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Este texto explora as complexas relações entre a filosofia de nietzsche e a pintura de edvard munch. O autor examina as semelhanças entre as ideias de nietzsche, expressas através de aforismos, e as séries de munch, permitindo-lhes abordar uma ideia de várias perspectivas. O texto também discute as referências a nietzsche na obra de munch, incluindo retratos e falsificações.
O que você vai aprender
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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MENEZES, Paulo Roberto Arruda de. A pintura trágica de Edvard Munch: um ensaio sobre a pintura e as marteladas de Nietzsche. Tempo Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 67-111, 1993 (editado em nov. 1994).
RESUMO: As relações entre a filosofia de Nietzsche e a pintura de Munch são instigantes e complexas. Os aforismos, modo de expressão primordial em Nietzsche da mesma maneira que o são as séries em Munch, lhe permitem perseguir uma idéia a partir de várias perspectivas possibilitanto, a ambos, ex- perimentos com o pensar. Cada pintura propõe uma interpretação diferente para um mundo onde não existem mais fatos e onde a separação sujeito-objeto foi definitivamente abolida. Assim , ao pintar a dor, os ciúmes, a doença, o grito, a morte, a solidão, a paixão, as mulheres, Munch não mergulha, como poderia parecer à primeira vista, no pessimismo absoluto mas, pelo contrário, diz sim a tudo o que é problemático, colocando-se na direção da superação da morte na vida, sendo e fazendo uma pintura trágica, dionisíaca.
UNITERMOS: Nietzsche, Munch, aforismos, séries, pintura, mulheres, relação sujeito-objeto, artista trágico, pintura trágica.
Professor do Departa- mento de Sociologia da FFLCH-USP
PAULO ROBERTO ARRUDA DE MENEZES
“Oh, divino Dioniso, porque me puxas as orelhas?” perguntou um dia Ariane a Naxos, durante uma de suas famosas conversas com seu amante filósofo. “Tuas orelhas têm para mim algo de cômico, oh Ariane. Por que não são elas ainda mais longas?” (Nietzsche, 1974a, DI, # 19, p. 69) “A obra de arte é como um cristal: como o cristal, ela deve ter também uma alma e o poder de brilhar” (Munch, 1988, p. 112).
Tempo Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 67-111, 1993 A R T I G O (editado em nov. 1994).
Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 67-111, 1993 (editado em nov. 1994).
primeiro contato amplo que tive com a obra de Munch foi decorren- te de uma atividade absolutamente prosaica. Após tomar um sorve- te, movido apenas pela curiosidade de um viajante que entra em todas as portas abertas dos lugares estranhos pelos quais passeia, levado pela mais pura vontade de descobrir para onde levava uma imponente escada de mármore, que contrastava brutalmente com o anonimato arquitetônico do edifício no qual se inseria. Subi automaticamente e, quando me dei conta, estava no meio de uma grande retrospectiva do pintor norue- guês. O impacto foi assustador. Acostumado a ver obras de arte através de reproduções em geral de dimensões bastante acanhadas, suas imensas telas tomaram-me rapidamente de assalto. Iniciou-se, aí, um mergulho que acaba- ria horas depois, de uma forma ridiculamente burocrática, com o encerramen- to das atividades do museu naquele dia. Conhecia pouco da obra de Munch e, quanto mais passeava entre seus quadros, suas gravuras, suas aquarelas, crescia em mim a sensação de que algo ali se ligava ao pensamento de um filósofo com o qual - devo confes- sar - tinha também um contato absolutamente superficial. Isto aumentava, ainda mais, minha curiosidade e minha surpresa pois minha intuição associa- va de maneira muito forte duas coisas que eu conhecia, na verdade, muito pouco. Mas afinal, como a curiosidade é talvez a mais importante fonte do conhecimento, mesmo que anos e anos tenham se passado, a ligação que eu havia feito entre Nietzsche e Munch precisava ser esclarecida.
1. Friedrich Nietzsche, 1905/1906.
Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 67-111, 1993 (editado em nov. 1994).
Voltemo-nos para a forma. Munch utilizava-se de maneira muito acentuada de séries, no decorrer de toda sua obra, de maneira mais ou menos explícita. Um mesmo tema era trabalhado durante um mesmo ano, e/ou às vezes, retomado muitos anos depois. Raras são suas pinturas em exemplar único. Essas reelaborações eram feitas tanto utilizando-se outros óleos, como mudando-se de meio de trabalho, em gravuras (lito, xilo, metal, etc.) ou aqua- relas. Não existe nenhuma regra que aqui possa ser estabelecida. Seguramente não foi Munch o “inventor” das séries na pintura. Nem foi o primeiro a utilizá-las exaustivamente. São famosas as séries pintadas por Monet - Gare St. Lazare , Cathedral de Rouen , Rochers à Étretat e as intermi- náveis Nymphées , as pintadas por Cézanne - Pommes e Montagne Sainte Victoire ou Os Girassóis de Van Gogh, entre outras, só para nos retermos a artistas contemporâneos a ele. Mas o lugar que ocupam dentro de suas respec- tivas obras é completamente distinto do dele. Em Monet, dois tipos diferentes de séries podem ser estabelecidos. Gare Sainte Lazare , Rochers à Étretat e Cathedral de Rouen , são tentativas de captar a variação de forma e cor que os objetos portam em relação aos olhos do pintor que os observa. Nas catedrais, variações de iluminação no decorrer do dia - pela manhã, meio dia, fim da tarde, noite - nos rochedos - variação de densidade e qualidade do ar, efeito da bruma e da umidade. Nas estações de trens - variação de luz no decorrer do dia, associada à existência ou ausência de fumaça dos trens. Já as ninféias apresentam um outro caráter. Se o que está em jogo é a relação entre luz e visão, a percepção de objetos banhados pelo sol ao ar livre, o que as ninféias vêm atestar é justamente a desimportância do objeto pintado em relação ao direcionamento que as pes- quisas de Monet tomaram. Tanto fazia isto ou aquilo, então, pinta-se ninféias. Os Girassóis são uma exceção na obra de Van Gogh e, a bem da verdade, chamá-los de série é um certo exagero de linguagem. Já as maçãs e as montanhas Sainte Victoire de Cézanne são essenciais dentro de sua busca pictórica. Contraponto que eram à imaterialidade legada pela dissolução for- mal do Impressionismo, do qual Monet é a expressão mais acabada, Cézanne buscava pela repetição do tema, escapar das trilhas e ensinamentos do como pintar. Tentativa incessante de recuperar o momento inicial da ingenuidade e, portanto, da fidelidade à percepção. Busca infrutífera, como bem nos mostra John Berger em seu ensaio sobre Cézanne (1979, p. 120), de conseguir captar o que existia de essencial nos objetos, por trás das várias formas que eles adquirem sob a luz. Independente das diferenças apontadas, todos se relacionavam com seus objetos como objetos, sobre os quais se lança um olhar investigador que quer reter as flutuações de forma ou o que se esconde por trás delas. Mesmo em Van Gogh, o olhar de exterioridade está presente, por mais que já se tenha psicologizado sua obra por todos os lados. O mundo exterior está lá, reinterpretado pelos olhos turbulentos do artista que para ele transporta suas inquietações.
Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 67-111, 1993 (editado em nov. 1994).
Veremos que em Munch esta relação é completamente diferente. São inúmeras as séries criadas por Munch. Algumas facilmente identificáveis em virtude das obras terem o mesmo nome: O Grito , A Criança Doente , Puberdade , Angústia , Atração , Vampiro , Beijo , por exemplo. Outras, onde os temas foram se modificando com o passar dos anos, mas que podem ser vistas como pertencentes ao mesmo grupo: As Fases da Mulher (duas ou três, com ou sem homens, dependendo da época), Fertilidade , Separação , A Voz , Moças na Ponte , Cama da Morte (algumas vezes chamado de Febre ou Luta com a Morte ), Morte no Quarto da Doente , todas com alterações mais signifi- cativas que as das séries anteriores nos vários elementos que compõem a ima- gem. A série Ciúmes se destaca pois passa pelos dois momentos, com variações bastante significativas nas gravuras de 1896, o que já não ocorre com os óleos. Estes vão variar nas décadas seguintes como nos dois de 1907 e no de 1935/
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Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 67-111, 1993 (editado em nov. 1994).
clássica, como a pintura sem ponto de vista único, descritiva, carto- gráfica, levantada por Svetlana Alpers (cf. 1983). Se a década de 80 mostra uma flutuação maior ou menor em relação às proposições impres- sionistas, os dois quadros por nós acima analisados, Noite Estrelada e A Morte e a Donzela não deixam mais margens a dúvidas. Nem mais a proposição impressionista de fi- delidade objetiva à visão e ao re- flexo de luz nos objetos, contrapos- to a um pretenso real que existiria independente de qualquer luz, pode ser aqui percebida. Não existe mais nenhuma possibilidade de se ver a pintura e a “verdade enquanto cor- respondência exata entre pensa- mento e realidade” (Marton, 1990, p. 214), entre pensamento plástico e reali- dade, entre pintura e realidade. “Nós não acreditamos mais que a verdade seja ainda a verdade desde que nós dela retiremos seu véu: nós já vivemos demais para acreditar nisto” (Nietzsche, 1982b, P, # 4, p. 27). Não existe um mundo exterior que se apresente como verdade aos olhos do filósofo nem às cores e pinceladas do artista. “A arte é o oposto da natureza. Uma obra de arte só pode provir do interior do homem” (Munch, 1988, p. 111). O que quer dizer que tomá-la como “verdade” sobre um deter- minado objeto é uma ilusão que pode e leva a enganos. Ilusão do “real” trans- posta para ilusão da tela e tinta, conseqüentemente ilusão de visão. Vemos em Munch, portanto, uma perspectiva anti-naturalista por exce- lência. Seu olho não é o olho do clínico que, através da alteração do grau das lentes pelas quais enxerga o mundo, transporta com detalhes para a realidade da tela a realidade do espaço exterior observado. O olho que olha é o olho que inter- preta, que coloca em relação a , que constitui realidades enquanto perspectivas. Não existe fidelidade a ser procurada em relação a um pretenso modelo - veja-se seus retratos e auto-retratos - ou a uma pretensa paisagem - como a citada Noite Estrelada -, a uma cena literária - O Grito -, a nada que possa ser transposto enquanto tinta e tela como cópia (mimese). Cópia do “real” em si, cópia da luz que provém do real. Não é possível pensar em Munch qualquer tipo de objetivida- de em relação a algo exterior mas somente pensar suas pinturas como coisas no mundo. Não algo que fala sobre o mundo, mas algo que ao falar, é mundo.
5. Moça Acendendo o Forno, 1883.
Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 67-111, 1993 (editado em nov. 1994).
“A Natureza, considerada do ponto de vista da arte, não é um modelo. Ela exagera, ela deforma, ela deixa vazios. A natureza é o acaso_. O estudo_ a partir da natu- reza me parece um mau sinal: ele trai a servidão, a pusilanimidade, o fatalismo - esta maneira de se pros- trar diante dos petits faits 6 é indigno de um artista com- pleto ” (Nietzsche, 1974a, DI, # 7, p. 62).
Voltemos de novo às séries. Olhemos de perto a entitulada Ciúmes. Seu óleo principal é datado de 1895. Nele vemos uma grande massa verde, que se constrói como fundo e vegetação para os personagens da pintura. No primeiro plano, à direita, um Rosto surge em meio a esta massa escura, com tonalidades amareladas, um olhar de angústia que se reforça pelo próprio tom da pele, de retraimento e introspecção. À esquerda, atrás, destaca-se um casal sem feições definidas. Ela, com uma parte do rosto no mesmo tom das roupas, como se um rubor (falso?) lhe tomasse as faces. Ele, de costas, vestido em roupas verde-escuras, mal distanciando-se do próprio fundo. Ela, insinuante e sinuosa, mostra seu corpo nu. Envolta por um robe vermelho rubro, caindo pelos ombros, deixa à mostra o sedutor de seu corpo, seios, sexo e pernas, para mais embaixo envelopar seus pés. Por trás de ambos distingue-se um volume com pontos vermelhos, para os quais se estende um dos braços da figura feminina, como quem pega a maçã da árvore da serpente. No extremo esquerdo do quadro, uma flor surge como que do nada. Comparemos a este óleo, as séries de litografias de 1896. Todas elas estão com a imagem invertida em relação ao óleo de 1895. O Rosto está à esquerda e o casal à direita. Uma delas, em preto e branco, aniquila as diferen-
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6. Ciúmes, 1895
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Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 67-111, 1993 (editado em nov. 1994).
vestido vermelho com bolas amarelo-verdes, mais pareci- do a um vestido de baile do que aos robes presentes nas versões anteriores. Os bicos dos seios são dois pontos ver- melhos, cor também de seus lábios, dando-lhe um ar nobre mas, ao mesmo tempo, faceiro e pastoral. Tão insinuante quanto no óleo de 1895, mas deixando muito mais eviden- te a alegria da atividade em contraste à sedução anterior. A última gravura deste conjunto da década de 80 é a mais diferente de todas. Os elementos são sempre os mesmos, um Rosto e um casal. Mas agora, este Rosto está muito mais largo e maior que os anteriores, todos muito encovados, ocupando pela primeira vez a maior parte do lado esquerdo da imagem. Tem o cabelo repartido aqui do lado direito e o bigode suavizado. O casal parece estar em uma festa, muito mais desenvolto, ela agora loira, de um amarelo vivo e esvoaçante. O robe transformou-se em uma blusa branca, com uma estampa de maçãs vermelhas, que ela segura com uma das mãos cruzada sobre o peito a es- conder, e a deixar à mostra, apenas um dos seios alvos, levemente insinuados. Ambos os corpos estão mais próxi- mos e aqui também, pela primeira vez, não os temos em sua forma completa mas apenas até um pouco abaixo da cintura. O homem, que agora possui uma das mãos, tem seu rosto recurvado próximo ao dela, como numa conversa perto do ouvido, fruto da proximidade ou da intenção. Isto reforça a sensação, apenas esboçada no exemplar verde, de constituição de uma relação onde ela responde com um sorriso mais “ingê- nuo”, se assim se poderia dizer. O que era “céu” nas anteriores aqui está pincelado em azul cobalto (aqui céu por analogia), bem como a “árvore” trans- formou-se numa contorção de linhas pretas em meio a um fundo branco, com algumas bolas em vermelho. Árvore, pois já a vemos como tal, mas que se assemelha muito mais às grades de Gaudi para seus prédios em Barcelona, em especial a Casa Milá. Nesta também, em contraste com as outras, olhos ver- melhos sangue destacam-se no Rosto à esquerda, pálido como sempre nas gravuras, mas amarelado no óleo. É preciso ressaltar que se alterou a temporalidade desta interpretação bem como sua vivacidade e dinamismo. Aqui, o ciúme não é mais tão tenso nem amargurado. Parece ser mais passa- geiro e imaterial, apesar de irromper com a fúria vermelha do instante perce- bido. Dois outros óleos sobre esta idéia foram elaborados em 1907. O primeiro, apesar de como sempre manter o trio principal, situa-os espacial- mente em um lugar completamente diferente. O Rosto , que está à esquerda, pela primeira vez não é o Rosto que sempre apareceu pois tem feições muito mais sumárias e esboçadas. O ambiente agora é o interior de uma sala. O Rosto está como que sentado à mesa, um sofá à direita e, ao fundo, na soleira
9. Ciúmes, 1896 (^10) 10. Ciúmes, 1896
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Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 67-111, 1993 (editado em nov. 1994).
de uma porta, o casal que não tem mais os rostos definidos, enlaça-se em um profundo beijo. As cores são muito vivas, agressivas, fauves , o que não exis- tia nas versões anteriores. O Rosto tem cabelo e barba laranjas, como de resto desta cor são seus traços elementares. A mesa é avermelhada, as paredes são verde claro, decorada com traços diagonais em verdes mais escuros e pontos verdes e brancos. O cômodo, atrás do casal, é da mesma cor da mesa. A moça tem cabelos ruivos-alaranjados e um vestido amarelado em contraste com a roupa do homem, da mesma cor do chão e do corpo do Rosto , o que faz com que as imagens misturem-se entre si. É a primeira versão onde a sedução transforma-se em ato físico, onde o homem está obrigatoriamente no mesmo espaço físico que o casal. Mas, a densidade sensitiva do ciúme, que deveria reforçar-se, ao contrário, aparece esmaecida. As cores quebram a profundida- de emotiva, a tensão, a depressão e o retraimento, ressaltando por outro lado, o entusiasmo do casal, um contraste ao isolamento do Rosto. O fato de esta- rem no mesmo espaço e de ser um espaço fechado reforça a relação de concretude do Rosto em relação ao casal do qual sente ciúmes. A sensação de uma idéia imaterial em tempo e espaço aqui se torna seu contrário, absoluta- mente palpável. O outro óleo de 1907 tem cores tão vivas quanto este, mas utiliza- das em sentido inverso. O “cenário” desapareceu. Não se distinguem mais paredes, móveis, nada. Apenas uma profusão de borrões multicoloridos, vio- letas, bordôs, verdes-garrafa, sem nenhum artifício para criar volumes, como se fazia nos outros pela contraposição de massas de cor. Tudo em tons bastan- te escuros. Aqui as três figuras ocupam a tela por inteiro. O Rosto ganhou corpo até a cintura, veste casaco (verde-escuro-roxo), colete (verde musgo) e gravata borboleta. O homem, aqui pela primeira vez no plano frontal, está de perfil e, portanto, tem seu rosto esboçado por sobre o paletó também escuro. A mulher, um pouco atrás, em vestido branco com um cinto escuro, tem os braços cruzados por trás da cabeça. Pela primeira vez, ela nos olha de frente, seu rosto em um vermelho muito forte, numa pose que nos remete às da mu- lher da série intitulada Madonna^7. Ambos os homens aparecem com os rostos
_11. Ciúmes, 1907
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13. Madonna, 1895?
Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 67-111, 1993 (editado em nov. 1994).
va da ciência com a idéia de verdade, omitindo-se para tanto os pressupostos do processo de conhecimento, excluindo-se o desconhecido para afirmar a exatidão do conhecido. Um arranjo feito pelos olhos iluminadores que pede para si próprio a identidade entre pensamento e mundo, ao mesmo tempo que omite a simplificação posta pela linguagem (Nietzsche, 1971b, # 24, p. 43- 44), portanto, seu erro (1974a, RP, # 5, p. 28), sua mentira. “Toda verdade é simples. Isto não é, duplamente , uma mentira?” (1974a, MT, # 4, p. 11). Ao aniquilar a multiplicidade, ao exigir para si uma só perspectiva como possível e, portanto, como correta , mostra-se a nu a nocividade do que até então se chamava de “verdade”. “A forma mais nociva, mais pérfida, mais subterrânea, de mentira” (Nietzsche, 1974b, PD, # 8, p. 194). Se o mundo é múltiplo e sua ordem não é um dado da natureza, se ele é formado por um conjunto de relações, pode-se propor que ele também comporte um conjunto de perspectivas que seja condizente com elas e, em conseqüência, uma multiplicidade de interpretações a partir do momento em que variam os possíveis pontos de vista, uma pluralidade de sentidos. Assim, as realidades são criadas quando se criam as interpretações, quando se nomeiam as coisas, quando se pinta um quadro. Quadro que neste contexto, como um aforismo, é ao mesmo tempo a “coisa em si”, a coisa a ser avaliada e sua avaliação. “O que pode ser, somente, o conhecimento? - interpre- tação, não explicação” (Nietzsche, 1978, 2(86), p. 111). Por conseqüência, se “conhecer é, sempre, entrar em relação-con- dicional-com-uma-coisa-qualquer ” (Nietzsche, 1978, 2(154), p. 143), a ma- neira de Munch conhecer o mundo, conhecer a si mesmo como parte do mun- do, é entrando em sucessivas relações com ele através de seus quadros e, em particular, através de suas séries. “Nunca observar por observar” (Nietzsche, 1974a, DI, # 7, p. 61). O que faz Munch em suas séries são experimentos com o pensar, experimen- tos que acompanham a alteração das relações que compõem as coisas no mun- do, de várias perspectivas, até mesmo a partir de um mesmo pintor. Torjusen nos diz que Munch era impulsionado por “um constante estímulo ao experimento. Por isso, não é surpresa que muitos de seus projetos eram deixados inacabados” (1989, p. 15). Hodin reclama que é difícil determinar quantas e quais pinturas per- tencem ao ciclo que Munch chamou de Frieze of Life pois, apesar dos temas serem recorrentes - Amor, Morte, Angústia, Transformação - várias versões de cada um deles foram executadas (Hodin, 1985, p. 55). Aqui, fica patente a incompreensão deste caráter experimentalista de Munch e de suas pinturas. Nada mais avesso ao espírito de Munch do que esta tendência classificatória, esta tentativa de “recuperar” uma quantidade e uma ordem que propusessem uma perspectiva única ao que ele mesmo concebia como múltiplo. Que im- portância poderia ter para Munch circunscrever-se o ciclo Frieze of Life? Se- ria como a tentativa de anular o perspectivismo propondo uma ordem exterior
Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 67-111, 1993 (editado em nov. 1994).
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de interpretação com sentido único que, de resto, Munch em vida nunca pro- pôs, a respeito das séries ou mesmo do ciclo por “completo”. Neste sentido o ciclo também é um experimento que incorpora mais ou menos imagens, de acordo com a perspectiva que o olhar selecionador adote. Para nós também se diria que “são vários os textos (imagens) em que Nietzsche (Munch) convida o leitor à experimentação, seja por entender que nós, humanos, não passamos de experiências ou por acreditar que não nos devemos furtar a fazer experiências com nós mesmos” (Marton, 1990, p. 22)^8. Esta interminável vontade de experimentar-se, de sentir-se a si mes- mo através de suas pinturas, é uma das principais características da obra de Munch que discutiremos detalhadamente mais à frente. Se o mundo “para nós, tornou-se infinito, no sentido de que nós não podemos lhe negar a possibilidade de encerrar uma infinidade de representa- ções” (Nietzsche, 1982b, # 374, p. 283-284), não só os quadros, gravuras e aquarelas encerram uma multiplicidade de interpretações como as séries e a interpenetrações entre elas propõem, a cada ordem, novas possibilidades. Reforça-se a percepção de que mesmo suas próprias obras não são vistas como “coisas em si” mas como relações, sempre passíveis de novas configurações. Neste sentido, sempre são vistas como um eterno efetivar-se. O Grito é, sem dúvida, a obra mais divulgada de Munch. Existem, também, várias versões em óleo, têmpera, lápis, têmpera com pastel, todos de 1893 ao lado de uma sé- rie de litogravuras de 1895 9.
_17. O Grito, 1895.
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Não deixa de ser curiosa esta total antropologização de O Grito , presente nas interpretações de nossos críticos. Todos transformaram o ho- mem em sujeito que grita um grito tão sufocadamente profundo que faz tre- mer e vibrar todo o seu entorno natural. Tanto mais curioso por todos eles conhecerem, e mesmo reproduzirem, em seus livros, as palavras do próprio Munch, suas interpretações sobre os elementos envolvidos na concepção de O Grito^10. “Eu andava pela rua com dois amigos - e o sol se pôs O céu, de repente, tornou-se sangue - e eu senti como se fosse um sopro de tristeza Eu parei - inclinado contra a grade morto de cansaço Sobre o fiorde negro azulado e a cidade assentaram nuvens de exalante sangue em pingos Meus amigos continuaram caminhando e eu fui deixado com medo e com uma ferida aberta em meu peito. um grande grito veio através da Natureza” (Munch, 1989, p. 136). Ninguém parece ter levado em consideração as próprias palavras de Munch. Em todas as versões escritas a mesma história se conta. Na publicada por Messer, ele ainda reforça: “parecia que eu podia realmente ouvir o grito” (1987, p. 72). Por mais que Munch afirme que tudo se passou como se ele tivesse se dissolvido na natureza, como que tomando emprestadas as palavras de Nietzsche, L’effet, c’est moi (Nietzsche, 1971b, PP, # 19, p. 37), nossos críti- cos não conseguem deixar de devolver a ele e, na verdade, a eles críticos enquanto homens, homens de razão, o lugar sagrado de sujeitos. Munch parece dissolver a dicotomia que existe entre homem e coi- sa e, em um segundo momento, entre orgânico e inorgânico. O mundo sente, o mundo grita, o mundo vibra e nós, em meio a ele, vibramos em uníssono. Não parece mais haver a primazia do eu em relação ao mundo. Da mesma forma que nas paisagens de Munch, como na outra versão de Noite Estrelada (1923-1924) 11 , vemos sombras que cortam e recortam a paisagem, que vão e voltam como que dotadas de vontade própria. Em um mundo que é constante movimento, processo interminável, onde as coisas sempre são em relação a , o homem ao ser parte do mundo e não sujeito dele, por ser mundo e só ser no mundo, é percebido por Munch como em eterno devir, também como um processo que se recria constante- mente. “Prestamo-nos à confusão - o fato é que estamos nós mesmos em crescimento, em perpétua mutação, rejei-
Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 67-111, 1993 (editado em nov. 1994).
tamos velhas cascas, trocamos de pele a cada prima- vera, não cessamos de nos tornar cada vez mais jo- vens, futuros, altos, fortes, colocamos nossas raízes sempre com potência cada vez maior nas profundezas
- no Mal - ao mesmo tempo que abraçamos o céu com amor e amplitude também cada vez maior. De todos os nossos galhos e de todas as nossas folhas, absorvemos sua luz com grande avidez. Nós crescemos como as árvores - aí está aquilo que é difícil compreender, como tudo aquilo que vive! - Não crescemos somente para um lugar, mas para todos eles, não somente em uma direção, mas mais em direção ao alto, mais em direção ao fora, do que ao dentro e ao para baixo, - nossa for- ça age ao mesmo tempo no tronco, nos galhos e nas raízes, não nos sendo mais possível fazer qualquer coisa separadamente, nem ser qualquer coisa separada... Aí está nossa sorte, como eu disse; crescemos em direção ao alto, e isto deverá mesmo nos ser fatal - pois estare- mos cada vez mais próximos dos raios! - melhor as- sim, não a teremos menos em honra, da mesma forma, e nos resta aquilo que não queremos nem dividir nem comunicar, a fatalidade da altura, nossa fatalidade...” (Nietzsche, 1982b, # 371, p. 280). Em A Videira Vermelha uma imensa casa ocupa toda a parte central da tela. Por sobre sua fachada, tomando-a quase totalmente, uma forma protoplasmática vermelho rubro levanta-se ameaçadora sob um céu azul cin-
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18. A Videira Vermelha, 1898/
Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 67-111, 1993 (editado em nov. 1994).
uma senhora segura sua mão. A senhora, porém, mantém o rosto abaixado, em silencioso desespero perante a situação trágica que parece caminhar para um fim inevitável. O contraste ainda é mais tocante pelo fato do rosto da doente expressar uma paz acolhedora. O tom esverdeado da pintura, a suavi- dade de suas formas e seus contornos, associados à claridade acolhedora do conjunto, dão à composição uma ternura inusitada a um momento de dramaticidade tão profundo. Nas gravuras, em contraposição, o corte mais seco no metal e na pedra, os traços mais marcados e duros, o riscar excitado dos entornos constroem um desespero muito mais exasperado e rude. Reco- nhece-se na senhora sua tia Karen Bjolstad, irmã da mãe que ele perdeu quan- do tinha apenas cinco anos de idade e que passou a cuidar da família desde então. Anne Eggum acredita que estas pinturas foram feitas a partir da memória da tuberculose fatal que levou sua irmã Sophie à morte, quando Munch tinha 14 anos. Na Cama da Morte (também chamada de Luta contra a Morte ou Febre ) de 1893 retoma temática semelhante. Um espaço recluso, à esquerda uma cama clara onde mal se percebe um corpo deitado. À direita, cinco pes- soas, com os olhos afundados, pela dor e pelo cansaço de velar um doente longamente. Uma delas, um senhor idoso, mãos levantadas e apertadas junto ao peito, pressentindo mais uma possibilidade de tristezas irreparáveis. No pastel de 1893, também chamado de Febre , temos esboçado onde no óleo anterior era a parede e a sombra por trás da multidão, uma série de quase rostos, quase fantasmas, ao mesmo tempo que vemos um rascunho de caveira à direita. Na versão em cartão com tinta indiana e lápis de 1893, a imagem adquire um momento de sarcasmo, como que a rir de si própria. So- bre o leito, os rostos esboçados sorriem, à maneira das famosas abóboras es- culpidas das noites das bruxas nos Estados Unidos. Do lado direito vemos novamente a caveira, agora de corpo inteiro, fêmures cruzados sobre o peito e uma espécie de sorriso no rosto. A lito de 1896 é a mais dramática, não só
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22. Na Cama da Morte, _1896.
Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 67-111, 1993 (editado em nov. 1994).
pelo preto e branco, em si só um reforço aos sentimentos de escuridão, mas também pelos traços grossos que constroem as imagens e que as tornam mais pesadas. A cama, nesta versão, tem suas laterais arredondadas e elevadas, transformando-se mais em leito eterno, quase um caixão, do que em cama repousante e restauradora. A guache de 1894^13 é a única com composição bastante diferente. A cama, sempre de costas nas outras interpretações, aqui é tomada pela frente o que permite pela primeira vez vermos os traços, bem poucos é verdade, do rosto do enfermo. Os cinco personagens desta vez dis- tribuem-se pelos dois lados da cama: três à direita e um casal com as mãos fechadas junto ao rosto. Em tons de marrom, com fundo amarelo e lençóis em vermelho, adquire uma imensa vivacidade, mais para Luta contra a Febre do que para Cama da Morte , feita em tons ocres, verde e azuis mais escuros. Esta febre agonizante quase tirou a vida de Munch quando ele tinha 14 anos e foi responsável pela fragilidade de saúde que o acompanhou durante toda sua vida. Nas várias versões, vemos as múltiplas experiências com a agonia e os delírios da febre vivenciadas repetidamente por ele, durante muitos anos. Em A Morte no Quarto da Doente , recupera-se o momento de mor- te de sua irmã Sophie. Ela não aparece pois está sentada em uma cadeira de espaldar alto, ao lado da cama, rodeada por três pessoas que a olham, o pai, a tia e ele próprio, olhos para o chão. Sua irmã mais velha, Inger, é a única a olhar para fora da pintura enquanto seu irmão está encostado na porta do quarto. Toda executada em tons verdes e em ocre, o conjunto adquire uma introspecção bastante acentuada ao lado de uma angústia contida. Apesar de referir-se a uma morte ocorrida há alguns anos, todos os presentes aparecem com a idade da época da execução das pinturas e gravuras, unidade de tempo- ralidades heterogêneas, o que reforça nossa interpretação de que Munch recolocava-se a cada instante na dor que o atingiu no dia da morte de sua irmã, ocorrida em 1877. Este tema, da dor proveniente da perda, repete-se também no óleo Mãe Morta e a Criança (1897/1899). Na frente do leito, onde jaz o corpo da
23. Mãe Morta e a Criança, 1897/
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