




























































































Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
A jornada de Gilgamesh
Tipologia: Notas de estudo
1 / 119
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
Anônimo
Tradução de Carlos Daudt de Oliveira ISBN 85-336-1389-X
Introdução Agradecimentos A Epopéia de Gilgamesh Prólogo: Gilgamesh, rei de Uruk
período anterior ao aparecimento da Ilíada de Homero; e é também incomparavelmente mais antigo. Temos boas razões para crer que a maior parte dos poemas de Gilgamesh já haviam sido escritos nos primeiros séculos do segundo milênio a.C. e que provavelmente já existiam numa forma bastante semelhante muitos séculos antes disso, ao passo que o texto definitivo e a edição mais completa da epopéia vêm do século VII, da biblioteca de Assurbanipal, antiquário e último dos grandes reis do Império Assírio. Assurbanipal foi um grande general, o saqueador do Egito e de Susa; mas foi também o compilador de uma notável biblioteca, composta por documentos relativos à história contemporânea e por hinos, poemas e textos científicos e religiosos muito mais antigos. Ele nos conta que enviou seus servos aos antigos centros de saber de Babilônia, Uruk e Nippur para que pesquisassem seus arquivos e copiassem e traduzissem para o semítico acadiano da época os textos escritos na antiga língua suméria da Mesopotâmia. Entre esses textos, "Copiados segundo o original e cotejados no palácio de Assurbanipal, Rei do Mundo, Rei da Assíria", estava o poema que chamamos a Epopéia de Gilgamesh. Não muito depois de este trabalho de cotejo ter sido concluído, a epopéia virtualmente perdeu-se e o nome do herói foi esquecido, deturpado ou desfigurado até se tornar praticamente irreconhecível — até ser redescoberto no século passado. Esta descoberta deveu-se, em primeiro lugar, à curiosidade de dois ingleses, e depois ao trabalho de muitos estudiosos em diferentes partes do mundo, que juntaram, copiaram e traduziram as tábuas de argila onde o poema foi escrito. Esta é uma obra ainda em andamento, e a cada ano que se passa mais lacunas são preenchidas; mas o corpo principal da epopéia assíria não tem sido alterado em seus aspectos essenciais desde a monumental publicação do texto, Com transliteração e comentários, por Campbell Thompson, em 1928 e 1930. Mais recentemente, contudo, atingiu-se um novo estágio, e uma nova onda de interesse surgiu em torno do trabalho do Professor Samuel Kramer, da Pensilvânia, cujo cotejo e tradução dos
textos sumérios leva a história da epopéia de volta ao terceiro milênio antes de Cristo. Já é possível agora combinar e comparar um corpo de escritos bem maior e bem mais antigo do que o que tínhamos até então.
A descoberta das tábuas remonta à era heróica das escavações, em meados do século XIX, quando, embora os métodos não fossem sempre tão escrupulosos nem os objetivos tão estritamente científicos como hoje, as dificuldades e até mesmo os perigos do empreendimento eram bem maiores, e os resultados causavam um impacto capaz de alterar profundamente a perspectiva intelectual da época. Em 1839, um jovem inglês, Austen Henry Layard, partiu com um amigo para uma viagem por terra até o Ceilão; mas ele se deteve por algum tempo na Mesopotâmia para fazer um reconhecimento das colinas assírias. A demora de algumas semanas se estendeu por anos, mas por fim Nínive e Nimrud foram escavadas; e foi de uma dessas escavações que Layard trouxe para o Museu Britânico uma grande parte de sua coleção de esculturas assírias, junto com milhares de tábuas quebradas do palácio de Nínive. Quando Layard começou a escavar em Nínive, esperava encontrar inscrições; mas a realidade, uma biblioteca soterrada contendo toda uma literatura perdida, superou suas maiores expectativas. Na verdade, a extensão e o valor da descoberta só foram avaliados posteriormente, depois que as tábuas com caracteres em forma de cunha foram decifradas. Como era de esperar, algumas dessas tábuas se perderam; mas mais de vinte e cinco mil tábuas quebradas, uma quantidade enorme, foram levadas para o Museu Britânico. O trabalho de decifração foi iniciado por Henry Rawlinson, na
à fome, vindo a falecer perto de Alepo aos trinta e seis anos; mas já desbravara todo um novo território na área dos estudos bíblicos e da história antiga. Ao publicar o "Dilúvio" assírio, Smith afirmou tratar-se evidentemente de uma cópia de uma versão muito mais antiga feita em Uruk, a Erech da Bíblia, conhecida hoje como Warka. Alguns anos antes, entre 1849 e 1852, W. K. Loftus, membro da Comissão de Fronteira Turco-Persa, passara duas curtas temporadas escavando em Warka, onde encontrou curiosos restos, inclusive tábuas e aquilo que hoje sabemos ser paredes de mosaico do terceiro milênio. Mas Warka teve de esperar até os anos vinte e trinta deste século para vir a receber mais atenção; foi quando os alemães empreenderam grandes escavações que revelaram uma longa série de construções, bem como tábuas e esculturas. Graças a esse trabalho, sabe-se muito hoje em dia a respeito da antiga Uruk, de seus templos e da vida de seus habitantes. Ainda mais importantes para a história da Epopéia de Gilgamesh foram as atividades de uma expedição americana da Universidade da Pensilvânia, comandada por John Punnet Peters, que ao final do século XIX começou a trabalhar no monte de Niffer, a antiga Nippur, no sul do Iraque. Já se tinha nessa época bem mais experiência com os problemas que envolviam a escavação de cidades antigas; mas ainda assim os riscos eram enormes. O primeiro período em Nippur, 1888-9, começou alegremente com a chegada de Peters e seu grupo ao sítio de escavação, depois de um galope desenfreado através dos bambuzais em cima de fogosos garanhões; mas sua última visão do monte ao final da temporada foi a de árabes hostis executando uma dança de guerra nas ruínas do acampamento. O trabalho continuou, contudo, no ano seguinte, e um total de trinta a quarenta mil tábuas foram encontradas e distribuídas entre museus na Filadélfia e Istambul. Em um pequeno grupo destas tábuas encontram-se as versões mais antigas do ciclo de Gilgamesh na língua suméria. O trabalho em campo e nos museus continua. Com a publicação das tábuas de Ur que se
encontram no Museu Britânico, novos acréscimos foram feitos ao texto conhecido. Foram também identificadas tábuas em Bagdá e em outras partes, algumas de importância histórica, outras diretamente relacionadas ao texto. A dispersão deste material tem complicado o trabalho de decifração, pois, em alguns casos, metade de uma tábua importante está guardada na América e a outra em Istambul, fazendo-se necessário juntar cópias de ambas as partes para que seu conteúdo possa ser compreendido. A maioria dos textos antigos são documentos comerciais e administrativos, arquivos de negócios, listas e inventários que, embora sejam profundamente interessantes para o historiador, não o são para o leitor médio. A recente decifração da escrita conhecida como "linear B", da Era do Bronze de Micenas e Creta, não revelou literatura alguma. Uma enorme biblioteca descoberta em Kültepe, na Anatólia Central, compõe-se integralmente de registros de transações comerciais; excetuando-se um solitário texto, que, além disso, é uma maldição, não há ali nada de natureza literária. A importância das escavações em Nippur, Nínive e outros grandes centros da antiga civilização mesopotâmica é terem restaurado uma literatura de alta qualidade e de caráter único. A Epopéia de Gilgamesh deve ter sido bastante conhecida no segundo milênio antes de Cristo, pois encontrou-se uma versão da narrativa nos arquivos da capital imperial hitita em Boghazköy, na Anatólia, escrita em acadiano semítico; e foi também traduzida para o hitita indo-europeu e para a língua hurrita. Encontraram-se partes da epopéia em Sultantepe, no sul da Turquia-; e um fragmento, pequeno mas importante, descoberto em Megido, na Palestina, aponta para a existência de uma versão cananéia ou palestina mais moderna, o que sugere a possibilidade de os primeiros autores da Bíblia estarem familiarizados com a história. O fragmento palestino vem da tábua que descreve a morte de Enkidu. A versão que mais se aproxima deste fragmento é a do conhecido relato de Boghazköy. As escavações feitas
As escavações arqueológicas e a decifração dos textos ensinaram-nos muito a respeito do contexto histórico e literário da Epopéia. Embora somente a última versão, a da biblioteca de Assurbanipal, tenha sobrevivido em forma relativamente completa, a impressão que se tem é de que todos os elementos mais importantes da história existiam como poemas separados na literatura suméria mais antiga; poemas estes que podem ter sido, e é quase certo que foram, compostos e recitados oralmente muito antes de terem sido registrados em forma escrita. Embora nenhum elemento da história possa ser posterior à destruição de Nínive no século VII, uma situação típica do terceiro milênio é discernível por detrás de grande parte da ação e provavelmente proporcionou seu contexto. A tradição por trás disso remonta mais uma vez à era anterior ao aparecimento da escrita, na fronteira entre a lenda e a história, um pouco depois do Dilúvio, quando os deuses foram substituídos pelos mortais nos tronos das cidades-estados. Estamos falando da civilização suméria arcaica. Os sumários foram os primeiros habitantes da Mesopotâmia a conhecer a escrita, e é na língua deles que foram escritas as mais antigas tábuas de Nippur relacionadas a Gilgamesh. Eles já haviam irrigado o país e povoado o território com suas cidades antes da invasão das tribos semíticas no decorrer do terceiro milênio. Os próprios sumérios devem ter sido conquistadores a entrar na região pelo norte e pelo leste durante o quarto milênio. A influência deste povo talentoso, demonstrada nas leis, na língua e no campo das idéias, persistiu por muito tempo após a invasão de seus vizinhos semitas. Esta influência tem sido comparada, e com justiça, à de Roma sobre a Europa medieval. Seu idioma continuou sendo utilizado na escrita, como o latim na Idade Média, por muitos séculos após a perda de sua identidade política. Por isso, não representa anacronismo algum o fato de encontrarmos os primeiros textos de
Gilgamesh escritos nesta língua "culta", embora a maior parte deles date do começo do segundo milênio, após a conquista semita. As escavações mostram que a civilização suméria arcaica do começo do terceiro milênio, também chamada civilização do antigo período dinástico, é posterior aos notáveis sinais de enchentes constatados em vários sítios importantes: entre eles, Shurrupak, Kish e Uruk. Estes sinais coincidem com o final do último período pré-histórico, que os arqueólogos chamam Período de Jemdet Nasr; mas não há provas de que tenham sido rigorosamente contemporâneos. Sir Leonard Wolley identificou em Ur uma catástrofe ainda mais antiga, mas sua extensão foi apenas local, e não há provas arqueológicas que corroborem a ocorrência de um desastre natural de proporções devastadoras; nem mesmo as mais antigas tradições sumérias fazem menção a um dilúvio de conseqüências catastróficas. Nos escritos sumérios posteriores, bem como nos antigos textos babilônicos, as enchentes e os dilúvios são enviados pelos deuses, junto com outros castigos igualmente catastróficos: a doença, a seca e a fome. Citam-se cinco cidades que teriam existido antes do dilúvio, e, para elas, "o Poder Real descia do Céu". Após a catástrofe, "O Poder Real mais uma vez desceu à Terra", e as cidades-estados que surgiram nessa época freqüentemente se punham em guerra umas contra as outras. A semi-histórica "Lista Dinástica Suméria", composta no começo do segundo milênio, mostra que Kish foi a primeira cidade a ganhar preeminência; mas, algum tempo depois, Uruk derrotou Kish e tirou-lhe a supremacia. Estes dois Estados eram tradicionalmente rivais. Na lista dinástica, Gilgamesh consta como o quinto monarca da primeira dinastia pós-diluviana de Uruk (ver abaixo). A riqueza destas cidades tornava-as alvo de cobiça, uma grande tentação para as tribos semitas selvagens da Arábia e para os povos guerreiros do Elam e das regiões montanhosas da Pérsia, a leste. Pouco depois da queda da dinastia de Uruk, quando os semitas se instalaram em Agade, no norte, seu rei, Sargão, afirmou ter sob seu comando um
à força de relutantes tribos da Pérsia, da Arábia ou da Capadócia. Foi assim, pois, que se estabeleceu a imemorial hostilidade entre os montanheses e os homens da planície, sentimento que serviu de tema para um grupo de poemas sumérios que descrevem o relacionamento conturbado entre Uruk e Aratta, um Estado nas colinas orientais. Possuímos documentos históricos com registros quase contemporâneos de várias expedições empreendidas durante o terceiro milênio por Sargão de Agade e Gudea de Lagash, para proteger suas colônias de mercadores e obter madeira para suas construções. Tais expedições, além disso, certamente não foram as primeiras. O cedro vinha das montanhas Amano, no norte da Síria e sul da Turquia, e talvez do Líbano e do sudeste da Pérsia. Relata-se que Sargão empreendeu uma campanha vitoriosa pelos territórios do norte, e que seu deus Dagon deu-lhe a "região superior" até a "Floresta de Cedros" e a "Montanha de Prata". A floresta de cedros, neste caso, é certamente Amano. Por sua vez, quando Gudea, rei de Lagash, quis construir um templo para o deus Ningirsu, "Trouxeram para Gudea o cobre de Susa, do Elam e das terras ocidentais... trouxeram-lhe grandes toras de salgueiro e ébano, e Gudea abriu uma trilha na montanha de cedros onde ninguém jamais penetrara; ele cortou os cedros com grandes machados. Balsas de cedro, como gigantescas cobras, flutuavam rio abaixo vindas da montanha de cedro; balsas de pinho vinham da montanha de pinheiro. Em pedreiras onde ninguém jamais esteve, Gudea, o sacerdote de Ningirsu, abriu uma trilha; as pedras chegavam em grandes blocos, e chegavam também caçambas de betume e gesso das montanhas de Magda; tantos quantos os barcos que trazem aveia dos campos." Por detrás do Gudea de carne e osso podemos discernir a figura nebulosa de Gilgamesh, o grande construtor de templos e cidades, que se aventurou pelo interior das florestas trazendo de volta a preciosa madeira do cedro.
Sobreviveram da literatura sumária cinco poemas relacionados a Gilgamesh. Destes poemas, dois foram utilizados e combinados com material mais recente nesta versão da epopéia; são eles "Gilgamesh e a Terra dos Vivos" e fragmentos da "Morte de Gilgamesh", que, como sabemos hoje, fazia parte de um texto bem mais longo, de pelo menos 450 linhas. A linguagem usada aqui é muito semelhante à de um lamento por Ur-Nammu, monarca de Ur que viveu por volta de 2100 a.C., cujo texto, de passagem, cita o nome de Gilgamesh. Um outro poema, enfocando "Gilgamesh e o Touro do Céu", está por detrás dos episódios da recensão ninivita que descrevem o insulto à Deusa Ishtar e sua vingança. Uma grande parte do poema sumério "Gilgamesh, Enkidu e o Mundo Inferior" foi traduzida quase que literalmente e acrescentada à epopéia assíria (Tábua XII) sem tentativa de adaptação, embora seja incompatível com eventos anteriormente descritos (Tábua VII). Este adendo, porém, parece fornecer uma alternativa ao "Sonho" e à "Morte de Enkidu", episódios colocados no centro da versão assíria. O episódio "Gilgamesh e Agga", assim como "A Morte de Gilgamesh", é conhecido apenas em sumério. Tratava-se de uma narrativa não muito heróica e sem muita relação com o resto do texto, sobre disputas e um leve conflito armado envolvendo os Estados rivais de Kish e Uruk. Embora seu espírito seja típico de parte da poesia suméria, foge demais ao estilo do resto da obra para que possa ser incluído numa "Epopéia de Gilgamesh". Não seria surpreendente descobrir que os estudiosos e copistas de Assurbanipal o rejeitaram, embora, é claro, talvez desconhecessem sua existência. A história do Dilúvio não fazia parte do ciclo de Gilgamesh na literatura suméria; era um poema independente que tinha no papel de Noé um herói chamado Ziusudra, nome que significa "ele viu a vida". Há também um "Dilúvio" babilônico arcaico, datando da primeira metade do segundo milênio, no qual o herói chama-se Atrahasis. Neste poema, a
antecessor de Gilgamesh no trono de Uruk; na lista dinástica suméria, ele é o segundo nome após o dilúvio. Nos poemas de Enmerkar, o rei está em conflito com o senhor de Aratta, Estado situado a leste, nas montanhas da Pérsia. motivo da briga é comercial e parece girar em torno de uma troca do trigo de Uruk por pedras para construção e metais preciosos, ouro, prata e lápis-lazúli de Aratta. Embora o texto conte com a participação de arautos e grandes guerreiros, sua ação é ainda menos heróica do que a de "Gilgamesh e Agga". Como poderia se esperar de uma obra originada em Uruk, o Estado sai sempre vencedor em suas contendas contra Aratta. Também herói de dois poemas é Lugulbanda. Este rei é o terceiro da lista dinástica, e Gilgamesh às vezes se refere a ele como sendo seu "pai" semidivino. Lugulbanda é uma figura mais interessante do que Enmerkar e, como Gilgamesh, é um viajante. Em "Lugulbanda e Enmerkar", ele é vassalo e paladino deste último. Também como Gilgamesh, Lugulbanda atravessa grandes montanhas e o rio Kur (isto é, o rio do mundo inferior) antes de conseguir livrar Enmerkar de seus inimigos. Em "Lugulbanda e o Monte Hurrum", ele é dado como morto e abandonado por seus companheiros em uma outra jornada pelas montanhas, desta vez em Aratta. Por meio de piedosos sacrifícios, Lugulbanda obtém a proteção do Deus-Sol; e, mais uma vez, tal como Gilgamesh em suas peregrinações pelas regiões agrestes, ele come carne de animais selvagens e plantas silvestres como se fosse um pobre caçador. Nossa epopéia parece conter uma alusão proposital a este episódio, quando os conselheiros de Gilgamesh o fazem recordar-se da devoção de Lugulbanda e o exortam a fazer sacrifícios ao sol e a "não se esquecer de Lugulbanda". E possível então que os compiladores mais recentes tenham se inspirado também neste ciclo, além do ciclo original de Gilgamesh. A epopéia suméria foi provavelmente criada na fase proto-histórica da civilização suméria arcaica, no começo do terceiro milênio. O poema, contudo, só veio a ser transcrito muitos séculos mais
tarde. Segundo uma teoria bastante aceita, estes sumérios chegaram à Mesopotâmia antes de 3000 a.C. Instalaram-se em suas férteis planícies, herdando a prosperidade dos habitantes originais, que, não dominando a escrita, são conhecidos apenas pela beleza de sua cerâmica e por suas aldeias de cabanas cobertas de colmos e casas de tijolos secos ao sol. Segundo uma teoria alternativa, os próprios sumérios foram os primeiros agricultores na Mesopotâmia. De qualquer maneira, o mundo descrito nas "epopéias" é bem semelhante àquele dos primeiros cinco séculos do terceiro milênio, antes da unificação do panteão no fim do milênio (sob a terceira dinastia de Ur) e antes da padronização e do formalismo do segundo milênio. Dentre as primeiras obras literárias sumérias, os poemas de Enmerkar parecem mais narrativas de disputa e debate argumentativo do que epopéias heróicas. Não se traduziu ainda o suficiente do ciclo de Lugulbanda para se julgar até que ponto seu estilo pode ser considerado épico e heróico. A maior parte dos demais poemas sumérios são hinos e lamentos dirigidos aos deuses, ou que se ocupam de seus atributos e atividades. Conhecem-se alguns poemas "épicos", todos mais ou menos fragmentários, do período babilônico arcaico ou de períodos mais recentes, mas seus protagonistas são em geral deuses ou monstros. Gilgamesh é o único personagem humano de estatura heróica que chegou a nossos dias, embora alguns fragmentos heróicos possam ser encontrados em outros textos literários, como o "Cântico de Débora" no Livro dos Juizes.
escrita. Gilgamesh, contudo, também é lembrado como um juiz justo, e relatos posteriores o transformaram, como o Minos de Creta, num juiz do mundo inferior, a quem as pessoas dirigiam suas orações e que era invocado através de encantamentos e rituais. Uma prece começa: "Gilgamesh, rei supremo, juiz dos Anunnaki." O herói é descrito no começo do poema. Ele é dois terços deus e um terço homem, pois sua mãe era uma deusa, como a mãe de Aquiles. Dela Gilgamesh herdou grande beleza, força e inquietude. De seu pai herdou a mortalidade. A história tem muitos desdobramentos, mas eis sua tragédia: o conflito entre os desejos do deus e o destino do homem. A mãe de Gilgamesh era uma deusa relativamente obscura, que possuía um templo-palácio em Uruk. Na lista dinástica, seu pai é descrito um tanto misteriosamente como um "lillû", que quer dizer um "tolo" ou um demônio vampiresco, e também como um sumo sacerdote. Na versão suméria, Gilgamesh é o "sacerdote de Kullab", uma área de Uruk, mas em seus momentos de tensão ele invoca Lugulbanda chamando-o de "pai". O reinado de Lugulbanda foi o segundo antes de Gilgamesh e o terceiro após o dilúvio. Ele era o protetor da cidade e era chamado de deus. Lugulbanda reinou por 1200 anos. Numa obra que existe há tanto tempo e que foi tão freqüentemente copiada e alterada, é inútil buscar precisão histórica nos eventos narrados. Exprimi a opinião de que a situação política do terceiro milênio constitui o mais provável pano de fundo da ação. O fato mais impressionante é o grau de unidade espiritual encontrado em todo o ciclo — no sumério, no babilônio antigo e no assírio —, unidade que se origina do caráter do herói e de uma atitude profundamente pessimista em relação ao mundo e à vida humana. A insegurança da vida na Mesopotâmia explica, pelo menos em parte, essa atitude. Havia, além disso, aquele sentimento a que Henri Frankfort deu o nome de "angústia implícita", devida ao "terror obsessivo de que forças turbulentas e misteriosas pudessem trazer a qualquer momento uma catástrofe à sociedade humana". Percebemos de antemão no caráter de Gilgamesh
uma preocupação dominante com a fama e a reputação, assim como a revolta do homem mortal contra as leis da separação e da morte. O conflito do homem selvagem ou "natural", representado pelo personagem Enkidu, com o civilizado, representado por Gilgamesh, parece menos fundamental, embora tenha sido reenfatizado recentemente por pelo menos um autor. A história é dividida em episódios: um encontro de amigos, uma jornada pela floresta, o insulto a uma deusa caprichosa, a morte do companheiro e a busca da sabedoria ancestral e da imortalidade. Por todos eles perpassa uma mesma idéia, como no refrão do poeta medieval, "Timor mortis conturbai-me". No episódio da Floresta de Cedros, esta idéia central funciona apenas como um estímulo à ambição do herói de deixar um nome a ser lembrado; mas após a morte de seu fiel companheiro o tema torna-se mais imperioso: "Como posso descansar depois que Enkidu, a quem amo, virou pó, e quando também eu morrerei e serei enterrado para sempre?" No final do poema, este espírito se transforma em mofa devido às oportunidades perdidas e às esperanças desfeitas. Esta atmosfera continua até a cena final, a da morte do próprio herói, quando a ambição humana é tragada pelo destino e acaba por se realizar através dos antigos rituais. A causa do pessimismo que dominava o pensamento mesopotâmico jaz em parte na precariedade da vida nas cidades-estados, uma vida submetida aos caprichos das enchentes, das secas e das ações de uma vizinhança turbulenta. O destino destes povos dependia também do caráter dos deuses, que eram considerados os poderes responsáveis por tais condições. Uma vez que os deuses desempenham um papel tão importante na epopéia, é bom falarmos um pouco a respeito destas criaturas imprevisíveis e aterrorizantes. Seus nomes e principais atributos estão arrolados no Glossário (p.165), mas alguns deles, que desempenham um papel decisivo na ação, exigem por isso uma descrição um pouco mais detalhada. Seus nomes parecem estranhos e soam pouco familiares aos ouvidos ocidentais, e a