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Guias e Dicas
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Disciplinas Propedêuticas no Ensino de Direito: Resgate da Formação Humanista e Reflexiva., Manuais, Projetos, Pesquisas de Direito

Este artigo discute a importância e necessidade das disciplinas propedêuticas no ensino de direito, especialmente no contexto das novas diretrizes curriculares brasileiras. Ele argumenta que essas disciplinas, que incluem estudos humanísticos e reflexivos, são essenciais para a formação geral e crítica dos bacharéis de direito. O artigo também analisa os modelos de ensino jurídico anteriores e os riscos que vem enfrentando com o ressurgimento do modelo do profissional tecnicista.

O que você vai aprender

  • Por que as disciplinas propedêuticas são importantes na formação de bacharéis de direito?
  • Quais são os riscos do ressurgimento do modelo do profissional tecnicista no ensino de direito?
  • Quais são as disciplinas propedêuticas no ensino de direito brasileiro?
  • Como as novas diretrizes curriculares brasileiras afetam as disciplinas propedêuticas no ensino de direito?
  • Qual é a importância da formação humanista e reflexiva em bacharéis de direito?

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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“Apesar das ruínas e da morte
Onde sempre acabou cada ilusão
A força dos meus sonhos é tão forte
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos estão vazias”.
D. Sophia de Mello Breyner Andresen
Ao analisarmos o mundo em que
vivemos, podemos contemplar várias
conquistas civilizacionais: a democracia, o
A FUNÇÃO E A IMPORTÂNCIA DAS DISCIPLINAS PROPEDÊUTICAS NA
ESTRUTURA CURRICULAR DOS CURSOS DE DIREITO NO BRASIL*
Abili Lázaro Castro de Lima**
RESUMO: O artigo tem por escopo demonstrar a importância e a necessidade das disciplinas
propedêuticas (as quais tem por objetivo a formação geral, humanística, crítica e reflexiva),
no eixo de formação fundamental dos bacharéis de direito, consoante as novas diretrizes
curriculares dos cursos de direito no Brasil, introduzidas pela Resolução n.º 9 de 24 de
setembro de 2004, do Conselho Nacional de Educação.
sufrágio universal, o exercício da liberdade,
a conquista dos direitos em várias dimensões.
Todavia, não percebermos as lutas que tiveram
que ser travadas contra o autoritarismo, o
despotismo e a opressão, bem como os
sacrifícios e as condições adversas que as
pessoas no passado tiveram que superar para
que hoje possamos usufruir de tais conquistas.
Além disso, não nos damos conta que a
manutenção de tais conquistas depende de
nossa atuação em prol da sua defesa. Nada
garante que possamos vivenciar, a qualquer
momento, um retrocesso civilizatório, tal
como aconteceu nas nefastas experiências do
totalitarismo.1 Portanto, é necessário que
* Dedico este artigo aos estudantes do curso de
direito da Universidade Federal do Paraná, os quais
são a razão de ser da minha cátedra.
** Mestre e Doutor em Direito pela Universidade
Federal do Paraná. Professor da disciplina Direito e
Sociedade no curso de graduação em direito e de
Sociologia do Direito no programa de pós-graduação
em direito da Universidade Federal do Paraná.
Avaliador do INEP.
1 Nesta hipótese, podemos dizer, parafraseando
Marx na obra “O 18 Brumário”, que teria vindo
pela primeira vez com uma tragédia, depois como
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“Apesar das ruínas e da morte Onde sempre acabou cada ilusão A força dos meus sonhos é tão forte Que de tudo renasce a exaltação E nunca as minhas mãos estão vazias”. D. Sophia de Mello Breyner Andresen

Ao analisarmos o mundo em que vivemos, podemos contemplar várias conquistas civilizacionais: a democracia, o

A FUNÇÃO E A IMPORTÂNCIA DAS DISCIPLINAS PROPEDÊUTICAS NA

ESTRUTURA CURRICULAR DOS CURSOS DE DIREITO NO BRASIL*

Abili Lázaro Castro de Lima**

RESUMO: O artigo tem por escopo demonstrar a importância e a necessidade das disciplinas propedêuticas (as quais tem por objetivo a formação geral, humanística, crítica e reflexiva), no eixo de formação fundamental dos bacharéis de direito, consoante as novas diretrizes curriculares dos cursos de direito no Brasil, introduzidas pela Resolução n.º 9 de 24 de setembro de 2004, do Conselho Nacional de Educação.

sufrágio universal, o exercício da liberdade, a conquista dos direitos em várias dimensões. Todavia, não percebermos as lutas que tiveram que ser travadas contra o autoritarismo, o despotismo e a opressão, bem como os sacrifícios e as condições adversas que as pessoas no passado tiveram que superar para que hoje possamos usufruir de tais conquistas. Além disso, não nos damos conta que a manutenção de tais conquistas depende de nossa atuação em prol da sua defesa. Nada garante que possamos vivenciar, a qualquer momento, um retrocesso civilizatório, tal como aconteceu nas nefastas experiências do totalitarismo. 1 Portanto, é necessário que

  • Dedico este artigo aos estudantes do curso de direito da Universidade Federal do Paraná, os quais são a razão de ser da minha cátedra. ** Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor da disciplina Direito e Sociedade no curso de graduação em direito e de Sociologia do Direito no programa de pós-graduação em direito da Universidade Federal do Paraná. Avaliador do INEP.

(^1) Nesta hipótese, podemos dizer, parafraseando Marx na obra “O 18 Brumário”, que teria vindo pela primeira vez com uma tragédia, depois como

tenhamos consciência que tais conquistas se encontram num equilíbrio precário e que devemos estar atentos com os perigos que rondam nosso cotidiano. Na década de noventa, no âmbito do ensino jurídico no Brasil, também podemos encontrar manifestações de conquistas importantes para o seu aprimoramento, por meio da construção de um modelo de ensino jurídico que conjuga a formação humanista, reflexiva e crítica com a formação profissionalizante e prática, superando o modelo ultrapassado do profissional tecnicista, que vigorou nas décadas de setenta e oitenta. O novo modelo encontra respaldo na LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n.º 9.394/96), nas diretrizes curriculares editadas pelo Ministério da Educação, bem como em várias obras editadas, dentre elas destacam-se as editadas pela Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.^2 Para que seja possível avaliar a importante conquista do novo modelo e os

perigos que ele vem se defrontando, os quais constituem um retrocesso histórico, procederemos uma análise dos modelos de ensino jurídico que o antecederam. Tais ameaças manifestam-se por meio de propostas que procuram resgatar o modelo do profissional tecnicista, as quais priorizam a especialização dos bacharéis de direito nas disciplinas profissionalizantes (também denominadas de dogmáticas), bem como propõem um caráter instrumental ao ensino jurídico, o qual deveria estar voltado para a formação de advogados e para capacitação dos bacharéis para o Exame da OAB , em detrimento das disciplinas propedêuticas, que proporcionam uma formação humanista, reflexiva e crítica aos bacharéis. A professora Eliane Botelho Junqueira realiza um interessante estudo 3 acerca dos modelos dos cursos jurídicos no Brasil, identificando o modelo do bacharel humanista e do profissional tecnicista. O primeiro modelo nasce com o surgimento dos cursos de ciências jurídicas e sociais, pela lei de 11/08/1827, em Olinda e São Paulo. Os cursos tinham por objetivo proporcionar uma formação humanista e generalista aos bacharéis de direito, voltada a capacitá-los para o desempenho das atividades político-administrativas em substituição à burocracia portuguesa, visando a construção do Estado nacional, cuja independência havia sido recentemente conquistada. 4 Jayme Paviani e José C. Pozenato resgatam o papel dos cursos jurídicos para

(^3) JUNQUEIRA , E. B. A Sociologia Jurídica no Brasil: introdução ao debate atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1993. (^4) JUNQUEIRA, E. B. Op. cit., p. 16-22.

uma farsa, nos seguintes termos: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. In: O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. 7.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 21. (^2) OAB ENSINO JURÍDICO : Diagnóstico, Perspectivas e Propostas, 2.ed. Conselho Federal da OAB, Brasília, 1996; OAB ENSINO JURÍDICO: Novas Diretrizes Curriculares, Conselho Federal da OAB, Brasília, 1996; OAB ENSINO JURÍDICO: Parâmetros para Elevação de Qualidade e Avaliação, Conselho Federal da OAB , Brasília, 1997; ENSINO JURÍDICO OAB: 170 anos de cursos jurídicos no Brasil, Conselho Federal da OAB, Brasília, 1997.

A este projeto de formação de juristas técnicos aptos a atenderem às necessidades derivadas do processo de desenvolvimento, somou-se a reformulação dos cursos de direito em 1972, na esteira da reforma universitária implantada em 1968.^8 As conseqüências negativas do modelo do profissional tecnicista foram evidenciadas por José Eduardo Faria e Celso Fernandes Campilongo, ao analisarem a Reforma Universitária de 1968:

[...], na lógica dos autores dessa reforma, às instituições universitárias caberia um papel eminentemente pragmático e utilitarista: ou seja, elas deveriam concentrar sua atenção na formação de quadros técnicos e gerenciais necessários à implementação do tipo de desenvolvimento econômico então vigente. Aos idealizadores dessa reforma apenas interessava, em nome dos objetivos “maiores” do regime burocrático-militar pós-64, substituir o conceito “humanista” de formação cultural por uma progressiva racionalização e especialização do ensino superior, sob os requisitos da eficácia econômica e do avanço tecnológico. Precedida por um espúrio processo de afastamento das lideranças políticas e intelectuais, tal reforma acabou sendo manipulada pelos setores mais conservadores do establisment acadêmico. Estes setores, agindo em consonância com os interesses do regime, procuram integrar as ciências básicas a uma educação exclusivamente profissionalizante, valendo-se dessa estratégia mais como instrumento de controle político- ideológico da vida acadêmica do que propriamente de renovação do ensino e da pesquisa. A educação a nível universitário converteu-se, então, numa banal e descompromissada atividade de informações genéricas e/ou profissionalizantes – com os alunos sem saber ao certo o que fazer diante de um conhecimento transmitido de maneira desarticulada e pouco sistemática, sem rigor metodológico, sem

reflexão crítica e sem estímulo às investigações originais. A ênfase à “rentabilidade” educacional anulou por completo a função formativa da Universidade brasileira, mediante uma crescente marginalização das atividades criativas e críticas. Como decorrência, as estruturas universitárias se verticalizaram, em detrimento da autonomia acadêmica e da flexibilidade horizontal de projetos interdisciplinares, ao mesmo tempo em que os corpos docentes se dispersaram entre departamentos estanques e fechados em sua própria rotina burocrática. Ao voltar-se somente à produção de grandes contingentes de diplomados, dos quais a maioria absoluta destacava-se pela discutível qualidade de sua formação teórica e técnica, a Universidade brasileira progressivamente deixou-se transformar em simples agência cartorial transmissora de idéias pré-concebidas, incapaz de oferecer ao aluno respostas satisfatórias ao entendimento do meio ambiente e de preparação em termos de qualificação profissional. Esse processo de abastardamento do ensino superior tornou-se, no decorrer do regime pós-64, cada vez mais problemático, disfuncional e desagregador. [...].^9 Na esteira das lições anteriormente reproduzidas, Paviani e Pozenato reforçam os efeitos da formação profissionalizante em detrimento da formação humanística, reflexiva e crítica, sob os auspícios da Reforma Universitária de 1968: [...] Numa perspectiva mais ampla, porém, constata-se que a Universidade brasileira apenas diversificou e multiplicou as carreiras oferecidas – embora não tanto quanto o necessário, diga-se de passagem – mas permaneceu basicamente voltada para a formação profissional. A aparente modernização de fato foi a conservação da idéia de Universidade como mera agência de ensino.

(^8) JUNQUEIRA, E. B. Op. cit., p. 22-23.

(^9) FARIA, J. E. e CAMPILONGO, C. F. A Sociologia Jurídica no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris ed., 1991, p. 10-11.

Some-se a isso que, como as novas profissões criadas visam o desempenho de funções técnicas, a formação humana tende a ocupar sempre menos lugar na educação superior brasileira. Essa formação é no entanto absolutamente necessária para que o profissional se torne capaz de colocar a técnica a serviço dos homens, sem risco de usá-la contra os homens. Numa Universidade tecnológica, não cabe o pensamento crítico e portanto a reflexão globalizante sobre o homem e a sociedade. Pensamento e reflexão tão vitais para o desenvolvimento como a própria tecnologia. 10 Ao verificarmos as mazelas causadas pela concepção profissionalizante e tecnicista implementada pela Reforma Universitária de 1968, já podemos antever os perigos que representam as propostas que pretendem ressuscitar o referido modelo. Todavia, antes de realizarmos uma análise dos seus efeitos negativos, levando-se em consideração a sua hipotética implementação no contexto contemporâneo, é importante discorremos sobre a nova concepção de ensino jurídico implementada pela LDB e pelas diretrizes curriculares dos cursos de direito definidas pelo Ministério da Educação a partir de 1994, a qual colocou a última pá de cal sobre o modelo do profissional tecnicista. O advento da LDB em 1994 inaugurou um novo panorama no ensino no Brasil, ao fortalecer a descentralização administrativa e acadêmica, possibilitando uma flexibilização curricular em contrapartida aos currículos mínimos herdados da reforma curricular dos cursos jurídicos ocorrida nos anos setenta. O ensino superior tem por finalidade a formação do pensamento reflexivo e a

formação de profissionais, conforme se depreende dos incisos I e II, do art. 43, da LDB.^11 Sob a inspiração da LDB , o Ministério da Educação editou a Portaria n.º 1.886/ que inseriu a flexibilização curricular no contexto dos cursos de direito, por meio das disciplinas optativas, áreas de habilitação e atividades complementares. Sem descurar das disciplinas profissionalizantes, enfatizou também o ensino reflexivo ao estabelecer a obrigatoriedade dos currículos contemplarem matérias fundamentais, tais como Filosofia (geral e jurídica); Ética (geral e profissional), Sociologia (geral e jurídica), Economia e Ciência Política (com Teoria do Estado). Acerca da interdisciplinariedade prevê que “as demais matérias e novos direitos serão incluídos nas disciplinas em que se desdobrar o currículo pleno de cada curso, de acordo com as peculiaridades e com observância de interdisciplinariedade” (art. 6.º, parágrafo único). No que concerne à importância das disciplinas fundamentais e sua articulação com a interdisciplinariedade, são precípuos os ensinamentos de Paulo Luiz Neto Lôbo: A interdisciplinariedade, na dimensão externa ao saber dogmático jurídico, enlaça-se com matérias que contribuem para a formação do profissional de Direito, notadamente estimuladoras da reflexão crítica e da atuação político-institucional, que a sociedade cada vez mais dele reclama. Assim, a interessante

(^11) Art. 43. A educação superior tem por finalidade: I – estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e pensamento reflexivo; II – formar diplomados nas diferentes áreas do conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar (^10) PAVIANI, J. e POZENATO, J. C. Op. cit., p. 104. na sua formação contínua;”

capacitar os estudantes para serem aprovados nos exames para ingresso na OAB. Alegam ainda que a carga horária dedicada às disciplinas propedêuticas que possibilitam a formação geral, humanística, reflexiva e crítica constituem um entrave para uma maior verticalização do ensino das disciplinas profissionalizantes, obstando um melhor desempenho dos bacharéis no exercício da advocacia e no exame da OAB. Propõem que o ensino do curso de direito enfatize uma especialização nas disciplinas profissionalizantes, em detrimento das disciplinas propedêuticas, de forma a eliminá-las da estrutura curricular ou reduzir significativamente as suas cargas horárias caso a primeira hipótese não seja possível. Entendemos que tal proposta pretende ressuscitar o obsoleto modelo de ensino tecnicista que priorizava a formação profissionalizante, cujos efeitos nocivos já tivemos oportunidade de analisar. Em que pese tal modelo estar superado, é importante trazermos algumas contribuições para o debate, uma vez que os defensores do seu resgate colocam em perigo as conquistas históricas do novo modelo representa. Vamos analisar primeiramente a ênfase à especialização, ou seja, o argumento que o curso de direito deve prioritariamente formar advogados. Obviamente, um curso de direito tem por missão capacitar seus alunos para o exercício profissional. Todavia, o curso de direito não pode restringir sua formação à advocacia, uma vez que há, por óbvio, outras profissões jurídicas cuja vocação os alunos almejam exercer, as quais o curso de direito também deve possibilitar a formação.

Cláudio de Moura e Castro 13 produziu um artigo bastante importante acerca da compreensão da especialização na atualidade, cujas lições são significativas para elucidar tal aspecto: Bernard Shaw disse que um especialista é uma pessoa que sabe cada vez mais sobre cada vez menos. A frase é engraçadinha, porém errada. Cadê o especialista que só sabe de um assunto? Certamente, não está nos empregos mais cobiçados. [...] [...] Portanto, o que conta não é o conhecimento especializado – inegavelmente necessário na pesquisa e em muitas outras áreas –, mas a combinação deste com uma série de competências generalizadas. Ou seja, todo especialista de primeira linha é também um excelente generalista. [...] [...] É interessante notar que as grandes multinacionais contratam “especialistas” para posições subalternas e, para boa parte das posições mais elevadas, pessoas com a melhor educação disponível, qualquer que seja o diploma. A profissionalização mais duradoura e valiosa tende a vir mais do lado genérico do que do especializado. Entender bem o que leu, escrever claro e comunicar-se, inclusive em outras línguas, são os conhecimentos profissionais mais valiosos. Trabalhar em grupo e usar números para resolver problemas, pela mesma forma, é profissionalização. E quem suou a camisa escrevendo ensaios sobre existencialismo, decifrando Camões ou Shakespeare pode estar mais bem preparado para uma empresa moderna do que quem aprendeu meia dúzia de técnicas, mas não sabe escrever. A lição é muito clara: o profissional de primeira linha pode ou não ser um especialista, dependendo da área. Pode ou não ter a necessidade de conhecer as últimas teorias da moda. Mas não pode prescindir dessa “profissionalização genérica”, sem a qual será

(^13) Economista, Professor, Mestre pela Universidade de Yale, PhD em Economia pela Universidade de Vanderbilt, Ex-Diretor Geral da CAPES.

um idiota, cuspindo regras, princípios e números que não refletem um julgamento maduro do problema. Portanto, lembremo-nos: especialista não é quem sabe de um só assunto, e ser profissional não é apenas conhecer técnicas específicas. O profissionalismo mais universal é saber pensar, interpretar a regra e conviver com a exceção. 14 Os problemas decorrentes da especialização também são objeto dos estudos de Edgar Morin, sobretudo no contexto do mundo globalizado, demostrando os equívocos de se conceber o estudo do direito desatrelado dos conteúdos desenvolvidos nas disciplinas propedêuticas:

De fato, a hiperespecialização impede tanto a percepção do global (que ela fragmenta em parcelas), quanto do essencial (que ela dissolve). Impede até mesmo de tratar corretamente os problemas particulares, que só podem ser propostos e pensados em seu contexto. Entretanto, os problemas essenciais nunca são parcelados e os problemas globais são cada vez mais essenciais. Enquanto a cultura geral comportava a incitação à busca da contextualização de qualquer informação ou idéia, a cultura científica e técnica disciplinar parcela, desune e compartimenta os saberes, tornando cada vez mais difícil a sua contextualização. [...] O conhecimento especializado é uma forma particular de abstração. A especialização “abs- trai”, em outras palavras, extrai um objeto de seu contexto e de seu conjunto, rejeita os laços e as intercomunicações com seu meio, introduz o objeto no setor conceptual abstrato que é o da disciplina compartimentada, cujas fronteiras fragmentam arbitrariamente a sistemicidade (relação da parte com o todo) e a multidimensionalidade dos fenômenos; conduz à abstração matemática que opera de si própria uma cisão com o concreto, privilegiando tudo o que é calculável e passível de ser formalizado.

Assim, a economia, por exemplo, que é a ciência social matematicamente mais avançada, é também a ciência social e humanamente mais atrasada já que se abstraiu das condições sociais, históricas, políticas, ecológicas inseparáveis das atividades econômicas. É por isso que seus peritos são cada vez mais incapazes de interpretar as causas e as conseqüências das perturbações monetárias e das bolsas, de prever e de predizer o curso econômico, mesmo em curto prazo. Por conseguinte, o erro econômico torna-se a conseqüência primeira da ciência econômica.^15 Pozenato também refuta a proposta do ensino profissionalizante no âmbito universitário, conforme se depreende dos seus ensinamentos: Um erro comum a muitos que freqüentam cursos universitários é o de pretender que a Universidade deva se preocupar exclusivamente com a habilitação profissional. Assim o candidato ao magistério quer aprender aquilo que vai utilizar na profissão futura, o candidato à administração quer conhecer as técnicas de administração que lhe são úteis, e assim por diante. Ocorre, porém, que em qualquer profissão há o perigo da cristalização. Um engenheiro altamente capacitado para o momento presente, se não souber progredir será amanhã um profissional defasado. Mais do que o treinamento profissional, é sobretudo a atitude investigadora o elemento mais importante do ensino superior. Na Universidade o aluno deverá aprender a investigar, saber qual é o significado e quais são as exigências da investigação para que possa, com esse impulso inicial, permanecer numa atitude de progresso científico. 16 A partir de tais reflexões, fica evidente que o argumento da especialização dos bacharéis em direito, em decorrência do

(^14) CASTRO, C. M. Crônicas de uma educação vacilante. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. p. 169-171.

(^15) MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000. p. 41-42. (^16) PAVIANI, J. e POZENATO, J. C. Op. cit., p. 43.

Estudos e Pesquisas Institucionais Anísio Teixeira), que é o órgão encarregado pelo Ministério da Educação para aferir as condições de oferta dos cursos de graduação. Porém, nesta hipótese, não se pode deixar de registrar que o maior prejuízo seria causado aos bacharéis de direito, decorrente da lacuna existente na sua formação humanística, reflexiva e crítica. Outro aspecto a ser ponderado, trata-se de um equívoco presente nas premissas do argumento de que as disciplinas propedêuticas constituem óbice para aprofundar a formação profissional. Nada impede que o curso de direito desenvolva, concomitantemente, uma consistente formação humanística, reflexiva e crítica e uma sólida formação profissionalizante. Elas não são incompatíveis ou excludentes, pelo contrário, são complementares e trazem grandes contribuições para a missão formativa (não se restringindo a um ensino meramente informativo) que deve nortear os cursos superiores. Argumenta-se ainda que os conteúdos das disciplinas propedêuticas não são exigidos no Exame da OAB, propondo a redução das suas cargas horárias para enfatizar o ensino voltado para a preparação para o exame. Assevera-se ainda que os baixos índices de aprovação no Exame exigem um reforço na carga horária das disciplinas profissionalizantes em detrimento das propedêuticas. Porém, não há qualquer evidência de que as disciplinas propedêuticas são responsáveis pelo insucesso dos bacharéis em direito no Exame da OAB. Pelo contrário, a reflexão sobre o desempenho no Exame da OAB deveria ser colocada a partir dos seguintes questionamentos: Será que existe um nexo de causalidade entre os conteúdos

desenvolvidos nas disciplinas propedêuticas e o baixo desempenho dos bacharéis no Exame da OAB? Será que se houvesse uma redução da carga horária das disciplinas propedêuticas não haveria um desempenho inferior do que os alunos vem atualmente apresentando? Será que os maus resultados apresentados no Exame da OAB não decorrem da peculiaridade de que as disciplinas profissionalizantes não estarem sendo ministradas com a eficiência com que deveriam? Será que os conteúdos programáticos das disciplinas profissionalizantes estão sendo desenvolvidos na sua integralidade? Será que a vertificalização do estudo das disciplinas profissionalizantes não poderia ser realizada utilizando-se os horários vagos existentes nas grades horárias ao invés de reduzir-se a carga horária das disciplinas propedêuticas? Os defensores da implementação do ensino baseado no modelo meramente profissionalizante-tecnicista no curso de direito alegam que os conteúdos desenvolvidos nas disciplinas propedêuticas (por exemplo, Filosofia ou Sociologia) não são utilizados pelos advogados para elaborarem seus arrazoados jurídicos e que o curso de direito não se presta a formar filósofos ou sociólogos, e que tal particularidade as torna prescindíveis na estrutura curricular. Para responder a esta alegação, as lições de Marilena Chaui são por si só eloqüentes, dispensando maiores comentários: [...] Essa pergunta, “Para que Filosofia”, tem sua razão de ser. Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade imediata. Por isso, ninguém pergunta para que as

ciências, pois todo mundo imagina ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação científica da realidade. [...] Parece, porém, que o senso comum não enxerga algo que os cientistas sabem muito bem. As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graças a procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade, através de instrumentos e objetos técnicos; pretendem fazer progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os. Ora, todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensamento, na tecnologia como aplicação prática de teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados. Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é ciência, são questões filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a Filosofia quem as formula e busca respostas para elas. Assim, o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o trabalho da Filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientistas e filósofos sabem disso, o senso comum continua afirmando que a Filosofia não serve para nada. [...] O primeiro ensinamento filosófico é perguntar: O que é útil? Para que e para quem algo é útil? O que é o inútil? Por que e para quem algo é inútil? O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama, riqueza. Julga o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações, identificando utilidade e a famosa expressão “levar vantagem em tudo”. Desse ponto de vista, a Filosofia é inteiramente inútil e defende o direito de ser inútil. Não poderíamos, porém, definir o útil de outra maneira? [...] Qual seria, então, a utilidade da Filosofia? Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes a aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da

cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes. 17 Para refutar ainda este ponto de vista, são precípuos os ensinamentos de Pierre Bourdieu, constantes na aula inaugural proferida no Collège de France em 23.04.85: [...] Se os que têm algo a ver com a ordem estabelecida, seja lá o que for, não gostam nem um pouco da sociologia, é porque ela introduz uma liberdade em relação à adesão primária que faz com que a própria conformidade assuma um ar de heresia ou de ironia.^18 A ilação lógica a que se chega é que o antagonismo instaurado entre as disciplinas propedêuticas e profissionalizantes é uma falácia, pois como vimos anteriormente, todas elas são importantes e todas contribuem para a formação dos bacharéis de direito. Além disso, a formação humanista, reflexiva e crítica não é apenas uma meta das disciplinas propedêuticas, uma vez que todas as disciplinas da estrutura curricular são responsáveis por tal formação, assim como constitui missão das disciplinas propedêuticas contextualizarem seus conteúdos com situações concretas da realidade social e jurídica. Como se pode perceber, os defensores do modelo profissionalizante- tecnicista adotam

(^17) CHAUI, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994. p. 13;18. (^18) BOURDIEU, P. Lições de Aula. 2.ed. São Paulo: Ática, 2003. p. 60.

à reflexão da responsabilidade 21 do corpo docente e discente dos cursos de direito acerca da função e da importância das disciplinas propedêuticas na estrutura curricular nos cursos de direito:

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta no momento de perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é um mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como o Salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. 22

REFERÊNCIAS:

BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. BOURDIEU, P. Lições de Aula. 2.ed. São Paulo: Ática, 2003. CASTRO, C. M. Crônicas de uma educação vacilante. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. CHAUI, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994. FARIA, J. E. e CAMPILONGO, C. F. A Sociologia Jurídica no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris ed., 1991 JUNQUEIRA, E. B. A Sociologia Jurídica no Brasil: introdução ao debate atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1993.

publicada no Brasil sob o título Lições de Aula. 2.ed. São Paulo: Ática, 2003. p. 13, 14; 25: “[...] Sem dúvida, o sociólogo não é mais o árbitro imparcial ou o espectador divino, o único a dizer onde está a verdade – ou, para falar em termos do senso comum, que tem razão –, e isso leva a identificar a objetividade a uma distribuição eqüitativa dos erros e das razões. Mas o sociólogo é aquele que se esforça por dizer a verdade das lutas que têm como objeto – entre outras coisas – a verdade. Por exemplo: em lugar de estabelecer uma divisão entre aqueles que afirmam e aqueles que negam a existência de uma classe, de uma região ou de uma nação, trabalha no sentido de estabelecer a lógica específica dessa luta, e de determinar, através de uma análise do estado da relação de forças e dos mecanismos de sua transformação, as chances dos diferentes campos. Cabe-lhe construir um modelo verdadeiro das lutas pela imposição da representação verdadeira da realidade, que contribuem para fazer a realidade tal como se apresenta ao registro” [...] “Se há uma verdade, é que a verdade é um resultado de lutas; mas essa luta só pode conduzir à verdade quando obedece a uma lógica tal que não se pode triunfar sobre os adversários sem empregar contra eles as armas da ciência, contribuindo assim para o progresso da verdade científica”. (^21) Utilizamos o termo “responsabilidade” no sentido concebido por Max Weber no seu estudo sobre a ética das decisões apresentado na conferência “A Política como Vocação” proferida em 1919. Weber identifica dois tipos de ética: a da convicção e a da responsabilidade, as quais tratam-se de etapas de um processo decisório. A ética da convicção é também conhecida como a ética do “tudo ou nada”, na qual busca-se atingir um objetivo, sem que o agente considere as conseqüências dos seus atos. A ética da responsabilidade é aquela na qual o agente leva em consideração as conseqüências da decisão, onde a ciência traz a sua contribuição, sendo que a decisão cabe ao agente defini-la. Sobre esta temática, sugerimos a leitura da referida conferência na obra Ensaios de Sociologia. 5.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982. p. 97-153.

(^22) BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 3.ed. São Paulo: Brasiliense,

  1. p. 224-225.

LÔBO, P. L. Neto. O novo conteúdo mínimo dos cursos jurídico. In: OAB ENSINO JURÍDICO: Novas Diretrizes Curriculares, Conselho Federal da OAB, Brasília, 1996, p. 10-11.

MARX, K. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. 7.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000. PAVIANI, J. e POZENATO, J. C. A Universidade em debate. Caxias do Sul: EDUCS, 1980. WEBER, M. Ensaios de Sociologia. 5.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.