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Análise Semântica do conto "A terceira margem do rio", de Guimarães Rosa
Tipologia: Notas de estudo
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Este trabalho tem por objetivo fazer uma breve análise semântica do conto “A terceira margem do rio”, do aclamado escritor mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967), presente em seu livro Primeiras estórias (1962). Trata-se de um texto que permite várias interpretações e análises, motiva diversas discussões e reflexões, além de ser fonte para intertextualidades em outras linguagens artísticas: em 1991 Caetano Veloso e Milton Nascimento lançaram um poema-canção de mesmo título, presente no CD Circuladô. Já no cinema, o cineasta Nélson Pereira dos Santos dirigiu o longa A Terceira margem do rio (1994), onde seis contos transformam-se numa só estória, com predominância do conto A menina de lá (pouco é retratado o conto homônimo que dá título ao filme).
A primeira seção desta obra apresenta na íntegra o conto “A terceira margem do Rio”. Logo após, enfocamos a vida e a obra de Guimarães Rosa. Os dois capítulos seguintes falam da linguagem originalíssima desenvolvida pelo autor, e como ele está inserido no contexto da prosa pós-moderna (ou 3ª geração modernista). Em seguida é definido o conceito de conto. O capítulo seguinte trata dos elementos narrativos que compõem “A terceira margem do rio”: narrador, personagens, espaço e tempo. A próxima seção analisa os aspectos marcantes e oferece possíveis interpretações do enredo, em todos os seus quinze parágrafos. O último capítulo faz um paralelo entre as ideias do psicanalista Jacques Lacan e esta obra-prima de Guimarães Rosa.
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescaria e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a benção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele aguentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto do esbarro. E nunca falou mais palavras, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma contida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça pra ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — “Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim...”, o que não era o certo, exato, mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha
sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão do seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-quedisseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada, mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando ideia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado tive que reforçar a voz: — “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor, vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu
João Guimarães Rosa nasceu a 27 de junho de 1908, em Cordisburg – MG (que significa cidade do coração). Era o filho mais velho do casal Floduardo Pinto Rosa e Francisca Guimarães Rosa. Iniciou seus estudos na pequena cidade natal, onde seu pai era pequeno comerciante. “Cresceu ouvindo vaqueiros que passavam pelo armazém do pai contarem “causos”. Aos dez anos, mudou-se para Belo Horizonte, onde faria seus estudos.” (Abaurre; Pontara, 2005, p. 616). Mostra-se um aluno aplicado, principalmente em História Natural e Línguas. Gostava de colecionar insetos e fazer expedições nas matas de Cordisburgo durante as férias. Era míope, introvertido e calado, mas observador atento.
Em 1925, matriculou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais (atualmente Faculdade de Medicina da UFMG), com apenas 16 anos. Em 27 de junho de 1930, ao completar 22 anos, casou-se com Lygia Cabral Penna, com quem mais tarde teve duas filhas: Vilma (1931) e Agnes (1934). No mesmo ano formou-se em medicina. Iniciou o exercício da profissão em Itaguara (pequena cidade que pertencia ao município de Itaúna) onde permaneceu cerca de dois anos. Cobrava suas consultas pela distância que tinha de
percorrer a cavalo. Quando os pacientes não tinham dinheiro, os pagamentos “[...] muitas vezes eram sob a forma de aves e ovos, doces, bolos e frutas.” (Rosa, 2009, p.313). Tornou-se um médico respeitadíssimo naquela região. A convivência com sertanejos mais tarde iria inspirar suas obras.
Durante a Revolução Constitucionalista de 1932 trabalha como médico voluntário. Entra posteriormente para a Força Pública, chegando a ser oficial médico do 9º Batalhão de Infantaria em 1933, no município de Barbacena. “A angústia provocada pela sua extrema sensibilidade no convívio com a doença e a morte, que algumas vezes, apesar de seus desesperados esforços, não conseguia impedir, levou-o a abandonar a medicina.” (Rosa, 2009, p.313).
Em 1934 ingressa na carreira diplomática, favorecido pelo seu conhecimento de idiomas, que começa a aprender aos sete anos de idade. “Falava alemão, francês, inglês, espanhol, italiano e um pouco de russo; além dessas línguas, lia também sueco, holandês, latim e grego.” (Abaurre; Pontara, 2005, p. 616). Como se não bastasse, dominava o esperanto e conhecia as gramáticas húngara, árabe, sânscrita, lituânica, polonesa, tupi, hebraica, japonesa, tcheca, finlandesa e dinamarquesa.
“Nessa época ele conseguiu inúmeros prêmios literários, competindo em concursos de contos. Iniciava uma espécie de pré-literatura.” (Rosa, 2009, p.314).
Em 1938 é nomeado Cônsul Adjunto em Hamburgo, e segue para a Europa. Lá fica conhecendo Aracy Moebius de Carvalho (Ara), que viria a ser sua segunda mulher. Com a ajuda da esposa, protegeu e facilitou a fuga de judeus perseguidos pelo Nazismo. Em reconhecimento a essa atitude, em abril de 1985 o nome do casal foi dado a um bosque que fica ao longo das encostas que dão acesso a Jerusalém, Israel. Em 1942, ocasião em que o Brasil declara guerra à Alemanha, volta para o país natal, em rápida passagem. O escritor segue para Bogotá, como Secretário da Embaixada, lá permanecendo até 1944.
Em dezembro de 1945 o escritor retorna ao Brasil depois de longa ausência. Em 1946, após quase dez anos de preparativos, publica Sagarana , livro de contos (nove ao total) com grande variedade de enredos. Foi seu livro de estreia, que “[...] causou surpresa pela linguagem, que recriava o português como língua literária e dava uma dimensão nova ao regionalismo, vertente tão explorada na literatura brasileira.” (Abaurre; Pontara, 2005, p. 623). De grande sucesso, o título do livro “[...] passou a ser nome de escolas, de ruas, de revistas, de projetos artísticos e mesmo de uma cachaça.” (Galvão, 2009, p.20).
longas passagens descritivas e enredos paralelos, ocorre também uma sensível redução do colorido regional.” (Bolle apud Gomes, 2009, p.3).
O critico literário Alfredo Bosi percebe um aspecto muito relevante em vários contos da obra: a “passagem” de um estado de “necessidade” para o “reino da liberdade”:
Muitas personagens das Primeiras estórias acham-se privadas de saúde, de recursos materiais, de posição social e até mesmo do pleno uso da razão. Pelos esquemas de uma lógica social moderna, estritamente capitalista, só lhes resta esperar a miséria, a abjeção, o abandono, a morte. O narrador, cujo olho perspicaz nada perde, não pou pa detalhes sobre o seu estado de carência extrema. Apesar disso, os contos não correm sobre os trilhos de uma história de necessidades, mas relatam como, através de processos de suplência afetiva e simbólica, essas mesmas criaturas conhecerão a passagem para o reino da liberdade. (Bosi, 1988 ).
“A loucura enche os vazios da vida, solta fogos de artifício, escancara os horizontes.” (Rónai, 2001, p.22).
Aqui cabe uma explicação para o título da obra: “Estória” é um neologismo que refere-se ao relato de acontecimentos fictícios, diferentemente de história, que registra os acontecimentos reais da vida de povos e países. E “primeiras” por ter sido a primeira vez que o autor praticou o gênero do conto curto.
Em maio de 1963 candidata-se pela segunda vez à Academia Brasileira de Letras (a primeira fora em 1957, quando obtivera apenas 10 votos), na vaga deixada por João Neves da Fontoura. Desta vez é eleito por unanimidade. Em janeiro de 1965, participa do Congresso de Escritores Latino-Americanos, em Gênova (como resultado do congresso formou-se a Primeira Sociedade de Escritores Latino-Americanos). Em abril de 1967 vai ao México na qualidade de representante do Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, no qual atua como vice-presidente.
Também em 1967, no meio do ano, publica Tutaméia ou terceiras estórias , coletânea de 40 estórias e 4 prefácios.
“‘Por que não houve Segundas estórias?’, quis eu saber [...]. Papai fez uma de suas costumeiras expressões de mistério e explicou: ‘É pra provocar a curiosidade do leitor.’” (Rosa, 2009, p.320).
Assim como muitas de suas personagens, Guimarães Rosa era profundamente supersticioso. Por mais de quatro anos, adiou a posse na Academia Brasileira de Letras, porque tinha certeza de que, quando assumisse sua cadeira, algo de ruim lhe aconteceria. Cedendo aos apelos dos outros imortais, marcou sua posse para o dia 16 de novembro de 1967. No discurso emocionado que fez, Rosa explicou: “a gente morre é para provar que viveu. [...] As pessoas não morrem, ficam encantadas”. Três dias mais tarde, um infarto calava a voz do mais inspirado contador de histórias da literatura brasileira. (Abaurre; Pontara, 2005, p. 625)
Naquele ano Guimarães Rosa seria indicado para o Prêmio Nobel de Literatura, porém sua morte barrou a escolha.
Desde então foram publicadas três obras póstumas do escritor: Estas estórias (1969), de contos, Ave, palavra (1970), diversos, e Magma (1997), único livro de poesias e vencedor do prêmio da Academia Brasileira de Letras de 1936.
Guimarães Rosa e Clarice Lispector são os dois principais representantes da prosa de ficção Pós-Moderna. “Para eles, a questão central não era mais definir nossa identidade, nossos símbolos ou denunciar o subdesenvolvimento do país. Suas obras falam de aspectos da vida brasileira, mas abordam questões universais.” (Abaurre; Pontara, 2005, p.619). Esses escritores buscam novas linguagens, rompendo com a estrutura tradicional da narrativa. Ao mesmo tempo, fazem um mergulho na mais funda intimidade do ser humano.
O Pós-Modernismo surge com o fim da segunda guerra mundial (1945), ganha fôlego nos anos 1950 e se afirma na década de 1960. Nesse período é criada a ONU e inicia-se um conflito de ideologias: a Guerra Fria; EUA (capitalista) e URSS (socialista) disputam áreas de influência no mundo. “O Pós-Modernismo nasce da ruptura com algumas certezas e definições que sustentavam conceitos do campo social, político, econômico, estético, etc.” (Abaurre; Pontara, 2005, p.595).
“Às vezes acredito que eu mesmo, João, seja um conto contado por mim!” (Rosa apud Costa; Vitor, 2011, p.326). Luiza e Bernadete Abaurre assim definem o gênero narrativo conto:
O conto é uma narrativa curta que apresenta os mesmos elementos do romance: narrador, personagens, enredo, espaço e tempo. Diferencia-se do romance pela sua concisão, linearidade e unidade: o conto deve construir uma história focada em um conflito básico e apresentar o desenvolvimento e a resolução desse conflito. (Abaurre; Abaurre, 2007, p.114).
Em “A terceira margem do rio”, essa brevidade do conto pode ser observada especialmente no primeiro parágrafo: a primeira metade da vida de “nosso pai” é resumida em apenas seis linhas. Os demais integrantes da família são apresentados muito sucintamente, sem pormenores.
Essas narrativas curtas admitem uma grande diversidade temática. Há contos fantásticos, policiais (ou de suspense), eróticos, românticos, autobiográficos, de ficção científica, entre outros.
Orione classifica “A terceira margem do rio” como alegoria: “a narrativa não se pauta pelo registro realista, mas pela alegoria (mostra-se “A” para sugerir “B”, numa direção que vai do concreto ao abstrato).” (2008, p.71).
O filho pode ser considerado uma personagem esférica (ou redonda), pois apresenta “[...] psicologia complexa, suscetível a variações, mudanças, reviravoltas [...]. Já o pai pode ser visto como um personagem esférico simbólico.” (Ponchirolli, 2006, p.8). O uso do pronome possessivo na primeira pessoa do plural ( “nosso pai”, “nossa mãe”) indica os fortes laços existentes entre o filho-narrador e sua família. Também percebe-se a ausência de nomes próprios das personagens.
7.3 Espaço Não há referências geográficas e espaciais precisas. Os cinco integrantes da família vivem em uma fazenda, cuja casa fica nas proximidades de um rio de grande porte (também não nomeado). Este rio é caracterizado como “grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira.” (Rosa, 2001, p.80). Essas três dimensões (comprimento, profundidade e largura) são retomadas no decorrer do conto, através da repetição da palavra rio três vezes: “e o rio-rio-rio, o rio – pondo perpétuo.” (Rosa, 2001, p. 84); “[...] rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.” (Rosa, 2001, p.85). Daniele dos Santos Rosa comenta o caráter coletivo do conto: a intenção do autor, ao não dar indicações de local, nomes ou datas, seria em “[...] tratar de algo maior, mais completo, que pode ser a realidade nacional e também a realidade brasileira dentro da totalidade mundial.” (2008, p.3). Nota-se, portanto, o caráter universal presente nas obras de Guimarães Rosa; “fala-se do Brasil sem especificá-lo.” (Rosa, 2008, p.3).
7.4 Tempo O tempo é psicológico, pois “[...] a rememoração do passado desencadeia a narrativa.” (Abaurre; Abaurre, 2007, p. 134). Lenine Ribas Maia comenta: “[...] esses anos transcorridos evidenciam o arrastar de um tempo interior, no qual as horas são muito maiores e carregam o peso de uma vida inteira.” (s/d, p.6).
Logo de início, o título do conto chama a atenção do leitor: no mundo da lógica e da razão, qualquer rio tem uma margem direita e outra esquerda, a do lado de lá e a do lado de cá; não há primeira, nem segunda, muito menos terceira margem. Essa terceira margem abstrata, mencionada somente no título, “[...] é formada pelo próprio pai e por sua canoa situada paralelamente às margens, sempre a subir e a descer – nunca a fazer rotas perpendiculares.” (Maia, s/d, p.4). No poema-canção de Caetano Veloso e Milton Nascimento, “risca-terceira” refere-se a essa metáfora. A água do rio pode ser interpretada
Em entrevista a Günter Lorenz, Guimarães Rosa põe em evidência a sua metáfora do rio enquanto espelho da alma humana e enquanto representação da eternidade, o que automaticamente nos remete ao caráter alegórico, metafísico e transcendente do conto. Entrar no rio é transportar-se a uma outra dimensão: [...] amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade. (Lorenz apud Gomes, 2009, p.5).
No terceiro parágrafo podemos perceber a decisão firme e desapaixonada do pai. Provavelmente é uma referência à expressão que parece ter inspirado Guimarães Rosa: NEC SPE NEC METU, ou “nem com esperança nem por medo” (sem alegria nem cuidado). “Nosso pai” não leva comida nem roupa, nem faz nenhuma recomendação.
“Nossa mãe”, quando exclama “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” (Rosa, 2001, p. 80), usa de três formas o pronome pessoal de tratamento “você”, em uma espécie de gradação que vai do menos formal ao mais formal (a frase expressa ordem, imposição e distanciamento). O filho-narrador deseja ir junto com o pai, porém o patriarca rejeita a companhia.
O quarto parágrafo do conto, o mais curto, revela o estranho comportamento do pai, mantendo-se afastado das duas margens, a esmo, sem concluir viajem e jamais pisar em terra: “Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.” (Rosa, 2001, p.80). Desaparece das vistas da família, conhecidos, e também do próprio leitor.
[...] a atitude do pai marca a coexistência de estados aparentemente excludentes: simultaneamente ausente e presente. O personagem se posiciona entre o dentro e o fora , e se mantém em uma espécie de entrelugar, à margem, em uma margem, na terceira margem. [...] Assim, embora o personagem pareça ter adotado o isolamento, o desligamento absoluto não acontece, pois ele permanece à margem. A partida definitiva do personagem não ocorre, ele não prescinde de continuar existindo. (Brandão, 2006, p.395-396). Os moradores da comunidade rural, habitantes da beira da razão, logo pensam sobre os motivos de o pai ter partido, conforme se lê no quinto parágrafo: “pagamento de promessa”, “alguma feia doença”, e até mesmo “doidera”.
[...] antes de o pai ser “louco”, com atitudes alógicas, ele é muito mais o filósofo, o visionário, que ruma à exterioridade daquela caverna: a caverna que era sua casa, sua vizinhança [referindo-se ao Mito da Caverna de Platão]. Como aponta Platão: Um homem desses se desliga dos interesses humanos e dirige seu espírito para os objetivos divinos; a multidão o considera louco, sem perceber que nele habita a divindade. (Platão apud Maia, s/d, p.4).
“Nossa mãe e os aparentados nossos” acreditavam que o pai-narrado voltaria para casa assim que os mantimentos acabassem. Entretanto, conforme o filho-narrador explica no sexto parágrafo, ele mesmo se encarregava de trazer “comida furtada”, protegida em pedras ocas contra a ação de animais e chuva. Tempos depois o narrador-personagem descobriu que sua ação era facilitada pela mãe. No sétimo parágrafo a mãe solicita que seu irmão ajude nos trabalhos na fazenda. São apresentadas outras personagens, homens instituição, que mais fortemente representam uma sociedade: “a escola (mestre), a igreja (padre), a força policial (“os dois soldados”) e a imprensa (homens do jornal).” (Ponchirolli, 2006, p.67). No entanto, o pai evita aproximação e abordagem, e a atitude da mãe de convocar padre, soldados e jornalistas para trazer o marido de volta se mostra sem sucesso. O impasse é insolúvel.
A palavra “lancha” sugere uma imagem visual de modernidade. Especialmente, se lembrarmos a descrição da “canoa especial” de “nosso pai”, a lancha é uma imagem bastante oposta. [...] Dessa forma, os dois Brasis podem ser vistos nesse conto, se fizermos uma leitura alegorizante: um Brasil, caracterizado pelo desenvolvimento, pela rápida mudança, em choque com um Brasil ainda arcaico, ligado às profundezas dos caminhos que somente uma cultura mítica ou popular pode entender e decodificar. (Ponchirolli, 2006, p.69)
No oitavo parágrafo, o mais longo do conto, nota-se a perplexidade do filho-narrador frente à vida que o pai levava, despojada e precária. O filho admira, sente orgulho do pai. Imagina as dificuldades que o barqueiro passava, exposto às intempéries da natureza. “O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele aguentava.” (Rosa, 2001, p.82). Comia muito pouco dos alimentos colocados em raízes e barrancos. “Não adoecia?” (Rosa, 2001, p.82), pergunta o narrador ao leitor.
“Nosso pai” viaja sem destino, não desembarca em alguma margem. “A corrente do rio leva essa personagem-chave a navegar numa dimensão desconhecida e distante, mas é um afastamento longínquo, que não é mensurável em termos físicos.” (Papette, 2009, p.334). Ele