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Erich Fromm esforça-se por conexionar o pensamento de Marx e Freud, de tal forma que o conceito marxista de homem sobressai.
Tipologia: Notas de estudo
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A LIBERDADE E O MEDO (Para uma Sistematização do Pensamento de Erich Fromm) * L Considerações Preliminares Erich Fromm esforça-se por conexionar o pensamento de Marx e Freud, de tal forma que o conceito marxista de homem sobressai. Os seus próprios conceitos de «carácter social» e «natureza humana» realizam a síntese das conceptualidades marxianas no que diz res- peito à teoria da sociedade e à antropologia, com a noção freudiana de inconsciente, cuja relação com o consciente individual tem o seu paralelo na articulação entre a Economia Política e Ideologia em Marx. Pretende-se assim esclarecer a ideologia através da teoria freudiana do inconsciente e das suas implicações na vida psicológica do indivíduo, mas de forma correlacionada com a realidade sócio- ^histórica, apresentando as lesões sociais da vida psicológica com base numa teoria da sociedade (^1 ), A teoria das pulsões é abandonada, devido ao seu mecanicismo, a fim de poder impor-se a noção marxiana da natureza humana: definindo-se o homem como ser racional, mas devendo esta quali- () Este texto teve por base um trabalho apresentado no âmbito da cadeira «Filosofia Social e Política» (ano lectivo 11986/87) e foi amplamente debatido em algumas aulas práticas. () «Assim, o uso da Psicanálise dentro do contexto do materialismo histórico fornecerá um refinamento de método, um conhecimento mais amplo das forças em acção no processo social e uma maior certeza na compreensão do curso da história e na previsão de futuros eventos históricos. Em particular, fornecerá uma completa compreensão do modo como as ideologias são produzidas». FROMM, Erich, A Crise da Psicanálise, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 191711, p. 156.
dade à actividade que desenvolveu para transcender as forças coercivas da Natureza, ou seja, o trabalho* A consciência é adqui- rida na superação progressiva das forças naturais, desenvolvendo o homem neste processo, as suas potencialidades e a confiança em si próprio, ao mesmo tempo que ascende a clarividência do seu lugar sui generis entre os animais. Apreende-se como criador, motor da história, que é, afinal, o desenrolar do processo de auto-- construção. No seguimento do seu materialismo filosófico e da antropologia que o caracteriza, Fromm, afirma que o homem é a culminância em que a «vida se tornou cônscia de si própria». Retomando o problema do mecanicismo freudiano, o óbice que Fromm levanta a esta tese reside no facto de obstruir, por assim dizer, a liberdade humana — liberdade para a sua auto-realização e determinação histórica — porque condenava o homem a um con- flito insolúvel com o seu próprio meio de realização: a sociedade e a história. Já que, este conflito é analisado segundo o reflexo que ocorre no interior da vida psicológica do indivíduo', para onde conflui a tensão das pulsões e dos obstáculos civilizacionais. Freud supunha que da sublimação das energias sexuais — acto sexual em que o homem descobrira a experiência de prazer máximo e que pro- vocava nele uma atracção obsessiva de satisfação — resultava um direccionamento dessas energias que no império do «princípio de realidade», produzia uma objectualidade sublimada: a civilização. Neste quadro o homem não é verdadeiramente livre e a civilização, em última instância, seria uma perversão da natureza humana e das suas mais profundas motivações. A mais grave consequência de tudo isto é a impossibilidade de resolver os problemas sociais sem colidir com as motivações do indivíduo, que se suponha por natu- reza associai, sendo por consequência a civilização algo de aberrante. Se bem que, ambas as teorias tivessem preocupações sociais, o freudismo aviltava a história da humanidade e no fundo' a própria condição humana, impedindo mesmo a resolução dos problemas sociais, já que o conflito entre o homem e a sociedade era radical e insolúvel. Fromm não só abandona o misantropismo implicado na teoria das pulsões como altera profundamente a interpretação freudiana do mito de Édipo, mantendo, porém o papel da noção de incesto, enquanto regressão psíquica, que faz coindidir com o seu próprio
2. O Humanismo Culturalista de Erieh Fromm O que entrecose as duas teorias é afinal o seu humanismo cultur alista, em que o homem é objectivo para si próprio, edifican- do-se num processo cultural Fromm diz que todo o desenvolvi- mento humano se deve à capacidade de trasnsmitir e acumular conhecimentos — o que nos remete para o primado do processo cultural na determinação histórica — podendo juntar-se a esta uma outra sua afirmação: «Todos os homens são idealistas, se enten- dermos por idealismo o impulso de satisfazer as necessidades que são especificamente humanas e transcendem as necessidades fisio- lógicas do organismo» (^3 ). Devemos concluir que o homem é um ideal, um ideal que ele próprio forja no cadinho da cultura. Por outro lado, o seu humanismo prende-se, inevitavelmente, a um existencialismo, que como é seu hábito engolfa duma forma acrítica todos os pensadores que trataram o problema da existência, qualquer que seja o quadro e o ângulo utilizados. Fromm diz que «O problema da existência do homem é ... único em toda a natureza: ele saiu da natureza, por assim dizer, mas ainda está nela; [e aqui apresenta-nos um pensamento laico e de índole marxista, pois salienta o conflito entre o homem e a Natureza a fim de se con- cretizar a emancipação da humanidade, para lhe acrescentar o se- guinte] «é em parte divino e em parte animal; em parte infinito, em parte finito» ( 4 ) , ou seja o equivalente à definição de Kierkegáard, segundo a qual a existência humana é a «síntese do finito e do infinito, do temporal e do eterno», que é bem mais consentânea com a perspectiva judaico-cristã da criatura humana, na qual se compreende o «sair da natureza» como a expulsão do paraíso. Acrescente-se para esclarecer a definição que o homem é finito enquanto criatura, mas torna-se infinito como criador. Mas estas concepções e terminologia só têm sentido num contexto religioso, porque um homem infinito enquanto criador só o é relativamente a um Criador, com letra grande. Compreende-se, contudo porque são ultrapassadas as fronteiras do materialismo-histórico para uma perspectiva religiosa: é que um ser incapaz de explicar a origem (^3 ) FROMiM, Erich, Psicanálise da Sociedade Contemporânea (=P.S.C.) 5 décima edição, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 10813, p. 42. (^4 ) Opus cit.s p 38.
da realidade em que está incluído e que ao mesmo tempo consegue superar a dependência que caracteriza o enigma da sua origem é pelo menos diferente, E se consegue desenvolver um destino arti- ficial, distinto daquele a que estava confinado originalmente, ainda que pelo pecado, ele, é, pelo menos divinizável, porque enquanto criador de si próprio, ele é um deus. B este deus de si próprio explica a vertente feuerbacheana que corre no pensamento de Marx, e que Fromm facilmente, pode aproximar da mitologia judaico* - cristã. Quais as distâncias e as semelhanças, é uma pergunta que pode ter legitimidade. Lembre-se o ecumenismo, e a igualdade de todos os homens perante um mesmo deus, ou o profetismo de uma sociedade sem classes. Sabemos o que M-arx pensava da religião, mas isso não nos diz o que ele pensava destas ideias igualitárias que ela também professa, E para os homens de boa vontade, como Erich Fromm, elas não passam despercebidas, Fromm realiza o «suave milagre» de entretecer marxismo e religião, interpretando assim o Antigo Testamento: «A vida do homem não pode ser vivida pela repetição do modelo da sua espécie; ele tem de vivê-la, O homem é o único animal que pode sentir-se aborrecido, que pode sentir-se expulso do Paraíso, O homem é o único animal que considera a sua existência um problema que tem de ser resolvido e do qual não pode escapar. Não pode voltar ao estado pré-humano de harmonia com a Natureza; tem de pros- seguir no aprimoramento da sua razão até tornar-se o senhor da Natureza e de si mesmo». Para, então, concluir que «O homem que vive no Jardim do Éden, em completa harmonia com a Natu- reza mas sem auto-consciência, inicia a sua história pelo primeiro acto de Liberdade, pela desobediência ao comando, Concomitante- mente, adquire a consciência de si mesmo, da sua separação, do seu desamparo; é expulso do Paraíso, e dois anjos, com espadas de fogo, impedem-no de regressar» ( 5 ) , Quer dizer, o pecado ori- ginal é um acto de liberdade e o ganho da consciência. Como radica, então, o humanismo de Fromm numa base exis- tencialista? É que, a sua concepção da essência humana caracte- riza-se pela ultrapassagem do ancião axioma do essencialismo: uma essência não existente não é um puro nada, mas forçosamente a (^5 ) Opus cit, p. 37, — 5/
a si mesmo, o abandono do deus que existe dentro do homem» (^6 ), Quando falamos em triplo ponto de vista, referíamo-nos ao exis- tencialismo, humanismo e à teoria da alienação, presentes no texto, O que Fromm propõe é que a verdadeira existência se atinge com a consciência, e esta é uma conquista que implica um homem total voltado para si próprio, quer dizer, livre de desenvolver as suas potencialidades individuais e colectivas, A sociedade não pode abafar o indivíduo, nem nenhum conceito de eficácia económica pode constituir justificação para uma realidade de homens alienados. O homem é um fim em si mesmo, e a consciência foi o ponto de partida, sendo por isso mesmo, o critério obrigatório do mundo humano^ E como é na alteridade, na presença, relativa a si ou ao mundo que se constitui a consciência, nunca conseguida na tota- lidade, uma tarefa inacabada que transforma o homem em pere- grino, devemos concordar com M. Marie David: «o lugar que o Homem tem de visitar é ele próprio».
maneira que lhes permitam funcionar no sentido exigido pelo sis- tema social» ( 8 ). É possível agora entender o carácter social, enquanto totalidade comportamental, integrante e estruturador do(s) -defeito(.s) socialmente modelado (s). Fromm entende a génese do carácter social centrando-a na multiplicidade dos factores sociológicos e ideológicos em interacção com a preponderância da estrutura económica, dado que a oposição do homem à natureza, ou seja, a sobrevivência, impõe um deter- minado modo de produção. «As ideias religiosas, políticas e filo- sóficas não são puros sistemas projectivos secundários» Por estarem arreigados no carácter social, por sua vez determinam, sistematizam e estabilizam» (^9 ), A função do carácter social pode variar: se o contexto a que pertence se mantiver estável, ele funciona como argamassa social, caso contrário despoletará a ruína da estrutura onde se insere. É particularmente interessante o trabalho de Fromm ao des- cobrir o campo de acção de uma ciência da patologia das sociedades. Se como dizia Marx a superstrutura é uma consequência da reali- dade do modo de produção, é verdade então que, como conclui Fromm, -constituirá o epicentro das lesões psicológicas provocadas pelo mecanismo económico-político em acção. A pequena-grande discrepância entre Marx e Fromm, é que este considera o homem como um fenómeno cultural ---- é por isso que insiste em considerar a superstrutura como não sendo uma simples projecção da infra-- estrutura económica — enquanto Marx defendia a preponde- rância desta sobre a outra» Mas como parece que Marx não defenderia um tal reducionismo de forma radical, também Fromm declara a preponderância da infra-estrutura, devido segundo ele à sua longevidade relativamente aos elementos da superstrutura (^10 ). (^8 ) Opus cit., p. $7. (^9 ) Opus cit., p. 88. (^10 ) Sobre a preponderância da estrutura económica diz-nos: «A génese do carácter social não pode ser entendida Ipela simples referência a uma causa única, mas pelo conhecimento da interacção de factores sociológicos e ideoló gicos. Os factores económicos têm, porque de mais difícil variação, certa predo minância nessa interacção». Opus cit., p. 813.
4, A Situação Humana e as Necessidades Fundamentais A situação humana, conforme nos é apresentada por Fromm, emerge do facto de que a evolução se iniciou com o abandono da harmonia natural Fromm marca este momento com a superação das estruturas neurológicas herdadas, que traduzem uma inserção passiva e redutora às exigências de sobrevivência. Nesta condição o indivíduo encontra na natureza a resposta a toda a sua actividade, porque a única direcção é a sobrevivência, a natureza é o seu pró- prio fim. Ele é, apenas, o veículo da manutenção da espécie no quadro parasidíaco das criaturas» Não acreditámos que alguma vez o homem tenha vivido a situação daquilo que se denomina uma harmonia natural, mas compreendemos que este seja o mito daqueles que ascendendo à consciência, enfrentam a maldição de saberem que nada sabem — compleíamente perdidos numa reali- dade que os arrasta numa direcção que não podem desvendar. Podemos, então, concluir, com Fromm, que a primeira e deci- siva conquista do homem foi a sua própria consciência resultante do abandono do seu lugar parasidíaco, mas criatural, pela natureza inóspita e anónima, A recompensa foi amarga, porque a sua exis- tência é agora um problema, iniciando-se a epopeia da procura de uma resposta. Aqui está a razão do culturalismo frommiano: ele supõe que a resposta ao problema da existência é o principal impulso humano, sobretudo porque entende a evolução como um fenómeno de raiz cultural, e não como sendo a expressão de um conflito com a natureza que o homem tem de resolver, a fim de resolver um conflito que é o da sobrevivência e que se desmulti- plicou em outras necessidades correlativas, como Marx já nos «Manuscritos Económico-filosóficos» havia referido. Forçoso é que tenhamos a precaução de distinguir a causa motriz da evolução de uma outra que nos parece manter-se intacta, a contradição intrínseca da existência. Porque o sentido da vida é uma questão que surpreende o homem continuadamente, e quando Fromm aponta para a construção do mundo humano para combater a vacuidade existencial das sociedades dos nossos dias, estamos convencidos de que tem razão. De facto, está aí a resolução' do seu nascimento total — o homem deve preencher o mundo com o seu próprio sentido. Na sua consciência o homem transporta as perplexidades da existência que lhe impõe toda a sua ignorância; ele aquilata a sua impotência e entrevê o espectro da morte — e
isto é tão premente que o capitalismo actual se esforça tenazmente por ocultá-lo por detrás do seu poderio tecnológico, porque sabe não poder produzir e vender um antídoto; a morte deve ser escon- dida porque um homem confrontado com os problemas fundamen- tais da sua existência não pode encarar electro-domésticos senão no seu ridículo, o que desmascara o logro desta civilização, A dico- tomia existencial, da consciência e da sua maldição, exige inelu- tavelmente «O Homem para si próprio», mas tem o terrível preço do pavor de cada passo — fora da natureza estende-se um abismo, perante ela o homem está sozinho. Fromm traduz isto aproximando o medo à evolução com o facto negativo do nascimento, que cons- tituem duas tendências em conflito, a emergência e a regressão, as quais expressam as sinuosidades da história, como no caso do «Medo à Liberdade», ou por outro lado, das realizações notáveis da humanidade, aonde vai ficando mais vincado o seu nascimento. Ouçamos, no entanto, as palavras de Fromm sobre o assunto, que expressam melhor do que ninguém o que se entende por nascimento humano e a sua problemática situação existencial: «A evolução do homem baseia-se no facto de haver deixado a sua pátria original, a Natureza, e jamais poder regressar a ela, jamais poder voltar a ser animal. Só há um caminho para ele: emergir completamente da sua pátria natural, encontrar uma nova pátria — criada por ele ao tornar o mundo humano e ao tornar-se humano também. Quando o homem nasce, tanto como espécie quanto como indivíduo, é arrancado de uma situação que era definida, tão definida quanto os instintos, e lançado em outra situação, que é indefinida, incerta e aberta. Só há certeza quanto ao passado, e quanto ao futuro no que se refere a morte — que, é na realidade, um, regresso ao passado, ao estado inorgânico da matéria, [...] Portanto, o pro- blema que tanto a espécie quanto o indivíduo tem, de resolver é o do ;seu nascimento, O nascimento físico não é, em termos indi- viduais, tão decisivo e singular como parece, É, em verdade uma importante passagem da vida intra-uterina para a vida extra-uterina, mas sob muitos aspectos a criança não é após o nascimento, muito diferente do que era antes deste: depende completamente da mãe e pereceria sem a sua ajuda. Era realidade o processo de nascimento continua, A criança aprende a falar, aprende a conhecer o uso e a função das coisas, aprende a relacionar-se com os demais, a evitar a punição e a obter elogios e aprovação. Lentamente, o indivíduo em crescimento aprende a amar, a desenvolver a razão
cemos o esforço que isso nos custou. Ademais, é hoje líquido, o nosso Sol morrerá e com ele será arrastado este paraíso natural que habitamos. É por isso que Fromm denomina incestuosas as mentalidades arraigadas e conformadas com o quotidiano natural É que elas parecem negar o esforço titânico da evolução bio-- antropológica, correlativamente a violência intrínseca à relação da Natureza com todos os seres vivos e em especial com o Homem. Ignoram a realidade transformativa da Natureza que sentencia: a evolução, ou a morte! Quando se sentissem traídas seria dema- siado tarde. Se a Natureza é eterna e sábia (se tem algum desígnio secreto) é o que ainda não sabemos. Não podemos no entanto dispensar-nos do confronto que visa transcendê-la. Resta saber, contudo, até que ponto o panteísmo e a cons- ciência mítica em geral, não calam a esperança de reaver o paraíso, e até que ponto a sua conciliação com a Natureza não equivale ao medo à liberdade. De tudo isto não se deve inferir, que condescendemos com forma alguma de qualquer atropelamento das especificidades étnicas e da autonomia dos povos. Mas como defende Habermas, o saber científico a que corresponde o interesse de dominar a Natureza é algo antropologicamente enraizado.
raremos estabelecer o sentido. Na verdade, depois de verificar- mos a fraca fundamentação das suas teses da filosofia da his- tória, restava avaliar da proficuidade e sistematicidade das ditas necessidades. Este trabalho partiu da leitura da «Psicanálise da Sociedade Contemporânea», obra em que consideramos de maior importância, precisamente, a descoberta das necessidades fundamentais, cuja realidade, não só são o ponto de partida para um humanismo do nosso século, como são o critério de um estudo da patologia social Sendo, portanto o ponto central deste tra- balho apresentar a inter-implicação daquelas necessidades humanas, era contudo inevitável uma primeira aproximação crítica do universo frommiano nas suas traves mestras. Antes de entrar propriamente no tema anunciado devemos enunciar como resultam das condições da existência humana as suas necessidades fundamentais: «A auto-consciência, a razão e a imaginação rompem a «harmonia» característica da existência animal O seu surgimento transformou o homem numa anomalia, num capricho do universo. Ele é parte da Natureza, sujeito às suas leis físicas e incapaz de as modificar, mas transcende o resto da Natureza» (^12 ). O homem encontra-se, assim numa situação peri- clitante, entre a normalidade do animal e a «anormalidade» do ser humano: «A vida do homem é determinada pela inevitável alternativa entre a regressão e a progressão, entre a volta à exis- tência animal e o alcance da existência humana. Qualquer tenta- tiva de regresso é penosa, conduzindo inevitavelmente ao> sofrimento e à doença mental — à morte fisiológica ou à morte mental (lou- cura). Cada passo avante é também temeroso e doloroso, até ser atingido um certo ponto em que o temor e a dúvida tenham apenas proporções reduzidas. Além das necessidades fisiológicas nutridas (fome, sede, sexo), todas as necessidades humanas essenciais são determinadas por essa polaridade». [De facto se considerarmos as necessidades fisiológicas como função do corpo, e tomando em consideração que a presença da consciência precisa da direcção humana, esta representa um problema, que se vai tematizando no processo de crescimento cultural]. «O homem tem de resolver um problema, jamais podendo descansar na situação de adaptação (^12 ) Opus cit, p. 36.
A orientação produtiva, é então, a determinação fundamental da essência humana, a partir da qual se estruturam e desdobram todas as necessidades fundamentais, E dizemos determinação fundamental porque entre Cila e Caríbdis, entre a loucura da regressão e o negrume ameaçador do futuro, o ser humano encontra-se num vértice dinamogénico. Como pode o homem escapar à coactividade da Natureza e da sociedade e como pode ele não aspirar a transcendê-la?! O que no caso resulta ser a própria auto-transcendência — o processo de nascimento contínuo na terminologia frommiana. E como será possível que não tenha projectos — como pode deixar de definir uma estrutura de orientação?! A necessidade de transcendência e de uma estrutura de orientação resultam inelutáveis. Significativo é que todo o processo actual de massi- ficação passe por aqui, toda a unidimensionalidade existencial (na espectacular crítica de Marcuse) passe pela manipulação desse horizonte que o indivíduo necessita construir para poder trans- cender a sua condição. Ora, assim sendo, a autonomia devida à sua especificidade é a condição «sine qua non» para que possa construir a sua própria identidade — o antídoto para o gregarismo da cultura de massas, onde a identidade é a projecção resultante do carácter social, feita à custa da perda da personalidade indi- vidual. E isto corresponderia concomitantemente à inversão da máxima existencialista de que a existência precede a essência. A essência seria agora o holograma artificial de uma liberdade ausente, duma existência fictícia — projectada em função do mundo da técnica, da produção e do consumo em tresloucado círculo vicioso, o avesso de um mundo projectado* na e pela existência. Parece oportuno fazer uma referência à noção de orientação produtiva, delimitando-a por contraposição às tipologias sociais de orientação que estão radicadas no comportamento exigido pela base infra-estrutural e que visam plasmar um comportamento, ou melhor, uma disposição psicológica, cujo perfil a ideologia define* Devemos ter presente que Fromm apenas se propõe a uma «Psicanálise da Sociedade Contemporânea», e assim, quando muito, procuram-se as raízes da quotidianeidade do século XX no seu despontar com o capitalismo emergente nos séculos XVII e XVIIL Numa aproximação histórica desta problemática, Fromm, começa por dilucidar a passagem do modo de produção medievo fechado
na sua subsistência para uma economia de mercado» O organi- cismo, se assim se pode dizer, da sociedade medieval não concebia como benéfico senão aquilo que contribuía para o bem estar do todo social, respeitando a sua estabilidade e a distribuição dos papéis sociais atribuídos a cada classe» Esta sociedade caracte- rizasse, portanto, por uma rigidez de fronteiras entre as classes e uma imposição definida dos seus papéis, que funcionam como órgãos de um corpo fechado no seu próprio funcionamento. Ora é contra este estado de coisas que se insurge a burguesia ascen- dente, aspirando ao control do poder* Daí o seu interesse pela mobilidade social e pelo primado do individualismo que vai esti- lhaçar o organicismo da sociedade medieval. À estabilidade social do regime feudal, contrapõe-se a competição entre os indivíduos» Tornando o mercado por árbitro, isto é, supondo-o como um meca- nismo com leis próprias e óptimas na regulação das tensões dos interesses individuais» Disto deriva a ruína das regras sociais e morais do organicismo da sociedade feudal, que pelo menos con- feria a cada indivíduo a dignidade de um papel próprio, mas que agora se faz mergulhar na lei da selva» Porém os séculos XVII e XVIII são os hesitantes primeiros passos da implantação do capitalismo, em que se verifica ainda a influência da época medieval: é significativo que seja, neste pe- ríodo, considerado contrário à ética e mesmo anti-cristão, o facto de um comerciante procurar atrair os fregueses dos outros baixando os seus preços» O que torna manifesta a convicção fraca e naif da mentalidade da própria burguesia do que era, ou deveria ser, o capitalismo (^15 ). A sociedade moderna burguesa virá rasgar o cenário pin- tado das interpretações religiosas e ontologizantes do cosmos» (^15 ) Os 'traços persistentes do capitalismo são assim descritos por FROMM: «1) A existência de homens política e juridicamente livres; 12) O facto de os homens livres (operários e empregados em geral) venderem o seu trabalho ao proprietário de capital no mercado de trabalho, mediante um contrato; 3) A exis- tência do mercado de bens como mecanismo determinante dos preços e regula- dor da alteração na produção social; 4) O princípio de que cada indivíduo actua com o objectivo de conseguir uma utilidade para si mesmo, supondo-se, contudo que, por causa da acção competitiva de muitos, resulte a maior vantagem possível para todos». Psicanálise da Sociedade Contemporânea, 10.a^ Ediçãos Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1983, p. 91.
com exclusividade os aspectos negativos» (^18 ). São estas as metas- teses do capitalismo do século XX, em que o indivíduo é triturado pela máquina económica: o ser humano deixa de ser um fim em si para se tornar um meio dos interesses económicos de outrém, ou até de si próprio. Seja como for ele está sujeito, na realidade, aos interesses de uma besta que ele próprio criou e pôs à solta, um gigante impessoal que o manipula: a máquina económica. E desde logo se nota uma viragem fundamental do capitalismo do século XIX para o século XX, Enquanto anteriormente a tendência geral era a acumulação e o prazer da propriedade, agora toda a organização económica repousa sobre o princípio da produção e do consumo em massa. O que vai ditar uma transformação caracterológica. O carácter social exigido pelo século XX é o de homens: «que cooperem sem atritos em grandes grupos, que desejem consumir cada vez mais, e cujos gostos estejam padronizados e possam ser facilmente influenciados e previstos. Necessita de homens que se sintam livres e independentes, que sintam não estar submetidos a nenhuma autoridade, a nenhum princípio, a nenhuma consciência; porém que queiram ser mandados, fazer o que deles se espera e adaptar-se sem atritos ao mecanismo social» (^19 ). As consequências imediatas de tudo isto é a quantificação e a abstratificação da quòtidaneidade, absorvendo o comportamento humano e o seu relacionamento com as coisas e consigo próprio (2 0^ ). A realidade é substituída por abstracções, por fantasmas que encarnam quantidades diferentes mas nunca qualidades diferentes. Não nos surpreende, então, que até as pessoas encarnem um estrito valor de troca, ao qual são reduzidas. É isto que está na base do hodierno mercado de personalidades e a dissolução do quadro concreto de referência no processo da vida. Fenómeno que evoluiu através dos séculos com a desantropomorfização do real: «já não estamos no centro do universo, já não somos a finalidade da cria- ção, já não somos os senhores de um mundo manejável e reco- (^18 ) P.S.C., p. 98. (^19 ) Opus cit., pp. 114-115. (^20 ) FROMM salienta a propósito, o facto de o pensamento filosófico e científico dependerem do desenvolvimento da capacidade de abstratificação, porém corre-se o perigo, em Ique a civilização actual caiu de se perder a noção do concreto, e logo numa atitude reducionista de realidade. Cf. opus cit. pp. 118-119.
nhecível: somos uma partícula de pó, um nada em lugar algum do espaço [... e do tempo] sem nenhum tipo de relação concreta com coisa alguma» (^21 ). Com o que ficou dito, pensamos ter estabelecido as condições de compreensão do que Fromm entende pelos diversos tipos de orientação que correspondem ao carácter social, bem como daqueles factores que os geraram. Chegou o momento de definir a mudança caracterológica do século XIX para o século XX, que expressa a transformação correlativa a nível infra-estrutural, porque é esta que exige um novo tipo de comportamento, e que a super-estrutura ideológica tenta, por sua vez solidificar: «Expressando a mesma mudança em termos caracterológicos, posso fazer referência ao que já foi dito acima sobre a orientação acumulativa predominante no século XIX. Em meados do século XX, a orientação acumulativa cedeu lugar à orientação receptiva, na qual a finalidade é receber, «sorver», ter sempre algo novo, viver com a boca constantemente aberta... A orientação receptiva mescla-se com a orientação^ mer- cantil, enquanto no século XIX, a orientação acumulativa estava combinada com a orientação exploradora» (2 2^ ), E o que é a orien- tação mercantil? É um estado de alienação em que o indivíduo comercializa as suas potencialidades, ou seja, a sua personalidade, e em que o sentimento de identidade nasce não da sua activi- dade como indivíduo vivente e pensante, mas do seu papel sócio-- económico. Podemos compreender agora o significado do conceito de orientação produtiva, em que o homem afirma as suas potenciali- dades realizando a superação das suas tensões existenciais: «O amor é um aspecto do que chamei orientação produtiva: a relação activa e criadora do homem com os seus semelhantes, dele com a Natureza. Na esfera do pensamento, esta orientação produtiva manifesta-se na compreensão adequada do mundo pela razão. Na esfera da acção, a orientação produtiva manifesta-se no trabalho (21) Opus cit, p. 117. Sobre o mercado de personalidade, ou da perso nalidade como mercadoria, diz Wright Mills que actualmente o valor de troca absorveu todo o valor de uso instaurando-se a ideologia de que tudo é merca doria — a nossa é a civilização do marketing. Cf. Israel, Joachim, L^Alienation de Marx á Ia Sociologie Contemporaine, Ed. Anthropos, Paris, 19712, pp. 304-311. (^22 ) Opus cit, p. 138.