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La Fada de Pinóquio: A Morta Viva, Notas de estudo de Literatura

Este texto explora a presença ambigua e obscura da fada em 'as aventuras de pinóquio' de carlo collodi, revelando sua relação complexa com a morte. A leitura de giorgio magnanelli e italo calvino nos oferece uma perspectiva fresca sobre as raízes radicais da escrita de collodi.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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REDISCO Vitória da Conquista, v. 1, n. 2, p. 78-84, 2012
A BONECA SENHORA DOS MORTOS: A INSÓLITA FADA DE AS
AVENTURAS DE PINÓQUIO
Paulo Fonseca Andrade
Universidade Federal de Uberlândia
Resumo: Este trabalho apresenta uma leitura da personagem Fada no livro As
aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi, a partir de elementos que a associam à
morte, desde sua primeira à última aparição, revelando uma presença ambígua e
uma função por vezes obscura dentro na narrativa. A percepção dessa face insólita
da Fada é crucial para o alcance de outras dimensões de significação do texto de
Collodi, que vêm sendo solapadas pelas inúmeras adaptações (entre elas, a de Walt
Disney) sob o pretexto de se tornar a história mais palatável ao público infantil. A
leitura de Giorgio Magnanelli, bem como algumas considerações teóricas de Italo
Calvino, nos possibilitará refletir sobre alguns dos traços mais radicais da escrita de
Collodi, que fazem de Pinóquio uma obra extremamente complexa e provocadora.
Palavras-Chave: Pinóquio, Collodi, Fada, Morte, Literatura Infanto-Juvenil.
Résumé : La poupée maitresse des morts: l’étrange fée de Les Aventures De
Pinocchio. Cet essai presente une lecture du personage de la Fée dans Les
aventures de Pinocchio, de Carlo Collodi, d’après quelques éléments qui la lient à
la mort, dès sa première à sa dernière apparition, en dévoilant une presence
ambigüe et un rôle parfois obscur dans le récit. La perception de cette face insolite
de la Fée est cruciale pour atteindre d’autres dimension de signification du texte de
Collodi, que sont anéantis par des innombrables adaptations (dentre elles, celle de
Walt Disney) sous prétexte de devenir l’histoir plus agréable aux enfants. La
lecture de Magnanelli, aussi bien que quelques considérations théorique de Italo
Calvino, nous permettra refléchir sur des traits plus radicaux de l’écriture de
Collodi, qui font de Pinocchio une oeuvre extremement complèxe et provocatrice.
Mots Clés: Pinocchio, Collodi, Fée, Mort, Littérature d’Enfance et de Jeunesse.
Oh, minha Fada!... Me diga que é a
senhora, a senhora mesma!... Não me faça
mais chorar! Se a senhora soubesse!...
Chorei tanto, sofri tanto!...
E dizendo isso Pinóquio chorava
desesperadamente e, atirando-se de joelhos
no chão, abraçava os joelhos daquela
mulherzinha misteriosa. Carlo Collodi
As fadas, figuras mitológicas que habitam
o ancestral imaginário de certas culturas,
como a nórdica e a céltica, possuem, em suas
representações populares, formas e humores
variados: às vezes associadas aos espíritos da
natureza, são aladas como borboletas e
pirilampos, podendo ser bondosas, protetoras
ou impertinentes; outras, revelando ares
demoníacos, não muito distantes das sereias,
são belas mulheres que seduzem os homens
para entregá-los à morte. Na verdade, as fadas
pertencem aos Siths (Escócia), ou às Fairies
(Inglaterra), ou ainda aos Elfos (no mundo
germânico), que são um “pequeno povo”
encantado, incluindo tanto seres femininos
quanto masculinos, cujas aparências são
sempre descontínuas; talvez por isso, como
observa Italo Calvino (2010, p.141), seu
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A BONECA SENHORA DOS MORTOS: A INSÓLITA FADA DE AS

AVENTURAS DE PINÓQUIO

Paulo Fonseca Andrade

Universidade Federal de Uberlândia

Resumo: Este trabalho apresenta uma leitura da personagem Fada no livro As aventuras de Pinóquio , de Carlo Collodi, a partir de elementos que a associam à morte, desde sua primeira à última aparição, revelando uma presença ambígua e uma função por vezes obscura dentro na narrativa. A percepção dessa face insólita da Fada é crucial para o alcance de outras dimensões de significação do texto de Collodi, que vêm sendo solapadas pelas inúmeras adaptações (entre elas, a de Walt Disney) sob o pretexto de se tornar a história mais palatável ao público infantil. A leitura de Giorgio Magnanelli, bem como algumas considerações teóricas de Italo Calvino, nos possibilitará refletir sobre alguns dos traços mais radicais da escrita de Collodi, que fazem de Pinóquio uma obra extremamente complexa e provocadora.

Palavras-Chave: Pinóquio, Collodi, Fada, Morte, Literatura Infanto-Juvenil.

Résumé : La poupée maitresse des morts: l’étrange fée de Les Aventures De Pinocchio****. Cet essai presente une lecture du personage de la Fée dans Les aventures de Pinocchio , de Carlo Collodi, d’après quelques éléments qui la lient à la mort, dès sa première à sa dernière apparition, en dévoilant une presence ambigüe et un rôle parfois obscur dans le récit. La perception de cette face insolite de la Fée est cruciale pour atteindre d’autres dimension de signification du texte de Collodi, que sont anéantis par des innombrables adaptations (dentre elles, celle de Walt Disney) sous prétexte de devenir l’histoir plus agréable aux enfants. La lecture de Magnanelli, aussi bien que quelques considérations théorique de Italo Calvino, nous permettra refléchir sur des traits plus radicaux de l’écriture de Collodi, qui font de Pinocchio une oeuvre extremement complèxe et provocatrice.

Mots Clés: Pinocchio, Collodi, Fée, Mort, Littérature d’Enfance et de Jeunesse.

Oh, minha Fada!... Me diga que é a senhora, a senhora mesma!... Não me faça mais chorar! Se a senhora soubesse!... Chorei tanto, sofri tanto!... E dizendo isso Pinóquio chorava desesperadamente e, atirando-se de joelhos no chão, abraçava os joelhos daquela mulherzinha misteriosa. Carlo Collodi

As fadas, figuras mitológicas que habitam o ancestral imaginário de certas culturas, como a nórdica e a céltica, possuem, em suas representações populares, formas e humores

variados: às vezes associadas aos espíritos da natureza, são aladas como borboletas e pirilampos, podendo ser bondosas, protetoras ou impertinentes; outras, revelando ares demoníacos, não muito distantes das sereias, são belas mulheres que seduzem os homens para entregá-los à morte. Na verdade, as fadas pertencem aos Siths (Escócia), ou às Fairies (Inglaterra), ou ainda aos Elfos (no mundo germânico), que são um “pequeno povo” encantado, incluindo tanto seres femininos quanto masculinos, cujas aparências são sempre descontínuas; talvez por isso, como observa Italo Calvino (2010, p.141), seu

mundo seja “fervilhante, intrincado, multiforme, difícil de ser ordenado”. Contudo, o termo italiano fata , assim como fada , em português, não faz alusão a essa origem, já que designam seres exclusivamente femininos. O chamado conto de fadas , entendido como um gênero textual específico, isto é, como termo que “indica o advento de uma forma literária que se apropria de elementos populares para apresentar valores e comportamentos das classes aristocrática e burguesa” (CANTON, 1994, p.30), especialmente por volta do século XVII, acabou por homogeneizar a imagem das fadas: seja jovem ou já senhoril, a fada é sempre bela e, entretanto, despida de erotismo

  • o que se acentua é seu traço maternal. Não por acaso, muitas vezes ela é qualificada como madrinha , substituta imaginária de uma mãe ideal e de um feminino controlado e submisso, cujos comportamentos-padrão eram ditados pela aristocracia e estabelecidos de acordo com sua noção de civilité. Sabemos que tanto Perrault como os irmãos Grimm, apesar de se encontrarem em contextos diferenciados, reforçaram em seus contos, como características essenciais da mulher, “a paciência, o zelo, a obediência, e que o melhor lugar para ela é a casa” (CANTON, 1994, p.56): valores ideológicos particulares, passíveis de serem localizados e compreendidos historicamente. Porém, nos dias de hoje, como bem esclarece Katia Canton,

Com a apropriação pelas editoras, pela indústria publicitária e de entretenimento, [...] o conto de fadas se tornou um mito e foi preservado coletiva e anonimamente, e seus traços históricos, culturais, estéticos e ideológicos foram transformados no “natural”, ou seja, foram neutralizados. O conto de fadas foi expropriado e corrompido pela indústria cultural para se tornar atemporal, universal, o bom senso, a norma. O processo de mitificação mascara as motivações que levaram à adaptação de contos de fadas em diferentes contextos ao longo dos anos. (p.59)

Esse processo de mitificação – do qual temos muitos e variados exemplos –

corresponde, entre outras coisas, a demandas sub-reptícias da nossa sociedade capitalista, que convoca a literatura infantojuvenil e a escola a exercerem um papel específico: aquele, extremamente rentável, da reiteração do mito, de sua repetição infinita e vazia. As chamadas “adaptações modernas” dos contos de fadas, que, a princípio, vêm propor “atualizações” ou “adequações” ou mesmo “reinvenções” dessas histórias, quase sempre realizam simplificações dos elementos narrativos e empobrecimentos de linguagem que visam a esquivar-se das discussões maiores (impróprias, como se diz, a determinados públicos) que tais textos podem suscitar, colocando-se assim a serviço não da democratização do acesso à leitura ou à cultura (argumentos muitas vezes utilizados para se justificar tais procedimentos), mas da fixação de determinados estereótipos. A mitificação, então, não se dá apenas no nível da “mensagem” veiculada por essas histórias, mas no próprio tratamento dado à linguagem e à imagem e, consequentemente, ao público a que elas se dirigem: crianças e jovens. Em seu Crítica, teoria e literatura infantil , o ensaísta britânico Peter Hunt (2010), reconhecido especialista em literatura infantil, questionando o desprestígio acadêmico da mesma, afirma:

A suposição de que a literatura infantil seja necessariamente inferior a outras literaturas – para não falar que é uma contradição conceitual – é, tanto em termos linguísticos como filosóficos, insustentável. Implica também uma improvável homogeneidade entre texto e abordagem autoral, uma perspectiva ingênua da relação entre leitor e texto e uma total falta de entendimento tanto das habilidades da criança-leitora como da forma como os textos operam. (p.48)

A discussão empreendida por Hunt nos revela que, sob um discurso supostamente apenas paternalista com a criança, escondem- se também graves preconceitos e concepções altamente questionáveis a respeito da literatura e da leitura – bem como interesses ideológicos sustentados por esse pensamento. Afinal, por que – como defendem muitos – “a linguagem precisa ser simplificada”, já que “simplificar não torna o texto acessível; [ao

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uma sequência já avançada da história, um momento aterrador de perseguição – Pinóquio foge, no meio da noite, de dois assassinos (é assim que eles são designados), que querem roubar suas moedas de ouro. São, na verdade, o Gato e a Raposa, que aparecem no escuro como “duas sinistras figuras negras embuçadas por inteiro em dois sacos de carvão, que corriam atrás dele aos saltos e na ponta dos pés, como se fossem dois fantasmas” (COLLODI, 2002, p.58). A perseguição é soturna e violenta, com direito a ameaças de morte e uma pata do Gato arrancada à dentada por Pinóquio, que em seguida a cospe fora. É nesse contexto que o boneco de madeira avista em meio ao verde- escuro da floresta “uma casinha branca como a neve” (p.61). Depois de duas horas de corrida ele chegará à sua porta, onde bate, pedindo ajuda.

Percebendo que bater não adiantava nada, começou por desespero a dar pontapés e cabeçadas na porta. Então, debruçou-se à janela uma linda menina, de cabelos azuis e rosto branco como uma imagem de cera, com os olhos fechados e as mãos cruzadas no peito, a qual, sem mover em absoluto os lábios, disse com uma vozinha que parecia vir do outro mundo:

  • Nesta casa não há ninguém. Estão todos mortos.
  • Abra você, pelo menos! – gritou Pinóquio chorando e implorando.
  • Eu também estou morta.
  • Morta? Então, o que está fazendo aí na janela?
  • Espero o caixão que vem para me levar. Tendo acabado de dizer isso, a menina desapareceu, e a janela fechou-se sem ruído. (p.61-62)

Nessa insólita e algo lúgubre aparição, a Fada de As aventuras de Pinóquio já se dá a ver em toda sua complexidade. Ressaltemos alguns pontos: primeiro, a situação em que se encontra Pinóquio é de risco mortal e ela surge como possibilidade de socorro, de salvamento. Contudo, frustrando a expectativa do boneco e também a dos leitores, a ajuda é negada, a cintilação branca da casa se nega como luz, como hospitalidade redentora. Sob a aparência de uma menina (e não de uma mulher), a Fada se declara ela

própria como morta. Inusitada condição que seus traços descritos reiteram: seu branco é lívido como o de uma boneca de cera; tem os olhos fechados pelo sono da morte; as mãos em cruz indicam a proximidade de um sepultamento (ou será a casa branca já o seu túmulo, forma provisória e coletiva do mausoléu que abriga os mortos?); os lábios não se movem, têm a rigidez do cadáver, e entretanto ela fala, sua voz parece estar separada do corpo. E a menina fantasma fala para revelar sua condição de morta-viva, de suspensa na própria morte: ela, já morta, espera ainda a morte, espera o caixão que irá levá-la; na esperança, talvez, de que o ritual da morte tenha termo, se conclua. Mas a iminência da morte não se resolve aí: ao negar o pedido de ajuda de Pinóquio, a Fada faz a morte se abater sobre ele. Assim que a Fada se retira, os assassinos colocam as mãos em Pinóquio e acabam por enforcá-lo num grande carvalho. O episódio que nos apresenta um Pinóquio morto e enforcado não finaliza, contudo, suas aventuras (embora tenha sido esse o final da primeira versão da estória, quando originalmente publicada num semanário dirigido às crianças). É somente após essa primeira e aparente morte da marionete que a Menina morta, penalizada, irá revelar a sua condição de ser encantado, isto é, de Fada. “Convém saber que a Menina de cabelos azuis nada mais era, afinal de contas, que uma bondosa fada que há mais de mil anos vivia nas proximidades do bosque.” (p.64) – diz o narrador, não sem uma boa dose de ironia, uma vez que essa informação tão “conveniente” só nos é dada após a morte agônica de Pinóquio, assim como a “bondade” da Fada é contrariada pela sua recusa inicial em ajudá-lo. O que se segue ao aparecimento oficial da Fada é que ela retira o boneco do carvalho, acionando todo um séquito de animais encantados, leva-o para casa e convoca três “médicos” – “um Corvo, uma Coruja e um Grilo-Falante” – para saber se o “infeliz está vivo ou morto” (p.66). A cena é saborosamente burlesca: a fala dos doutores é esvaziada de toda autoridade, recaindo na tautologia, o que denuncia sua impotência diante da morte (que, afinal, ainda se apresenta como a questão central desses

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capítulos). Mas se a morte de Pinóquio é, de fato, parte dessa farsa, a ameaça de outra morte, real, não se retira por completo. A Fada, após a saída dos médicos, constata que Pinóquio está com “uma febre altíssima” e, numa negociação paciente, digna de uma “boa mãe”, tenta convencê-lo a tomar o remédio, que, evidentemente o boneco, cheio de caprichos, recusa.

  • Meu menino, você vai se arrepender...
  • Pouco se me dá...
  • Sua doença é grave...
  • Pouco se me dá...
  • A febre vai levá-lo em poucas horas para o outro mundo...
  • Pouco se me dá...
  • Você não tem medo da morte?
  • Medo nenhum!... Prefiro morrer a tomar esse remédio ruim. Nesse momento, a porta do quarto abriu-se e entraram quatro coelhos pretos como nanquim, que traziam nos ombros um pequeno caixão.
  • O que vocês querem de mim? – gritou Pinóquio, erguendo-se assustado e sentado na cama.
  • Viemos buscá-lo – respondeu o coelho maior.
  • Me buscar?... Mas eu ainda não estou morto!...
  • Ainda não, mas sobram-lhe poucos minutos de vida, já que você se recusou a tomar o remédio que teria acabado com a febre. (p.70)

Essa cena, de sabor pedagógico, mas digna de um pesadelo, nos mostra Pinóquio presenciando sua própria morte, ao mesmo tempo em que nos dá, mais uma vez, o tom, o estilo dessa Fada. Se, a cada capítulo do livro de Collodi, percebemos que Pinóquio está sempre em confronto com a morte, a Fada ocupa nessa relação um lugar de grande ambiguidade: ela irá propor objetivamente a Pinóquio um laço familiar (“se você quiser ficar comigo, será meu irmãozinho, e eu a sua boa irmãzinha”, p.74),

Mas a fraternidade com a Fada é totalmente de destino, e se tratará não tanto de morte comum, e sim de morte alternativa, de um morrer-se recíproco. A Fada vem de um além, dos “mil anos” vividos perto da selva, mas pelo viés da morte tornou-se irmã de

Pinóquio. Apesar de sua potência e de sua mágica eternidade, ela também é uma alucinação de Pinóquio, dominada pelo terror de ser abandonada, perdida e obrigada, por sua vez, a correr o risco de perder, de abandonar. (MANGANELLI, 2002, p.98)

Longe de ser uma relação de igualdade harmônica – que é inclusive inviabilizada pelas muitas peripécias e transgressões do boneco – , trata-se de uma paridade pela diferença: assim como a Fada, Pinóquio também passa por uma série de metamorfoses, desde aquela que transforma o pedaço de madeira em uma marionete (passando por mutilações – a queima dos pés

  • , alterações bizarras – o crescimento exagerado do nariz – , funções animais – o trabalho forçado como um cão de guarda – , migrações de reino – a transformação em burro), até aquela que o levará a tornar-se “menino de verdade”. Seus corpos instáveis e mutantes sugerem seres em busca não exatamente de uma identidade perene, mas de possibilidades de relação, e a morte – jamais final – é, mas do que nunca, uma das formas privilegiadas de metamorfose, que relança as peças do jogo, reinventa suas regras, tanto que a Fada sofrerá uma segunda morte, quando Pinóquio retorna à casinha branca para encontrá-la.

Mas a casinha branca não estava mais ali. Havia, em vez disso, uma pequena pedra de mármore onde se liam em letras de imprensa estas dolorosas palavras: AQUI JAZ A MENINA DOS CABELOS AZUIS MORTA DE DOR POR TER SIDO ABANDONADA PELO SEU IRMÃOZINHO PINÓQUIO (COLLODI, 2002, p.95-6)

Se a primeira morte da Menina nos possibilitou em seguida o conhecimento de sua “condição” de fada, essa segunda morte libertará seu corpo para outras metamorfoses: Pinóquio a reencontrará sempre em seu caminho, com aparências e idades diversas, humana ou animal (ela surge até mesmo como uma cabra), inconstante, polimorfa, esquiva, num jogo de ausência e presença, socorro e

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fadas também transmite a força virgem de um mundo irredutivelmente ‘outro’, que a literatura não consegue domar até o fundo” (CALVINO, 2010, p.142).

Referências

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco,

CALVINO, Italo. Posfácio a COLLODI, Carlo. As aventuras de Pinóquio : história de um boneco. Trad. Ivo Barroso. 2.ed. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p.345-353.

CALVINO, Italo. Coleção de areia. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p.140-144: A geografia das fadas.

CANTON, Katia. E o príncipe dançou : o conto de fadas, da tradição oral à dança contemporânea. Trad. Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Ática, 1994.

COLLODI, Carlo. As aventuras de Pinóquio : história de uma marionete. Trad. Marina Colasanti. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002.

DISNEY, Walt. Pinóquio70º Aniversário. Edição Platinum. Manaus: Sonopress, 2009. 2 DVDs (189 min.)

HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

MANGANELLI, Giorgio. Pinóquio : um livro paralelo. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

MANGUEL, Alberto. À mesa com o Chapeleiro Maluco : ensaios sobre corvos e escrivaninhas. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.38- 50: Como Pinóquio aprendeu a ler.

Recebido em: 19 de abril de 2012. Aceito em: 01 de junho de 2012.

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