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O objetivo principal dela é elucidar a cosmologia que Giordano Bruno nos apresenta num livro específico, o Tratado da magia. Não poderíamos, por questões de ...
Tipologia: Notas de aula
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Manaus – Amazonas Junho de 2012
Programa de Pós-graduação em História
Orientador: Dr. SINVAL CARLOS MELLO GONÇALVES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da UFAM como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em História na área de concentração História Cultural.
Aos meus pais, Eva Maria Alves Cavalcanti Atroch e André Luiz Atroch
Ao meu irmão, Daniel Atroch
A Deus DEDICO
A Deus, por estar todos os dias ao meu lado;
À Universidade Federal do Amazonas – UFAM, por meio do Programa de Pós-graduação em História, pela oportunidade de realizar o curso;
À CAPES pela concessão da Bolsa de estudos;
Ao Dr. Sinval Carlos Mello Gonçalves, pela orientação, pela contribuição para a minha carreira profissional e por nossas discussões a respeito da magia e da ciência;
À Dra. Patrícia Lessa dos Santos (Unicamp) pela disponibilidade com que sempre me atendeu, pelos livros que gentilmente me disponibilizou e principalmente pelo incentivo e ideias que trocamos.
Às conversas com meus colegas Átila Augusto Vilar e Thiago Rocha, pelo que pudemos partilhar em diversos momentos a respeito de história, ciência e filosofia.
Meus sinceros agradecimentos.
3.1. As últimas obras mágicas 58 3.2. Sobre o Tratado da magia 58 3.3. Os três mundos do cosmo: o natural, intelectual e o divino 65 3.4. O mundo natural: fogo, água, ar e átomos 67 3.5. O mundo arquetípico: Deuses, espíritos e demônios 71 3.6. O mundo matemático ou mental: a imaginação entre o céu e a terra 75 Apêndice ao capítulo III: Hermes Trismegisto e o Tratado da magia. 79 Conclusão 83 Bibliografia 86
Introdução geral
Meu interesse por Giordano Bruno é relativamente recente. Eu sempre me ocupei tanto com questões de ciência e filosofia, como com questões mais esotéricas. Podia num dia estar lendo A Origem das espécies de Darwin, e no outro estar às voltas com o Dogma e Ritual de Alta Magia de Eliphas Lévi. Certo dia, meu irmão Daniel me chamou a atenção para um livrinho vermelho da Martins Fontes na estante de uma livraria popular. Era o Tratado da magia de Giordano Bruno. Comprei o livro e desde então o tenho comigo sempre. Isso aconteceu em 2008, e eu ainda não pensava em fazer mestrado. Foi com esse livro que uma possibilidade de estudo além da graduação se abriu para mim, pois nele as questões que sempre me apaixonaram da ciência, da magia e da estrutura da natureza estavam juntas. Quando iniciei a pesquisa a respeito do Tratado da magia, percebi logo que seria uma tarefa interessante, e a primeira leitura que fiz me levou a optar por enfocar a noção de natureza no Tratado da magia, que inclusive era o título desta pesquisa. Porém, em conversas com meu orientador Sínval Carlos Mello Gonçalves, achamos que natureza era um termo específico demais e que cosmo seria mais abrangente, pela própria estrutura do trabalho que eu ainda estava construindo, já que eu estava tratando tanto de questões materiais quanto espirituais. A noção de um mundo tripartido entre natureza, mente e arquétipo é o que dá a tônica da pesquisa em torno desta obra pouco conhecida de Giordano Bruno. Procuramos usar obras de diversos historiadores, mas o trabalho de Frances Yates, Pierre Hadot e Paolo Rossi norteiam essa pesquisa cada um num campo diferente. Com Yates, estabelecemos a influência que o hermetismo teve tanto no século XVI, quanto na própria obra de Giordano Bruno. Com Pierre Hadot, buscamos entender como a noção de natureza evoluiu desde os gregos e como ela se encaixa no quadro geral de uma cosmogonia, no caso a do Tratado da magia. Já com Paolo Rossi, nos interessa saber quais relações o hermetismo teve com a nova ciência de Galileu e Francis Bacon, e saber se de fato havia limites epistemológicos entre o conhecimento mágico e o científico. Claro que esta pesquisa é bem menos ambiciosa do que pode parecer à primeira vista. O objetivo principal dela é elucidar a cosmologia que Giordano Bruno nos apresenta num livro específico, o Tratado da magia. Não poderíamos, por questões de tempo, relacionar essa cosmologia com a de outros livros de Bruno, embora eu creia que isto responderia a determinadas
Capítulo I: Renascença e magia - um olhar historiográfico
1. Introdução
Neste capítulo pretendo introduzir o estudo do Tratado da magia, através de um olhar sobre a historiografia especializada em Renascimento. Existe uma ampla discussão historiográfica sobre se o Renascimento representou ou não uma ruptura com a Idade Média. Sou da opinião de que ao invés de uma ruptura, o Renascimento representou uma continuidade muito ampla com aquilo que foi a Idade Média. Certos movimentos começados nos séculos tradicionalmente considerados medievais, como a importância crescente da Igreja, a busca pelo saber dos antigos, a conquista incessante de novos territórios, para citar alguns, tiveram seu apogeu durante o Renascimento. Claro que isso não impede a renascença de apresentar suas próprias especificidades, como o surgimento da Reforma Protestante e o fortalecimento das monarquias que, se antes tinham que repartir o poder entre vários senhores feudais, agora caminhavam para o absolutismo a passos largos. Mas entendemos que essas especificidades renascentistas não são suficientes para que pensemos o Renascimento em termos de ruptura com o período medieval. Também trabalharemos com a noção de magia, segundo os historiadores que estudaram a renascença, numa perspectiva de confronto entre as noções historiográficas e a noção bruniana de magia. Existem vários aspectos das práticas mágicas, cada um deles enfatizado por um historiador, em função de um objeto de estudo específico. Procuraremos dar conta de pelo menos parte dessa discussão, como um prelúdio ao estudo de Giordano Bruno. Finalmente, analisaremos o que Bruno entendia por cada aspecto da magia e depois o que ele descreve como sendo a magia de modo geral, para então verificarmos se essa definição bruniana de magia difere muito das noções historiográficas. Após este estudo, que serve também como uma modesta introdução ao pensamento bruniano, direcionaremos o capítulo a fim de dar conta de como essa questão da magia levantada por Giordano Bruno se relaciona com a questão mais ampla da sociedade renascentista, em seu aspecto filosófico, científico e religioso.
1.1 A noção de Renascimento
A noção de Renascença levantou o problema por nós já mencionado, da suposta ruptura entre este período e a Idade média. Agora vamos tentar entender esta questão com um pouco mais de profundidade. O que normalmente se entende por Renascença é um período que vai do século XV ao século XVII, ou seja, um rasgo temporal de trezentos anos que, embora significativos, nos dão a falsa impressão de que os mil anos de Idade Média foram uniformes. Além da era medieval não ter sido homogênea, Jacques Le Goff sustenta que muitas características do que poderíamos chamar de “espírito ocidental”, que se acreditava haver sido introduzido pela Renascença italiana, têm uma história muito mais longa, remontando aos séculos XII-XIII. Entre essas características ocidentais está o individualismo, uma das mais notáveis marcas do século XVI. Jacques Le Goff termina uma seção do livro As raízes medievais da Europa justamente observando este ponto:
Para terminar, sem renegar os ideais coletivos, a pertença à linhagem, às confrarias, às corporações, os homens e as mulheres do século XIII se esforçaram, pelo menos uma minoria dentre eles, por promover o indivíduo. No final de sua caminhada terrestre o purgatório é um além individual antes do além coletivo do Juízo Final.” 1
Se aceitarmos o ponto de vista de Le Goff seremos forçados a reconhecer que aquelas conquistas fabulosas do espírito humano que caracterizam a Renascença italiana no imaginário escolar, podem ser o ponto culminante de um processo que se desenvolveu na Europa durante a Idade Média. Devemos então ver no Renascimento italiano não uma ruptura com o período medieval, mas uma intensificação de um movimento cultural que já havia começado desde a Idade Média propriamente dita. Embora de maneira diferente, o próprio Johan Huizinga deu preferência a pensar o Renascimento nos termos de uma continuidade com a Idade Média, preferindo enxerga- lo enquanto “outono” da Idade Média ao invés de descrevê-lo enquanto uma ruptura drástica. Esta recusa do abismo que separava esses dois períodos na historiografia foi justamente a resposta de Huizinga ao trabalho de Jacob Burckhardt. Burckhardt afirmou, entre outras coisas, que a sede de glória e de honra caracterizou o homem da Itália renascentista, ao que Huizinga respondeu que:
(^1) LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Editora Vozes, 2007. p. 219.
ainda no fim do século XVIII, os revolucionários têm necessidade do mito do retorno a Antiguidade para romper com a ordem antiga, é porque a incapacidade de pensar a novidade de outro modo que um retorno a um passado glorioso é, uma das marcas de continuidade da longa Idade Média (...) 4.
São estes, pois, os horizontes teóricos com os quais estamos trabalhando a ideia de Renascimento nesta pesquisa, tendo em mente que o Renascimento também possuía sua especificidade, como eu já mencionei na introdução ao capítulo. O Renascimento é discutido aqui como um período que levou adiante a viva vontade de conhecer que havia sido herdada diretamente da própria Idade Média, com seu eterno interesse pela Antiguidade, seus mosteiros e universidades. Para fechar a discussão a respeito da noção de renascimento, podemos acrescentar o argumento de que o historiador não pode adotar com muita facilidade as convicções daqueles que escreveram os documentos. Os renascentistas, como todos de uma nova geração, estavam possuídos pelo desejo de superar seus antepassados tanto em matéria de feitos esplendorosos quanto em matéria de conhecimento. De fato, eles desejavam iniciar uma nova era, com novos paradigmas. A historiografia recente, porém, tende a relativizar essa “novidade” do Renascimento, argumentando que os renascentistas geralmente criticaram os medievais dentro dos próprios parâmetros medievais. Para Jeróme Bashet, a própria descoberta da América, que didaticamente encerrava (e quiçá ainda encerra) a Idade Média em 1492, foi um empreendimento genuinamente medieval. Bashet afirma que era o espírito de Cruzada que estava em questão. Tratava-se de aumentar a glória de Deus combatendo ou convertendo os novos infiéis encontrados além-mar. Para Bashet, sequer a sede por ouro dos conquistadores representava qualquer coisa estranha à lógica feudal, como uma espécie de espírito pré-capitalista. Ele afirma que no testemunho de muitos conquistadores, existe uma valorização medieval do ouro não como valor de troca, mas enquanto elemento nobre e nobilitador do seu possuidor. Os novos paradigmas tiveram de esperar até o século XVIII quando outros, diante da monumental cultura que os renascentistas acumularam, ousassem tentar ser melhores do que eles. Mas ainda assim, penso que devemos encarar a noção de “limite” com muito cuidado. Dizer que no século XVIII existe uma ruptura, não quer dizer que de repente tudo se alterou. Isso seria apenas deslocar a problemática do século XVI para o XVIII.
(^4) BASCHET, Jérome_. A Civilização feudal. Do ano mil à colonização da América_. São Paulo: Editora Globo S.A, 2009. p. 44.
Na verdade, o século XVI-XVII construiu muitas das bases nas quais a revolução científica se apoiou. Uma delas é a assimilação definitiva da técnica à ciência, fato que tem como marco a utilização da luneta por Galileu para resolver uma questão cósmica que normalmente era resolvida por meio da filosofia. Mas isso não quer dizer que no século XVIII ninguém pensasse mais em termos mágicos. No início do século XIX, aproveitando a vaga romântica de revalorização medieval, um inglês chamado Francis Barret^5 , estudioso de magia e alquimia, publica o Magus , livro que é uma espécie de compilação da tradição mágica ocidental medieval que, entre outros assuntos, ainda discorre sobre magia natural. De fato, na metade do século XIX a Europa conheceu uma espécie de renascimento dessas ideias, que partiam de ícones românticos como o Fausto de Goethe, que certamente atingiu a obra do jovem Francis Barret. Só que nos séculos XVIII-XIX as correntes mágico-herméticas entram para o rol das tendências marginais da cultura ocidental. Ela fazia agora parte da sub-cultura que englobava também poetas e pintores malditos como Charles Bauldelaire, William Blake, Goethe, pois junto dos elementos medievais genuínos, existe em tais obras mágicas boa dose do estilo neogótico desses poetas e pensadores. Desde então, o ocultismo não mais sairia do “underground” da cultura, tendo sido adotado no XX por jovens rebeldes que desde os anos de 1960 procuram uma alternativa à espiritualidade vigente. Podemos concluir que o tempo histórico é bem mais fluido do que talvez sejamos capazes de apreender, e geralmente não respeita nossas delimitações: o arcaico e o novo convivendo ao mesmo tempo, sugerindo que, afinal de contas, parece haver um ponto no qual as eras se tocam, como o ponto de fuga imaginário que numa tela dá profundidade à composição.
1.2 A magia de acordo com a historiografia
Existe uma profusão de estudos antropológicos sobre a magia, que desde a época de Marcel Mauss vem sendo estudada e definida. Mas, não ignorante da imensa contribuição sociológica e antropológica, faltam-me o espaço de discuti-las nesta pesquisa tendo optado por privilegiar a historiografia, assinalando as relações que possam existir entre historiografia e
(^5) BARRET, Francis. Magus –Tratado completo de alquimia e filosofia oculta. Trad. Júlia Bárány. São Paulo: Mercuryo,
Mas Burckhardt, ao contrário de estudiosos posteriores, não consegue ver o florescimento da magia na Renascença, vendo o XVI como o período em que a magia já estava caindo no esquecimento. Existe por parte de Burckhardt o desejo de ver as pessoas da Renascença como “mais racionais” ou mais parecidas conosco do que aquelas pessoas do medievo. Assim ele tende às vezes, a minimizar a importância da magia, mesmo reconhecendo a sua difusão em todos os setores da sociedade, inclusive o eclesiástico. Apesar disso, o estudo dele é um dos que mais discute a questão da magia na Itália deste período. Burckhardt analisou a astrologia, a qual considerou “um triste elemento da vida italiana”^7 , emitindo censuras aos homens daquele tempo por crenças que lhes eram próprias. Também a observação de presságios, o avistamento de seres mitológicos como tritões, o contato com espíritos, a bruxaria, tudo isso foi analisado por Burckhardt, que não vê nestas práticas mais do que fantasias que a Antiguidade legou à Renascença, como se as crenças mágicas não houvessem também elas mudado com o tempo, permanecendo como um pano de fundo estanque da cultura, e , portanto, gerador de atraso cultural. Tendo em mente essa postura anacrônica que caracteriza a leitura que Burckhardt fez sobre as práticas mágicas, mas que era a leitura que o XIX fazia, podemos resumir que a magia para Burckhardt é vista sob duas óticas: uma é a da moralidade. A magia é uma prática imoral, basta atentar-nos para a forma como ele qualifica a maioria dos seus adeptos: “patife”. Por outro lado, a magia é um vestígio de práticas pagãs, ela é uma sobrevivência da Antiguidade, não importando sob que aspecto ela se revestisse:
Nestas pessoas ambíguas, como foi o caso de Agrippa, nos patifes e tolos, como podemos chamar a maioria dos demais, interessa-nos muito pouco o sistema de que se revestem, com suas fórmulas, defumações, unguentos, pentáculos, ossadas de mortos e tudo o mais. Contudo, o fato é que esse sistema apresenta-se repleto de elementos oriundos da superstição antiga, e sua interferência na vida e nas paixões dos italianos afigurara-se, por vezes, bastante significativa e rica em consequências.^8
Johan Huizinga por outro lado, escrevendo em 1919, apesar de construir uma ponte sobre o abismo que Burckhardt estabelece entre medievo e renascença, não dispensa atenção à magia na
(^7) BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 453. (^8) BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 472.
sua obra monumental, que se concentra na França e não na Itália. Pode ser que o silêncio de Huizinga diga alguma coisa, afinal, ele se dedicou a analisar cada parte da vida cultural do XV. Mesmo assim, se levarmos em consideração que nos séculos XV-XVI todos os setores da vida estavam interligados, acaba que a tentativa de Huizinga em descrever o sistema de pensamento cavalheiresco, nos oferece importantes insigths a respeito da vida espiritual e intelectual dos homens do século XV, que acabam revelando algo a respeito da própria magia, que também era um sistema de pensamento simbólico. Afinal, nesta época, existia o gosto por complexos “sistemas imaginários”. O amor e a cavalaria eram idealizados de maneira a fornecer um substrato mais nobre para a vida. Tal como na magia, o pensamento simbólico era largamente aplicado seja para aconselhar uma dama nos assuntos de amor, seja para inspirar um jovem cavaleiro a respeito das virtudes que dele se esperava. Huizinga, porém, ignorou completamente a questão da magia como uma questão menor. Tirando a menção que ele fez à chegada de uma caravana de ciganos à Paris, e de como as pessoas os consultaram para saber a sorte, e de menções esporádicas sobre a perseguição à bruxaria, Huizinga não atentou para a importância do mágico na sociedade por ele analisada, embora o maravilhoso que se liga diretamente à nossa questão tenha sido por ele abordado de forma extensa. Já Lucien Febvre, em O problema da incredulidade no século XVI – A religião de Rabelais , publicado em 1942, tem o mérito de apresentar alguns fatos interessantes a respeito da magia renascentista. Febvre, que está discutindo que tipo de ameaça a magia poderia representar para a religião estabelecida, observa que alguns magos afirmaram que milagres não existem, assim como o fato de que a própria noção de sobrenatural teria sido para eles um absurdo, pois nada de contrário à natureza poderia acontecer, como fica claro na famosa frase de Campannela citada por Febvre : “Não há milagres! Todo milagre é impossível, mesmo a Deus. Sobretudo a Deus, supremo guardião das leis da natureza.” 9 Lucien Febvre também não deixou de observar que naquele tempo, o determinismo natural, questão muito importante para a futura ciência, era discutido apenas dentro do âmbito astrológico, no qual a força dos astros eram emanações naturais. Esse foi o papel fundamental da magia na construção do “ceticismo” que caracterizaria o pensamento ocidental da época científica. Ora, aqui já vemos a magia sendo discutida não apenas como empecilho ao
(^9) FÉBVRE, Lucien. O Problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 204.
(^14). Conceitos antropológicos são constantemente usados por ele, que talvez não seja forçado dizer,
faz uma antropologia do passado, o que já representa em termos da literatura sobre magia uma mudança significativa, que se iniciou ainda nos anos 60 com os estudos de Keith Thomas. A obra de Francisco Bethencourt, O imaginário da magia – Feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI , é talvez uma das obras mais interessantes que eu já li sobre magia. Ainda que localizada em Portugal, o autor não deixa de fazer comparações com a situação nos países nórdicos e com a Itália. O autor explica que não é tão fácil traçar limites como “Deus”, “diabo”, “pagão”, “cristão”, mas que existiam nas práticas mágicas portuguesas, vários substratos de crenças diversas. Neste ponto, Bethencourt já havia notado a insuficiência da historiografia quando a magia está em questão: “A superação das ideias oitocentistas, nomeadamente a suposta oposição entre magia negra e magia branca, só foi possível com leituras estranhas à historiografia, como foi o caso de Wittgeinstein, Cassirer, Dumézil ou Evans Pritchard”.^15 Mas, ainda que tenhamos acompanhado uma mudança em relação à forma de abordar o conhecimento mágico na Idade Média e Renascimento, com estudos como o de Carlo Ginzburg e Francisco Bethencourt, ainda falta na maioria dos estudos historiográficos, uma tentativa de teorizar sobre a magia. Peter Burke, num livro publicado em 1999^16 nos oferece uma tentativa de definir a magia: Para termos uma visão comparativa pode ser útil definir magia como a tentativa de efetuar alterações materiais no mundo por meio de certos rituais e escritas, ou pela enunciação de determinadas fórmulas verbais (“filtros”, “feitiços” e “encantamentos”) que solicitam ou exigem que essas mudanças ocorram.^17
Apesar de ter o mérito de esboçar uma definição de magia, coisa que nenhum dos autores citados fez, veremos quando estivermos discutindo sobre a noção de magia em Giordano Bruno que essa definição é no mínimo insuficiente. Geralmente os historiadores não se preocuparam com a definição do fenômeno da magia, apenas com as origens e a repercussão social do fato de se acreditar em magia. Mas fazendo isso, eles deixam de cumprir o papel do historiador de esclarecer para uma época, aquilo que se acreditava em outra, pois todos eles escrevem como se fosse óbvio
(^14) GINZBURG, Carlo. História Noturna. São Paulo: Companhia das letras, 2007. p. 161. (^15) BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia, feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das letras, 2004. p.11. 16 17 BURKE, Peter_. O Renascimento italiano- Cultura e sociedade na Itália_. São Paulo: Nova Alexandria, 2010. BURKE, Peter. O Renascimento italiano: Cultura e sociedade na Itália. São Paulo: Nova Alexandria, 2010. p. 220.
para o homem do século XIX, XX ou XXI (conforme o caso) aquilo a que o homem do século XVI estava chamando de magia. Os autores nossos contemporâneos, falam, naturalmente, em nosso tempo. É o olhar do nosso século sobre o século XVI. Acontece que hoje, ao contrário do século XVI, todo o campo do saber humano já foi devidamente delimitado com as mesmas cercas burguesas com as quais cercamos nossas propriedades. Como veremos em Giordano Bruno, não havia tais cercas delimitando o saber para dizer que um talismã contra a peste era magia, mas a prescrição de tal dieta como preventivo da peste não. São os historiadores que escolhem chamar uma coisa de magia e não outra. Mas limites estavam sendo erguidos, só que não eram os limites entre magia e o que poderíamos chamar de conhecimento positivo ou racional. As cercas não eram intelectuais e sim dogmáticas, e foram erigidas aos poucos, à medida que a Europa a partir do século XI caminhava para uma sociedade de perseguição^18 , sendo que no XVI já havia uma distinção clara entre religião e magia,^19 apenas essa magia não se restringia às práticas cuidadosamente enumeradas por Burckhardt ou à definição elaborada por Peter Burke. Este estudo não poderia prescindir de passar rapidamente sobre o que aqueles que escreveram sobre o Renascimento tinham a dizer a respeito deste assunto. Mas a definição de nosso objeto pede uma abordagem diferente de todas as que foram tratadas até agora. Claro que, sem excluir totalmente as noções que criticamos, já que magia é um termo amplo no qual cabem diversas noções e definições, nosso estudo pede reflexões mais amadurecidas a respeito do papel da magia renascentista dentro do conhecimento. Neste sentido, trabalhamos com as pesquisas de três autores já consagrados neste assunto: Frances Yates, Paolo Rossi e Pierre Hadot. Apresento abaixo uma discussão do ponto de vista deles tendo em vista afunilar a questão da definição. O livro de Frances A. Yates Giordano Bruno e a tradição hermética , de 1964, é uma obra mais completa a respeito do pensamento mágico renascentista do que a maioria das obras mais recentes. Nela a autora sustenta opiniões ousadas que fizeram adversários ferozes, com a associação que ela fez entre o impulso de conhecer que é próprio da ciência com a magia. Na verdade, o livro de Frances Yates, segundo a própria, é a primeira tentativa de situar Giordano Bruno em relação à tradição mágico-hermética. O lendário Hermes Trismegisto influenciou uma
(^18) BASCHET, Jerôme. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Editora Globo, 2009. p.