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A exploração da cidade moderna pelos pensadores walter benjamin e louis aragon, que buscavam entender a materialidade efêmera e a mitologia da modernidade. Benjamin e aragon examinam a relação afetiva com a cidade, especialmente paris, e a importância dos sonhos coletivos. O texto também discute as obras 'o camponês de paris' de aragon e as ideias de surrealismo.
Tipologia: Notas de estudo
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ARTIGOS
Walter Benjamin's approach to the modern metropolis and the glance surrealistic
Vanessa Madrona Moreira Salles* Fundação Mineira de Educação e Cultura - FUMEC, Belo Horizonte – MG, Brasil
RESUMO Walter Benjamin intenta apresentar a cidade, em sua multiplicidade e diversidade, como espaço de experiência sensorial e intelectual, local de encenação dos conflitos sociais e de transformações urbanísticas. Suas ruas são palco de circulação de mercadorias, repletas de enigmas; o lugar onde o sujeito autônomo, senhor de uma razão iluminista, perde-se em meio a uma labiríntica multidão – de pessoas, de objetos, de imagens -, e em que a experiência de rapidez, de anonimato pode ser realizada de modo mais radical do que em qualquer outro lugar. Desse modo, ler a cidade é ler um mosaico, e Benjamin retoma uma das mais profícuas leituras da metrópole urbana: a visada surrealista. Palavras-chave: Metrópole, Surrealismo, Benjamin.
ABSTRACT Walter Benjamin aims to present the different and multiple aspects of modern city. It is seen as the place where men have sensorial and intellectual experience, where social conflicts and urban transformations take place. In the streets of the city goods are sold and bought and they are mysterious and cannot be understood at once. In the street of modern city autonomous citizen, guided by enlighted thinking, cannot distinguish himself among a huge crowd of people, objects and images. In this very context, he does feel the speed things change and his own anonymous presence. The city can only be read as a mosaic and Walter Benjamin tries to understand it in the surrealistic way that he considers the richest form of doing so. Keywords: Metropolis, Surrealism, Benjamin.
(...) a liberdade adquirida nesta vida ao preço de inúmeras e dificílimas renúncias, exige ser usufruída sem restrições no tempo em que é dada, sem considerações pragmáticas de nenhuma espécie, e isso porque a emancipação humana, definitivamente concebida sob a forma revolucionária mais simples, que nem por isso, entendamo-nos, deixa de ser a emancipação humana a todos os respeitos, segundo os meios de que cada um dispõe, é a única causa que continua a ser digna de ser servida.
ISSN 1808- Estudos e Pesquisas em Psicologia Rio de Janeiro v. 11 n. 1 p. 140-155 2011
A metrópole moderna, o olhar surrealista
(BRETON, 1972, p. 123).
Benjamin apresenta as ruas das metrópoles modernas como “morada do coletivo” e local de exercício do poder político, onde as escolhas urbanísticas têm intenções subjacentes de controle das massas, como as que se evidenciam nas reformas de Haussmann^1 , na Paris do século XIX. Esta reforma urbanística poderia ser vista equivocadamente como sintoma de uma modernidade que caminha a passos largos em direção à consolidação do domínio do homem sobre a natureza, uma espécie de segunda natureza, cujo ritmo progressivo é tomado como inexorável e positivo. Resulta, portanto, um efeito perverso: provoca “nos parisienses estranhamento em relação à sua cidade. Nela não se sentem mais em casa. Começam a tomar consciência do caráter desumano da grande cidade” (BENJAMIN, 2006, p.49). O que, aos olhos do engenheiro parecem formas urbanísticas de dominação surge, para a maioria dos moradores de Paris, como ameaça.
Os edifícios de Haussmann são a representação perfeitamente adequada dos princípios do regime imperial absoluto, emparedados numa eternidade maciça: repressão de qualquer organização individual, de qualquer autodesenvolvimento orgânico, ‘o ódio fundamental de toda individualidade’. 2
O tema da cidade encontra-se presente em vários momentos do itinerário intelectual de Benjamin. Em 1923, ele traduz para o alemão os Tableaux parisiens , de Baudelaire. No final da década de 20 surgem Rua de mão única , Diário de Moscou e a série radiofônica sobre Berlim. Crônica berlinense e Infância em Berlim por volta de 1900 são publicados nos anos 30 e o ensaísta dedica-se às Passagens entre os anos de 1927 até sua morte, em 1940. Walter Benjamin apresenta uma metrópole moderna^3 enquanto imagem mental. Nesta imagem reúnem-se retratos urbanos de várias cidades concretas 4 , que ele conheceu: Berlim, Paris, Moscou^5 , Nápoles^6 , dentre outras. Seus escritos intentam representar a cidade em sua multiplicidade e diversidade, como espaço de experiência sensorial e intelectual, local de encenação dos conflitos sociais e de transformações urbanísticas. Suas ruas são palco de circulação de mercadorias – objetos e pessoas – repletas de enigmas; o lugar onde o sujeito autônomo, senhor de uma razão iluminista, perde-se em meio a uma labiríntica multidão, “onde ninguém é para o outro nem totalmente nítido, nem totalmente opaco” (BENJAMIN, 1989, p. 46). A cidade é vista como espaço de trânsito e diferença, onde a experiência de rapidez, de multiplicidade, de anonimato pode ser realizada de modo mais radical do que em qualquer outro lugar.
A metrópole moderna, o olhar surrealista
interpretativo de imagens, estratégia esta que será retomada por Benjamin.
I. Na primeira metade da década de 20, Benjamin acolhe como objeto de seus estudos momentos importantes da história da literatura alemã – especialmente, o Romantismo e o Barroco^8. Nestes trabalhos observa-se um duplo procedimento: crítica à unicidade da obra de arte, defendida por uma ampla tradição crítica, e o resgate do que fora desprestigiado por essa mesma tradição, como, por exemplo, os dramas barrocos alemães. Em Origem do drama barroco alemão, o ensaísta destaca ainda uma mudança de foco de abordagem da obra de arte: desenvolve uma crítica em que o fragmento, o estilhaço, assume uma importância própria, autônoma, e passa a ter uma existência que prescinde de qualquer participação anterior em alguma totalidade. É na contemplação do detalhe, das frações, que se atinge a verdade. Mas, somente a partir de 1924 seus escritos tratarão da cultura europeia do século XX, sob influxos marxistas. Foi como berlinense que Benjamin entrou em contato com as vanguardas européias^9. A capital alemã era o centro europeu de fomento de experiências artísticas – cinema, música, artes plásticas, arquitetura, etc. - na década de 20. É também devido a sua condição de habitante de Berlim que o ensaísta tem propriedade para abordar a experiência vivida por sua geração: o esfacelamento de certezas, a fragmentação da vida vivenciada sob a fragilizada - moral e economicamente - República de Weimar. Benjamin cria uma espécie de mosaico em seus escritos a partir do final dos anos vinte, em sintonia formal com sua conturbada época, marcada, destacadamente, entre vários outros fenômenos sociais, pela Primeira Guerra e a iminência de uma segunda e por mudanças políticas inauditas, como a Revolução Russa^10. Em carta enviada a Hofmannsthal, em 5 de junho de 1927, Benjamin fala de sua sensação de inadequação no ambiente intelectual alemão e sua afinidade com o movimento surrealista francês^11. Podemos, pois, destacar como lugar de convergência entre Benjamin e o movimento surrealista a escolha privilegiada da cidade moderna como “objeto” de análise e, sobretudo, uma relação afetiva com a cidade de Paris^12. Louis Aragon, André Breton e Walter Benjamin buscam apreender a significação da cidade moderna em sua materialidade efêmera^13 e constatam que a mesma se encontra sob o império da mitologia da modernidade. Aragon e Breton apresentam uma visão da modernidade como sendo o momento de um re-encantamento do mundo, na contramão da leitura weberiana que assinala a desmistificação do mundo como sendo princípio fundante do projeto da modernidade. O sujeito surrealista vagueia por entre objetos, formas, espaços, fadados à
A metrópole moderna, o olhar surrealista
inexistência, numa configuração histórica e profana. Constata que nada é eterno, que a cidade está sob o império da transitoriedade, que o mundo moderno é um sonho envolto em poderes míticos. O tema da “mitologia da modernidade” discutido, especialmente, nas Passagens , foi tomado de empréstimo de Louis Aragon – O camponês de Paris (1926), assim como a referência às passagens parisienses. Alguns instantâneos do olhar surrealista de Aragon sobre a cidade serão apropriados por Benjamin em sua reflexão sobre a capital do século XIX. Na perspectiva surrealista, a cidade de Paris é apresentada sob pontos de vista diversos. Não é a cidade resultante de planejamento e intervenções urbanísticas de engenheiros e arquitetos. Em O camponês de Paris Aragon destaca dois locais na cidade - a Passagem da Ópera e o parque Buttes-Chaumont. André Breton tem uma Paris mapeada conforme seus encontros com uma mulher, a surpreendente Nadja de olhar enigmático, misteriosa como a cidade. “Que haverá de tão extraordinário neste olhar? Que se reflete nos seus olhos com tanta sombra e tanta luz? Donde virá tamanha aflição, um orgulho assim?” (BRETON, 1972, p. 55). No título do romance de Aragon, O camponês de Paris, temos que a palavra camponês remete conceitualmente a condições de sociabilidade estabelecidas no campo, portanto, uma percepção não urbana, cujo ritmo é lento e constante. No entanto, este será um camponês diferente, pois seu olhar ensimesmado terá diante dos olhos a célere e mutante capital francesa: Paris. O próprio título nos dá, assim, uma pista da operação surrealista: reunir imagens aparentemente díspares em uma nova constelação. O camponês de Paris é o próprio Aragon que, para observar sua cidade – ele é parisiense –, vaga por suas ruas com um olhar de outrem, de forasteiro, atento à cidade, aos seus monumentos, edifícios, habitantes, ruas, jardins, parques, não se sujeitando ao embotamento da percepção que acomete os nativos que adquirem um olhar que se habitua ao que está diante dos olhos, e, por isso, deixa de ver criticamente^14. Ele busca a “luz moderna do insólito” que reina
(...) extravagantemente nessas espécies de galerias cobertas que são numerosas, em Paris, nos arredores dos grandes boulevards e que se chamam, de maneira desconcertante de passagens, como se nesses corredores ocultados do dia não fosse permitido a ninguém deter-se por mais de um instante. (ARAGON, 1996, p.44)
Este livro sobre Paris adquirirá posteriormente um valor de nota necrológica visto que a Passagem da Ópera será demolida em 1924, para dar continuidade às obras de construção do boulevard Haussmann. Esse empreendimento, em sua fúria destruidora,
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Para realizar seu desejo o parisiense se faz campesino, também no sentido de depositar sobre a cidade um olhar arcaico, primitivo, infantil.
No mundo da criança não há distinção clara entre realidade e aparência. Ela usa os mais inesperados instrumentos para os fins mais inesperados – uma mesa de cabeça para baixo como nave espacial, uma bacia como capacete de aço. No contexto do jogo, servem a esses propósitos perfeitamente. A bacia não ‘representa’ um capacete, ela é uma espécie de capacete improvisado e pode até dar provas da sua utilidade como tal. Não existe divisão rígida entre fantasma e realidade, verdade e impostura, pelo menos até onde a intenção e a ação humanas mantêm suas posições próprias. (GOMBRICH, 2007, p. 84-85)
A percepção infantil não se conforma ao que é prescrito pelos adultos para ser visto, mas se sujeita ao assustador que se encontra oculto na vida material. Assim também procederá o flâneur surrealista que com olhar arguto e microscópico recolhe o insólito neste “aquário humano” - a passagem em vias de extinção. Neste momento derradeiro, transforma-se no santuário “dum culto do efêmero, na paisagem fantasmática dos prazeres e das profissões malditas, incompreensíveis hoje, e que o amanhã não conhecerá jamais” (ARAGON, 1996, p. 45). A destruição da Passagem da Ópera é uma imagem emblemática da ação da história nos tempos modernos. A prática surrealista consiste justamente em “recolocar no pensamento as imagens”. Reúne imagens de maneira inaudita “a fim de desconcertar o mundo exterior, a fim de desalojar as imagens do mundo exterior do lugar que elas tinham tomado o hábito de ocupar” (CASSOU, 1962, p. 423). A empreitada surrealista regula-se pelo produto da imaginação, a saber, por imagens dispostas num ritmo desregulado e passional. O que interessa é o jogo de imagens. Breton, em Nadja , joga com as imagens dos lugares percorridos pelos protagonistas, teatros, bares, galerias, monumentos, cinemas, hotéis, ruas e boulevares , incluindo-as em seu pensamento. Este jogo também se efetiva, no romance de Aragon, na deambulação da personagem que olha os detalhes que compõem a Passagem da Ópera – seus prédios, seus interiores, seus transeuntes - através de uma lente que transforma o visível em matéria onírica, a ser interpretada antes que se perca na consciência, no despertar.
(...) tenho dificuldades, como pela manhã, com um sonho desvanecido, à medida que os objetos readquirem seu tamanho em relação a mim, em rememorar o microscópio que ainda há pouco eu iluminava com meus espelhos, que eu fazia passar pelo pequeno diafragma da atenção. (ARAGON, 1996, p. 61)
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Louis Aragon “recoloca em seu pensamento” uma colagem de imagens: sua narrativa, marcada pela descrição exaustiva de prédios
(...) de um lado pelo seu estado distraído de sonho, de outro porque era inconsciente de si mesmo, composto de indivíduos atomizados, consumidores que imaginavam o seu mundo de sonho mercadológico ser unicamente pessoal (a despeito de toda a evidência objetiva do contrário), e que experimentavam seu voto como membro na coletividade somente em um sentido alienante, como um componente anônimo da multidão (2002, p. 311).
Para compreender o fenômeno do sonho coletivo Benjamim recorrerá ao conceito de imagem dialética , que contraria todo o empenho da filosofia clássica em distinguir, em separar, sonho e razão, consciente e inconsciente, imaginação e realidade, vigília e sono. A imagem dialética revela o saber do despertar. O limiar entre consciente e inconsciente, momento a ser apreendido em sua fugacidade. A imagem dialética traz resíduos da imagem onírica, mas não é uma abstração, ela está fundada em sujeitos históricos, ancorada na consciência de produtores de imagens como Aragon, que exploram o limiar entre sonho e despertar. As imagens dialéticas conduzem as imagens de sonho para o estado de vigília. Desta
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quanto a mim (...) mereceria ainda participar desse milagre? Terei ainda por muito tempo o sentimento do maravilhoso cotidiano? (ARAGON, 1996, p. 42). Não pôde me escapar por muito tempo que a propriedade de meu pensamento, a propriedade da evolução de meu pensamento em um mecanismo em todos os pontos análogo à gênese mítica e que, sem dúvida, eu não pensava nada que não determinasse imediatamente em meu espírito a formação de um deus, por mais efêmero, por menos consciente que ele fosse. Eu passeava portanto, com embriaguez, em meio a mil concreções divinas. Pus-me a conceber uma mitologia em marcha. Ela merecia propriamente o nome de mitologia moderna. (ARAGON, 1996, p. 142).
Mas a mitologia moderna, que aos olhos de Aragon é preciso decifrar como “sentimento do maravilhoso cotidiano”, é dialeticamente pensada por Benjamin.
[...] enquanto Aragon persiste no domínio do sonho, deve ser encontrada aqui a constelação do despertar. Enquanto em Aragon permanece um elemento impressionista – a ‘mitologia’ – e a esse impressionismo se devem os muitos filosofemas vagos do livro [ O camponês de Paris ] – trata-se aqui da dissolução da ‘mitologia’ no espaço da história. Isso de fato só pode acontecer através do despertar de um saber ainda não consciente do ocorrido. (BENJAMIN, 2006, p. 500, [N, 1, 9])
Ainda que em Rua de mão única , a modernidade se apresente como uma utopia, nos textos posteriores, especialmente naqueles que estão na constelação de Passagens^16 , a fase perversa não pode ser obliterada. Benjamin desenvolve uma ‘dialética do olhar’ tendo como objeto de investigação os estilhaços da cultura de massa. Essa investigação propõe-se a subsumir a verdade filosófica sob estes escombros da história do homem na modernidade. Também a definição de surrealismo, apresentada por Breton no Manifesto surrealista (1924), sinaliza para os limites da correspondência entre Benjamin e este movimento, pois se restringe a destacar os elementos formais do Surrealismo ainda que não tenham historicamente se subtraído da ebulição política de sua época^17.
SURREALISMO. S.m. Automatismo psíquico puro, pelo qual se propõe a exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, ou por qualquer outro meio, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento na ausência de todo e qualquer controle exercido pela razão, e fora de toda preocupação estética e moral. (BRETON, 1994, p. 11)
A metrópole moderna, o olhar surrealista
O pressuposto do automatismo psíquico puro não está presente na escrita benjaminiana. No entanto, Benjamin exaltará o surrealismo afirmando ter sido este o primeiro movimento
(...) a ter pressentido as energias revolucionárias que transparecem no “antiquado”, nas primeiras construções de ferro, nas primeiras fábricas, nas primeiras fotografias, nos objetos que começam a extinguir-se, nos pianos de cauda, nas roupas de mais de cinco anos, nos locais mundanos, quando a moda começa a abandoná-los. (...) Antes desses videntes e intérpretes de sinais, ninguém havia percebido de que modo a miséria, não somente a social como a arquitetônica, a miséria dos interiores, as coisas escravizadas e escravizantes, transformavam-se em niilismo revolucionário. (BENJAMIN, 1985, p. 25)
As reflexões benjaminianas são deliberadamente influenciadas pela teoria surrealista do sonho, em que o sonho se encontra enlaçado à ação. Tal teoria propõe o sonho acordado, a transferência da “ótica do sonho ao mundo da vigília”. O poeta sonha acordado, seu corpo não se separa de sua mente e neste sonho^18 pretende transformar a vida. A junção de sonho e ação será irresistivelmente atraente na posição política do Surrealismo. Benjamin utiliza um jogo de palavras possível no idioma alemão para indicar a dimensão onírica do século XIX: é um espaço de tempo e um sonho de tempo^19 , em que “a consciência coletiva mergulha em um sonho cada vez mais profundo” (BENJAMIN, 2006, p. 434, [K, 4, 1]). E essa imersão será nas passagens. O filósofo faz um paralelo entre o sonho de um indivíduo que viaja pelo interior do próprio corpo e o sonho das multidões que perambulam pelas ruas. Diz Benjamin:
(...) assim como os ruídos e sensações de suas próprias entranhas, como a pressão arterial, os movimentos peristálticos, os batimentos cardíacos e as sensações musculares – que no homem sadio e desperto se confundem no murmúrio geral do corpo saudável – produzem, graças à inaudita acuidade de sua sensibilidade interna, imagens delirantes ou oníricas que traduzem e explicam tais sensações, assim também ocorre com o coletivo que sonha e que, nas passagens, mergulha em seu próprio interior. (BENJAMIN, 2006, p. 432, [K, 1, 4])
Mas é preciso romper com esta homologia entre corpo humano e corpo coletivo para que se distingam os ritmos regulares do primeiro
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sentimento é o do tédio, a prática privilegiada é a da jogatina, e as condições materiais são as do pauperismo.
Referências Bibliográficas ARAGON, L. O camponês de Paris. Apresentação, tradução e notas de Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Imago, 1996. BRETON, A. Nadja. Trad. Ernesto Sampaio. 2ªed. Lisboa: Estampa,
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Endereço para correspondência Vanessa Madrona Moreira Salles Rua Vereador Teixeira de Azevedo, 140/201, CEP 31170-140, Belo Horizonte, MG, Brasil Endereço eletrônico: vanessasalles@uol.com.br
Recebido em: 13/03/ Aceito para publicação em: 15/04/ Acompanhamento do processo editorial: Ariane P. Ewald e Jorge Coelho Soares
Notas *Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo; professora da Fundação Mineira de Educação e Cultura - FUMEC, Belo Horizonte – MG, Brasil. 1 Durante o Segundo Império (1853-1870), Paris passará por grandes transformações urbanísticas realizadas pelo chefe administrativo da cidade, Barão Georges Eugène Haussmann: melhoria das condições sanitárias, modernização das instalações públicas e dos transportes, construção da ópera de Paris e do mercado central Les Halles, criação de parques e dos grandes bulevares, “o que implicou na demolição de vários bairros antigos de Paris e de numerosas passagens construídas durante a primeira metade do século XIX” (Léxico de nome, conceitos, instituições. In: BENJAMIN, 2006, p. 1080). “A verdadeira finalidade dos trabalhos de Haussmann era proteger a cidade contra a guerra civil. Queria tornar impossível para sempre a construção de barricadas em Paris. (...) A largura das ruas deve impossibilitar que sejam erguidas barricadas, e novas ruas devem estabelecer o caminho mais curto entre os quartéis e os bairros operários. Os contemporâneos batizam o empreendimento de ‘embelezamento estratégico’.” (BENJAMIN, 2006, p.
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(^15) É exemplar o quadro de René Magritte intitulado Ceci n’est pas une pipe , em que o artista leva-nos a duvidar de nossa percepção das coisas, confundindo o limiar entre o real e o imaginário. (^16) Susan Buck-Morss constrói um diagrama em que apresenta a relação cronológica
entre o material desenvolvido por Benjamin nas Passagens e os ensaios redigidos. Segundo a autora, “(ideias para inúmeras peças menores – resenhas de literatura contemporânea, filme, fotografia – foram emprestadas, às vezes inteiramente, do Passagen-Werk ) mas representam os artigos mais importantes de Benjamin durante o fim das décadas dos anos vinte e dos trinta, e estão relacionados ao complexo Passagen como indicadores visíveis do iceberg de sua atividade intelectual.” Cf. BUCK-MORSS, 2002, p. 76-77. 17 Sobre o posicionamento político dos participantes do movimento surrealista, Flávia Nascimento apresenta o seguinte esclarecimento: “(...) no segundo manifesto Surrealista , publicado por Breton em 1929, o grupo tomou posição favorável à revolução proletária, acrescentando à necessidade de mudar a vida (...) a urgência de ‘transformar o mundo’ (segundo a divisa de Marx). A opção pelo materialismo dialético tornava-se desta forma clara, impondo a questão seguinte: os surrealistas deveriam ou não aderir ao Partido Comunista? Tal questão provocou mais um cisma no grupo surrealista. André Breton e Paul Éluard aderiram ao PCF em 1927, mas sua permanência nele não durou mais do que algumas semanas. Aragon aderiu na mesma época, mas, ao contrário dos dois amigos, morreria comunista. Sua adesão desencadearia a ruptura com o grupo.” (Flávia Nascimento, Apresentação. In: ARAGON, 1996, p. 15). 18 “Freud tinha escrito que ‘as idéias no sonho [... são] realizações de desejos’ [Interpretação dos sonhos], que, devido a sentimentos ambivalentes, aparecem de forma censurada, e daí, distorcida. O desejo verdadeiro (latente) pode ser quase invisível, em um nível manifesto, e só se pode ter acesso a ele através da interpretação do sonho. Assim: ‘Um sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (suprimido, reprimido).’ Se considerada a classe burguesa como geradora do sono coletivo, então as tendências socialistas daquele industrialismo que ela própria criou, pareceriam capturá-la, inevitavelmente, em uma situação de desejo ambivalente. A burguesia deseja afirmar a produção industrial da qual obtém lucros; ao mesmo tempo deseja negar o fato que o industrialismo cria as condições que ameaçam a continuação do domínio de sua própria classe.” (BUCK-MORSS, 2002, p.337). (^19) Zeitraum (espaço de tempo), Zeit-traum (sonho de tempo).