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Guias e Dicas
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A tutela da personalidade no ordenamento jurídico-constitucional , Notas de estudo de Direito Penal

trabalho realizado para o segundo semestre do curso de direito - Direito Penal

Tipologia: Notas de estudo

2020

Compartilhado em 25/08/2020

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A TUTELA DA PERSONALIDADE NO ORDENAMENTO CIVIL-
CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
Gustavo Tepedino*
Sumário: 1. Introdução: a personalidade como objeto
de situações jurídicas subjetivas. A configuração
dogmática dos chamados direitos da personalidade; o
debate em torno do objeto do direito. 2. Características,
classificações e delimitação dos direitos da
personalidade. Personalidade e direitos humanos:
necessidade de superação da dicotomia entre o direito
público e privado. 3. Fontes dos direitos da
personalidade. Crítica às concepções jusnaturalistas. 4.
Teorias pluralista e monista: crítica. 5. A insuficiência
das orientações doutrinárias tradicionais. A pessoa
humana como valor unitário e sua proteção integral. A
cláusula geral de tutela da personalidade no
ordenamento brasileiro. Os direitos da personalidade
no Código Civil de 2002. A diversidade axiológica das
relações patrimoniais e extrapatrimoniais. Os
chamados direitos da personalidade das pessoas
jurídicas.
1. Introdução: a personalidade como objeto de situações jurídicas subjetivas. A
configuração dogmática dos chamados direitos da personalidade; o debate em torno
do objeto do direito
Poucos temas revelam maiores dificuldades conceituais quanto os chamados direitos
da personalidade. De um lado, os avanços da tecnologia e dos agrupamentos urbanos
expõem a pessoa humana a novas situações que desafiam o ordenamento jurídico,
reclamando disciplina; de outro lado, a doutrina parece buscar em paradigmas do passado
* Professor Titular de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - UERJ.
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Baixe A tutela da personalidade no ordenamento jurídico-constitucional e outras Notas de estudo em PDF para Direito Penal, somente na Docsity!

A TUTELA DA PERSONALIDADE NO ORDENAMENTO CIVIL-

CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

Gustavo Tepedino

Sumário: 1. Introdução: a personalidade como objeto

de situações jurídicas subjetivas. A configuração

dogmática dos chamados direitos da personalidade; o

debate em torno do objeto do direito. 2. Características,

classificações e delimitação dos direitos da

personalidade. Personalidade e direitos humanos:

necessidade de superação da dicotomia entre o direito

público e privado. 3. Fontes dos direitos da

personalidade. Crítica às concepções jusnaturalistas. 4.

Teorias pluralista e monista: crítica. 5. A insuficiência

das orientações doutrinárias tradicionais. A pessoa

humana como valor unitário e sua proteção integral. A

cláusula geral de tutela da personalidade no

ordenamento brasileiro. Os direitos da personalidade

no Código Civil de 2002. A diversidade axiológica das

relações patrimoniais e extrapatrimoniais. Os

chamados direitos da personalidade das pessoas

jurídicas.

1. Introdução: a personalidade como objeto de situações jurídicas subjetivas. A

configuração dogmática dos chamados direitos da personalidade; o debate em torno

do objeto do direito

Poucos temas revelam maiores dificuldades conceituais quanto os chamados direitos

da personalidade. De um lado, os avanços da tecnologia e dos agrupamentos urbanos

expõem a pessoa humana a novas situações que desafiam o ordenamento jurídico,

reclamando disciplina; de outro lado, a doutrina parece buscar em paradigmas do passado

Professor Titular de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro - UERJ.

as bases para as soluções das controvérsias que, geradas na sociedade contemporânea, não

se ajustam aos modelos nos quais se pretende enquadrá-las.

Com efeito, o direito romano não tratou dos direitos da personalidade aos moldes hoje

conhecidos. Concebeu apenas a actio injuriarum, a ação contra a injúria que, no espírito

prático dos romanos, abrangia qualquer “atentado à pessoa física ou moral do cidadão”,

hoje associado à tutela da personalidade humana.

1

A categoria dos direitos da personalidade constitui-se, portanto, em construção

recente, fruto de elaborações doutrinárias germânica e francesa da segunda metade do

século XIX. Compreendem-se, sob a denominação de direitos de personalidade, os direitos

atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais à sua dignidade e integridade.

2

Em síntese feliz, observou-se que “o homem, como pessoa, manifesta dois interesses

fundamentais: como indivíduo, o interesse a uma existência livre; como partícipe do

consórcio humano, o interesse ao livre desenvolvimento da `vida em relações'. A esses dois

aspectos essenciais do ser humano podem substancialmente ser reconduzidas todas as

instâncias específicas da personalidade”.

3

Perduraram, todavia, por muito tempo, hesitações da doutrina quanto à existência

conceitual da categoria, expandindo-se dúvidas no que tange à sua natureza e conteúdo,

bem como no que concerne à extensão da disciplina aplicável.

Destacam-se, antes de mais, as chamadas teorias negativistas (Roubier; Unger; Dabin;

Savigny; Thon; Von Tuhr; Enneccerus; Zitelmann; Crome; Iellinek; Ravà; Simoncelli,

1 Ebert Chamoun, Instituições de Direito Romano , Rio de Janeiro, Forense, 1951, p. 398. Para uma

percuciente análise da gênese e evolução histórica da tutela da personalidade, desde a antiguidade oriental, v.

R. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade , Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 26 e ss. Cf.,

ainda, sobre o tema, Elimar Szaniawski, “Direitos da Personalidade na Antiga Roma”, in Revista de Direito

Civil , vol. 43, p. 28 e ss. e, especialmente, pp. 37 e 38.

2 Para o exame da configuração dogmática dos direitos da personalidade, v. E. H. Perreau, “Des droits de la

personnalité”, in Revue trimestrielle de droit civil , 1909, p. 33 e ss. Fundamental, ainda, no direito francês,

Pierre Kayser, Les droits de la personnalité: aspects théoriques et pratiques , in Revue trimestrielle de droit

civil , 1971, p. 30 e ss. V., também, além das obras ulteriormente referidas ao longo do texto, Davide

Messinetti, “Personalità (diritti della)”, in Enciclopedia del diritto , vol. XXXIII, Milano, Giuffrè, 1983, p. 355

ss.; Ezio Capizzano, “Vita e integrità fisica (diritto alla)”, in Novissimo digesto italiano , vol. XX, Torino,

UTET, 1975, p. 999 e ss; e, do mesmo autor, “La tutela del diritto al nome civile”, in Rivista di diritto

commerciale , 1962, p. 249 e ss.; Adolfo di Majo Giaquinto, “Profili dei diritti della personalità”, in Rivista

trimestrale di diritto e procedura civile, 1962, p. 69 e ss., todos com ampla bibliografia italiana, francesa e

germânica.

3 Giorgio Giampiccolo, “La tutela giuridica della persona umana e il c.d. diritto alla riservatezza”, in Riv.

trimestrale di diritto e procedura civile, 1958, p. 458.

Em outras palavras, não se considerava a proteção jurídica da personalidade revestida

dos característicos do direito subjetivo, limitando-se à reação do ordenamento contra a

lesão — o dano injusto —, através do mecanismo da responsabilidade civil. Daí

decorreriam situações objetivas, não já o direito subjetivo, figura jurídica autônoma e

preestabelecida pela lei ou pela vontade das partes, que assegura poderes ao titular não

apenas para protegê-lo contra lesões mas para que possa dispor livremente do próprio

direito.

Muitas foram as críticas antepostas às teorias negativistas. Atacou-se sua premissa. É

que a personalidade, a rigor, pode ser considerada sob dois pontos de vista. Sob o ponto de

vista dos atributos da pessoa humana, que a habilita a ser sujeito de direito, tem-se a

personalidade como capacidade, indicando a titularidade das relações jurídicas. É o ponto

de vista estrutural (atinente à estrutura das situações jurídicas subjetivas), em que a pessoa,

tomada em sua subjetividade, identifica-se como o elemento subjetivo das situações

jurídicas.

De outro ponto de vista, todavia, tem-se a personalidade como conjunto de

características e atributos da pessoa humana, considerada como objeto de proteção por parte

do ordenamento jurídico. A pessoa, vista deste ângulo, há de ser tutelada das agressões que

afetam a sua personalidade, identificando a doutrina, por isso mesmo, a existência de situa-

ções jurídicas subjetivas oponíveis erga omnes.

7

Dito diversamente, considerada como sujeito de direito, a personalidade não pode ser

dele o seu objeto. Considerada, ao revés, como valor, tendo em conta o conjunto de

atributos inerentes e indispensáveis ao ser humano (que se irradiam da personalidade),

constituem bens jurídicos em si mesmos, dignos de tutela privilegiada.

Nesta direção, lecionava em 1942 o professor San Tiago Dantas: “A palavra

personalidade está tomada, aí, em dois sentidos diferentes. Quando falamos em direitos de

personalidade , não estamos identificando aí a personalidade como a capacidade de ter

direitos e obrigações; estamos então considerando a personalidade como um fato natural,

7 Sobre o tema, v. Francesco Carnelutti, “Diritto alla vita privata (contributo alla vita privata)”, in Rivista

trimestrale di diritto pubblico , 1955, p. 3 e ss., o qual, após criticar ironicamente as doutrinas negativistas

florescidas na Alemanha (e não na Itália, “segno del nostro buon senso”...), define o direito da personalidade

como um “diritto sul proprio corpo” (ao invés da fórmula usual diritto sulla propria persona), “dove la

differenza tra corpo e persona risponde alla opposizione tra il soggetto e l'oggetto del rapporto”.

como um conjunto de atributos inerentes à condição humana; estamos pensando num

homem vivo e não nesse atributo especial do homem vivo, que é a capacidade jurídica em

outras ocasiões identificada como a personalidade”.

8

A distinção entre os conceitos de personalidade como objeto e como sujeito de

direitos é clarificada pelo Código Civil Português, a partir da análise do art. 70, I, que

estabelece a tutela geral da “personalidade física ou moral” dos indivíduos, assim

considerada, pela doutrina, como “os bens inerentes à própria materialidade e

espiritualidade de cada homem”. Remarcou-se que “a personalidade surge, aqui

imediatizada no ser humano e configurada como objeto de direitos e deveres, não se

perspectivando como elemento qualificador do sujeito da relação jurídica enquanto tal, cuja

qualificação nos é dada antes pelas idéias de personalidade jurídica, ou seja, pelo

reconhecimento de um centro autônomo de direitos e obrigações, e de capacidade jurídica,

isto é, pela possibilidade jurídica inerente a esse centro de ser titular de direitos e obriga-

ções em concreto”.

9

Adriano De Cupis, em página clássica, afirma que “existem direitos sem os quais a

personalidade restaria uma atitude completamente insatisfeita, privada de qualquer valor

concreto; direitos desacompanhados dos quais todos os outros direitos subjetivos perderiam

8 Programa de Direito Civil , Rio de Janeiro, Ed. Rio (ed. Histórica), I, p. 192. E conclui o mesmo autor, que

introduziu o estudo do direitos da personalidade em suas aulas já em 1942: “Quer dizer que a palavra

personalidade pode ser tomada em duas acepções: numa acepção puramente técnico-jurídica ela é a

capacidade de ter direitos e obrigações e é, como muito bem diz Unger, o pressuposto de todos os direitos

subjetivos e, numa outra acepção, que se pode chamar acepção natural, é o conjunto dos atributos humanos, e

não é identificável com a capacidade jurídica. Aquele pressuposto pode perfeitamente ser o objeto de relações

jurídicas”. O Professor Ebert Chamoun, em suas lições admiráveis, expõe de maneira extremamente clara o

tema: “a personalidade pode ser considerada do ponto de vista jurídico ou do ponto de vista vulgar.

Juridicamente, a personalidade é a qualidade da pessoa que em verdade é titular de direito e tem deveres

jurídicos, mas, vulgarmente, a personalidade é um conjunto de características individuais, de valores, de bens,

de aspectos, de parcelas, que são realmente dignos de salvaguarda jurídica. Quando se diz que há um direito

subjetivo da personalidade, não se está dizendo que a titularidade coincida com o objeto, apenas se está

referindo a certos aspectos da personalidade, tomada a palavra no sentido vulgar, que são objetos da

personalidade sob o ponto de vista jurídico” (aulas datilografadas da Faculdade de Direito da UEG, ano

acadêmico de 1965, sem responsabilidade da cátedra).

9 R. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade , cit., p. 106, o qual ressalva: “Todavia, os institutos

da personalidade e da capacidade jurídicas interpenetram-se, sem se confundirem, com o bem da

personalidade humana juridicamente relevante, na medida em que os valores jurídicos que aqueles institutos

incorporam são reabsorvidos também no bem jurídico da personalidade, enquanto objeto da tutela geral

referida.”

resguardadas de qualquer ofensa, por necessária sua incolumidade ao desenvolvimento

físico e normal de todo homem”.

14

Afirmou-se que os direitos da personalidade “são os direitos supremos do homem,

aqueles que garantem a ele a fruição de seus bens pessoais. Em confronto com os direitos a

bens externos , os direitos da personalidade garantem a fruição de nós mesmos , asseguram

ao indivíduo a senhoria da sua pessoa, a atuação das próprias forças físicas e espirituais”.

15

O debate, portanto, como se depreende do último excerto, ressente-se da preocupação

exasperada da doutrina em buscar um objeto de direito que fosse externo ao sujeito, tendo

em conta a dogmática construída para os direitos patrimoniais. Em outras palavras, a

própria validade da categoria parecia depender da individuação de um bem jurídico —

elemento objetivo da relação jurídica — que não se confundisse com a pessoa humana —

elemento subjetivo da relação jurídica —, já que as utilidades sobre as quais incidem os

interesses patrimoniais do indivíduo, em particular no direito dominical, lhe são sempre

exteriores.

A dificuldade de individuação do bem jurídico objeto dos direitos da personalidade

revela-se na lição de Ferrara, para quem “nos direitos absolutos o objeto não é a res , mas os

outros homens obrigados a respeitar o seu exercício”. Assim sendo, os direitos da

personalidade “têm por conteúdo a pretensão de exigir respeito de tais bens pessoais. A

vida, o corpo, a honra, são o ponto de referência ( termine di riferimento ) da obrigação

negativa que incumbe à coletividade”.

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13 Sobre o tema, v., por todos, R. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade , cit., p. 106 e ss.

14 Introdução ao Direito Civil , Rio de Janeiro, Forense, 1996, 12ª edição, p. 151. Em outro passo ( Novos

Temas de Direito Civil , Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 254) , acrescenta Orlando Gomes: “é o direito da

pessoa humana a ser respeitada e protegida em todas as suas manifestações imediatas dignas de tutela jurídica,

assim como na sua esfera privada e íntima. Na sua concepção, esse direito geral de personalidade é o

fundamento de todos os direitos especiais da personalidade, logicamente antecedente e juridicamente

preferencial”.

15 Francesco Ferrara, Trattato di diritto civile italiano , cit., p. 389. Na mesma esteira, no direito pátrio,

Anacleto Faria, Instituições de Direito, São Paulo, Revista dos Tribunais , 1972, 2ª edição, p. 293, os

designava como direitos personalíssimos , definindo-os como “aqueles que têm por objeto a própria pessoa do

sujeito, considerada em seu todo, ou em alguns aspectos, prolongamentos ou projeções da mesma”.

16 Francesco Ferrara, Trattato di diritto civile italiano , cit., p. 395. V., ainda, a tentativa de esclarecimento

proposta por Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado , vol. VII, cit., p. 7: “a) no suporte fáctico de

qualquer fato jurídico, de que surge direito, há, necessariamente, alguma pessoa, como elemento do suporte;

b) no suporte fáctico do fato jurídico de que surge direito de personalidade, o elemento subjetivo é o ser

humano , e não ainda pessoa: a personalidade resulta da entrada do ser humano no mundo jurídico.”

A matéria é magistralmente enfrentada por Giampiccolo, segundo o qual a utilidade

juridicamente protegida não se confunde com o dever geral de abstenção (necessário à sua

conservação, não já à sua constituição), identificando-se “ con l'essere e le condizioni

essenziali dell'essere ed è quindi acquisita e intriseca al soggetto per ragione di natura ”.

Daí decorreria o equívoco dos autores que consideravam estranho à pessoa o ponto de

referência da relação jurídica (postulado que, segundo o mesmo autor, acarretaria um direito

sem objeto ou a negativa de direito subjetivo). E remata, demonstrando que a separação

entre o sujeito e o objeto do direito é postulado lógico quando o interesse protegido dirige-

se a uma utilidade externa, tal qual ocorre nas relações jurídicas patrimoniais. Entretanto, a

regra não se adapta definitivamente à categoria das relações jurídicas não-patrimoniais.

17

2. Características, classificações e delimitação dos chamados direitos da

personalidade. Personalidade e direitos humanos: necessidade de superação da

dicotomia entre o direito público e privado

A preocupação com a pessoa humana, surgida com as declarações de direitos, a partir

da necessidade de proteger o cidadão contra o arbítrio do Estado totalitário, limitava-se, por

isso mesmo, à tutela conferida pelo direito público à integridade física e a outras garantias

políticas, não existindo nas relações de direito privado um sistema de proteção fora dos

limites dos tipos penais.

Durante o liberalismo, o indivíduo não encontrava limites nas relações jurídicas

patrimoniais, cuidando o direito privado basicamente de estipular garantias para que o

domínio fosse exercitado sem ingerência externa; e para que a transferência de riqueza (da

propriedade, portanto) pudesse ter livre curso mediante a disciplina dos contratos. A lesão à

17 Giorgio Giampiccolo , La tutela giuridica della persona umana e il c.d. diritto alla riservatezza , cit., pp.

466 - 477: “ è naturale che, dove oggetto di tutela è l'essere stesso della persona, epperò una condizione di

utilità che non implica relazione alcuna com un bene esterno, la prospettiva debba mutare; e diviene allora

una necessità logica riconoscere che qui, per la speciale natura dell'interesse protetto, è proprio la persona a

costituire, al tempo stesso che il soggetto titolare del diritto, il punto di riferimento oggettivo del rapporto.

Non è già che con questo si pretenda dividere l'uomo in due aspetti (io e non io); si tratta di accetare semmai

il concetto, niente affatto contradditorio e in tutto aderente alla realtà, di una duplice rilevanza formale dello

stesso elemento , in relazione al diverso angolo visuale dal quale volta a volta può procedere l'analisi ; a parte

subiecti , a parte obiecti”.

especializada, a generalidade, a extrapatrimonialidade, o caráter absoluto, a

inalienabilidade, a imprescritibilidade e a intransmissibilidade.

20

A generalidade significa que esses direitos são naturalmente concedidos a todos, pelo

simples fato de estar vivo, ou pelo só fato de ser. Por isso mesmo alguns autores os

consideram como inatos, terminologia que, todavia, mostra-se por vezes dúbia, já que,

como se verá adiante, suscita a conotação jusnaturalista, adotada por alguns autores, no

sentido de que tais direitos preexistiriam à ordem jurídica, independentemente, portanto, do

dado normativo. A extrapatrimonialidade consistiria na insuscetibilidade de uma avaliação

econômica destes direitos, ainda que a sua lesão gere reflexos econômicos.

21

São absolutos,

já que oponíveis erga omnes , impondo-se à coletividade o dever de respeitá-los. A

indisponibilidade retira do seu titular a possibilidade de deles dispor,

22

tornando-os também

irrenunciáveis e impenhoráveis; e a imprescritibilidade impede que a lesão a um direito da

personalidade, com o passar do tempo, pudesse convalescer, com o perecimento da

pretensão ressarcitória ou reparadora. Finalmente, a intransmissibilidade constitui

característico controvertido, estando a significar que se extinguiria com a morte do titular,

em decorrência do seu caráter personalíssimo, ainda que muitos interesses relacionados à

personalidade mantenham-se tutelados mesmo após a morte do titular.

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20 V., por todos, Milton Fernandes, Os Direitos da Personalidade , São Paulo, Saraiva, 1986, p. 12 e ss., que

os designa como direitos personalíssimos.

21 Sobre esta específica característica, cf., na doutrina estrangeira, a lição de Adriano De Cupis, I diritti della

personalità , cit., p. 28: “ L'oggetto dei diritti della personalità essendo un modo di essere fisico o morale della

persona, bem s'intende come esso mai contega in se stesso una immediata utilità d'ordine economico. La vita,

l'integrità fisica, la libertà e così via dicendo permettono al soggetto di conseguire altri beni muniti di utilità

economica: ma non possono nè identificarsi nè confondersi con questi altri beni. Quando viene leso un diritto

della personalità, sorge nel soggetto un diritto al risarcimento del danno, rivolto a garantirgli il tantundem di

quei beni che l'oggetto del dirritto leso era in grado di fargli conseguire. L'equivalenza tra il diritto al

risarcimento del danno e il diritto leso della personalità è una equivalenza di carattere indiretto:

l'equivalenza tra i diritti non può essere che un riflesso dell'equivalenza tra i rispettivi oggetti; ed equivalenza

non sussiste direttamente tra la somma di danaro attribuita a titolo di risarcimento e la vita, l'integrità fisica

e via dicendo, ma bensì tra quella e i beni che quest'ultime possono far conseguire al soggetto .”

22 Da indisponibilidade deriva o intenso debate sobre a licitude dos atos lesivos aos direitos da personalidade

praticados com o consenso do interessado. Sobre o ponto, v., ainda, Adriano De Cupis, I diritti della

personalità , cit., p. 50, para quem não existe um princípio geral de invalidade de tais atos, os quais, embora

por vezes reprimidos pelo ordenamento, não necessariamente afetam a ordem pública, refletindo um aspecto

particular e mais modesto da faculdade de dispor.

23 Diogo Leite de Campos, Lições de Direitos da Personalidade, cit., p. 43, observa que, embora a morte

cesse a personalidade, “a doutrina, as leis, os juízes, afirmam a permanência, depois da morte, de um certo

número de interesses e dos direitos respectivos: o direito à sepultura e à sua proteção; o direito ao seu cadáver

e de decidir o seu destino; o direito à imagem que `era', e também o direito à imagem do cadáver; o direito ao

nome; o direito moral do autor; etc”. Daí ter o Código Civil Português, no art. 71, previsto que os direitos da

A tais característicos há quem acrescente, especificamente, a essencialidade e a

preeminência dos direitos da personalidade em relação aos demais direitos subjetivos, em

função da peculiaridade do seu objeto.

24

Estabelecidos os seus contornos, os civilistas em geral pretendem classificar os

direitos da personalidade, embora não sejam suficientemente convincentes os critérios

científicos adotados e a importância prática de tais partições.

25 De toda sorte, costuma-se

distingui-los em dois grupos: os direitos à integridade física e os direitos à integridade

moral. No primeiro grupo situam-se o direito à vida, o direito ao próprio corpo e o direito

ao cadáver. No segundo, encontram-se o direito à honra, o direito à liberdade, o direito ao

recato, o direito à imagem, o direito ao nome e o direito moral do autor.

26

Este conjunto de direitos decorre da previsão constitucional, do Código Civil e das

leis especiais que, pontualmente, fornecem elementos normativos capazes de permitir sua

configuração dogmática. Vale registrar, a título exemplificativo: o art. 5

o , X, da

Constituição da República, segundo o qual “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a

honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou

moral decorrente de sua violação”; o art. 220, também do texto maior, que assegura a

liberdade de “manifestação de pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob

qualquer forma, processo ou veículo”, em conformidade com o art. 5º, IV e V, do rol das

garantias fundamentais; a Lei nº 9.434/97 (modificada pela Lei nº 10.211/2001) que,

respondendo ao comando do art. 199, § 4º, da Constituição, regula o transplante de órgãos;

o art. 5º, XXVII e XVIII, da Constituição e a Lei nº 9.610/98, que disciplinam os direitos

personalidade são protegidos depois da morte do seu titular, tendo legitimidade para pedir a sua proteção, o

cônjuge e qualquer descendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido. Comentando o dispositivo, aquele

autor português leciona que “Os parentes e herdeiros do falecido não defendem um interesse próprio (o que é

evidente, por exemplo, tratando-se da defesa de um nome que não é usado pelo que o defende) mas sim um

interesse do defunto”. E remata: “Assim a personalidade jurídica prolonga-se, é `empurrada', para depois da

morte.”

24 Adriano De Cupis, I diritti della personalità , cit., p. 22, para quem o seu objeto apresenta duas

características distintivas (ressaltando-se a sintomática referência à senhoria): “1) si trova colla persona in un

nesso strettissimo, così da potersi dire organico ; 2) si identifica, tra i beni suscettibili di signoria giuridica,

con quelli più elevati .”

25 Milton Fernandes, Os Direitos da Personalidade , cit., p. 145, passa em revista as diversas classificações

propostas pela doutrina, as quais, segundo leciona, “não têm bases sólidas de apoio nem produzem resultados

úteis”.

26 Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil , cit., p. 153.

motivo grave e insuperável, a presunção constitucional de interesse público que sempre

acompanha a liberdade de informação e de expressão”.

30

Duas cláusulas gerais são veiculadas nos arts. 12 e 21. O artigo 12 prevê a

possibilidade de cessão de ameaça ou da lesão a direito da personalidade (a chamada “tutela

inibitória”) e o ressarcimento pelos danos causados.

31

Nos termos do art. 21, “a vida

privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as

providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.

Ambos os dispositivos, lidos isoladamente no âmbito do corpo codificado, não trazem

grande novidade, sendo certo que os dispositivos constitucionais mencionados já traziam

previsão geral a esse respeito. Os preceitos ganham contudo algum significado se

interpretados como especificação analítica da cláusula geral de tutela da personalidade

prevista no Texto Constitucional no art. 1

o , III (a dignidade humana como valor

fundamental da República). A partir daí, deverá o intérprete afastar-se da ótica tipificadora

seguida pelo Código Civil, ampliando a tutela da pessoa humana não apenas no sentido de

contemplar novas hipóteses de ressarcimento mas, em perspectiva inteiramente diversa, no

intuito de promover a tutela da personalidade mesmo fora do rol de direitos subjetivos

previstos pelo legislador codificado.

A rigor, as previsões constitucionais e legislativas, dispersas e casuísticas, não logram

assegurar à pessoa proteção exaustiva, capaz de tutelar as irradiações da personalidade em

todas as suas possíveis manifestações. Com a evolução cada vez mais dinâmica dos fatos

sociais, torna-se assaz difícil estabelecer disciplina legislativa para todas as possíveis situa-

ções jurídicas de que seja a pessoa humana titular. Além disso, os rígidos compartimentos

do direito público e do direito privado nem sempre mostram-se suficientes para a tutela da

personalidade que, as mais das vezes, exige proteção a só tempo do Estado e das sociedades

intermediárias — família, empresa, associações —, como ocorre, com freqüência, nas

matérias atinentes à família, à inseminação artificial e à procriação assistida, ao

30 Luís Roberto Barroso, “Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de

ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa”, in Revista

Trimestral de Direito Civil , n. 16, out.-dez. 2003.

31 Mostra-se correlato ao tema o problema da indenização por dano moral, sobre a qual remete-se à obra de

Maria Celina Bodin de Moraes, Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional do dano moral. Rio

de Janeiro, Renovar, 2003.

transexualismo, aos negócios jurídicos relacionados com a informática, às relações de

trabalho em condições degradantes, e assim por diante.

32

3. Fontes dos direitos da personalidade. Crítica às concepções jusnaturalistas

Provavelmente na tentativa de se ampliar o espectro da tutela da pessoa humana,

debate-se, de maneira acirrada, o problema das fontes dos direitos da personalidade. Grande

parte da doutrina, incluindo-se aí os autores brasileiros em larga maioria, nega a primazia

do direito positivo, buscando em fontes supralegislativas a legitimação dos direitos

inerentes à pessoa humana. Considera-se, desse modo, que “o fundamento próximo da sua

sanção é realmente a extratificação no direito consuetudinário ou nas conclusões da ciência

jurídica. Mas o seu fundamento primeiro são as imposições da natureza das coisas, noutras

palavras, o direito natural ”.

33

No direito português, onde há expressa tutela no Código Civil, afirma-se que “os

direitos da personalidade são direitos naturais. São expressão e tutela jurídicas da estrutura

32 O direito de família é rico em situações não tipificadas e interdisciplinares, atinentes a aspectos da

personalidade humana. Cf. a emblemática hipótese decidida por unanimidade pela 5ª Câmara Cível do

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, sendo Relator o Des. Marcus Faver (in ADV-COAD , 1997, nº 77.562),

com a seguinte ementa: “Regulamentação de visitas. Pedido formulado por irmãos unilaterais através de

processo cautelar (...) Não contendo o ordenamento jurídico vedação à pretensão deduzida, não há que se falar

em impossibilidade jurídica do pedido (...) Saber se o autor tem ou não direito em relação a pretensão

deduzida é matéria de mérito. Os irmãos, tal como os tios e avós, têm direito de visita, em relação aos

menores, irmãos, sobrinhos ou netos, ainda que com amplitude reduzida. Embora não sendo titulares de pátrio

poder, aos irmãos, pelos princípios que orientam o direito de família, pela solidariedade familiar, pelo

interesse na formação da personalidade e do psiquismo, do menor, deve ser assegurado, com limitação, o

direito de visitas, em relação aos irmãos menores, ainda que unilaterais.” Fatos inusitados, por outro lado,

surgem a cada dia, desafiando a dogmática tradicional e a técnica regulamentar. Segundo noticiou a imprensa

(Jornal O Estado do Paraná , 25 de maio de 1997), sob o inquietante título “O Incesto Tecnológico”, o

príncipe herdeiro do Japão, Naruhito, de 37 anos, diante da constatação de sua esterilidade, teria consentido

com que sua mulher Masako, de 33 anos, viesse a ser inseminada artificialmente com o sêmen do pai dele, o

imperador Akhito, de 63 anos, a fim de garantir a continuidade da dinastia de 2.700 anos.

33 Rubem Limongi França, “Direitos da Personalidade I”, in Enciclopédia Saraiva , vol. 28, São Paulo,

Saraiva, 1979, p. 142. Na mesma direção, Maria Helena Diniz, “Curso de Direito Civil Brasileiro”, vol. I,

Teoria Geral do Direito Civil , São Paulo, Saraiva, 1994, 10ª ed., p. 83; Fabio De Mattia, Direitos da

Personalidade, cit., p. 154; e, ainda, Carlos Alberto Bittar, Teoria Geral do Direito Civil , São Paulo, Forense

Universitária, 1991, p. 108, para quem os direitos da personalidade “são inatos (...) nascem com a pessoa e

para a sua individualização no mundo terrestre; prevalecem sobre os demais direitos, que, em eventual

conflito, fazem ceder; impõem-se como condicionantes da ordem jurídica, na exata medida do respeito à

individualidade humana”. O mesmo autor, em monografia específica , Os Direitos da Personalidade , São

preâmbulo, “ les droits naturels inaliénables et sacrés de l'homme ”.

38 Tal circunstância

histórica, contudo, que se justifica mais por razões metajurídicas do que técnico-jurídicas,

não autoriza a construção de uma categoria de direitos impostos à sociedade

independentemente de sua própria formação cultural, social e política. À essa luz, Adriano

De Cupis aduz que a suscetibilidade de ser titular de direitos da personalidade não está

menos vinculada ao ordenamento jurídico do que estão os demais direitos e obrigações.

Dessa maneira, qualquer situação jurídica só pode nascer do dado positivo, ou seja, de uma

lei.

39

De resto, conforme leciona Pietro Perlingieri, o equívoco das escolas jusnaturalísticas

está no fato de que mesmo os princípios da razão e da natureza apresentam-se como “no-

ções historicamente condicionadas: (...) o direito natural (dever ser) é sempre condicionado

pela experiência do direito positivo (ser)”.

40

E prossegue: “os direitos do homem, para ter

uma efetiva tutela jurídica, devem encontrar o seu fundamento na norma positiva. O direito

positivo é o único fundamento jurídico da tutela da personalidade; a ética, a religião, a

história, a política, a ideologia, são apenas aspectos de uma idêntica realidade (...) a norma

é, também ela, noção histórica”.

41

A rigor, poder-se-ia mesmo dizer que, fora de um determinado contexto histórico, não

existe possibilidade de se estabelecer um bem jurídico superior, já que a sua própria

compreensão depende de condicionantes multifacetados e complexos atinentes aos valores

sociais historicamente consagrados. Afinal, bastaria lembrar que, em nome da vida e da

liberdade, inúmeros contingentes humanos já foram sacrificados, invariavelmente sob

fundamentos éticos, religiosos e políticos que, invocados pelos Estados, pretendem

38 O registro é de Adriano De Cupis, I diritti della personalità , cit., p. 20, para quem “ La Dichiarazione

costituì il trionfo della scuola del diritto naturale, suggellando la concezione dell'esistenza di diritti soggettivi

preesistenti allo Stato, non creati, ma soltanto riconosciuti da esso. Ma, nello stesso tempo che il trionfo, fu

anche il suo canto del cigno, per la immediata reazione della scuola storica, la quale all'idea dei diritti

dell'essere umano, deducibili per la pura ragione, volle sostituito lo studio esclusivo del datto storico, del

diritto rivelato progressivamente dall'esperienza ”.

39 Adriano De Cupis, I diritti della personalità , ob. e loc. cit.

40 Pietro Perlingieri, La personalità umana nell'ordinamento giuridico , Napoli, Esi, 1972, p. 131, o qual

esclarece, ainda, relativamente ao conceito de norma jurídica: “ la sua nozione è relativa non tanto al sistema

delle fonti formalmente previsto in un certo ordinamento quanto a quello effettivamente vigente, frutto non

soltanto di una gerarchia ma della sensibilità e della mentalità degli operatori del diritto .”

41 Pietro Perlingieri, La personalità umana nell'ordinamento giuridico , cit., p. 131_._

justificar guerras, genocídios, apartheid e outras formas de discriminação social, sexual,

étnica e cultural.

No Estado de Direito, a ordem jurídica serve exatamente para evitar os abusos

cometidos por quem, com base em valores supralegislativos, ainda que em nome de

interesses aparentemente humanistas, viesse a violar garantias individuais e sociais

estabelecidas, através da representação popular, pelo direito positivo.

Resulta, em definitivo, assaz difícil para os defensores das teses jusnaturalistas

definirem o que seria a expressão de direitos sagrados do homem, quando se pensa na

variedade de posições adotadas pela consciência social dos povos nas diversas épocas

históricas e pontos geográficos em que se insere a pessoa humana. A religião muçulmana,

com suas penas corporais e as cirurgias através das quais milhares de mulheres africanas

são mutiladas, ao nascer, nos dias de hoje

42

; os países cristãos e as concepções ideológicas

que adotam a pena de morte; o regime da escravidão em sociedades consideradas

civilizadas; a prática de torturas e de linchamento como formas de sanção socialmente

reconhecidas em diversos estados brasileiros; tudo isso coloca em crise a simplista tese

segundo a qual seria a consciência universal a estabelecer os direitos humanos e os direitos

da personalidade, cabendo ao ordenamento jurídico apenas reconhecê-los.

No plano metodológico mais geral, não parece convincente qualquer tomada de

posição quanto às fontes do ordenamento desprovida de uma prévia análise do momento

histórico em que se insere o jurista. Do mesmo modo, não há correntes hermenêuticas que

possam ser avaliadas fora do seu tempo. Superado o autoritarismo e admitindo-se, como

premissa, a consolidação de um estado social de direito, o positivismo pode se constituir em

uma sólida garantia da promoção da pessoa humana, contra costumes muitas vezes

42 Edição da Revista Veja (10 de junho de 1998), em matéria intitulada Prazer Extirpado , relata o conflito

entre o direito positivo, religião e costumes: “a mutilação genital é praticada em 28 países da África e dois do

Oriente Médio, atingindo milhões de mulheres todo ano. O objetivo é exercer a mais total forma de controle

do desejo sexual feminino, de forma a garantir esposas dóceis e fiéis. Segundo a ONU, 110 milhões de

mulheres em todo o mundo já foram submetidas ao ritual da mutilaçào. Pelo mesmo cálculo, cerca de 2

milhões de meninas são mutiladas a cada ano. Em lugares como Somália e Djibuti, estima-se que praticamente

todas as mulheres são extirpadas. Alguns países coíbem a prática, medida inócua que não arranha a

convicção arraigada entre homens e mulheres de que remover os genitais femininos externos é questão de

respeito e honra. No Egito, onde se calcula que pelo menos 55% das mulheres muçulmanas e cristãs coptas

ainda sejam submetidas à mutilação, o governo proibiu a operação em hospitais públicos e particulares em

  1. Houve uma chuva de protestos de líderes religiosos mais ortodoxos, sobretudo os fundamentalistas

subjetivas (...) A personalidade comporta imediata titularidade de relações

personalíssimas”.

46

4. Teorias pluralista e monista: crítica

Com a consagração dos direitos da personalidade como direitos subjetivos privados,

absolutos, oponíveis erga omnes , dúvidas surgiram quanto à sua tipificação, debatendo as

correntes pluralista (defensora da existência de múltiplos direitos da personalidade) e

monista (que sustenta a existência de um único direito da personalidade, originário e geral).

Assim como no debate relacionado às duas primeiras controvérsias, as correntes pluralista e

monista também padecem da excessiva vinculação ao paradigma dos direitos patrimoniais,

como se poderá, de fácil, demonstrar.

A favor da pluralidade de direitos, sustenta-se: “admitido que a individuação dos bens

ocorra com base na individuação das necessidades, e admitido que a exigência da existência

seja distinta em relação àquela da liberdade; que a necessidade de viver de maneira honrada

não se confunda com a necessidade de se distinguir dos outros sujeitos, etc. (...), daí decorre

por conseqüência que distintos são também os bens correspondentes assim como os direitos

sobre estes”.

47

Em defesa da tese oposta, argumenta-se que a pessoa humana é um valor unitário e

que os seus interesses relativos ao ser , mesmo se dotados de características conceituais

próprias, apresentam-se substancialmente interligados. Disso resultaria que as diversas

normas atinentes à tutela da personalidade, disseminadas pelo Código Civil, Código Penal e

leis especiais, mais do que constituírem direitos autônomos, representariam a disciplina

específica de alguns aspectos particulares da sua tutela, da qual seriam o concreto

desenvolvimento. “Não existem direitos da personalidade; existe um direito da

personalidade: um direito único, com conteúdo indefinido e diversificado (como indefinido

46 Pietro Perlingieri, La personalità umana nell'ordinamento giuridico, cit., p. 140.

47 Adriano De Cupis, I diritti della personalità , cit., pp. 25-26.

e diversificado é, em outro campo, o conteúdo do domínio), que não se identifica com a

soma de suas múltiplas expressões individualmente protegidas por normas particulares”.

48

Semelhante posição doutrinária é esposada, no Brasil, ao argumento de que a pessoa

humana é una, refutando-se, a partir daí, a técnica legislativa dos tipos preestabelecidos de

direitos de personalidade, embora se considere inexistente no direito positivo brasileiro uma

cláusula geral capaz de assegurar tal direito subjetivo, abrangendo todos os aspectos de

proteção da pessoa humana.

49

Quanto à objeção comumente aposta contra o direito geral de

personalidade, no sentido de que este não teria bem definidos os seus contornos, afirma-se

que “os limites do direito geral de personalidade são fixados em cada caso concreto, através

da ponderação de bens e interesses postos em litígio, aplicando-se o princípio da

proporcionalidade”.

50

San Tiago Dantas, defendendo a pluralidade dos direitos da personalidade,

contrapondo-se à tese segundo a qual a personalidade é una e a honra, a integridade

corpórea, a liberdade, a vida, são aspectos de manifestações da personalidade, daí

resultando um único direito da personalidade e não uma coleção deles, leciona: “A esse

argumento pode se objetar com uma expressão que os lógicos empregam freqüentemente: o

argumento prova demais. Ele prova não só que não existem direitos da personalidade

vários, como prova, também, que não existem direitos patrimoniais vários, porque assim

como a personalidade é uma só, o patrimônio também é um só. Os bens, a propriedade, a

posse, os contratos, todos os direitos que se distinguem dentro da esfera dos direitos

patrimoniais, podem ser considerados de um modo unitário; sendo possível, então, dizer

que só existe um direito patrimonial e que todos esses, que habitualmente se estudam, são

dele simples face ou manifestações”.

51

Curiosamente, o paralelo com os direitos patrimoniais é também utilizado por

Giampiccolo, mas em sentido oposto, vale dizer, no intuito de demonstrar a unicidade do

direito da personalidade que, como a propriedade, não poderia ser desmembrado em tantos

direitos quantas são as prerrogativas do proprietário. Veja-se o interessante passo do autor

48 Giorgio Giampiccolo, ob. cit., p. 463.

49 Elimar Szaniawski, Direitos de Personalidade e sua Tutela , cit., p. 57.

50 Elimar Szaniawski, Direitos de Personalidade e sua Tutela , cit., p. 62.