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Análise do Filme 'A Clockwork Orange' e o Tratamento de Jovens Criminosos, Notas de estudo de Mecânica

Este texto discute o filme 'a clockwork orange' de stanley kubrick e a visão de anthony burgess sobre o comportamento de jovens criminosos. O autor examina a natureza da violência e seus causas, além da representação de alex, o protagonista, e sua transformação. O texto também aborda a importância do contexto social e familiar na formação de jovens criminosos.

O que você vai aprender

  • Como a violência é abordada no filme 'A Clockwork Orange'?
  • Como é representado o comportamento de Alex no filme 'A Clockwork Orange'?
  • Qual é a visão de Anthony Burgess sobre o comportamento de jovens criminosos?
  • Qual é a importância do contexto social e familiar na formação de jovens criminosos?
  • Quais são as causas da violência segundo o texto?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Tiago22
Tiago22 🇧🇷

4.8

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'A Laranja Mecânica' - comentários criminológicos
sobre a violência juvenil
Warley Belo*
“... pode-se escolher a vida e desvalorizar seu aniquilamento ou pode-se escolher a
valorização do sistema (com o conseqüente negativismo ou indiferença pelo aniquilamento
da vida humana e não humana), mas também pode-se escolher não pensar e, em semelhante
alienação covarde, cair no desprezível otimismo irresponsável. Para nós, a decisão
eticamente correta escolhe a valorização da vida, apesar da coragem de pensar.”
(Eugenio Raúl Zaffaroni, Em busca das penas perdidas, p. 157)
Introdução
O filme advém do romance A Clockwork Orange publicado por Anthony Burgess em 1962.
Burgess expõe o mundo dos droogs”, gíria em russo, que nos remonta à um grupo de
jovens delinqüentes.
O trabalho cinematográfico possui um clima amedrontado e atormentado que nos leva a
muitas perguntas temáticas na moderna Criminologia: Se possível, como a violência poderá
ser erradicada da nossa sociedade moderna? Por que gangues se formam e têm
comportamentos extremamente violentos? Poderá, o Estado, privar um indivíduo da sua
livre vontade, transformando-o em um robô (ou um animal) que admite programação (ou
adestramento) mental? O que isso significa ao analisarmos as tecnologias de modificação
de comportamento de castigo contra o crime?
Essas são apenas algumas das indagações que procuraremos responder ao longo desse
trabalho que visa discutir, sim, a violência, mas quer ser também um meio de troca de
idéias entre um fascinado pelo Cinema e pela Criminologia. Portanto, logo se avisa, o
discurso não quer ser técnico. Quer ultrapassar essa fronteira e ser um texto
“comentarista”. Quer interagir com o leitor. Desse modo, ser-nos-á permitido fazer
digressões à essa ou àquela doutrina ou corrente de pensamento ou mesmo outras obras
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'A Laranja Mecânica' - comentários criminológicos

sobre a violência juvenil

Warley Belo*

“... pode-se escolher a vida – e desvalorizar seu aniquilamento – ou pode-se escolher a valorização do sistema (com o conseqüente negativismo ou indiferença pelo aniquilamento da vida humana e não humana), mas também pode-se escolher não pensar e, em semelhante alienação covarde, cair no desprezível otimismo irresponsável. Para nós, a decisão eticamente correta escolhe a valorização da vida, apesar da coragem de pensar.” (Eugenio Raúl Zaffaroni, Em busca das penas perdidas, p. 157) Introdução O filme advém do romance A Clockwork Orange publicado por Anthony Burgess em 1962. Burgess expõe o mundo dos “droogs”, gíria em russo, que nos remonta à um grupo de jovens delinqüentes. O trabalho cinematográfico possui um clima amedrontado e atormentado que nos leva a muitas perguntas temáticas na moderna Criminologia: Se possível, como a violência poderá ser erradicada da nossa sociedade moderna? Por que gangues se formam e têm comportamentos extremamente violentos? Poderá, o Estado, privar um indivíduo da sua livre vontade, transformando-o em um robô (ou um animal) que admite programação (ou adestramento) mental? O que isso significa ao analisarmos as tecnologias de modificação de comportamento de castigo contra o crime? Essas são apenas algumas das indagações que procuraremos responder ao longo desse trabalho que visa discutir, sim, a violência, mas quer ser também um meio de troca de idéias entre um fascinado pelo Cinema e pela Criminologia. Portanto, logo se avisa, o discurso não quer ser só técnico. Quer ultrapassar essa fronteira e ser um texto “comentarista”. Quer interagir com o leitor. Desse modo, ser-nos-á permitido fazer digressões à essa ou àquela doutrina ou corrente de pensamento ou mesmo outras obras

literárias sem o medo de incorrermos em falhas metodológicas modernas a que os trabalhos científicos estão agrilhoados. E não é só. Tratamos da violência juvenil. Isso indica que não trataremos da violência adulta e nem da criminalidade juvenil e / ou adulta. O discurso é orientado para um determinado grupo de agentes: os jovens adolescentes a que nos remonta o filme. É claro que, mesmo assim, não podemos, aqui, pretensiosamente, assumir a descrição da violência juvenil como um todo. Seguimos, nesse aspecto, a honestidade de Albert K. Cohen[1], no seu clássico Delinquent Boys: “The problem of the relationship between juvenile delinquency and adult crime has many facets. To what extent are the offenses of children and adults distributed among the same legal categories, “burglasy”. “larceny”, “vehicletaking” and so forth? To what extent, even when the offenses are legally identical, do these acts have the same meaning for children and adults? To what extent are the careers of adult criminals continuations of careers of juvenile delinquency? We cannot solve these problems here, but we want emphasize the danger of making facile and unprone assumptions. If we assume that “crime is crime”, that child and adult criminals are practitions of the same trade, and if our assumptions are false, then the road to error is wide and clear. Easily and unconsciously, we may impute a whole hort of notions concerning the nature of crime and its causes, derinedfrom on knowledge and fancies about adultcrime, to a large realm of behavior to which these notions are irrelevant. It is better to make no such assumptions; it is better to look at juvenile delinquency with a fresh eye and try to explain what we see.” Por outra, violência e criminalidade não são sinônimos. Necessário, pois pontuar a diferenciação, a fim de delimitar o discurso. Rodrigo de Abreu Fudoli[2] nos ensina o seguinte: “Violência e criminalidade são fenômenos diversos. O crime é apenas uma das facetas da violência, embora haja, no discurso dominante, uma clara aproximação entre violência e crime, identificando-se a ação individualizada da criminalidade convencional como tradução da idéia de violência. Este falso e parcial pensamento conduz à consideração do sistema penal como produto hábil a fornecer à sociedade a proteção e segurança almejadas,

lançou Spartacus (1960), Lolita (1962), Dr. Strangelove, ou How I Learned to Stoped Worrying e Love the Bomb (1964). No 2001:Uma Odisséia no Espaço (1968) e na Laranja Mecânica (1971), ambos feitos na Inglaterra, gerou-se uma intensa controvérsia da crítica, mas, agora, são amplamente aceitos como marcos do cinema moderno. Seus filmes posteriores são Barry Lyndon (1975); The Shining (1980); Full Metal Jacket (1987) e Eyes Wide Shut (1999). A Laranja Mecânica ganhou destaque na Associação de Filmes da América (AFI – American Film Institute)[6] pela exploração da sexualidade e da violência de forma singular, permanecendo hoje com o 46o. lugar no ranking daquela organização. Tornou-se o segundo filme avaliado (depois de Midnight Cowboy) a ganhar The Best Picture Academy Award. O primeiro lugar do ranking da AFI pertence a Cidadão Kane. Os críticos de Nova Iorque nomearam A Laranja Mecânica o Melhor Filme de 1971, e Kubrick o melhor diretor. Ganhou quatro nomeações ao Oscar, por Melhor Quadro, Melhor Diretor, Enredo mais Bem Adaptado e Melhor Filme Editado. Ameaças de morte por causa do filme O filme causou um escândalo quando foi liberado na Inglaterra e recebeu a fama de ter incitado vários atos de violência. Em 1973, Kubrick pediu à Warner Bros. para remover o filme da Inglaterra. O filme ficou proibido de ser exibido no Reino Unido de 1973 até o ano 2000. Em uma entrevista após a morte de Kubrick, sua ex-esposa Christiane, relatou as razões que motivaram o cineasta a impedir a exibição do filme: ameaças de morte a ele próprio e à sua família. Por que “Laranja” e por que “Mecânica”? O que significa o título "Laranja Mecânica”? Ao pé da letra, o título original (Clockwork Orange), significa “Laranja com Mecanismo de Relógio”. O título alude, pois a um “mecanismo de relógio” - clockwork – algo que nos remonta a uma visão mecânica, artificial, robótica, programável. Orange – laranja, nos leva, particularmente, a ver semelhança, no inglês, com a palavra “orang – utan”, ou seja, um macaco (no caso alaranjado, mesmo), uma criatura, um animal. No final das contas, seria uma alusão ao procedimento behaviorista utilizado pelos cientistas do filme para reintegrar à sociedade o jovem Alex, considerado como um “animal” e, por isso mesmo, “domesticável”. Existem também reminiscências[7] ao título ligando-o à uma velha expressão londrina - tão

esquisita quanto o título – que significa: “muito estranho ou incomum”. Nesse aspecto, liga-se à visão do autor sobre o comportamento dos jovens delinqüentes ou, mais corretamente, como já apontamos, ao tratamento que o criminoso Alex fora submetido. O Idioma Talvez a coisa mais fascinante sobre o livro (e o filme) seja o idioma. Alex pensa e fala no "Nadsat" (adolescente em russo, em analogia temos “teen” do inglês. Também é a terminação das palavras russas que numeram os números de onze a dezenove). No princípio, o vocabulário parece incompreensível: "You could peet it with vellocet or synthemesc or drencrom or one or two other veshches". (“Você podia peet isto com vellocet ou synthemesc ou drencrom ou um ou dois outros veshches"). Mesmo não se sabendo nenhuma palavra russa e parecendo, à primeira vista, indecifrável o significado, compreende-se a idéia ao se analisar o contexto da frase. Entretanto, há palavras que buscam ser inteligíveis mesmo em se observando o contexto: quando Alex chuta um integrante de uma gangue rival (Billyboy), caído no chão, ele diz que o chutou no "gulliver". A expressão poderia fazer referência a qualquer parte do corpo naquele contexto. Todavia, em outra cena, um copo de cerveja é servido com “gulliver”. E quando o mesmo se recusa a ir à escola fica claro que “gulliver” é dor de cabeça... De qualquer forma, a palavra pode ter sua origem remontada ao russo: “golova”, que significa “cabeça”[8]. Anthony Burgess não usou palavras russas sempre de forma mecânica[9]. Há passagens que se utiliza do “Nadsat” com grande ingenuidade, como na palavra "gulliver" já referida. Outras palavras são brilhantemente arquitetadas: khorosho (bom ou bem) como "horrowshow"; iudi (pessoas) como "lewdies"; militsia (milícia ou polícia) como “millicents”. A "conversa codificada” (melhor do que gíria) inclui a frase marcante de Alex “O my brothers" e palavras como "crark" (uivar?) e “cutter" (dinheiro). A linguagem tem um som maravilhoso, particularmente em abuso, quando "bratchny grahzny” soa infinitamente melhor do que "dirty bastard” (“bastardo sujo"), além do que é um ponto central para a nossa análise criminológica. O capítulo fantasma de Clockwork Orange O livro A Laranja Mecânica foi publicado em Nova Iorque por W.W. Norton Inc. no ano de 1962 e também na Europa.

peças se amoldam em um todo poético mesmo sendo um universo imensamente controverso e violento. A locação do filme é a Inglaterra em futuro próximo. Ao fundo, toca música de órgão ao estilo gótico (Elegy in Death of Queen Mary, de Pucell)[13]. A abertura possui uma imagem memorável: é uma tomada, em foco, dos olhos azuis e face maliciosamente sorridente do jovem Alex de Large, com um falso cílio (superior e inferior) adornando o seu olho direito. Suas abotoaduras e suspensórios são decorados com um sangrento glóbulo ocular. Afastando a visão da câmara, os "droogs", possuidores de nomes russos, são mostrados: Georgie (James Marcus), Dim [abreviação de Dimitri] (Warren Clarke), e Pete (Michael Tarn). Os nomes são simbólicos: o Alex representa o Alexander, heróico e majestoso (Alex The Large, é o seu nome). O Grande. Mas, nesse caso "A - lex", ou seja - um homem sem lei, o que já pode nos trazer alguma referência sobre a anomia dos criminólogos. Na frente deles, e também formando um corredor em ambos os lados, aparecem formas grotescas de trabalho de arte em um humor niilista e futurístico: esculpido em branco higiênico - corpos de mulheres submissas em fibra estão em forma de mobília, onde algumas estão ajoelhadas e outras em posição de quatro, como mesas. As cores estão ausentes, exceto o orlon artificial das perucas. O filme é narrado por Alex, o protagonista. Assim as primeiras palavras: Alex: There was me, that is Alex, and my three droogs, that is Pete, Georgie, and Dim, and we sat in the Korova Milkbar trying to make up our rassoodocks what to do with the evening. The Korova milkbar sold milk-plus, milk plus vellocet or synthemesc or drencrom, which is what we were drinking. This would sharpen you up and make you ready for a bit of the old ultra-violence. No Korova Milkbar, mistura-se bebidas “enriquecidas” com drogas (denominado "milk- plus"). Servida dos seios de uma manequim nua (uma “mãe” como fonte da violência, a violência como instinto natural?) que é operada por moeda e que já sai automaticamente com drogas para deixá-los prontos para o entretenimento: "the old utra-violence". Eles esperam por uma noite com muita confusão, depredação, agressão e estupro. Possuem um padrão nas vestimentas: macacões compridos e brancos, suspensórios brancos

paralelos, botas de combate pretas e corridas. Usam uma espécie de coquilha externa e bem à mostra, mas igualmente branca, protegendo as genitálias. A primeira atuação remonta um espancamento a um bêbedo vagabundo que buscava refúgio abaixo de uma passarela de pedestres. Cantava "Molly Malone"[14]. O velho bêbado ("filthy, dirty old drunkie") os escarnece e é espancado severamente depois de ter lamentado o estado da sociedade presente onde não há mais respeito e nem valores. Um mundo que tem péssimo cheiro, onde nenhum jovem respeita os anciões. Ao fundo, música de violinos e instrumentos de sopro de madeira. A cena passa para uma casa de ópera (ou cassino ou teatro) abandonada - um símbolo da sociedade contemporânea que se desmorona. São ouvidos gritos estridentes e música. No palco, uma jovem mulher em luta contra alguns jovens que a molestavam. A vítima de estupro tem suas roupas rasgadas ante os quatro furiosos delinqüentes de uma gangue rival. Billyboy (Richard Connaught), e sua gangue, usa roupas que lembram velhos uniformes nazistas: Alex: It was around by the derelict casino that we came across Billyboy and his four droogs. They were getting ready to perform a little of the old in-out, in-out on a weepy young devotchka they had there. Alex e a sua gangue observam o preparatório para “the old in-out, in-out”, e então - preferindo violência a sexo - os desafia a uma briga com um insulto sexual: "How art thou, thou globby bottle of cheap, stinking chip oil? Come and get one in the yarbles, if you have any yarbles, you eunich jelly thou." O prédio antigo serve de fundo para uma rápida sucessão de imagens violentas executada harmonicamente, como em uma cena de balé. Os atos violentos entram em uma sintonia, em uma leveza com a música de Rossini ao fundo. Em estilo reconhecível por quase todo o filme a simbiose violência-música nos mostra a briga entre as gangues de adolescentes onde aparecem lances de arremesso de mobílias, janelas de vidro se estilhaçando, espelhos espatifados e chutes cinematográficos. Corpos voam pelo ar em pulos e cambalhotas; cadeiras esmagam cabeças. Quando, finalmente, a atuação é interrompida por uma sirena policial. Alex e sua gangue fogem em um carro esporte roubado - um Durango/95. Saem com o carro pela noite escura da zona rural dirigindo em alta velocidade e despreocupadamente em relação aos outros carros e motos que vêm em direção contrária.

calças e escarnece ao marido: "Viddy well, little brother. Viddy well." O grupo volta ao Korova Milkbar onde eles se espreguiçam em contraste com as paredes pretas. Há uma mesa perto onde alguns técnicos de estúdio de televisão estão rindo e conversando. A mulher do grupo segue seu instinto e canta uma seção curta da “Ode to Joy” de Schiller no movimento de coral da Nona Sinfonia de Beethoven[16]. Para Alex, é um momento de puro êxtase. Depois da música, Dim ironiza a cantora. Alex o agride nas pernas com uma bengala pela falta de respeito ("por ser um bastardo sem modos"). É evidente que não se poderia falar mal do seu amado e favorito compositor. Os ganidos de Dim parecem choramingos de criança e demonstram descontentamento com a liderança de Alex: "eu não gosto que você faça isso comigo. E não sou mais seu irmão e nem nunca o quis ser... Yarbles, grande yarblockos de bolshy para você". Dim o ameaça, mas se recusa a lutar com Alex quando esse aceita o convite. Alex volta para casa (na Municipal Flatblock 18a Linear North)[17] onde ele vive com seu pai e sua mãe. O salão de entrada do prédio está obstruído por lixo e sobras de materiais demonstrando o desleixo dos moradores. Em uma passagem, fica à vista um mural enorme onde aponta-se a dignidade do trabalho, todavia está deformado por uma pichação sexual obscena. A porta do elevador está quebrada e Alex tem de subir pelos degraus. A parede dentro de seu quarto está enfeitada com um desenho erótico, uma imagem feminina. Do outro lado, há um quadro de Beethoven. Ele põe sua pilhagem da noite em uma gaveta já cheia de relógios roubados e carteiras. Em uma segunda gaveta, ele confere a sua cobra python. Como "o fim" perfeito para a "noite maravilhosa", Alex insere uma fita cassete da Nona Sinfonia de Beethoven. Enquanto aprecia seu compositor favorito, no pedaço mais conhecido da música, a cobra python explora a área onde está exposta a figura feminina na parede. Durante um devaneio, ao tom de Beethoven, Alex delira: Formam-se quadros alucinógenos em sonhos masoquistas de imagens com cortes rápidos de quatro “Jesuses” de plástico dançando fora do crucifixo. Uma mulher vestida de branco cai em uma armadilha e, pendurada pelo pescoço, vê homens olhando de soslaio. Alex ri maliciosamente. Agora são imagens de

uma erupção vulcânica. Depois uma avalanche de pedras que esmagam homens neandertalenses primitivos. A manhã vem. Os pais de Alex parecem ser de classe média. É a impressão, ao menos. O contexto social é muito importante para a análise que se segue. Por isso, à frente, seremos obrigados a elaborar dois caminhos. O primeiro construindo uma teoria de Alex num contexto proletário e o segundo sobre Alex numa situação financeira de classe média. Seu pai, Pee (que é uma gíria inglesa para urinar), e sua mãe, Em, estão confusos, apologéticos e, aparentemente, amedrontados pelo comportamento desviado do filho. Costumeiramente tomam o café matutino e falam sobre Alex. O pai pergunta: “eu gostaria de saber, onde exatamente ele vai trabalhar à noite?” A mãe responde: “Bem, como ele disse, são coisas estranhas que ele faz, alguns biscates, ora aqui, ora acolá, como tem de ser.” Ao ser desperto pela mãe, alega pretensa "dor no gulliver". Desculpa suficiente para lhe isentar a ida à escola. Quando seus pais já não mais se encontram em casa, levanta. Apenas trajando uma cueca, é surpreendido por um assistente social (ou um agente corretivo), Sr. Deltoid, já dentro do apartamento, pois a chave lhe fora emprestada pela mãe de Alex a caminho do trabalho. Depois de fazer Alex se sentar na cama, próximo a ele, põe o braço afetuosamente ao redor dos ombros nus de Alex e fala em linguagem Nadsat para ficar atento porque da próxima vez ele poderá ir para a prisão. Externa sua suspeita do envolvimento de Alex na "sordidez" da noite prévia. Em uma flamejante boutique musical, duas garotas lambem fálicos sorvetes. Ouve-se sons sintetizados do quarto movimento da Nona Sinfonia de Beethoven. Alex está vestido estilisticamente. A cena é filmada em 360o. graus enquanto passeia pela loja e examina as duas jovens. Depois de rondá-las, as indaga: "Um pouco insensato, não é, minhas queridas?” e então convida-as para escutar música em seu sistema moderno de hi-fi. Já em seu quarto, há uma criativa filmagem em alta velocidade de uma cena de orgia (a clockwork sex?) entre os três. A cena foi filmada numa velocidade doze vezes superior a de um filme normal (a duas armações por segundo). Levou uns 28 minutos atuais para filmar, mas dura, na tela, apenas 40 segundos. A gangue de Alex o está esperando no salão de entrada do apartamento, quando o mesmo desce pelas escadas. Depois de discordarem das ordens dele e da disciplina ditatorial

encontrar as razões que explicam esta normalidade e, concomitantemente, a confirmam. (...) o crime é normal porque seria inteiramente impossível uma sociedade que se mostrasse isenta dele.” Mais recentemente, Maffesoli[19], expôs: “A violência, a crueldade, a desordem, a perda são somente aspectos da vida cotidiana levadas ao seu extremo, e esse limite é a condição de um reabastecimento dessa mesma vida cotidiana. O “reabastecimento” de que acabamos de falar exprime, aos nossos olhos, esse processo lógico, orgânico que une a monotonia à intensidade, a partir do momento em que cada um é aceito enquanto tal, como elemento de um conjunto.” Temos por certo que a violência também ocupa status de normalidade em nosso contexto civilizatório, assim como o crime. Logo, a violência é funcional, exerce função na sociedade, é importante enquanto violência. O problema é desvendarmos o ‘modus operandi’ desse processo. Zaffaroni e Pierangelli[20] nos chama a atenção para um aspecto da funcionalidade da violência: “É claro que a tese de Durkheim peca pela ingenuidade, mas é a primeira formulação moderna de uma visão macrossociológica do delito que abarca a reação social. O delito já não é um corpo estranho, nocivo à sociedade, mas que cumpre uma função positiva em nível macrossociológico, ou seja, estaria integrado “fisiologicamente” à sociedade, seria um elemento “funcional” da mesma. Não é uma posição anti-organicista, mas uma mudança dentro da abordagem organicista.” A crítica de Zaffaroni e Pierangelli à Durkheim refere-se à moderna crítica da Criminologia ao Direito Penal positivo, cuja análise não adentramos por motivos já expostos. Fica, todavia, a citação e o pioneirismo de Durkheim para o estudo da violência não centrada no indivíduo em si, mas, sim, numa nova visão macrossocial e compreender isso é essencial para interpretar o filme. Por isso, fazemos uma reformulação: a violência tem sua funcionalidade inserida em contexto macrossocial. Lançamos outra aresta para o discurso: a heterogeneidade gera a violência e a homogeneidade gera a passividade, mas é potencialmente mortífera. Assim as vestimentas dos jovens delinqüentes. Visualmente, eles são iguais nas roupas, calças compridas brancas, suspensórios brancos paralelos, botas de combate pretas e corridas e uma coquilha protetora

dos órgãos genitais. Não se trata de emergimos uma “visão lombrosiana das vestimentas”. Queremos reforçar o argumento de um identificação primária, visual. Esse comportamento, de se homogeneizar ao outro traz em si, também, a heterogeneidade. No caso, em relação a todos os demais da sociedade e agravado em relação a outros grupos rivais (gangues). Trata-se de um “estruturante” coletivo. Um limiar de águas: o nós e o resto. A identificação visual é um mecanismo de compartilhamento de valores. Todos se vestem iguais, todos tomam (e gostam) do “milk-plus”, todos cultuam a “ultra-violence”. Não há liberdade fora dos parâmetros apontados por essa tirania. Até o ruim individualmente passa a ser bom se o grupo assim rotula. Há uma igualdade de pensamentos, um só modo de ser, de falar, de gostar, etc.. Becker aponta-nos exemplo final ao expor situação análoga, ao tratar dos usuários de maconha. Diz nem sempre ser a primeira utilização da substância prazerosa. Os efeitos químicos, não raramente, são náuseas, falhas de percepção no tempo e no espaço e vômitos. Mas, o indivíduo “aprende” a ligar esses efeitos ao significado de prazer principalmente porque os “outros” assim o entendem. Há uma interiorização desses valores. Mais: a opinião do grupo é tomada como ideal para a opinião pessoal. Becker[21] denomina de aprendizagem “step by step”: “One more step is necessary if the user who has now learned to get high is to continue use. He must learn to enjoy the effects he has just learned to experience. Marihuana-produced sensations are not automatically or necessarily pleasurable. (...) The user feels dizzy, thirsty; his scalp tingles; he misjudges time and distances. Are these things pleasurable? He isn’t sure. If he is to continue marihuana use, he must decide that they are.” A partir daqui podemos fazer junções entre esses fatos e alguns teóricos. Albert K. Cohen, cuja obra já citamos, desenvolve a teoria das subculturas dos bandos juvenis. Esta é descrita como um sistema de crenças e valores, cuja origem é extraída de um processo de interação entre rapazes ocupantes de posições pares na estrutura social. Esta subcultura representa a solução de problemas de adaptação, para os quais a cultura dominante não oferece soluções satisfatórias. O primeiro momento da teoria é a idéia da total democratização do chamado american dream: tanto os jovens das classes com posses como os jovens das classes baixas interiorizam e começam por aderir à ética do sucesso da sociedade ocidental-capitalista. Essa ética, todavia, se revela discriminatória, pois possui

A educação deixou de se realizar predominantemente em casa e na atmosfera da severidade puritana.” Veja-se, pois a ambigüidade da criação desses jovens: de um lado há uma cultura tradicional, convencional com comportamentos virtuosos, de responsabilidade, trabalho[25], estudo, mas, ao mesmo tempo, retiram-lhes a função produtiva-econômica. São convocados à uma vida acadêmica, mas são desprovidos das gratificações financeiras desse estado. Há um contra-senso desse “duplo vínculo” sociedade-jovem. Daí surgem crises de identidade cuja superação encontra terreno fértil dentro das subculturas dos jovens. Buscam o prestígio entre si, o status, a “dominação” mesmo dentro do seu universo jovem. Acaso não é isso que Alex procurava com seus “droogs”? A todo momento se impor coercitivamente quanto aos outros? A partir de todo esse desenho macrossocial, alcançou-se certo grau de solidariedade entre o grupo. Iniciou-se a prática coletiva de violência e ilegalidade: condução do automóvel, uso de drogas, vandalismo, furto, roubo, estupro, infrações às normas ou padrões sexuais. Tudo em contraste frontal com a cultura dominante. Logo, já se percebe, a formação do grupo tem duplo movimento: destrói e constrói. Revela, também, uma desestruturação social manifesta. Vamos lembrar, rapidamente, que os pais de Alex são ausentes, relapsos. O prédio onde Alex mora está abandonado e sujo. Tais circunstâncias, evidente, por elas mesmas, não são os únicos motivos para a constituição da gang. Não se trata disso. Mas é um fator importante. Deve ser visto com relevância. Nesse pensar, a violência no filme pode ser analisada, ao mesmo tempo, em relação a uma institucionalização de valores (Becker), adaptação social (Cohen) e estresse social (Parsons). Essa é a análise superficial e limitada ao aspecto macrossociológico. Entrementes, forçoso é concluir a necessidade em averiguarmos, ainda, o porque da formação da “gang” e o aspecto individual de Alex nessa estrutura social. O crime (aqui posto em paralelo à violência a fim de prosseguirmos no discurso) é comumente associado, de forma necessária, a efeitos socialmente disfuncionais, negativos, perturbadores. Hobbes via no crime uma ameaça à sociedade. Tais efeitos são, sim, irrecusáveis. Provoca danos materiais, medo, cerceia a convivência social, põe em risco valores sociais, etc. Mas há seu lado positivo (Durkheim). Esse efeito positivo também foi

abordado por Merton, além de Coser, Cohen, Erikson e Scott. Robert Merton desenvolveu a chamada teoria funcionalista da anomia tendo por base a negação da concepção patológica do desvio, àquela época já superada por Durkheim[26]. Seguindo Figueiredo Dias[27]: “O conceito de anomia de Merton situa-se expressamente no desenvolvimento da idéia durkheimiana de ausência de normas. Apesar da diversidade de formulações utilizadas, ele acaba por privilegiar idéias de ‘desmoralização’ ou ‘ruptura da estrutura cultural’. O grau de anomia de um sistema social mede-se pela extensão em que há ausência de consenso sobre as normas julgadas legítimas, com a conseqüente insegurança e incerteza nas relações sociais. As pessoas são confrontadas pela anomia substancial quando, como um dado de facto, não podem esperar com elevada probabilidade que o comportamento dos outros se conforme com os padrões que comumente consideram legítimos.” Na concepção de Merton, pois permite-se interpretar o desvio como um produto da estrutura social, absolutamente normal, assim como o comportamento adaptado às regras sociais. “Isso significa que a estrutura social não tem somente um efeito repressivo, mas também, e sobretudo, um efeito estimulante sobre o comportamento individual.”[28] Num primeiro momento defrontamo-nos com a desestruturação oculta (ou semi-oculta) dos “droogs”. As fissuras, como já apontadas, são relativamente importantes e relativamente aparentes, mas não são menos importantes e podem nos servir de meio revelador da especificidade daquela violência gerada. Com a agregação pode-se concluir que há um “enfraquecimento dos vínculos sociais” (Durkheim) que acarreta uma desagregação social. Ou seja, há um escambo de valores. A anomia é manifesta. Esse mecanismo, segundo Durkheim, caracteriza a acmé de uma civilização. Nos interessa a conclusão, cujo fundamento desse mecanismo é o de normatizar. A adoção de normas (e aqui é explícito: os “uniformes”, tanto do grupo de Alex quanto do outro grupo, os Billyboys, o “Nadsat”, o ritual do “milk-plus”) cria uma integração da qual os membros são partes. Os outros estão excluídos, já apontamos. A consciência individual ou mesmo coletiva nada tem a ver com esse processo. Essas gangues não se formaram conscientemente. Estamos tratando de rebeldia, cujo objetivo é destruir a inércia, a quietude. Estamos no plano da resistência. Na guerra contra uma moral estreita e conformista. A violência dos “droogs”, pode ser analisada, como uma

etc.. O indivíduo não tem como essência a repressão de si mesmo. Se se pode falar em essência (em Freud) é a presença determinante do inconsciente. E o inconsciente não se confunde com o reprimido, porque o inconsciente é mais. No caso de Alex, a concepção de si e do outro é muito ruim, muito rígida, daí o seu comportamento em tônica individualista até em relação aos seus “droogs”. Não temos competência para nos lançar na psicologia, entretanto é certo que o processo final do novo mecanismo utilizado pelo Estado contra o delinqüente é um processo de “conter o indivíduo”, visando o estabelecimento e a manutenção do equilíbrio social como um todo. Observemos, então que se Alex morresse, antes ou depois do tratamento, seria muito pior para o sistema do que com ele vivo, distribuindo violência antes e se mostrando “domesticado” após o tratamento. A individualidade de Alex - talvez possamos compreender assim – nos revela uma insatisfação com sua própria vida. Procura se satisfazer fugindo, ao máximo, do padrão que lhe é apresentado como correto e que lhe cabe adequar-se, apenas. Não aceita. Foge, luta, se rebeldia, agride a sociedade de todas as formas: faz uso de narcóticos, rouba, estupra, mata. O que quer Alex? Qual o seu objetivo com essa violência? Agredir a sociedade, é verdade, mas, dessa forma, acaba sendo co-réu do sistema. Ele é meio, fim e causa do sistema excludente. Freud[31] nos dá uma visão interessante sobre a violência que podemos ricamente incluir nesse trabalho: “Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos ambiciosa, a que se refere àquilo que os próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas. O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer. Essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um lado, visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra “felicidade” só se relaciona a esses últimos. Em conformidade a essa dicotomia de objetivos, a atividade do homem se desenvolve em duas direções, segundo busque realizar – de modo geral ou mesmo exclusivamente – um ou outro desses objetivos. (...) Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas.”

A violência de Alex parte da sociedade, ganha reforço individualista pela sua auto- concepção de pessoa na sociedade e, no final das contas, acaba sendo de utilidade para essa mesma sociedade. O círculo se fecha. Tratamento: domesticação O tratamento consiste em uma lavagem cerebral na qual o delinqüente não consegue cometer os atos a que foi condicionado a não fazer. Tem ânsias e vômitos, sente dores e vertigens. Alex não pode mais roubar, estuprar e nem ouvir a nona sinfonia de Bethoveen. Mesmo que queira. É uma das caricaturas mais expressivas que se tem notícia de submissão: o sistema venceu, redundantemente. Alex foi adaptado à uma situação que, se não tivesse cometido os atos de ultra-violência, não seria possível a aplicação do novo modo de “reincerção social”. Lembremo-nos que o “Ministro da Justiça”, em revista ao pátio onde Alex estava preso, julgou-o petulante, violento e anti-social, portanto apto à nova versão de tratamento. Aí está o aspecto utilitário, social, planificado, adaptado da violência individual de Alex. Não nos passa desapercebido um ciclo de violência: Alex contra a sociedade e a sociedade contra Alex. Assim, podemos concluir certa a nossa afirmação anterior de que a violência é funcional. No caso, há uma identificação dos valores da sociedade contra os atos de Alex e uma renovação (ou inovação) no mecanismo de “domesticação do criminoso”. Não estamos ainda discutindo sobre o método ali utilizado, estamos apenas expondo que uma das conseqüências apontadas dos atos de “ultra-violence” praticados por Alex redundaram, queira-se ou não, em uma renovação. O sistema de recuperação de delinqüentes, se modificou por decorrência de Alex. A violência é ambígua: cria e destrói. Já havíamos externado uma versão para o significado do título do filme. “Orang-e” = “Orang-utan”. Isso nos fez remontar a animal e, conseqüentemente, à domesticável. Essa domesticação é a finalização de um longo ciclo. É o que M. Foucault chama “a história da racionalização utilitária da particularidade na contabilidade moral e no controle político”. Essa citação cai bem na interpretação do filme porque se refere a uma análise da educação. Àquele tratamento behaviorista, há uma certa ingenuidade na crendice de ser, o homem, condicionável tal e como os animais. É óbvio que somos passíveis de condicionamentos, mas não se tem notícias científicas sobre a possibilidade da propositura de métodos, ditos em psicologia “condicionamento operante”, para o controle comportamental. No livro, com o capítulo vinte e um, o behaviorismo é vitorioso porque Alex se vê