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A figura histórica de Maria, mãe de Jesus, Notas de aula de Ciência da religião

Uma análise da figura histórica de maria, mãe de jesus, explorando sua importância teológica e eclesiológica. Discute-se a escassez de informações históricas sobre maria fora dos evangelhos, bem como a marginalidade de jesus e sua família no contexto judaico e romano da época. O documento também aborda a questão da paternidade de jesus e a relação entre maria, josé e jesus, destacando o papel central de maria na gênese e identidade de jesus como messias e filho de deus. A análise busca oferecer uma visão apaixonada, inteligente e incondicional do mistério de maria e sua influência transformadora na história da humanidade.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 13/06/2024

renatonogueira17
renatonogueira17 🇧🇷

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INTRODUÇÃO

Em minha reflexão mariológica compreendi que, devido ao momento de ma- turidade intelectual em que nos encontramos, não precisamos nos entregar a simples suposições e elucubrações mentais.

Maria não precisa de nossas mentiras. É necessário deixar de lado a imaginatividade (que não poucas vezes desem- penhou papéis na mariologia), para nos situarmos o mais possível dentro do plano histórico.

Em nossos dias a historiografia alcançou tal ponto de rigor e seriedade cien- tífica que se torna desonesto não levá-la em consideração no momento em que nos pomos a falar de Maria.

Costuma ser assaz comum na pregação e na catequese da Igreja – e inclusive na reflexão teológica – dar por historicamente confirmados não poucos fatos que não gozam de suficiente credibilidade histórica. Se a figura de Jesus histórico foi submetida a tantas e tantas depurações, o mesmo ocorrerá – espera-se – com a figura histórica de Maria.

O tratamento sério e rigoroso da figura de Maria a tornará muito mais con- sistente e digna de credibilidade.

Por outro lado, não devemos desperdiçar nenhum dos dados que o Novo Tes- tamento nos oferece sobre ela. Nem nenhum dos métodos hoje empregados para interpretar com integridade o texto bíblico. Desde a história das formas, ou da tradição, até a interpretação mediante a análise estrutural ou narrativa. Os textos marianos nos dizem o que pensavam sobre Maria os primeiros autores, como era ela representada e acolhida nas tradições cristãs. Esses dados se nos apresentam muito interessantes para obtermos, não só um maior conhecimento histórico sobre sua figura, mas também sobre sua repercussão nas comunidades cristãs e a interpretação que dela se fazia.

Mais ainda: lidos em chave narrativa, cada um dos textos mariológicos do Novo Testamento pode revelar certo subconsciente teológico e antropológico que enche de vigor e de encanto a representação mariana. Supera-se, dessa forma, as exegeses complexas e redutivas daqueles ou daquelas que se questionam unica- mente sobre a historicidade ou não historicidade de um dado ou de um texto.

A mariologia supera em muito o simples dado bíblico ou revelado. Maria de Nazaré não é um simples personagem como Simão Pedro, ou Paulo, ou Maria Madalena. Esses são personagens circunscritos em sua historicidade e, quando vão além dela, fazem-no a partir de uma espécie de exemplaridade de tipo hierárquico-

descobrir e compreender a energia espiritual transformadora que Maria desata na história da humanidade.

Divido esta obra em três partes : mariologia bíblica, mariologia histórica e mariologia sistemática. Não são, em minha intenção, três partes independentes. Em cada uma delas não me detenho exclusivamente no tratamento bíblico, ou histórico, ou sistemático, segundo cada uma das partes. Ainda que certamente em cada uma delas prevaleça um aspecto peculiar, não renunciei a iniciar – por exemplo na mariologia bíblica – certa reflexão sistemática, consentânea com os dados que iam aparecendo, ou certas referências patrísticas, quando resultasse oportuno. Por isso, embora a terceira parte tenha o título de “sistemática”, isso não indica que a sistematização não tenha começado já desde a primeira parte e que não tenha influído nela.

A elaboração de uma síntese mariológica tão complexa exige saber empregar em cada momento do estudo a metodologia mais adequada. O teólogo sistemático tem de harmonizar ecologicamente as metodologias que cada uma das espe- cializações (histórica, bíblico-exegética, patrística, medievalista...) requer. Desejo partir de dados historicamente seguros e comprovados, servindo-me dos estudos historiográficos que se tornam hoje mais confiáveis. Isso pode dar, em algum mo- mento, a impressão de certo minimalismo histórico. Porém, julgo que é saudável. No modo de enfrentar os dados bíblicos, sem recusar nenhum dos métodos exe- géticos (Formgeschichte, Traditionsgeschichte) , darei preferência ao método estru- tural, retórico-narrativo, porque, segundo meu modo de ver, é mais adequado à síntese teológica que pretendo elaborar e permite abordar os textos em seus con- textos. Só assim se tornam autenticamente significativos. A mariologia histórica ocupa um grande espaço nesta obra. Nela faço uma opção: concentro-me nos momentos mais criativos e fundamentais no aspecto mariológico, e menciono, por alto, outros momentos ligados também a uma decadência teológica que o Concílio Vaticano II corrigiu.

A mariologia sistemática é a que apresenta mais dificuldade. É o momento no qual – com todos os fios do passado – se tece a trama do pensamento mariológico na atualidade. O primeiro capítulo da mariologia sistemática é, para mim, espe- cialmente importante. Ele sozinho poderia dar oportunidade a uma obra volu- mosa. Mas eu quis indicar nele uma série de anotações metodológicas para uma renovada abordagem das questões teológicas. Esse capítulo de tipo gnoseológico e hermenêutico justifica o modo de interpretação dos dados mariológicos e expe- riências marianas; em nenhum momento me fixei em uma reflexão mariológica de cunho exclusivamente intelectual. Quis ver implicadas as vivências e as ideias, as fantasias e os mitos, nas realidades históricas.

Em tempos passados escrevi algumas obras sobre Maria^1. Nelas me con- centrei de forma especial na mariologia bíblica. Esta obra significou para mim um novo começo, uma nova proposta. Compartilho a opinião de Eugenio Trias quando escreve:

Um texto começa, muitas vezes, ali onde outro termina. Algo acon- tece, não obstante, no intervalo. Entre o ponto final de um texto já ter- minado e a letra com que se inaugura o seguinte existe uma importante cesura. A morte é, talvez, um espaço em branco: o que medeia entre dois aforismos... Entre um texto e outro vive-se uma experiência de mudan- ça, de alteração. Chega-se assim, talvez, a outra forma de ser.^2

Os meses dedicados a este trabalho foram apaixonantes. A complexidade me enredava em uma selva da qual pedia às vezes para ser salvo. Não bastava a pers- picácia. Nem mesmo o que outros me sugeriam. Tornava-se necessária a oração suplicante. Às vezes o protesto. Outras vezes, a serenidade diante do que emergia por graça diante do olhar.

Ao concluir este livro, reconheço suas limitações. Mas eu estou apaixonado pela mariologia do caminho. Espero que possa ajudar a caminhar. Que tenha tal- vez o impulso suficiente para suscitar, ao começar este terceiro milênio, uma nova geração de teólogas e teólogos capazes de dizer melhor o que aqui são apenas apontamentos. Também devo confessar uma impressão, que desde o princípio me apanhou de surpresa: quando uma pessoa se põe a pensar em Maria, sente-se levada para cima e para baixo, para a direita e para a esquerda. Tenho a impressão de que, para falar dela, precisei falar com tantos e tantas, de tantos e de tantas, que no final não sei... Ela é todo um símbolo. Ponto de encontro. É inspiração.

Nesta edição ofereço uma ampla atualização bibliográfica. Descubro que mui- tos dos temas aqui anotados encontraram posterior aprofundamento em outros autores^3. A presença da mulher na teologia e, em especial, na mariologia é cada dia mais importante e imprescindível.

José Cristo Rey García Paredes 16 de julho de 2001

(^1) María, la mujer consagrada (Pub. Claretianas, Madrid 1979); María en la comunidad del Reino. Síntesis de Mariología (Pub. Claretianas, Madrid 1988). (^2) Trias, E., La edad del espíritu (Ensayos/Destino, Barcelona 1994), 11. (^3) Apareceram nesse tempo alguns manuais dignos de menção: cf. M. Ponce Cuéllar, María, Madre del Redentor. Manual de mariología (Badajoz 1995); J. L. Bastero de Elizalde, María, Madre del Redentor (Univ. de Navarra, Pamplona 1995); AA.VV. Mariología fundamental (Secretariado Trinitario, Salamanca 1995); W. Beinert–H. Petri (dirs.), Handbuch der Marienkunde, 2 vols. (Friedrich Pustet, Regensburg 1996-1997); D. Fernández, María en la historia de la salvación: ensayo de una mariología narrativa (PCI, Madrid 1999).

JCO Jean Calvino Opera

LW Luther Werke

Mar Marianum

MarStud Marian Studies

MilesImm Miles Immaculatae

MS Mysterium Salutis (Cristiandad, Madrid 1980)

MThZ Münchener theologischen Zeitschrift

NDM Nuevo Diccionario de Mariología

NovT Novum Testamentum

NRTh Nouvelle Revue Théologique

NTS New Testament Studies

NVet Nova et Vetera

PCl Publicaciones Claretianas

PG Patrologia Graeca

PL Patrologia Latina

PS Protoevangelio de Santiago

RB Revue Biblique

RevScRel Revue des Sciences Religieuses

RevThom Revue Thomiste

RivBibl Rivista Biblica

SC Sources Chrétiennes

ScriptaMar Scripta Mariana

ThGl Theologie und Glaube

ThQ Theologische Quartalschrift

ThZ Theologische Zeitschrift

TS Theological Studies

TWNT Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament

Primeira Parte

MARIOLOGIA BÍBLICA

dos diferentes. Essa chave hermenêutica consiste em aceitar os textos que fazem referência a Maria como relatos que procuram transmitir uma mensagem, uma ideia, uma experiência. Prevalece em mim o interesse literário, de captar o que o autor quis transmitir, sobre o interesse histórico. A pergunta pela historicidade dos relatos não será descartada, porém a abordarei globalmente na terceira parte, e de forma mais particular no capítulo primeiro.

Procuro analisar os textos que falam de Maria em contextos amplos. Para isso sigo o método da análise retórica (ou análise estrutural) proposto por Roland Meynet^1. Esse professor manifesta que o objetivo da análise retórica é com- preender adequadamente os textos bíblicos; para isso é necessário delimitar os limites do texto, o que nem sempre é fácil, visto que os livros bíblicos não contêm subdivisões nem subtítulos. A exegese histórico-crítica nos havia acostumado a ler pequenas unidades, separadas umas das outras, porque partia da convicção de que os Evangelhos são coleções de pequenas unidades que circulavam pelas co- munidades cristãs; mais que autor, o redator teria sido um colecionador. Todavia, a exegese retórica defende que os evangelistas foram verdadeiros autores, que souberam organizar o material que lhes chegava às mãos. Mais ainda: a exegese retórica demonstra que as composições neotestamentárias obedecem às regras da retórica, não greco-latina, mas sim hebraica.

Segundo Meynet, o binarismo caracteriza toda a literatura hebraica^2. As coisas são ditas duas vezes porque a verdade não pode se encerrar em uma só afirmação. A verdade se diz colocando em interação duas afirmações complementares, ou mesmo na fricção de duas realidades opostas. Meynet chama quiasmo retórico ao bi- narismo próprio da literatura hebraica. Este não era exclusivo da literatura bíblica. Mas o quiasmo bíblico tem como característica fundamental colocar em realce o elemento central do relato. Essa é sua função. Um exemplo prototípico de texto em quiasmo é a Carta aos Hebreus, tal como foi estruturada e interpretada por Albert Vanhoye^3. A contribuição maior da exegese retórica situa-se em níveis superiores: aplicada a conjuntos de perícopes que constituem sequências, a conjuntos de sequ- ências que formam sessões, e, finalmente, ao livro em sua totalidade^4.

Por conseguinte, quando os leitores encontrarem textos estruturados em cin- co ou sete partes (A-B-C-D-C’-B’-A’) , pensem que isso responde a essa forma de

(^1) Cf. R. Meynet, L’analisi retorica (Queriniana, Brescia 1992); Id., Un nuovo metodo per comprendere la Bibbia: L’analisi retorica , em La Civiltà Cattolica 145 (1994), pp. 121-134. (^2) O primeiro que estudou sistematicamente o paralelismo bíblico e o quiasmo da frase, que ele denomina parallelismus mem- brorum , foi Robert Lowth, De sacra poesi Hebraeorum (Oxford 1735). (^3) Cf. uma fundamentação ampla e uma explicação genética do tema do quiasmo retórico em R. Meynet, Quelle est donc cette parole? Lecture “rhétorique” de l’Evangile de Luc (1–9.22-24) (Du Cerf, Paris 1979). (^4) Cf. R. Meynet, Un nuovo metodo... 128; S. Blanco, Sola scriptura o hermenéutica bíblica , em EphMar 44 (1994), 393-411; M. Masini, Ermeneutica biblico-mariana: Un cantiere aperto , em Theotokos 8 (2000); 873-905.

leitura e interpretação. Nela A corresponde a A’ , B a B’ , e assim sucessivamente, sendo, portanto, o elemento central (D) desse exemplo o mais significativo.

Não obstante, não prescindiremos do método histórico-crítico. Mas re- comendo aos leitores que procurem eles mesmos passar um tempo diante dos textos estruturados segundo as leis da retórica hebraica. Procurem entendê-los, compreendê-los. E perceberão como, descobrindo sua beleza estrutural, sentem também como a mensagem chega ao coração, tornada beleza fascinante. É como quando um texto chega a nós através da música ou da poesia, ou uma paisagem através da beleza de um quadro.

BIBLIOGRAFIA

Alcalá, M., El evangelio copto de Tomás (Sígueme, Salamanca 1989); Brenner, A., The israelite women (Sheffield 1985); Crossan, J. D., The historical Jesus. The life of a mediterranean jewish peasant (Harper & Row, San Francisco, 1991); Eu- sébio de Cesareia, Historia Ecclesiastica II-III ; Flusser, D., María: la figura de la madre de Jesús desde las perspectivas judía y cristiana , em El Olivo 11 (1987), 5-18; Gómez-Acebo, I. (ed.). María, mujer mediterránea (Desclée de Brouwer, Bilbao 1999); McArthur, H. K., The son of Mary , em NovT (1973), 38-58; Horsley, R.- Hanson, J. S., Bandits, Prophets and Messiahs: Popular Movements in the time of Jesus (Press Seabury Books, Mineápolis, Winston 1985); Klausner, J., Jesus of Nazareth. His life, times and teaching (Mcmillan, New York 1925); Kraemer, R. S., Her share of the blessings: women’s religious among pagans, jews and christians in the greco-roman world (New York-Oxford 1992); Meier, J. P., Um judeu marginal. Repensando o Jesus histórico (Imago, Rio de Janeiro 1993); Orígenes, Contre Celse, I : em SC 132 (Cerf, Paris 1967); Scharberg, J., The illegitimacy of Jesus. A feminist theological interpretation of the Infancy narratives (Harper & Row, San Francisco 1987); Sestieri Schazzocchio, L., Maria, donna, sposa e madre ebrea , em EphMar 44 (1994), 45-65; Stauffer, E., Jesus. Gestalt und Geschichte (Franke Verlag, Bern- München 1957); Stefani, P., Maria figlia di Sion e le radici ebraiche di Gesù: tracce per una ricerca , em Mar 147 (1997), 17-30; Strack-Billberbeeck, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I (Munich 1924); Tácito, Historias , li- bro 4 (Colección Austral 462); Tosato, A., Il matrimonio israelitico (Roma 1982).

Capítulo I. A mãe de um judeu marginal

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Fora dos Evangelhos não existem notícias históricas sobre Maria, a mãe de Jesus. Não é estranho, pois também são escassas as referências históricas a seu filho, Jesus de Nazaré. O historiador judeu do século I Flávio Josefo e o historiador romano Tácito, também do século I, a ele dedicam apenas algumas linhas. De sua mãe não fazem a menor menção; em todo caso, através das referências a Jesus e à situação histórica que o rodeou podemos nos aproximar da figura histórica de sua mãe.

Convém começar por aqui: pelos escritos nos quais não se encontram intenções apo- logéticas e cujos dados históricos se mostram, por isso, menos suspeitos de manipulação. Sabemos que os Evangelhos não são escritos neutros do ponto de vista da confiabilidade histórica. Não tiveram como finalidade primeira relatar a história, e sim fundamentar a fé; e também, isso sim, uma fé histórica. Os Evangelhos foram escritos como testemunhos de fé, não como provas históricas. Por isso, o recurso aos autores não cristãos, e aos que se- gundo a mentalidade do século I eram historiadores, pode ser um bom ponto de partida face à confiabilidade histórica de tudo o que posteriormente digamos sobre Maria.

I. O FILHO DE MARIA, UM JUDEU MARGINAL

Se é conhecida Maria, ela o é por causa de seu filho Jesus. A notoriedade dessa mulher está estreitamente vinculada à notoriedade de seu filho, um profeta judeu do século I. Chama a atenção, todavia, que não tenha sido concedida tal notoriedade a José, o pai de Jesus. A fama de Jesus e de Maria foram crescendo na medida em que o grupo de crentes foi aumentando.

Jesus de Nazaré, outrossim, não foi para seus contemporâneos um personagem notá- vel, famoso. Um excelente historiador moderno diz o seguinte: “Foi um judeu marginal, que esteve à frente de um movimento marginal, em uma província marginal do vasto Império Romano”^1. Os historiadores daquele tempo se interessaram mais pelo movi- mento religioso dos cristãos que pela figura de seu fundador. E isso foi mais pelo desejo de oferecer um panorama exaustivo dos movimentos religiosos no Império Romano do que para ressaltar a importância do movimento cristão. Fixemos nossa atenção em dois grandes historiadores do século I: o judeu Flávio Josefo e o romano Tácito.

  1. O testemunho de Flávio Josefo O historiador judeu Flávio Josefo^2 entre os romanos não se tornou famoso como historiador. Nem mesmo entre os judeus. Seu grande êxito foi alcançado na Igreja,

(^1) John P. Meier, Um judeu marginal. Repensando o Jesus histórico (Imago, Rio de Janeiro 1993), 65. (^2) Nasceu no ano 37 d.C. Era membro da aristocracia sacerdotal de Jerusalém. No ano 64 esteve em Roma, na presença de Nero, para defender alguns sacerdotes, seus companheiros. Voltou para a Palestina e liderou como general uma rebelião judaica na Galileia. Precisou se render diante de Vespasiano no ano 67 d.C. e lhe profetizou que iria ser imperador. Quando isso aconteceu (no ano 69), foi libertado. Foi testemunha ocular da destruição de Jerusalém, tendo servido de intérprete a Tito. Em Roma, viveu com Vespasiano. O apelativo de Flávio, acrescentado a seu nome de Josefo, deve-se ao tempo em que conviveu com os imperadores flavianos, Vespasiano e seus dois filhos sucessores, Tito e Domiciano.

Capítulo I. A mãe de um judeu marginal

23

gente marginal. Em todo caso, Josefo oferece quantidade de dados suficiente para fazer uma leitura crítica e coerente de sua obra comparada consigo mesma^9.

b) A imagem de Jesus na obra de Flávio Josefo Em uma de suas últimas obras, Sobre as antiguidades dos judeus , escrita prova- velmente sob o governo do imperador Nerva (96-98), Josefo dá um testemunho precioso sobre Jesus, que se tornou costume chamar Testimonium Flavianum^10. Discutiu-se muito sobre sua autenticidade. No estado atual da investigação parece mais razoável considerar esse texto como fundamentalmente autêntico, mas com interpolações cristãs. Estas, de fato, interrompem a fluidez do discurso e o estilo do historiador judeu, que é austero, conciso e neutro. Segundo a hipótese do especia- lista J. P. Meier, este seria o texto, com interpolações e sem interpolações^11 :

T¿ÀÁ ÃÂÄ ÅÆÁ¿ÇÈÂÉÊËÌ¿Í

Apareceu nesse tempo Jesus, um homem sá- bio, se é que verdadeiramente pode ser chamado homem. Pois ele foi autor de atos surpreenden- tes, um mestre de pessoas que recebem a ver- dade com prazer. E ele conseguiu seguidores tanto entre muitos judeus como entre muitos de origem grega. Ele era o Messias. E quando Pilatos, por causa de uma acusação feita por nossos homens mais eminentes, condenou-o à cruz, os que antes o haviam amado não dei- xaram de lhe querer bem. Pois ele lhes apareceu no terceiro dia novamente vivo, exatamente como os profetas divinos haviam dito sobre ele e sobre outros incontáveis atos assombrosos. E até hoje a tribo (φυλον) dos cristãos, que a ele deve este nome, não desapareceu.

T¿ÀÁÂ Í¿Ä ÅÆÁ¿ÇÈÂÉÊËÌ¿Í Apareceu nesse tempo Jesus, um homem sábio. Pois ele foi autor de atos surpreendentes, um mestre de pessoas que recebem a verdade com prazer. E ele conseguiu seguidores tanto entre muitos judeus como entre muitos de origem grega. E quando Pilatos, por causa de uma acusação feita por nossos homens mais emi- nentes, condenou-o à cruz, os que antes o ha- viam amado não deixaram de lhe querer bem. E até hoje a tribo (φυλον) dos cristãos, que a ele deve este nome, não desapareceu.

Se prescindimos das interpolações, emerge a figura de um Jesus homem sábio, que manifesta sua sabedoria nos atos surpreendentes que realiza e em sua capa- cidade de magistério. Essa dupla manifestação de sabedoria lhe granjeia muitos seguidores judeus e gregos. Parece que por esse motivo o acusam homens emi-

(^9) Cf. J. B. Croissan, The historical Jesus. The Life of a mediterranean jewish peasant (Harper, San Francisco 1991), 99-100. (^10) Antiquitates , 18.3.3. & 63-64. (^11) Cf. a análise detalhada, exaustiva e crítica sobre o texto, confrontada com as opiniões de muitos outros autores, em J. P. Meier, o.c., 66-77.80-

Mariologia bíblica

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nentes do povo judeu perante Pilatos. Este o condena à morte de cruz. E, todavia, os seguidores de Jesus lhe permaneceram fiéis; tanto assim é que surpreendente- mente essa tribo se mantém ativa. No mesmo livro 18, Flávio Josefo fala de João Batista^12 ; mas aí ele não tem nada a ver com Jesus, de quem Josefo fala primeiro, o que seria impensável se se tratasse de um escrito cristão.

c) Dados sobre a família de Jesus Outro texto referido a Jesus e a sua família se encontra no livro 20 de Antiquitates Judaicae^13. Esse texto narra a morte do irmão de Jesus chamado Tiago. Morto o procurador Festo, e enquanto seu sucessor Albino se encami- nhava para a Palestina, o sumo sacerdote Ananias convocou o Sinédrio sem o consentimento do procurador e condenou à morte alguns inimigos seus, entre eles Tiago:

Sendo Ananias um tipo de pessoa tal (saduceu desalmado), pensan- do que era o momento propício, visto que Festo havia morrido e Albino estava ainda a caminho, convocou o Sinédrio dos juízes e colocou diante dele o irmão de Jesus, que é chamado Cristo (τον αδελφον Ιησου), de nome Tiago, e alguns outros. Acusou-os de ter transgredido a lei e os entregou para que fossem apedrejados.

O nome Tiago ( Jacob, Jacó) era muito comum. Josefo faz referência a não poucos que têm esse nome. Para especificar de quem se tratava, Josefo não apõe o nome do pai. Identifica-o por referência a seu irmão mais conhecido, Jesus, o chamado Messias. Desse Tiago se fala várias vezes no Novo Testamento e é denominado “o irmão do Senhor” (Gl 1,19; 1Cor 9,5). Também Hegesipo, historiador da Igreja do século II, judeu convertido, fala de “Tiago, o irmão do Senhor”^14. Contudo, Josefo e Hegesipo diferem no relato da morte de Tiago. Segundo Josefo, Tiago foi apedrejado até morrer por ordem de Ananias antes de deflagrar-se a Guerra Judaica (começo do ano 62). Segundo Hegesipo, o mar- tírio aconteceu pouco depois do cerco de Vespasiano a Jerusalém (ano 70) e foi perpetrado por escribas e fariseus, que arrojaram Tiago das ameias do templo de Jerusalém e depois o apedrejaram, sendo detidos por um sacerdote; finalmente um lavadeiro teria acabado com ele a pauladas^15.

(^12) Cf. Antiquitates , 18,5,2 & 116-119. (^13) Cf. Antiquitates judaicae , 20,9,1 & 200. Está atestado em sua versão principal que é a grega. Da autenticidade desse texto quase ninguém duvida: cf. J. P. Meier, o.c., 65-67.80. (^14) Eusébio, Historia ecclesiastica , 2,23.4. (^15) Eusébio, Historia ecclesiastica , 2,23.3,19.

Mariologia bíblica

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no princípio os que professavam publicamente essa religião e depois, por indicação daqueles, uma multidão infinita, não tanto pelo delito do incêndio que se lhes imputava, mas por tê-los convencido de geral abor- recimento a geração humana. Acrescentou-se à justiça que se fez desses a irrisão e o escárnio com que se lhes dava a morte. Vestiam uns com peles de feras, para dessa maneira os despedaçarem os cães; colocavam outros em cruzes (crucibus adfici) ; lançavam outros sobre grandes pilhas de lenha e, ao terminar o dia, ateavam-lhes fogo para que, ardendo com eles, servisse de luz nas trevas de noite... E assim, embora culpados esses e merecedores do último suplício, moviam com tudo isso à compaixão e grande pesar, como pessoas a quem se tirava tão miseravelmente a vida, não para proveito público, e sim para satisfazer a crueldade de um só^19.

Esse texto se encontra em todos os manuscritos dos Anales. Tem um claro tom anticristão. Os cristãos são desprezados por seus vícios abomináveis. Esse movimento é considerado como uma perigosa superstição moral. Os cristãos são, para Tácito, um elemento a mais da decadência de Roma. Como seria bom um movimento que procede de um homem justiçado por Pôncio Pilatos (26/ d.C.), e além disso na distante Judeia? Nos tempos de Tibério esse movimento precisou ser reprimido; e assim se fez com a execução de seu fundador, Cristo, sob Pôncio Pilatos. O movimento, não obstante, criou novo viço depois que Tá- cito constatou sua persistência.

  1. As fontes rabínicas e seu testemunho A literatura rabínica está recolhida em várias fontes: a Mishnah (coleção de tradições orais dos rabinos), o Talmud da Palestina ou de Jerusalém, o Talmud de Babilônia (que contém a Mishnah com novos comentários sobre ela, chamados Guemará ), a Tosefta (tradições rabínicas anteriores não incluídas na Mishnah ou escritas posteriormente), os Targumim (tradições e perífrases aramaicas das Es- crituras hebraicas), os Midrashim (comentários rabínicos às Escrituras). A fonte mais antiga de todas é a Mishnah , que procede do fim do século II e começo do III. Isso nos previne já a respeito da possibilidade de encontrar nas fontes rabínicas informações históricas sobre Jesus, ou sobre Maria, independentes das fontes cristãs ou de Josefo ou Tácito. No Talmud não se fala de nenhum mestre talmúdico contemporâneo de Jesus ou que tenha vivido no século I e que mencione Jesus por seu nome. São os rabinos do século II que falam de Jesus, mas mais em reação ao Jesus pregado pelos cristãos do que em referência ao Jesus histórico. (^19) Tácito, Los Anales , Livro XV, Colección Austral 1085, 184-185.

Capítulo I. A mãe de um judeu marginal

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a) Jesus, ben Panthera Uma das referências a Maria e a Jesus na literatura rabínica é aquela que se refere a uma pessoa chamada “Ben Pantera” ou “ben Panthera”. Trata-se da his- tória de uma jovem judia que manteve relações ilícitas com um soldado romano chamado Panthera. Seu filho era chamado “Ben Pantera”. Orígenes é quem nos conta essa história em sua obra Contra Celsum^20 , escrita no ano 248; ele a havia lido na obra de um polemista pagão, Celso, intitulada Aleth ê s lógos e escrita em torno do ano 178. Ali se conta essa história, mas referida a Maria, mãe de Jesus. Acrescenta que seu marido, que era carpinteiro e ao qual havia sido prometida, a repudiou por adultério. Abandonada, sem recursos e sem casa, ela deu à luz em segredo. Depois Jesus passou um tempo no Egito, onde trabalhou como operário e mago, e reivindicou para si o título de deus.

Segundo isso podemos supor que, lá pela metade do século II, corria essa his- tória entre judeus da diáspora. Não obstante, parece que não era conhecida por Justino, apologeta e mártir, em seu diálogo com o judeu Trifon, obra escrita em torno do ano 150. Não é lógico pensar que da Palestina tenha chegado aos judeus da diáspora uma tradição secreta sobre a ilegitimidade de Jesus. O relato de Celso reflete algumas características próprias do Evangelho de Mateus: a angústia de José, a fuga para o Egito, a história dos magos e a conexão de Jesus com a magia. O relato de Celso nos indica que em meados do século II alguns judeus da diáspora conheceram as afirmações de Mt 1,18-25 e tentaram refutá-las por meio de uma paródia. Sua origem na diáspora, e não na Palestina, torna improvável que tenha- mos nesse texto de Celso um fragmento de informação histórica, pelo que existe a possibilidade “de que fosse uma paródia judaica polêmica do relato cristão da concepção virginal, tal como é apresentada no Evangelho de Mateus”^21.

Segundo alguns autores, a história de Jesus “ben Panthera” se encontra re- gistrada ou referida em alguns escritos rabínicos do século II: Mishnah Yeba- moth 4,13; Sabbath 104b; Sanhedrin 67a; Peshita Rabbathi 100b; Tosefta Hullin 2,24 etc.^22.

Sobre o tema da origem de Jesus, a Mishnah Yebamoth (ou As cunhadas ) apre- senta a declaração de Rabi Simeon ben Azay, que diz: “Encontrei em Jerusalém

(^20) Cf. Orígenes, Contra Celsum I,32, ed. Marcel Borret, Origène, Contre Celse , t. I, SC 132 (Cerf, Paris 1967), 162-163. (^21) J. P. Meier, Um judeu marginal. Repensando o Jesus histórico , 223. (^22) Klausner cita várias baraitas (doutrinas rabínicas antigas não incluídas na Mishnah ) de Rabi Eliezer ben Hircano e de Rabi Ismael (fim do século I e início do II). Cf. J. Klausner, Jesus of Nazareth. His life, times and teaching (Mcmillan, New York 1925). Ethelbert Stauffer escreveu: “Em um registro genealógico do ano 70 aparece Jesus como ‘bastardo de uma mulher casada’ (Jebamoth 4,13)... Os rabinos posteriores (ao evangelista Mateus) chamam Jesus, simplesmente, o filho da adúltera, o filho da prostituta (Sabbath 104b; Sanh 67a; Pes Rabbathi 100b). Eles conhecem bem o nome do pai desconhecido”: Pan- thera. Já nos antigos textos rabínicos escutamos falar de Jesus ben Panthera (Tosefta Hullin 2,24, etc.)”: Ethelbert Stauffer, Jesus Gestalt und Geschichte (Franke Verlag, Berne-München 1957), 23.