movermos em direção “a um novo tipo de possível”, como diria Guattari (2007, in Guattari e Rolnik, 2007, p. 335), a novas modalidades do ser- em-grupo. Não precisamos cair no discurso fatalista- negativista, que vê as novas tecnologias como grandes vilões da sociedade: podemos, sim, trabalhar com uma concepção mais positiva da internet. Ela não é produtora de todos os males da sociedade e nem o maior inimigo das comunidades. Ao contrário, usada de modo solidário, ela pode servir como um auxílio interessante para o estreitamento de laços, servindo, quem sabe, como um instrumento de resistência ao instituído e um aparelho tecnológico de transformação do social. Enfim, os seres humanos têm a necessidade de se manterem unidos, de se vincularem às raizes, de perpetuarem-se em comunidade. Afinal, nenhum vento poderá tombar as árvores de raízes profundas, que germinam sementes de amor e produzem representações etéreas. é preciso continuar contando histórias... e que sejam as árvores genealógicas um instrumento de compreensão do passado e de transformação do presente para que possamos, em comunidade, planejar o futuro que queremos para nós.

REFERêNCIAS

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