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A Filosofia da Ciência e suas Teorias Fundamentais, Resumos de Filosofia

Uma análise crítica das principais teorias da filosofia da ciência, com foco nas abordagens de karl popper e thomas kuhn. Ele discute questões fundamentais, como a relação entre história interna e externa da ciência, a crítica à noção de indução, o papel da teoria na observação e o princípio de verificação. O texto destaca os pontos de divergência e convergência entre as teorias de popper e kuhn, explorando conceitos-chave como a incomensurabilidade de teorias, a ciência normal e as anomalias nas teorias científicas. Além disso, aborda a importância do papel da teoria na construção da experiência científica e a influência de instrumentos e tecnologias nesse processo. Ao longo da discussão, o documento busca fornecer uma visão abrangente e aprofundada sobre os fundamentos da metodologia científica, contribuindo para uma melhor compreensão da natureza do conhecimento científico.

Tipologia: Resumos

2024

Compartilhado em 27/08/2024

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Paidéia, 2003,12(24), 125-138
UMA REVISÃO /DISCUSSÃO SOBRE A FILOSOFIA DA CIÊNCIA1
Reinaldo Furlan2
FFCLRP - Universidade de São Paulo
RESUMO: O objetivo deste artigo é introduzir e estimular a reflexão sobre a natureza do conhecimento
científico. A intençãoo é dogmática, no sentido de dizer o que é a metodologia científica, mas apresentar
questões que estão na base da discussão de sua fundamentação e que rompem com a aparente certeza do
senso comum sobre a natureza do conhecimento científico: a relação entre história da ciência interna e externa,
a crítica à noção de indução, o papel da teoria na observação, o princípio de verificação. Privilegia-se nessa
apresentação as duas principais teorias que polarizaram as discussões da filosofia da ciência nas últimas
décadas, as teorias de Popper e de Kuhn sobre os fundamentos da metodologia científica.
Palavras-chaves: filosofia da ciência; metodologia científica.
ONE REVISION/DISCUSSION ABOUT THE PHILOSOPHY OF SCIENCE
ABSTRACT: The objective of this paper
is
to stimulate the reflection on the nature of scientific knowledge.
The intention is not dogmatic, in the sense of saying what is scientific methodology, rather to present the
following points that are the basis for the discussion of its foundation and break up with the apparent certainty
of the common sense on the nature of scientific knowledge: (1) the relationship among internal and external
science history, (2) the critic to the induction notion, (3) the role of theory in observation, (4) the principle of
verification. In that presentation it is privileged the two main theories that polarized the discussions of philosophy
of science in the last decades: the theories of Popper and Kuhn on the scientific methodology foundations.
Key-words: philosophy of
science;
scientific methodology
A História da Ciência procura analisar na sua
seqüência os fatos científicos: os contextos das des-
cobertas, as crises teóricas, as substituições e de-
senvolvimento de teorias. É comum serem encontra-
das duas perspectivas contrárias de análise do de-
senvolvimento histórico do conhecimento científico,
uma que corresponde à história interna e outra à ex-
terna. A título de introdução, pode-se dizer que os
adeptos da história interna concebem o desenvolvi-
mento do conhecimento a partir de questões intrínse-
cas à racionalidade científica, e concedem à história
externa apenas o papel de circunstanciá-lo. Pressões
externas à evolução da Ciência, como a alocação de
recursos para áreas de interesses econômicos ou
sociais, podem limitar ou promover a construção do
1 Artigo recebido para publicação em 05/2002; aceito em 10/
2002
2 Endereço para correspondência: Reinaldo Furlan, Departamento
de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Ribeirão Preto, USP, Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre,
Ribeirão Preto, SP. Cep 14040-901, E-mail: reinaldof@ffclrp.usp.br
conhecimento em determinadas áreas, mas este obe-
dece a uma lógica própria que independe desses e de
outros fatores externos a sua racionalidade. Os adep-
tos da história externa, em contrapartida, advogam
que a lógica ou racionalidade científicao apresen-
ta razões suficientes para o desenvolvimento do co-
nhecimento, que em última instância repousa em fa-
tores psicossociais presentes no seu exercício.
Pretende-se mostrar que a História da Ciên-
ciao pode mais ser vista como uma coleção de
práticas e de teorias bem sucedidas e acumulativas,
uma imagem freqüentemente passada pelos manu-
ais,
mas que a ciência está prenhe de questões filo-
sóficas, tanto quanto a reflexão filosófica é banhada
de História, e queo se deve nem reduzir a História
da Ciência à Filosofia - quando se trata de explicitar
o sentido disso que se chama ciência - nem de recu-
sar, em contrapartida, a discussão filosófica de seus
termos. Espera-se que a exposição e discussão de
alguns dos termos freqüentemente associados à prá-
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Paidéia, 2003,12(24), 125-

UMA REVISÃO /DISCUSSÃO SOBRE A FILOSOFIA DA CIÊNCIA^1

Reinaldo Furlan^2 FFCLRP - Universidade de São Paulo

RESUMO: O objetivo deste artigo é introduzir e estimular a reflexão sobre a natureza do conhecimento científico. A intenção não é dogmática, no sentido de dizer o que é a metodologia científica, mas apresentar questões que estão na base da discussão de sua fundamentação e que rompem com a aparente certeza do senso comum sobre a natureza do conhecimento científico: a relação entre história da ciência interna e externa, a crítica à noção de indução, o papel da teoria na observação, o princípio de verificação. Privilegia-se nessa apresentação as duas principais teorias que polarizaram as discussões da filosofia da ciência nas últimas décadas, as teorias de Popper e de Kuhn sobre os fundamentos da metodologia científica.

Palavras-chaves: filosofia da ciência; metodologia científica.

ONE REVISION/DISCUSSION ABOUT THE PHILOSOPHY OF SCIENCE

ABSTRACT: The objective of this paper is to stimulate the reflection on the nature of scientific knowledge. The intention is not dogmatic, in the sense of saying what is scientific methodology, rather to present the following points that are the basis for the discussion of its foundation and break up with the apparent certainty of the common sense on the nature of scientific knowledge: (1) the relationship among internal and external science history, (2) the critic to the induction notion, (3) the role of theory in observation, (4) the principle of verification. In that presentation it is privileged the two main theories that polarized the discussions of philosophy of science in the last decades: the theories of Popper and Kuhn on the scientific methodology foundations.

Key-words: philosophy of science; scientific methodology

A História da Ciência procura analisar na sua seqüência os fatos científicos: os contextos das des- cobertas, as crises teóricas, as substituições e de- senvolvimento de teorias. É comum serem encontra- das duas perspectivas contrárias de análise do de- senvolvimento histórico do conhecimento científico, uma que corresponde à história interna e outra à ex- terna. A título de introdução, pode-se dizer que os adeptos da história interna concebem o desenvolvi- mento do conhecimento a partir de questões intrínse- cas à racionalidade científica, e concedem à história externa apenas o papel de circunstanciá-lo. Pressões externas à evolução da Ciência, como a alocação de recursos para áreas de interesses econômicos ou sociais, podem limitar ou promover a construção do

(^1) Artigo recebido para publicação em 05/2002; aceito em 10/ 2 0 0 2 2 Endereço para correspondência: Reinaldo Furlan, Departamento de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, USP, Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP. Cep 14040-901, E-mail: reinaldof@ffclrp.usp.br

conhecimento em determinadas áreas, mas este obe- dece a uma lógica própria que independe desses e de outros fatores externos a sua racionalidade. Os adep- tos da história externa, em contrapartida, advogam que a lógica ou racionalidade científica não apresen- ta razões suficientes para o desenvolvimento do co- nhecimento, que em última instância repousa em fa- tores psicossociais presentes no seu exercício. Pretende-se mostrar que a História da Ciên- cia não pode mais ser vista como uma coleção de práticas e de teorias bem sucedidas e acumulativas, uma imagem freqüentemente passada pelos manu- ais, mas que a ciência está prenhe de questões filo- sóficas, tanto quanto a reflexão filosófica é banhada de História, e que não se deve nem reduzir a História da Ciência à Filosofia - quando se trata de explicitar o sentido disso que se chama ciência - nem de recu- sar, em contrapartida, a discussão filosófica de seus termos. Espera-se que a exposição e discussão de alguns dos termos freqüentemente associados à prá-

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tica científica possam servir de ilustração e incenti- var a reflexão. O foco estará nas ciências naturais, particu- larmente a física, cujo sucesso histórico fez dela o modelo mais destacado^1. E há um ganho geral em iniciar a reflexão a partir da noção mais canônica de ciência, a concepção mais aceita de conhecimento.

A Crítica ao Conceito de Indução

Um dos termos mais usados para distinguir a ciência de outras atividades seja o de que o seu co- nhecimento está baseado em observação. Francis Bacon, teórico lembrado freqüente- mente, dizia que o método científico é um método de observação, que deveria ser rigorosa e isenta de pre- conceitos. Bacon identificava quatro estados ou ati- tudes perniciosas ao conhecimento científico: 1- a tendência à generalização apressada, própria da na- tureza humana, a que deu o nome de ídolos da Tribo; 2- atitudes referentes aos fatos, provenientes da edu- cação, a que deu o nome de ídolos da Caverna; 3- as distorções dos significados das palavras no uso vul- gar, a que deu o nome de ídolos da Praça do Merca- do; 4- os dogmas e métodos provenientes da filoso- fia, aos quais deu o nome de ídolos do Teatro. Bacon acreditava na possibilidade de uma ex- periência despida dessas interferências que distorciam seu verdadeiro sentido, a ser conquistado pela atitude científica. Cautela na observação, suspensão das idéi- as recebidas da educação, cautela e precisão no uso da linguagem, e o desenvolvimento de experiências criadas especificamente para atender aos fins da in- terrogação científica (o que, se não representava uma novidade estrito senso na época, marcaria cada vez mais a prática da ciência posterior), eram os ingredi- entes do receituário baconiano para a atitude científi- ca. A partir dessas observações a ciência deveria in- ferir gradualmente os princípios mais gerais da natu- reza. Sendo assim, o conhecimento científico poderia ser certo e seguro, e por isso ele não admitia hipóteses na Ciência, sobretudo aquelas da metafísica que visa- vam às razões últimas das coisas, e que ultrapassa- vam as passíveis de experimentação.

(^1) A abordagem das ciências humanas demandaria a investigação de outro tipo de material que ultrapassaria os limites deste artigo. A biologia mereceria também uma discussão à parte, mas pela mesma razão fica de fora.

Popper (1959, 1999) não foi o único, nem o primeiro, a realizar a crítica do princípio da indução na explicitação do método científico, mas a sua tal- vez seja a mais popular entre nós. O autor aceita, do ponto de vista lógico, a crítica de Hume ao princípio de indução, isto é, de que a partir da observação da regularidade de determinados eventos, não é possí- vel prever com alto grau de certeza a mesma suces- são de eventos. Do ponto de vista lógico, não é ne- cessário que assim seja: não é porque se viu 1000 gansos brancos que o próximo também será branco, não é porque o sol se levanta e se põe a cada dia, que se pode prever que amanhã o mesmo ocorrerá. Tais fatos não são necessários do ponto de vista lógico, uma vez que do particular (ocorrências datadas e si- tuadas) não se pode inferir com necessidade o uni- versal, que é o que interessa à ciência na elaboração das leis da experiência. Isso fica bem claro na crítica de Hume à no- ção de causalidade, um dos pontos interessantes e duradouros de seu pensamento na Filosofia da Ciên- cia. Embora Popper não concorde com a análise psi- cológica humeana da experiência, pois assinala que com animais e crianças basta uma única experiência para se estabelecer o vínculo de sucessão entre al- guns eventos; o fato é que o desafio de Hume aos racionalistas da época continua vivo até hoje, isto é a impossibilidade de descobrir baseado apenas na ra- zão porque o evento " B " sucede sempre ao evento "A", porque, por exemplo, os corpos se atraem, ou a cafeína dilata as artérias, ou tal vírus de determinada composição química é nocivo ao organismo, ou o amido é assimilado pelas células. Tudo o que se sabe é que assim tem ocorrido, mas não porque tem que ser assim. Em outros termos, se o pensamento pu- desse descobrir as razões intrínsecas à sucessão dos eventos, estabeleceria, dadas ás mesmas condições, leis necessárias; na sua falta, apenas se apoia no costume, de que de fato as coisas têm se sucedido assim. Mas a crítica interessante de Popper ao prin- cípio de indução não parece ser essa do ponto de vista lógico, porque a crença na regularidade neces- sária dos fenômenos, fundada ou não logicamente, é a condição de possibilidade da própria ciência. Fos- sem os eventos sempre aleatórios na sua sucessão, não caberia estabelecer lei alguma, e talvez a própria

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morre (não se conhecia, na época, o papel dos microorganismos nas doenças). Senemelweis pensa, então, na hipótese de que o bisturi utilizado nas au- tópsias e nas aulas (o que não ocorria na ala das en- fermeiras, e nem era o caso para a maioria das mu- lheres cujos filhos nasciam a caminho da maternida- de) era o agente transmissor da doença, causada por "matéria cadavérica contaminada". A higienização dos bisturis ocasionou a redução do número de mor- tes, mas a diferença entre as alas ainda permanecia significativa, até se descobrir, finalmente, que mesmo pacientes contaminados podiam transmitir a doença, e que os bisturis deveriam ser higienizados para cada paciente. Chegou-se à conclusão que a causa da do- ença seria a "matéria pútrida ou contaminada retira- da de um organismo vivo ou morto". Hempel chama' a atenção para o fato de que, sem a criação de hipóteses, o método indutivo não pode ser operante, isto é, que ele depende de hipóte- ses que discriminam elementos relevantes para o pro- blema, para então verificá-las indutivamente. Mas, como para Popper a passagem das ex- periências (ou problemas) para as teorias não pode ser justificada indutivamente (lógica da descoberta), jamais se garante que as teorias sejam verdadeiras, mesmo depois de sua aprovação através de testes realizados para sua avaliação, uma vez que o proble- ma da indução se colocaria novamente: seria preciso a realização de todos os casos que colocassem em teste a teoria, o que é impossível de ser feito (ter-se- ia que abarcar o universo em sua extensão e dura- ção), restando assumir que enquanto os testes ou experiências não contrariam as teorias, elas continu- am valendo como conhecimento. O critério popperiano de demarcação da ciên- cia passa, assim, a exigir que toda teoria com preten- são de cientificidade possibilite a dedução de propo- sições que, se ocorrerem, a falsifiquem, ou, que pro- íba o aparecimento de certos fatos, sendo tanto me- lhor quanto mais proíbe, ou maior seu conteúdo empírico. É por não especificar condições de falsifica- ção que a Psicanálise, aos olhos de Popper, não é ciência, aproximando-se mais da linguagem dos mi- tos, e não é virtude, visto que seu poder de explica- ção não é acompanhado da proibição da ocorrência de fatos que a falsifiquem. A Psicanálise explica

muito, mas é irrefutável e não pode ser testada ou confrontada. O marxismo, ao contrário, fixou as con- dições em que sua teoria seria refutada, através da necessidade de desenvolvimento do modo de produ- ção capitalista para a ocorrência da revolução socia- lista; no entanto, a união soviética pulou essa etapa, o que teria refutado a teoria. Mas, segundo Popper, os marxistas fizeram modificações ad hoc para aco- modar a teoria aos fatos, alterando hipóteses básicas que comprometeram o seu caráter lógico-dedutivo. Para Popper existe a possibilidade de criação de hipóteses auxiliares, na tentativa de se salvar uma teoria, mas as alterações devem levar à previsão de fatos novos (falseáveis) e não ao enfraquecimento da estrutura lógica da teoria. Um dos exemplos na história da ciência, nesse sentido, foi a confirmação da teoria newtoniana da gravitação com a descober- ta do planeta Netuno. Segundo Chalmers (1993)

"as observações do século XIX sobre o mo- vimento do planeta Urano indicavam que sua órbita se afastava consideravelmente da que fora prevista com base na teoria gravitacional de Newton, colocando assim um problema para esta teoria. Numa tentativa de superar a dificuldade, foi sugerido, por Leverrier na França e por Adams na Inglaterra, que exis- tia um planeta que ainda não fora detectado nas adjacências de Urano. A atração entre o planeta hipotético e Urano deveria explicar o afastamento deste último de sua órbita pre- vista inicialmente. Esta sugestão não era ad hoc, como os eventos demonstrariam. Seria possível calcular a adjacência aproximada do planeta conjectural se ele tivesse um tama- nho razoável e fosse responsável pela per- turbação da órbita de Urano" (p.82).

A descoberta de Netuno, nesse sentido, não só corroborou a teoria, como trouxe um conhecimento novo. Em síntese, não há para Popper lógica da des- coberta científica, já que se nega o princípio da indução, há apenas a da justificação. O processo de descoberta é objeto para ciências empíricas (psico- logia ou sociologia), não para uma epistemologia que cuida apenas do caráter lógico da teoria. Tudo vale na formação de teorias: insights, intuição, imagina-

A Filosofia da Ciência 1 2 9

ção, observações controladas, e até mesmo sonhos que sugerem soluções para o problema pesquisado, como teria sido d caso da descoberta da fórmula quí- mica do benzeno, por Kekulé. Embora Popper pro- cure enfatizar o caráter ativo e organizador da razão, não é objeto da epistemologia perguntar como se chega às hipóteses e conclusões, mas distinguir enun- ciados científicos de pseudo-científicos através da lógica da justificação: pode-se deduzir de enunciados gerais os particulares (ocorrência de fatos) e confrontá-los com a experiência. A grande questão da epistemologia é a da demarcação do conhecimento, e só uma lógica da justificação pode fornecer a solu- ção desse problema. O pensamento de Popper é uma das expres- sões contundentes da passagem da física newtoniana para a de Einstein. O Deus de Descartes, que garan- tia como critério de verdade a evidência do pensa- mento, foi substituído por uma noção de conhecimento mais dinâmico e provisório, sendo o conhecimento hu- mano também limitado, mas noutro sentido: de um lado porque existem coisas que o entendimento não pode conhecer com clareza, como, por exemplo, a união da alma e do corpo, e de outro porque o conhecimento é inesgotável dada a infinitude do universo a conhecer. Mas, o que se sabe de forma clara e distinta é certo e indubitável, o que implica em ter o conhecimento con- cebido como uma construção progressiva de certe- zas. Ora, o conhecimento científico questionou justa- mente a idéia de verdades adquiridas, de forma que parecem se multiplicar as possibilidades de variação das perspectivas sobre o real, conquanto se possa, ain- da, sustentar a idéia de um progresso no conhecimen- to. Em outros termos, a história da ciência não podia mais ser vista como um processo de acumulação sem sobressaltos e rupturas.

A Razão Científica em Questão

Um dos teóricos proeminentes do século XX, que enfatizou as rupturas na história da ciência, foi sem dúvida Thomas Kuhn. Seu pequeno, mas esti- mulante livro A Estrutura das Revoluções Científi- cas (1992), constituiu-se em um marco de referência para filósofos e historiadores da ciência e sua obra representa, em relação à de Popper, um enfoque mais voltado para as práticas das comunidades científi-

cas, do que propriamente para os fundamentos lógi- cos de suas teorias. Os críticos de Popper o acusam de propor um padrão m e t o d o l ó g i c o que não corresponde à prática da ciência e ele, por sua vez, insistia no papel ativo da crítica metodológica como contribuição da epistemologia à pratica da ciência. Esse caráter explícito de orientação não se encontra na obra de Kuhn, que se propõe, sobretudo a um re- lato histórico do desenvolvimento da ciência. É ver- dade que Feyerabend (1977) levanta a questão de saber se a obra de Kuhn aconselha ou não o cientista à determinada conduta, afirmando que ele é ambí- guo quanto a isso. De fato, ao julgar que é um sinal de maturidade da ciência a ausência de discussões a respeito de suas teorias, o que propicia o desenvolvi- mento exaustivo do paradigma, (a acumulação de co- nhecimento sobre a realidade no interior de determi- nada visão de mundo), Kuhn parece incentivar a ati- tude acrítica do cientista^2. De qualquer forma, não se encontra em Kuhn, como em Popper, a declara- ção de intenção de orientação da prática científica através da análise metodológica. Ou seja, a obra do primeiro é de caráter mais histórico ou descritivo do que a do segundo. No posfácio de 19693 , Kuhn enfatiza, inclusive, que se tivesse que rescrevê-la, começaria pela análise das estruturas das comunida- des científicas, o que merecia cada vez mais a aten- ção dos historiadores e sociólogos da ciência. A obra de Kuhn pode ser vista como uma crí- tica à visão popperiana de ciência. Três pontos po- dem ser destacados: 1) a tese da incomensurabilidade das teorias, vista por seus críticos como uma afirma- ção do relativismo ou do irracionalismo na história da ciência, 2) a necessidade da ciência normal, que re- presenta a possibilidade de exploração máxima de um paradigma, isto é, de seu desenvolvimento teóri- co e instrumental 3) a presença constante de ano- malias nas teorias científicas, com o que se critica, do ponto de vista histórico, a metodologia falsificado- ra da ciência. Antes de tudo, é preciso deixar clara a noção (^2) Como diz Feyerabend no Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência, realizado em Londres em 1965, que entre outros temas se propunha, justamente, a discutir as diferenças entre os pensamentos de Kuhn e Popper sobre ciência (Feyerabend, apud Lakatos & Musgrave, 1979). N o m e s m o colóquio, o título da intervenção de Popper é no mesmo sentido: "A Ciência Normal e seus Perigos". (^3) a publicação original é de 1962

A Filosofia da Ciência 1 3 1 tasse uma crise; tanto erros de precisão quantitati- va na medição dos fenômenos, quanto qualitativa, no sentido de incompatibilidade da teoria com a experiência^4 E nada disso representa, necessaria- mente, uma crise e teria sido u m a das críticas mais importantes ao modelo metodológico de desenvol- vimento das ciências proposto por Popper que enfatiza a tentativa de falsificação de uma teori a como a mola propulsora do desenvolvimento da ciência. Enquanto conselho metodológico, a idéia pode ser muito atraente, mas a questão é saber e m que me- dida ela expressa o desenvolvimento histórico da ciência, e mesmo se o propicia, caso seja aceita. O lado atraente - Popper salienta dois aspec- tos no desenvolvimento da ciência: a) conjecturas teó- ricas arriscadas b) refinação de teorias estabelecidas. Chalmers (1993)^5 afirma que não se aprende, ou se aprende muito pouco., com conjecturas cautelosas, porque estas mais confirmam o conhecimento atual do que possibilitam avanços significativos nas teorias; elas são sempre conservadoras. Conjecturas arrisca- das, ao contrário, rompem com a maneira comum de pensar, e por isso, quando confirmadas, representam avanços significativos. Assim, quando as previsões de Einstein sobre a curvatura da luz sob efeito de forte atração gravitacional foram confirmadas por Eddington, a teoria passou por um importante teste de falsifica- ção que corroborou o seu avanço em relação à con- cepção anterior. Na refinação das teorias a relação se inverteria, isto é a negação das arriscadas não ensina nada, obviamente, mas quando ocorre a refutação das bem estabelecidas, que passaram por muitos testes de "verificação", Chalmers (1993) diz que: "um novo problema, auspiciosamente bem distante do problema original resolvido, emer- giu. Este novo problema pede a invenção de novas hipóteses, seguindo-se a crítica e tes- tes renovados" (p.73) Assim, "a falsificação da teoria de Einstein perma- nece um desafio para os físicos modernos. (^4) (Feyerabend, em Contra o Método, 1977, explora com particular atenção essas inconsistências). Seu eventual sucesso assinalaria um novo passo na direção do progresso da física" (idem,p.76-77). Daí a insistência de Popper nas tentativas de falsificação de teorias bem estabelecidas, pois ela é a responsável pelo avanço do conhecimento. Ou seja, um falsificador não está interessado em preservar teorias, mas em refutá-las. Não é difícil notar que Popper privilegia os momentos de crise ou ruptura na história das ciênci- as. Como ele enfatiza no prefácio de Conjecturas e Refutações (1963, s/d), aprende-se com os erros, e é assim que a ciência progride. Kuhn, por sua vez, fez notar primeiro que, dessa forma, elide-se o cotidiano da prática científica, muito mais voltada para ativida- des "corriqueiras" de solução de quebra-cabeças no interior do paradigma, o que ressalta a importante relação da ciência com o desenvolvimento de tecnologias^6 .Em segundo, que os grandes aconteci- mentos na história da ciência não são decisivos no sentido em que Popper procura mostrar, não sendo o destino de uma teoria científica jogado "em uma ou duas rodadas de cartas", mas muito comum a pre- sença de anomalias na sua comparação com a reali- dade, interpretadas ora como um problema de que- bra-cabeças, isto é, solucionáveis no interior do pró- prio paradigma, ora simplesmente ignoradas e que portanto não existem experimentos cruciais no desenvolvimento da ciência. Esse ponto da teoria de Kuhn foi muito bem desenvolvido por Lakatos, que propôs, em substitui- ção ao critério popperiano de falseabilidade, a idéia de programas de investigação como metodologia das teorias científicas^7 , que consiste em um núcleo teórico que deve orientar as pesquisas futuras para o seu desenvolvimento. Esse direcionamento é indicativo e proibitivo ao mesmo tempo. A heurística positiva representa o primeiro aspecto, e dirige as pesquisas no sentido de aplicação da teoria à realida- de, conduzindo, se o programa tem êxito, à desco- (^5) Cuja obra, aliás, representa uma introdução muito clara das várias vertentes contemporâneas de d i s c u s s õ e s da metodologia e do desenvolvimento histórico da ciência. (^6) (Em outros termos, Popper dirige os "holofotes" para grandes acontecimentos em detrimento do cotidiano da história) (^7) "O Falseamento e a Metodologia dos Programas de Pesquisa Científica" (Lakatos & Musgrave, 1979)

1 3 2 Reinaldo Furlan

berta de fatos novos e ao desenvolvimento de teorias auxiliares. A heurística negativa diz respeito ao as- pecto 2, e consiste na proibição de se questionar o núcleo básico da teoria, representando a tenacidade do programa, sua persistência, a despeito das ano- malias ou incongruências com a experiência. A teo- ria não é falsificável no núcleo básico, está protegida por um cinturão de hipóteses auxiliares, "que tem de suportar o impacto dós testes e ir se ajustando e rea- justando, ou mesmo ser completamente substituído, para defender o núcleo assim fortalecido" (Lakatos &Musgrae, 1979, p.162). Um programa de pesquisa é progressivo quan- do, ao menos intermitentemente, leva à descoberta de fatos novos, isto é, enquanto seu desenvolvimento teórico antecipa o empírico; é degenerativo se não consegue oferecer mais do que explicações post- hoc. De qualquer forma, seu sucesso ou fracasso não pode ser decretado por esta ou aquela experiên- cia crucial. Daí Feyerabend (1977) concluir, citando Lakatos, que

"surgida uma teoria nova, não cabe, de ime- diato, recorrer aos padrões costumeiros para decidir se ela-sobreviverá ou não. Nem gri- tantes incoerências internas, nem óbvia au- sência de conteúdo empírico, nem amplo con- flito com resultados experimentais deve im- pedir-nos de conservar e aperfeiçoar pontos de vista que, por esta ou aquela razão, nos agrade" (p.287).

Há um exemplo hipotético imaginado por Lakatos, aparentemente à luz da descoberta do pla- neta Netuno, que ilustra bem a idéia de tenacidade de um programa de pesquisa, e a recusa do critério falsificador como metodologia da ciência. Chalmers (1993) diz:

"A história é sobre um caso imaginário de mau comportamento planetário. Um físico da era pré-einsteiniana toma a mecânica de Newton e sua lei da gravidade, N, como as condições iniciais aceitas, I, e calcula, com sua ajuda, o percurso de um pequeno planeta recentemente descoberto, p. Mas o planeta desvia-se do percurso calculado. Por acaso,

nosso físico considera que o desvio era proi- bido pela teoria de Newton e portanto que, uma vez estabelecido, refuta a teoria N? Não. Ele sugere que deve haver um desconhecido planeta p ' , que perturba o percurso de p. Ele calcula a massa, órbita, etc. de seu hipotéti- co planeta e pede então a um astrônomo ex- perimental que teste sua hipótese. O planeta p' é tão pequeno que mesmo os maiores te- lescópios disponíveis não podem observá-lo; o astrônomo experimental pede uma verba para construir um ainda maior. Em três anos o novo telescópio está pronto. Se o desco- nhecido planeta p ' for descoberto será uma nova vitória para a ciência newtoniana. Mas não é. E nosso cientista abandona a teoria de Newton e sua idéia de um planeta perturbador? Não. Ele sugere que uma nu- vem de poeira cósmica esconde-nos o pla- neta. Calcula a localização e as proprieda- des dessa nuvem e pede uma verba de pes- quisa para mandar um satélite testar seus cálculos. Se os instrumentos do satélite (pos- sivelmente de tipo novo, baseados numa teo- ria pouco testada) registrarem a existência da nuvem conjectural, o resultado será visto como uma notável vitória para a ciência newtoniana. Mas a nuvem não é descober- ta. O nosso cientista abandona a teoria de Newton, junto com sua idéia do planeta perturbador e a idéia da nuvem que o escon- de? Não. Ele sugere que há algum campo magnético naquela região do universo que perturbou os instrumentos do satélite. Um novo satélite é enviado. Se o campo magné- tico for encontrado, os newtonianos celebra- rão uma vitória sensacional. Mas ele não é. Isto é visto como uma refutação da física newtoniana? Não. Ou uma outra engenhosa hipótese é proposta ou... a história toda é enterrada nos valores empoeirados de publi- cações periódicas e a história nunca mais será mencionada" (p.96-97).

Mas, em certo sentido, Lakatos está mais pró- ximo de Popper do que de Kuhn. Uma das maiores diferenças dele com Kuhn é que, enquanto este pri- vilegia a história psicossocial no desenvolvimento da

1 3 4 Reinaldo Furlan

se percebe e organiza a experiência). Tais pontos são bem salientados por Chalmers (1993) na sua apre- sentação da teoria popperiana do conhecimento, quan- do destaca dois sentidos diversos de "conhecimen- to" ou "pensamento":

"(1) conhecimento ou pensamento no sentido subjetivo, consistindo de um esta- do mental, ou da consciência ou de uma dis- posição a comportar-se ou a agir, e (2) co- nhecimento ou pensamento num sentido ob- jetivo, consistindo em problemas, teorias e argumentos enquanto tal. O conhecimento nesse sentido objetivo é completamente in- dependente da afirmação de qualquer pes- soa de que sabe; é independente também da crença de qualquer um, ou da disposição de assentir; ou de afirmar, ou agir. O conheci- mento no sentido objetivo é o conhecimento sem conhecedor; é o conhecimento sem um sujeito que sabe" (p.160).

Lakatos reproduz a mesma idéia, conforme mostra o próprio Chalmers, que o cita na seqüência: "... uma teoria pode ser pseudocientífica mesmo apesar de ser eminentemente 'plau- sível' e todo mundo crer nela, e ela pode ser cientificamente valiosa embora ninguém creia nela. Uma teoria pode ter um valor científico supremo ainda que ninguém a compreenda, ou nem mesmo creia nela. O valor cognitivo de uma teoria nada tem a ver com sua influ- ência psicológica na mente das pessoas. Cren- ças, compromisso e compreensão são esta- dos da mente humana... Mas o valor objeti- vo, científico de uma teoria... é independen- te da mente humana que a cria ou a compre- ende" (p.160-161).

Como conseqüência, conclui Chalmers, para Popper e Lakatos "a história do desenvolvimento interno de uma ciência será 'a história da ciência descorporificada'" (p.161). Kuhn também assume a idéia da importância do papel da teoria nas experiências, ou de que um sentido global de mundo participa sempre do das per- cepções. Critica, portanto, a possibilidade de uma lin- guagem neutra na observação, ou o mito de que a

experiência dos sentidos é fixa e neutra. Chalmers ilustra esse ponto quando procura mostrar a depen- dência que a observação tem de determinada teoria, levando em conta uma objeção muito comum dos que defendem a unicidade do sentido percebido:

"Uma resposta comum à afirmação que es- tou fazendo sobre a observação, apoiada pe- los tipos de exemplos que utilizei^9 , é que ob- servadores vendo a mesma cena do mesmo lugar vêem a mesma coisa,mas interpretam d que vêem diferentemente" (p.51). E con- clui de forma clara e incisiva: "O que é dado unicamente pela situação física é a imagem sobre a retina de um observador, mas um observador não tem contato perceptivo dire- to com essa imagem. Quando o indutivista ingênuo e muitos outros empiristas supõem que algo único nos é dado pela experiência e que pode ser interpretado de várias manei- ras, eles estão supondo, sem argumento e a despeito de muitas provas em contrário, al- guma correspondência entre as imagens so- bre nossas retinas e as experiências subjeti- vas que temos quando vemos (...) certamen- te não estou afirmando que as causas físicas das imagens sobre nossas retinas nada têm a ver com o que vemos. Entretanto, embora as imagens sobre nossas retinas façam parte da causa do que vemos, uma outra parte muito importante da causa é constituída pelo esta- do interior de nossas mentes ou cérebros, que vai claramente depender de nossa formação cultural, conhecimento, expectativas, etc. e não será determinado apenas pelas proprie- dades físicas de nossos olhos e da cena ob- servada" (p.52).

Este ponto foi muito ressaltado por Kuhn e Chalmers, que destaca uma observação histórica de Kuhn a esse respeito, afirmando que: "mudanças nos céus começaram a ser nota- das, registradas e discutidas pelos astrôno- mos do Ocidente depois da proposta da teo- ria copernicana. Antes disso, o paradigma

*** Chalmers, assim como Kuhn, refere-se a resultados de experimentos da psicologia da percepção que indicam diferenças de sentidos percebidos sobre o mesmo material de visão.**

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aristotélico havia dito que não poderia haver mudanças na região sobrelunar e, conseqüen- temente, nenhuma mudança foi observada" (p.131).

Feyerabend (1977) também enfatiza esse ponto à luz de uma teoria gramatical aparentemente muito próxima da de Wittgenstein, como, aliás, é a desen- volvida pelo próprio Kuhn:

" 'a linguagem e os padrões de reação que envolvem não constituem meros instrumen- tos para descrever eventos (fatos, estados de coisas) mas são, também, modeladores de eventos (fatos, estados de coisas), contendo- se em sua 'gramática' umacosmologia, uma visão ampla do mundo, da sociedade, da situ- ação do homem, que influencia o comporta- mento, a percepção....Usuários das gramá- ticas marcadamente diversas são conduzidos, pelas suas gramáticas, a diferentes gêneros de observação'" (p. 349)).

Destaca-se que a presença de anomalias nas teorias científicas é um fenômeno histórico comum e não representa por si só a presença de crises teóri- cas. Mas, se teorias participam do sentido da per- cepção, se não há, pois, enunciados de observação definitivos em que se possa apoiar a ciência, a rela- ção entre enunciados de percepção e teorias científi- cas torna-se muito mais complexa. O exemplo mais ilustrativo é a sofisticação dos testes de "verifica- ção" de uma teoria. Galileu anexava como apoio de sua teoria do sistema solar um instrumento de obser- vação, o telescópio, que também implicava teoria no seu próprio uso, no caso, a óptica. Feyerabend (1977) enfatiza o quanto seii uso foi contestado na época por seus oponentes, tanto por razões teóricas (ou de interpretação), quanto de imprecisão das imagens dos primeiros telescópios. E fala do papel da especula- ção ou imaginação no novo tipo de experiência inau- gurada por Galileu, muito distante da do senso co- mum ou do sentido do termo na filosofia aristotélica. Latour e Woolgar (1992), seguindo os passos de Bachelard, salientam o quanto um laboratório de pesquisa é repleto de instrumentos que participam da

construção dos fenômenos, que levam, por sua vez, ao aparecimento de novos fatos e materiais; o quan- to a experiência científica distanciou-se da experiên- cia ingênua de mundo, razão que levou Bachelard a cunhar o termo fenomenotécnica para expressá-la; e como tais instrumentos representam teoria reificada, isto é, incorporada sem mais discussão. Tudo isso mostra que o desenvolvimento das teorias científicas traz a expansão de uma rede teóri- ca e instrumental que impossibilita a sua falsificação no sentido restrito do termo. Como diz Feyerabend (1977), apontando para o caráter histórico-fisiológi- co da evidência da observação, uma teoria pode ser incompatível com a observação porque esta pode estar contaminada. Chalmers (1993) sintetiza bem esse ponto:

"Nada na lógica da situação requer que deva ser sempre a teoria a ser rejeitada na oca- sião de um choque com a observação. Uma proposição de observação falível pode ser rejeitada e a teoria falível com a qual ela se choca ser mantida. É exatamente isto que estava e n v o l v i d o q u a n d o a teoria de Copérnico foi mantida e a observação a olho nu de que Vênus não muda de tamanho apre- ciavelmente no curso do ano, inconsistente com a teoria de Copérnico, foi rejeitada. É isto também que está envolvido quando des- crições modernas da trajetória da Lua são mantidas e proposições de observação refe- rentes ao fato de que a Lua é muito maior quando está perto do horizonte do que quan- do está alta no céu são vistas como resultan- tes de uma ilusão, mesmo" considerando-se que a causa da ilusão não é muito bem com- preendida. A ciência abunda com exemplos de rejeição de proposições de observação e retenção de teorias com as quais elas se cho- cam. Contudo, por mais seguramente basea- da na observação uma afirmação possa pa- recer estar, a possibilidade de que novos avan- ços teóricos revelarão inadequações nessa afirmação não pode ser descartada. Conse- qüentemente, falsificações conclusivas, dire- tas, de teorias, não são realizáveis" (p.91).

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urn paradigma, seu papel é necessariamente cir- cular. Cada grupo utiliza seu próprio paradigma para argumentar em favor desse mesmo paradigma. Naturalmente a circularidade resul- tante não toma esses argumentos errados ou mesmo ineficazes. Colocar um paradigma como premissa numa discussão destinada a defendê- lo pode, não obstante, fornecer uma mostra de como será a prática científica para todos aque- les que adotarem a nova concepção da nature- za. Essa mostra pode ser imensamente persua- siva, chegando muitas vezes a compelir à sua aceitação. Contudo, seja qual for a sua força, o status do argumento circular eqüivale tão-so- mente ao da persuasão. Para os que se recu- sam entrar no círculo, esse argumento não pode tornar-se impositivo, seja pela lógica, seja prôbabilisticamente. As premissas e os valores partilhados pelas duas partes envolvidas em um debate sobre paradigmas não são suficiente- mente amplos para permitir isso. Na escolha de um paradigma, - como nas revoluções políticas

  • não existe critério superior ao consentimento da comunidade relevante" (p.128).

Persuasão, portanto, que pode levar a uma nova forma de ver e de pensar o mundo, cuja passa- gem, entretanto, está mais próxima da conversão re- ligiosa do que do convencimento racional. Isto é, a conversão completa seria uma mudança profunda na "visão" de mundo, havendo boas razões para fazê-la e a possibilidade de "tradução" de parte da lingua- gem do outro para o novo paradigma, mas o acordo entre os grupos rivais nesse processo de "tradução" não é fundado logicamente, porque o que está em jogo aqui não são leis, passíveis de correção no inte- rior de cada paradigma, mas definições que funda- mentam os próprios paradigmas.

Como diz Feyerabend (1977), em defesa de Kuhn (e aparentemente à luz do segundo Wittgenstein), o que está em jogo não são alternati- vas definidas por regras, mas as próprias regras. Em outros termos, teorias incomensuráveis podem ser refutadas apenas internamente, pois seus conteúdos não são comparáveis. Kuhn (1962, 1992) cita uma declaração de Max Plank, para ilustrar a situação:

"ao passar em revista a sua carreira no seu Scientific Autobiography, observou triste- mente que 'uma nova verdade científica não triunfa convencendo seus oponentes e fazen- do com que vejam a luz, mas porque seus oponentes finalmente morrem e uma nova geração cresce familiarizada com ela" (p.191).

Alguns critérios existem, naturalmente, na escolha entre paradigmas:

"Em primeiro lugar, o novo candidato deve parecer capaz de solucionar algum problema extraordinário, reconhecido como tal pela comunidade e que não possa ser analisado de nenhuma outra maneira, Em segundo lu- gar, o novo paradigma deve garantir a pre- servação de uma parte relativamente grande da capacidade objetiva de resolver proble- mas, conquistada pela ciência com o auxílio dos paradigmas anteriores" (idem, p.212).

Mas esses critérios não fornecem razões suficientes para a troca de paradigmas, nem signifi- cam a possibilidade de um progresso ontológico com a substituição das teorias. Há apenas progresso na resolução de quebra-cabeças.

Referências Bibliográficas

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Hempel, C G. (1981). Filosofia da Ciência Natural, 3 a ed.. Rio de Janeiro: Zahar.

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Latour, B. & Woolgar, S. (1997). A Vida de Labora- tório: a produção dos fatos científicos. Rio de

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Janeiro: Relume Dumara.

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Popper, K. (1963, s/d). El desarrollo dei Conocimiento científico - Conjecturas y refutaciones. Buenos Aires: Paidos.