Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Análise da Interação Crime, Pena e Medidas de Segurança: Periculosidade e Controle Social, Esquemas de Probabilidade

Este documento aborda a questão da periculosidade e suas implicações no controle social atual, examinando como as autoridades recuperam a noção de periculosidade para justificar medidas de controle sobre indivíduos considerados perigosos. O texto explora a relação entre crime, pena e periculosidade, analisando como a periculosidade é utilizada para determinar penas e medidas de segurança, especialmente em relação aos imputáveis e inimputáveis por doença mental. O documento também discute as implicações dessas práticas para a construção do indivíduo que cometeu o crime e a lógica de controle social nascida no século xix.

Tipologia: Esquemas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Birinha90
Birinha90 🇧🇷

4.6

(363)

224 documentos

1 / 145

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
FERNANDA EMY MATSUDA
A medida da maldade
Periculosidade e controle social no Brasil
São Paulo
2009
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14
pf15
pf16
pf17
pf18
pf19
pf1a
pf1b
pf1c
pf1d
pf1e
pf1f
pf20
pf21
pf22
pf23
pf24
pf25
pf26
pf27
pf28
pf29
pf2a
pf2b
pf2c
pf2d
pf2e
pf2f
pf30
pf31
pf32
pf33
pf34
pf35
pf36
pf37
pf38
pf39
pf3a
pf3b
pf3c
pf3d
pf3e
pf3f
pf40
pf41
pf42
pf43
pf44
pf45
pf46
pf47
pf48
pf49
pf4a
pf4b
pf4c
pf4d
pf4e
pf4f
pf50
pf51
pf52
pf53
pf54
pf55
pf56
pf57
pf58
pf59
pf5a
pf5b
pf5c
pf5d
pf5e
pf5f
pf60
pf61
pf62
pf63
pf64

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Análise da Interação Crime, Pena e Medidas de Segurança: Periculosidade e Controle Social e outras Esquemas em PDF para Probabilidade, somente na Docsity!

Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Programa de Pós-Graduação em Sociologia

FERNANDA EMY MATSUDA

A medida da maldade

Periculosidade e controle social no Brasil

São Paulo

Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Programa de Pós-Graduação em Sociologia

A medida da maldade

Periculosidade e controle social no Brasil

FERNANDA EMY MATSUDA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Sociologia

Orientação: Prof. Dr. Marcos César Alvarez

São Paulo

Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo. Guimarães Rosa

Agradecimentos

Muitas pessoas me acompanharam nesse processo e é chegada a hora de reconhecer esse apoio.

Agradeço à Capes e ao CNPq, que em momentos distintos financiaram a bolsa de mestrado.

A Marcos Alvarez agradeço a oportunidade conferida e a valiosa orientação. Seu acompanhamento zeloso, desde as primeiras idéias para o projeto de pesquisa, foi de grande importância para que sua conclusão fosse possível.

Fernando Salla foi de uma gentileza enorme: ajudou-me com seus comentários no exame de qualificação e compartilhou indicações de leitura e material de pesquisa que foram fundamentais para que o objeto do trabalho se apresentasse com mais clareza e por isso devo a ele minha gratidão.

Agradeço a Vera Telles pelas considerações feitas ao trabalho no exame de qualificação e por ter ao longo desse período me apresentado de forma tão generosa a uma diversidade de leituras e possibilidades de pesquisa que eu não conhecia.

A Maria Helena Oliva Augusto sou grata não apenas pela análise crítica e atenta que fez do texto por ocasião do exame de qualificação, mas sobretudo pelo incentivo oferecido quando eu ainda era sua aluna na graduação, atitude extremamente rara e tão fundamental.

Flavio Frasseto e Daniel Assis foram decisivos para a realização da pesquisa. Expresso aqui minha gratidão por todo o auxílio por eles prestado e o profundo respeito que cultivo por suas atuações profissionais.

Sou muito grata a Sérgio Mazina, por sua amizade e pela prontidão em oferecer sua ajuda em momentos cruciais.

Alessandra Teixeira é credora de um agradecimento especial, pois seu incentivo foi determinante nesse processo. Agradeço sua atenção e sua disposição em discutir este trabalho e por ter dado à amizade um sentido renovado para mim.

Sumário

  • Resumo
  • Abstract
  • Introdução
  • Capítulo 1 – A invenção da periculosidade
    • Periculosidade e penalidade moderna
    • O estatuto científico da periculosidade
    • A atualidade de uma velha fórmula
  • Capítulo 2 – Os perigosos entre os discursos e as práticas jurídicas
    • A loucura criminosa
    • A criminalidade precoce
    • Punir a indisciplina
  • Capítulo 3 – O extremo da exceção
      1. Apresentação do caso
    • O crime
    • O processo
    • O ritual documentário sobre o indivíduo
      • A enunciação pelas equipes técnicas
      • A captação psiquiátrica
    • A imaginação institucional
      1. Análise do caso
    • O medo e o retrato do mal
    • A expansão da psiquiatria
    • O direito e o avesso
    • Uma política expressiva
  • Considerações finais
  • Referências bibliográficas

Resumo

O trabalho dedica-se ao estudo da periculosidade e das formas de controle social que são ativadas por essa noção na atualidade. A abordagem recupera o contexto de surgimento do conceito de periculosidade no âmbito da psiquiatria e sua cooptação pelo sistema jurídico, processo que foi facilitado pela natureza da penalidade moderna, que se desenvolve a partir da constituição de um saber sobre o indivíduo submetido à intervenção estatal. Procura-se demonstrar de que maneira a periculosidade é reinventada e instrumentalizada para justificar certas modalidades de controle social voltadas para aqueles que cometem crimes e que não são necessariamente remetidos ao aparato punitivo, operação que torna ainda mais insidiosa a atuação do Estado. Por intermédio da análise de um caso recente é possível verificar a mobilização do dispositivo da periculosidade, usado para constituir a exceção e legitimar medidas expressivas que restam por colocar em risco o Estado de direito.

Palavras-chave: periculosidade – punição – crime – saúde mental – controle social

Introdução

Introdução

A questão que se pretende abordar neste trabalho diz respeito à persistência do conceito de periculosidade na contemporaneidade e à maneira pela qual esse dispositivo é mobilizado no exercício da punição. A partir da observação da realidade do sistema jurídico-penal brasileiro e das políticas de segurança pública, é possível perceber que a periculosidade é uma espécie de argumento estratégico de que se servem as diversas instâncias de poder para justificar práticas de punição que não raro escapam à legalidade nos termos propostos pelo ordenamento jurídico e que incidem preferencialmente sobre determinadas categorias de indivíduos.

Tendo sido construída na segunda metade do século XIX como decorrência do cruzamento entre dois saberes que se encontravam em transformação e em busca de legitimidade especialmente no campo institucional, a noção de periculosidade adentrou a lógica do exercício da punição para nunca mais o deixar. Muito embora essa noção tenha sido por vezes “eclipsada” (Danet, 2008) na trajetória do sistema punitivo tal como se constituiu no mundo ocidental, ela subjaz à sua forma de funcionamento, marcando de maneira indelével tanto o processo de imputação de responsabilidades àqueles que se submetem ao aparato da justiça criminal como a execução das sanções penais resultantes desse processo. Assim, ainda que o argumento da periculosidade seja uma constante no percurso do sistema punitivo, há momentos em que é possível identificar a reativação desse dispositivo e de toda a dinâmica que é por ele engendrada, que se manifesta de forma mais acabada na contenção pura e simples dos indivíduos tachados de perigosos e na sua neutralização ou imobilização (Bauman, 1999).

O problema de pesquisa insere-se, no plano mais geral, no espaço circunscrito pela punição na contemporaneidade e, no plano mais específico, nas aberturas existentes nesse espaço que permitem a atualização e o reavivamento do conceito de periculosidade. Pretende-se demonstrar, por meio das diferentes feições pelas quais as práticas punitivas se expressam, a interação perversa entre a repressão a comportamentos não conformes à lei e à norma e o recurso à estigmatização de

Introdução

determinados indivíduos justiciáveis^1 (Bourdieu, 2002) através da pecha da periculosidade. Para isso, é imprescindível o resgate da construção social da noção de periculosidade e dos caminhos por ela percorridos, desde seus antecedentes mais diretos, relacionados ao desenvolvimento da preocupação médica com a doença mental, passando por sua cooptação pelo saber jurídico, notadamente o criminal, até sua configuração mais atual. A presente investigação não tem aspiração historiográfica. A intenção aqui é recuperar certos processos e verificar seus desdobramentos e seus impactos sobre a configuração contemporânea do controle social.

A periculosidade é sem dúvida um componente da política criminal em escala mundial, que nos últimos anos tem se direcionado de maneira mais categórica e intransigente aos estrangeiros, aos terroristas e à chamada criminalidade organizada, figuras que granjearam uma notabilidade exagerada nas últimas décadas. A periculosidade se inscreve na mesma problemática e no mesmo campo^2 em que se definem os recursos que são acionados para forjar e para enfrentar os perigos representados por esses alvos preferenciais, no bojo de um gênero de atuação estatal pautada, segundo leituras mais recentes inspiradas no trabalho de Foucault (2008a; 2008b), nas concepções de risco e de governamentalidade.

Desse modo, não se trata de insistir na permanência de uma ordem fulcrada no positivismo resultante dos conceitos propostos pela Escola Italiana, que tanto influenciou as práticas jurídico-penais brasileiras no século XX. O intento do trabalho reside no reconhecimento de uma reapropriação da periculosidade em outros termos, isto é, a verificação de que essa concepção tem suas raízes em um mundo marcado por certas circunstâncias e, no entanto, é acolhida em outro contexto, com outros significados e outras aspirações. Se outrora se verificava a finalidade do tratamento, que contaminou os desígnios das instituições de correção, os propósitos que na atualidade instruem o exercício da contenção são a eliminação do risco e a imobilização, não

(^1) Faz‐se uso da expressão cunhada por Bourdieu (2002), mas em sentido inverso, já que o autor se refere à questão do privilégio do acesso à justiça reservado a alguns poucos justiciáveis, cujas demandas seriam apreciadas pelo sistema. Nesse caso, o termo é usado em referência às populações que são alvo privilegiado do sistema de justiça. 2 Em consonância com o pensamento de Bourdieu, segundo o qual no campo estão presentes as relações de força, os monopólios, as lutas, as estratégias, os interesses e os lucros (1983: 123).

Introdução

recorre-se a ela para justificar a intervenção dos agentes do Estado em outros circuitos, sempre que povoados por indivíduos rotulados como perigosos.

Para compreender por que se recorre à classificação dos indivíduos com fundamento em critérios de ausência ou presença de periculosidade e seus diferentes graus (“indivíduo perigoso”, “de alta periculosidade”) e quais são as condições que permitem a recorrência dessa idéia, procedeu-se ao delineamento de territórios nos quais essa categorização é mais facilmente apreensível. Não se trata de negar a existência de muitas outras possibilidades do uso do argumento da periculosidade. Pelo contrário, acredita-se que é exatamente em razão dessas marcações mais vigorosas a serem abordadas que todo o espaço de atuação dos aparelhos repressivos do Estado deixa-se eivar com maior ou menor intensidade pela idéia de periculosidade. O questionamento acerca da periculosidade de um indivíduo ocorre de modo a discriminar, em meio aos já discriminados no jogo da gestão diferencial dos ilegalismos (Foucault, 2000: 75), determinados indivíduos submetidos ao sistema de justiça consagrado ao controle social. Buscar os fatores decisivos para essa dupla segregação possibilita acessar a lógica de funcionamento dessa acomodação promovida no interior da atuação jurídico-institucional.

Analisa-se um caso bastante recente que revela de forma singular e eloqüente como ocorre, no processo judicial, a construção da figura da periculosidade e quais são as conseqüências que essa noção acarreta. O caso versa sobre crime que certamente despertou grande comoção social pela violência dos atos, que tiveram imensa visibilidade pública por meio da cobertura da imprensa. Todavia, a opção pelo caso estudado, dentre muitos outros que poderiam ser objeto de apreciação semelhante, ocorreu porque ele é especialmente expressivo e por ter provocado uma mobilização inaudita de diversas esferas do poder público – Poder Judiciário, Ministério Público, FEBEM, institutos ligados ao saber psiquiátrico – e gerado uma resposta emblemática no tratamento da questão do crime.

O episódio em tela é o assassinato de um casal de jovens na região metropolitana de São Paulo em novembro de 2003, que conduziu ao sistema sócio-educativo e ao sistema prisional seus autores. Algumas observações em relação ao acesso aos dados do

Introdução

caso e seu tratamento metodológico devem ser registradas. Em primeiro lugar, é imprescindível ressaltar que, a despeito de o crime ter sido vasta e intensamente exposto na mídia e facilmente identificável pelo leitor, para preservar a imagem do jovem que foi apontado como participante do crime, procedeu-se ao uso apenas de uma inicial para a ele se referir, “R.”.

Também é preciso enfatizar que, muito embora existam leituras desvirtuadas dos eventos, que nem por isso deixam de ser efetivamente lamentáveis, não é uma preocupação deste trabalho a reconstituição dos crimes em suas minúcias. Pelo contrário, apenas se recorre aos detalhes das condutas criminosas à medida que são importantes para a análise sob o enfoque que interessa ao trabalho. A opção adotada foi a de não colocar em evidência qualquer aspecto atinente às vítimas e suas famílias. Quanto a isso, há uma restrição de caráter ético-jurídico. Contudo, trata-se, também, de uma eleição empírica: não pareceu relevante retomar os meandros da investigação, como a individualização das condutas de cada um dos envolvidos e a seqüência detalhada dos crimes e dos efeitos produzidos na vida dos familiares das vítimas. O resumo apresentado no começo da exposição do caso deve ser suficiente para a análise.

O recorte privilegia os desdobramentos que o caso teve em termos da reação das autoridades públicas ao fato. Procurou-se acompanhar a evolução dos acontecimentos posteriores à atribuição de responsabilidades pelo sistema de justiça, sendo esse procedimento de imputação do fato à pessoa, que se inicia na investigação policial e culmina na condenação, de menor importância para o trabalho. Diversas fontes de pesquisa compuseram o campo: além do que foi relatado pela imprensa – o que foi tomado com extrema cautela –, orientei-me pelos autos do processo judicial que dizem respeito aos acontecimentos e por entrevistas e conversas com pessoas concernidas no caso. Além disso, participei de diversos seminários e colóquios em que se discutiram aspectos relacionados à saúde mental de maneira mais geral e, especialmente, sobre a unidade experimental de saúde, para onde foi encaminhado o jovem que foi considerado responsável pelo crime, e seu funcionamento, que transcorre à margem de qualquer sistema legal.

Introdução

No terceiro capítulo apresenta-se o caso de R., cuja trajetória revela de que maneira o sistema de justiça manipula o conceito de periculosidade e abre brechas, por meio de artimanhas que se situam nas fronteiras entre o legal e o ilegal, para que determinados indivíduos tenham sua existência anulada e, concomitantemente, instrumentalizada para servir aos propósitos de uma política expressiva e simbólica. Ao fazê-lo, as autoridades recuperam elementos da lógica soberana, que invade o espaço aberto pela exceção (Butler, 2006).

O trabalho se encerra com as conclusões finais, que apresentam algumas reflexões suscitadas pela pesquisa e que apontam para a pertinência dos diagnósticos mais recentes sobre a mudança das finalidades do controle social que, se outrora eram justificadas pela exclusão para a inclusão , na atualidade parecem ter assumido, inclusive nos níveis discursivos, o caráter nitidamente segregador.

Capítulo 1 – A invenção da periculosidade

Capítulo 1

A invenção da periculosidade

Penso [...] na maneira como um conjunto tão prescritivo quanto o sistema penal procurou seus suportes ou sua justificação, primeiro, é certo, em uma teoria do direito, depois, a partir do século XIX, em um saber sociológico, psicológico, médico, psiquiátrico: como se a própria palavra da lei não pudesse mais ser autorizada, em nossa sociedade, senão por um discurso de verdade. (Michel Foucault, A ordem do discurso , 1996: 19)

Os termos periculosidade^1 e perigoso são bastante comuns nos discursos cotidianos animados pelos temas da segurança pública, do crime e da punição para qualificar pessoas que cometem crimes e aparecem freqüentemente atrelados à noção de risco , tradução das estratégias que animam a vida contemporânea. Resgatar o caminho percorrido pela idéia de periculosidade desde sua invenção no bojo do estreitamento entre o sistema de justiça criminal e o saber médico, bem como mapear as condições que possibilitaram sua difusão ampla por todo o sistema de controle social e, de forma mais específica, na punição, é importante não apenas para o registro desse momento crucial na trajetória do desenvolvimento dos mecanismos de sanção e contenção de determinados grupos, mas, sobretudo, para o entendimento da sobrevivência desse conceito e de sua reconfiguração na contemporaneidade.

Principalmente diante dos numerosos diagnósticos que apontam para a mudança do papel da punição na atualidade, é importante verificar em que medida suas funções são reinventadas e o que propicia seu predomínio como forma de controle social formal e de proteção da sociedade e, particularmente, qual o peso que a noção de

(^1) Na literatura francesa, usam-se as palavras dangerosité e periculosité para expressar essa idéia. Em inglês, a tradução do termo é dangerousness. Em português, também foram encontrados o adjetivo “periculoso” e os substantivos “perigosidade” e “temibilidade”, resultante da tradução da palavra italiana temibilità. Optou-se por utilizar “periculosidade” por ser o termo adotado pelo legislador brasileiro e, talvez por isso, mais comumente empregado na bibliografia nacional.

Capítulo 1 – A invenção da periculosidade

pela prisão ou que fizessem da pilhagem seu meio de subsistência (Guimarães, 2008: 21).

Também com inspiração marxista, Rusche e Kirchheimer (2003), em Punição e Estrutura Social , publicado originalmente em 1939, descrevem as estreitas relações entre as diferentes formas de punição e os processos socioeconômicos. Movidos por esse intuito, os autores recorrem à história do capitalismo e à reconstituição das penalidades, estabelecendo uma associação entre o papel da pena e o controle da oferta de mão-de-obra, bem como de grupos de pessoas que não se adequavam ao trabalho, como os vadios e mendigos 4.

Para Foucault (2000), o mérito desses autores foi analisar os “sistemas punitivos concretos” como fenômenos sociais que não podem ser explicados pela armadura jurídica da sociedade e pelo princípio de que as medidas punitivas são simplesmente negativas, consistentes apenas na repressão, exclusão, supressão. É preciso considerar que elas estão ligadas a efeitos positivos e úteis e que servem à manutenção e ao funcionamento do próprio mecanismo punitivo, que é reflexo especialmente da estrutura econômica e produtiva de uma época. Garland (1990: 92) destaca que um aspecto importante de Punição e Estrutura Social é a separação entre crime e pena, ou seja, a idéia de que a punição não é uma mera resposta a uma criminalidade individualizada e, sim, um mecanismo que está profundamente implicado na luta de classes. Ao desfazer essa associação entre os fenômenos do crime e da pena, Rusche e Kirchheimer se distanciam do pensamento que Durkheim (1999) sustenta em Da divisão do trabalho social acerca da punição, já que, para ele, a pena seria a manifestação externa por meio da qual o crime – e, portanto, os estados fortes da consciência coletiva – poderia ser acessado. No desenho metodológico proposto por Durkheim para explicar como o objeto da sociologia poderia ser alcançado, há uma ligação necessária entre crime e pena, que é colocada em xeque em Punição e Estrutura Social , muito embora a obra também esteja fundada em uma aproximação holística para a explicação da vida social, o que está de acordo com o que foi propugnado pelo sociólogo francês.

Foucault, que se ampara na proposta analítica de Rusche e Kirchheimer ao propor o estudo dos métodos punitivos não como “simples conseqüências de regras de (^4) Para o detalhamento das mudanças na punição advindas com a generalização do modelo capitalista na sociedade ocidental, ver especialmente o capítulo IV da referida obra.

Capítulo 1 – A invenção da periculosidade

direito ou como indicadores de estruturas sociais” (2000: 24), retrata em Vigiar e punir a complexidade do longo processo que culminou com a consolidação da prisão como forma de punição por excelência. A prisão teria se difundido em contraposição ao suplício, cuja violência nunca seria plenamente superada, como símbolo de uma nova economia de poder que pretendia ser menos concentrada e mais distribuída pelo tecido social, ter finalidade menos vingativa e mais punitiva, incidir menos sobre o corpo e mais sobre a alma do condenado. No fim do século XVIII e na primeira metade do século XIX, assiste-se na Europa a um progressivo abandono da espetacularização do sofrimento do condenado e da punição. A aplicação da pena deixa de ser um momento de reafirmação pública do poder do soberano para tornar-se uma tarefa administrativa que se esconde na máquina burocrática.

O excesso do suplício promovido pelo soberano e a crise da ilegalidade popular, consubstanciada na atuação delituosa para fins de sobrevivência da qual dependia grande parcela da população, foram responsáveis pelo ambiente propício para a reforma penal que, se aparentemente se baseia em uma suavização das penas, é porque seu verdadeiro impacto se fez sentir na alteração da economia das ilegalidades tradicionalmente cultivada e no emprego de uma coerção mais rigorosa sobre determinados grupos.

Desse modo, a padronização da privação da liberdade como modelo punitivo está intimamente ligada às propostas originais de adequação de determinadas parcelas da população, as classes perigosas , ao mundo do trabalho. Outras formas de sanção empregadas anteriormente à consolidação do capitalismo não teriam essa mesma funcionalidade, mesmo porque não teriam que atender a uma demanda de controle que é simultânea à lógica dos bens e da circulação intensiva de riquezas, que tem seu contraponto na criminalidade de cunho patrimonial. É já a partir do desenvolvimento primário do capitalismo, com o mercantilismo no século XVII, que se verifica o uso sistemático de estabelecimentos destinados à contenção de figuras inconvenientes e desajustadas, como os vadios, os criminosos, os loucos e os menores desamparados.

Como aponta Foucault, no século XVII mais de um habitante em cada cem na cidade de Paris viu-se fechado em uma das muitas casas de internamento que abrigavam indistintamente pobres, desempregados, insanos (2003: 48). Considerada um fenômeno