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A “encantada” Ilha dos Lençóis no cenário do ecoturismo, Manuais, Projetos, Pesquisas de Turismo

nativos, albinos e não-albinos, se autode- nominam como “filhos do Rei Sebastião”. Falar em Ilha dos Lençóis é vivificar o imaginário sobre a presença de um ...

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Copacabana
Copacabana 🇧🇷

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dossiê
Resumo
Identifica-se como uma “encantada” ilha
maranhense, a Ilha dos Lençóis, é apro-
priada através de uma multiplicidade de
discursos que exaltam o exotismo como
atrativo turístico, enfatizando-se a r ica
biodiversidade local e os “mistérios” que
a cercam. Chama-se a atenção para o fa-
to de o imaginário sobre o lugar e seus
habitantes, revestido da “encantaria se-
bastianista” (seu patrimônio cultural par
excellence), e de um rico patrimônio na-
tural serem arregimentados no discurso
do ecoturismo. O estudo promove uma
visibilidade da Antropologia do Turismo.
Palavras chave
Ilha dos Lençóis. Patrimônio. Ecoturismo.
Imaginário.
Abstract
It is identified as an “enchanted island”
from Maranhão State, the Ilha dos Lençóis,
is appropriate through a multiplicity of
speeches enhance the exotic as tourist
attractive, emphasizing it rich local
biodiversity and the “mysteries” surround
it. It is called attention for the fact of the
imaginary on the place and its inhabitants,
coated of the “encantaria sebastianista” (its
cultural patrimony par excellence), and of
a rich natural patrimony, to be organized
in the speech of the ecotourism. The study
promotes a visibilty of the Anthropology
of Tourism.
Keywords
Ilha dos Lençóis. Patrimony. Ecotourism.
Im agi nary.
Madian de Jesus Frazão Pereira
A “encantada” Ilha dos Lençóis
no cenário do ecoturismo:
reflexões acerca do fenômeno turístico
numa abordagem antropológica
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dossiê

Resumo Identifica-se como uma “encantada” ilha maranhense, a Ilha dos Lençóis, é apro- priada através de uma multiplicidade de discursos que exaltam o exotismo como atrativo turístico, enfatizando-se a rica biodiversidade local e os “mistérios” que a cercam. Chama-se a atenção para o fa- to de o imaginário sobre o lugar e seus habitantes, revestido da “encantaria se- bastianista” (seu patrimônio cultural par excellence ), e de um rico patrimônio na- tural serem arregimentados no discurso do ecoturismo. O estudo promove uma visibilidade da Antropologia do Turismo.

Palavras chave Ilha dos Lençóis. Patrimônio. Ecoturismo. Imaginário.

Abstract It is identified as an “enchanted island” from Maranhão State, the Ilha dos Lençóis, is appropriate through a multiplicity of speeches enhance the exotic as tourist attractive, emphasizing it rich local biodiversity and the “mysteries” surround it. It is called attention for the fact of the imaginary on the place and its inhabitants, coated of the “encantaria sebastianista” (its cultural patrimony par excellence ), and of a rich natural patrimony, to be organized in the speech of the ecotourism. The study promotes a visibilty of the Anthropology of Tourism.

Keywords Ilha dos Lençóis. Patrimony. Ecotourism. Imaginary.

Madian de Jesus Frazão Pereira

A “encantada” Ilha dos Lençóis

no cenário do ecoturismo:

reflexões acerca do fenômeno turístico

numa abordagem antropológica

198 Revista Pós Ciências Sociais v.6, n.12, 2009

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo constitui-se numa tes- situra sobre algumas questões que desen- volvi em minha tese de doutorado (PEREI- RA, 2007), que enveredam por reflexões te- óricas na área da Antropologia do Turismo, por meio da qual busco apreender o proces- so de construções simbólicas sobre o patri- mônio da Ilha dos Lençóis, situada no litoral ocidental do Estado do Maranhão. Conside- ra-se o patrimônio dessa ilha maranhense, com ênfase em construções simbólicas que a designam como uma “ilha encantada”^1 e como um “lugar” com características singu- lares^2 consideradas elementos atrativos pa- ra empreendimentos que propalam o con- ceito de desenvolvimento sustentável. A Ilha dos Lençóis congrega ricas ca- racterísticas simbólicas e naturais que vêm sendo arregimentadas nos discursos do ecoturismo e das Unidades de Conservação,

que podem ser percebidos, por exemplo, através da análise de matérias de divulga- ção sobre a região, elaboradas por empre- endedores do setor turístico, gestores mu- nicipais e estaduais, bem como por jorna- listas. Tais questões emergem no momen- to em que a Ilha dos Lençóis é apresentada como vitrine num dos pólos de ecoturismo do Estado do Maranhão e como integran- te de uma Reserva Extrativista, mais espe- cificamente da RESEX Marinha de Cururu- pu^3 ; processos que tomam fôlego a partir do ano de 2000 e que, embora não elabo- rados conjuntamente, se interpenetram em vários momentos, como demonstro ao lon- go da minha tese. Pertencente ao arquipélago de Maiaú^4 , no município de Cururupu, a Ilha dos Len- çóis é uma ilha costeira que tem como um dos pontos mais marcantes o seu imponen- te conjunto de dunas, que formam 70% de sua cobertura. Localiza-se na área das

1. A Ilha dos Lençóis é considerada uma ilha encantada, enquanto lugar privilegiado para morada de El Rei Dom Sebastião, figura histórica, morto em batalha contra os mouros, nos campos de Alcácer-Qui- bir, na África, no ano de 1578. Segundo a crença messiânica, difundida em várias partes do Brasil, Dom Sebastião, o jovem rei de Portugal, não morreu, ele haveria se encantado com todo o seu reinado, por sortilégio dos mouros, numa ilha (provavelmente marcada por muitas dunas à semelhança do deserto marroquino onde ocorrera a batalha), e que um dia ele há de emergir do fundo do mar, onde está sedia- do seu palácio de riquezas, para instaurar seu Império e distribuir bens materiais para os seus adeptos. 2. As construções simbólicas são plurais e partem de diversos segmentos que designam a ilha como “en- cantada” e misteriosa. Temos as simbologias dadas pelos próprios moradores locais, as que são repre- sentativas da religiosidade local, sobretudo pelo Tambor de Mina (religião afro-brasileira predominante no Maranhão) e as que são divulgadas pela mídia e por propagandas turísticas, que, de uma maneira ge- ral, vêm veiculando matérias sobre a “excentricidade da Ilha dos Lençóis. 3. Criada pelo decreto presidencial de 02 de junho de 2004, a Reserva Extrativista de Cururupu está lo- calizada nos Municípios de Cururupu e Serrano do Maranhão, Estado do Maranhão, com área aproxi- mada de 185.046,592 ha (cento e oitenta e cinco mil quarenta e seis hectares e quinhentos e noventa e dois centiares) de áreas terrestres de manguezais e águas territoriais brasileiras. A Reserva Extrativista Marinha de Cururupu conta com 2600 famílias. Abrange 15 ilhas (Mangunça, Caçacueira, Peru, São Lu- cas, Valha-me-Deus, Guajerutiua, Lençóis, Ponta Seca, Porto Alegre, Retiro, Bate-Vento, Porto do Meio, Mirinzal, Iguará e Beiradão). (BARROS, [2005]). 4. O arquipélago de Maiaú é composto pelas ilhas: Maiaú (mais conhecida como Bate-Vento), Porto do Meio, Aracajá, Mirinzal, Retiro, Mulata, Parida, Iguará, Jabaroca, Urumaru, Cajualzinho e Lençóis.

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quando retratada pela literatura, pelos meios de comunicação, por relatos de visitantes disponibilizados na internet, por exemplo, é apresentada sob os adjetivos: “misteriosa”, “fantástica”, “isolada”, “paradisíaca”. A simbologia da “encantaria sebastia- nista” na “Praia de Lençóis”^9 tem um pe- so muito forte nas representações e visão de mundo dos ilhéus que acreditam que o Rei Sebastião é o “dono do lugar”, e por isso o respeitam. O sistema de representa- ções, símbolos e mitos com o qual a comu- nidade de pescadores de Lençóis opera e que dá sentido à sua organização social é muito rico, o que, de alguma forma, tenta- mos analisar em outros trabalhos (PEREI- RA, 2000; PEREIRA, 2007). Por ora, para as pretensões deste artigo, procuro iden- tificar algumas representações que de al- guma forma contribuem na elaboração de atrativos aos visitantes que se lançam a conhecer a “ilha encantada”. Todavia, um elemento que não pos- so deixar de chamar a atenção refere-se a uma informação obtida na Ilha dos Len- çóis, ainda no final da minha pesquisa re- ferente ao mestrado^10 , quando, no proces- so de familiarização com questões gerais sobre a comunidade, me deparei com as- pectos curiosos sobre a “encantaria sebas- tianista”; entre os principais, o de que o Rei Sebastião estaria transferindo-se para

outra localidade, pois a “natureza” do Rei Sebastião seria o mistério, seguro em lugar isolado e preservado, pois só assim conti- nuaria “encoberto” como “ele” deseja. Esse dado chamou-me bastante a aten- ção, porque dá elementos para a reelabo- ração do mito sebastianista, a partir de as- pectos exógenos que estão intimamente relacionados à discussão sobre mudança cultural. Com isso, suponho que o desdo- bramento do mito pode abrir um rico diá- logo com as categorias ecoturismo, susten- tabilidade, patrimônio e identidade, além de suscitar a investigação sobre a relação insiders/outsiders – entre os “de dentro” (nativos e moradores que se instalaram na ilha há bastante tempo) e os “de fora” (so- bretudo, visitantes atraídos pelo potencial turístico) - pela qual pode se analisar se há a idéia de que o mal vem de fora. Com o projeto de divulgação do ecotu- rismo na Ilha dos Lençóis, já se verifica que o “exotismo” está sendo evidenciado como atrativo para os turistas. Resta saber como os nativos estão re-elaborando suas posi- ções nesse novo cenário, com vistas não só à manutenção da biodiversidade local, mas muito mais em defesa de seu patrimônio cultural. Uma das formas de se perceber es- sa problemática já pode ser vista na pró- pria re-elaboração da principal base míti- ca da localidade, que é a crença na “encan-

9. “Praia do Lençol” ou “Praia de Lençóis” são os termos mais populares, utilizados sobretudo pelos ilhéus, referentes tanto ao povoado quanto à parte desabitada da ilha. 10. Entre os anos de 1998 e 2000, fiz pesquisa de campo e elaborei a dissertação de mestrado intitula- da “O imaginário fantástico da Ilha dos Lençóis: estudo sobre a construção da identidade albina numa ilha maranhense” (PEREIRA, 2000). Através desse empreendimento, trabalhei com o entrelaçamento de temáticas como corpo, imaginário e “encantaria sebastianista”, na Ilha dos Lençóis. Ao longo do traba- lho, procurei esmiuçar as duas denominações que são fundamentais na construção desta comunidade:

  1. “os filhos da Lua” – criação de fora, sobretudo de repórteres, a qual os ilhéus (albinos e não-albinos) rejeitam, pois consideram-na uma concepção negativa, que os estereotipa numa imagem de anormali- dade; 2) “os filhos do Rei Sebastião” – vertente da Encantaria, aceita por eles, na qual se pensam cole- tivamente nessa descendência mitológica cujo imaginário marca uma filiação com o “dono da ilha”.

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taria sebastianista”, que designa que a Ilha dos Lençóis abriga no “mundo do fundo”, debaixo de suas areias, o palácio do Rei Se- bastião. Observa-se, porém, que os nativos falam de uma possível transferência do Rei Sebastião para um lugar vizinho a Lençóis, o Morro Três Irmãos, na praia do Farol de São João^11 , pelo fato de o morro mais al- to de Lençóis, que era a morada do Rei, ter baixado, e por conta do aumento do nú- mero de habitantes e do aumento de visi- tantes (turistas, repórteres, fotógrafos). A partir disso, considerei pertinente elabo- rar uma pergunta de partida para dar im- pulso ao processo de investigação referen- te ao doutorado: será que esta reestrutura- ção do mito constitui-se numa estratégia local, pela qual determinados atores sociais da localidade, através de suas crenças e vi- são de mundo, primam pela natureza local, pelo ideal de pureza de origem, isto é, con- siderando prejudicial a entrada de elemen- tos estranhos? Através desse questionamento inicial, embora não aprofundado aqui, sinali- zo para a possibilidade de vários desdo- bramentos teóricos e questões emergen-

tes que podem ser apreendidos a partir de uma abordagem antropológica do turis- mo, tais como: o jogo sobre as identida- des dos anfitriões; a apreensão do turis- mo como vetor de alteridade, como fa- tor de mudança social e cultural no seio da comunidade local; e a manipulação de marcas simbólicas, por meio da qual po- de-se indagar os processos de abordagem sobre o “outro”. Percebendo-se o fenômeno do turismo, e mais especificamente do ecoturismo, dentro da “plataforma de defesa”, ou mes- mo da “plataforma de adaptação” (con- forme a tipologia apontada por JAFARI, (^199012) apud BANDUCCI JR., 2001), isto é, enfatizando os efeitos positivos no que se refere a aspectos tanto econômicos como sócio-culturais, algumas abordagens ten- deriam a considerar viável uma estratégia de ecoturismo, onde, através da conser- vação do patrimônio natural^13 e cultural, se conseguiria garantir o bem estar dos moradores locais e de seus descendentes. Nessa perspectiva nota-se que o ecoturis- mo é apresentado pelos empreendedores, seja do poder público, seja da iniciativa

11. Farol da Marinha, um dos mais antigos do Brasil (inaugurado em1884), em funcionamento até os dias atuais, localizado na Ilha de Maiaú, distante da Ilha dos Lençóis cerca de vinte minutos em traves- sia de barco.. 12. Jafari (1990) elaborou uma tipologia sobre o debate acerca do turismo após a Segunda Guerra Mun- dial. Nessa tipologia são identificadas quatro posturas básicas definidas como “plataformas”. Além da “plataforma de adaptação”, que envolve concepções ditas alternativas como o ecoturismo, existem ou- tras plataformas, a saber: “plataforma de defesa”- visão extremamente otimista da atividade turística, enaltecida pelos empreendedores como fonte de riqueza, trabalho e renda, sem apontar para problemas sociais e ambientais; “plataforma de advertência” – postura extremamente crítica, que aponta como em- preendimento turístico ocasiona graves problemas sociais e ambientais; e “plataforma de conhecimen- to” – objetiva a “formação de um corpo científico do conhecimento sobre turismo”, de forma holística. (JAFARI, 1990 apud BANDUCCI JR., 2001). 13. Na região do pólo ecoturístico aqui trabalhado foram criadas cinco Unidades de Conservação (UCs), são elas: a Área de Proteção Ambiental (APA) das Reentrâncias Maranhenses, a Reserva Extrativista do Quilombo do Frechal, parte da APA da Baixada Maranhense, o Parque Estadual Marinho do Parcel de Manoel Luis, e a Reserva Extrativista Marinha de Cururupu..

A “encantada” Ilha dos Lençóis no cenário do ecoturismo 203

Sendo assim, cabem as seguintes inda- gações: Como explicar que o campo sobre o turismo nas ciências sociais esteve ocu- pado pela economia, pela geografia huma- na e, num insignificante degrau, pela so- ciologia, sem que a antropologia reagisse? Por que a maioria dos antropólogos fica- ram mudos diante de um objeto eminente- mente contemporâneo, de natureza cultu- ral, que traz à tona o encontro de identida- des como a humanidade jamais conheceu? Valem aqui as reflexões de Picard e Mi- chaud (2001) que observam que desde vá- rios decênios, os etnólogos/antropólogos foram pioneiros em detectar múltiplas im- plicações do turismo para com as socieda- des que eles estudam, porém eles sempre se recusaram a incluir de maneira explíci- ta suas observações em suas publicações científicas. As objeções que se levantam sugerem que estudar o turismo não podia ser sério. Havia um pensamento de que se o turismo é uma atividade fútil, o seu estu- do também o seria. A explicação para essa omissão pode ser encontrada em diversos aspectos. Nos anos de 1960, criou-se a expectativa de que o turismo seria um fator de desenvolvimento para os países do terceiro mundo. Segun- do Crick (1989) apud Banducci Jr. (2001, p. 24), é nesse período que o Banco Mun- dial e as Nações Unidas passam a recomen- dar e a incentivar a implantação da indús- tria do turismo “nos mais diversos recantos do mundo, sobretudo nos países ditos em desenvolvimento, enquanto a ONU decreta 1967 como o Ano Internacional do Turis- mo”. Esse quadro funcionou como um áli- bi aos etnólogos, os mais radicais, a con- ceber a presença de turistas sobre seu ter- ritório como o produto de relações de de- pendência e de exploração àqueles que eles se recusam a estar associados, salvo a ado-

tar uma atitude deliberadamente crítica a seu encontro. Por outro lado, a intrusão de turistas sobre o terreno dos antropólo- gos é habitualmente percebida como uma perturbação. Os antropólogos não querem de maneira nenhuma que os autóctones os confundam com turistas. Ainda mais que no imaginário popular, o turista é “o idiota da viagem”, pois ele é comumente depen- dente e distraído. A marca dos estudos antropológicos nessa área consiste em abordar o fato tu- rístico não como objeto primeiro da pes- quisa, mas sim como um fenômeno orgâ- nico que promove a análise das implica- ções do turismo pelas sociedades locais em relação com questões de mudança cultural causada pela interação turística imediata, do jogo sobre a identidade dos anfitriões se representando aos visitantes, da produ- ção de um quadro moderno sobre o “ou- tro”; enfim, todos os elementos que cau- sam variações no discurso identitário. Mais do que nunca estamos diante de um novo tipo de fato social total (MAUSS, 1974), isto é, de um fenômeno que pode ser apreendido sob diversos pontos de vis- ta (histórico, econômico, sociológico, an- tropológico, psicológico, etc.), além de ter uma dimensão rizomática, conforme a pro- posta de Deleuze e Guattari (1980), aplica- da por Barreto (2000, p. 20): O turismo é um fenômeno que cresce e se espalha no tempo e no espaço de forma bas- tante incontrolável e imprevisível. A cada momento e em cada lugar em que o fenô- meno turístico se produz, ocorre uma série de relações que sempre são, em algum grau, diferentes e nunca totalmente previsíveis.

Não resta dúvida de que o turismo é um fato social do nosso tempo, e que faz par- te das necessidades criadas pelo mundo

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moderno. É o fenômeno que mais tem do- minado a área do mundo do lazer, confi- gurando-se como atividade econômica de grande expressividade^15. Na sociedade glo- bal de consumo, já não se pode mais fe- char os olhos para essa nova aspiração dos incluídos, que é “fazer turismo”. Como diz Urry (1996, p. 19): “Ser turista é uma das características da experiência ‘moderna’. Não ‘viajar’ é como não possuir um car- ro ou uma bela casa. É algo que confere status , nas sociedades modernas, e julga-se também que seja necessário à saúde”. Nesse sentido, o turismo, tanto como as férias e as viagens, devem ser temas levados a sério pelos cientistas sociais, pois envolvem questões plurais da con- temporaneidade. Ressalta-se ainda que existem vários tipos de turismo, vários tipos de viajantes, e que determinado ti- po de deslocamento sugere um tipo es- pecífico de viajante com suas demandas e percepções singulares. Se, por um lado, a área da Antropologia do Turismo não tenha ainda se tornado tão significativa em nosso métier , por outro, é inegável que muitos antropólogos têm de- batido o tema da viagem, já que, não nos esqueçamos, a viagem faz parte do “mito de origem” da constituição da Antropolo- gia. Conforme Labate (2000, p. 60): Quando pensamos em “viagem”, inevitavel- mente despontam, de algum modo, imagens inerentes à própria idéia do que seja “an- tropologia”: a noção de viagem está presen- te no imaginário da disciplina enquanto tal; existe um parentesco entre “viajar” e o fazer

antropológico. O próprio “mito de origem” da disciplina está ligado à idéia de viagem: dos primeiros viajantes-informantes e natu- ralistas do século XVII ao postulado mali- nowskiano da pesquisa de campo como um deslocamento em busca do outro.

Um dos primeiros temas que vêm para a arena é a discussão da própria analogia da viagem com o trabalho do antropólo- go. O próprio ritual de aceitação do antro- pólogo na academia durante muito tempo esteve atrelado a uma pesquisa de campo que deveria ter como uma das característi- cas principais um encontro com uma cul- tura diferente da sua e, então, teria que se despir dos seus valores e tentar compreen- der a cultura do outro No cerne desse ritu- al coloca-se o ponto da suspensão de códi- gos da cultura de partida e tenta-se mergu- lhar durante um período limitado na cul- tura alheia. Depois de um estado de “li- minaridade”, que se caracteriza com a fa- se que se dá, como aponta Geertz (2005) sobre o trabalho do antropólogo, “estando lá” ( being there ), que é a fase da pesqui- sa de campo, há um processo que comple- taria o nosso rito de aceitação como an- tropólogo, que se caracterizaria como um certo retorno triunfal, ao que Geertz deno- mina como segunda etapa da investigação que consiste em se trabalhar fora da situa- ção de campo, trazendo uma massa de da- dos para serem mais profundamente anali- sados “estando aqui” ( being here ), no con- texto urbano e das instituições universitá- rias, no qual o ato de escrever “...cumpre

15. De acordo com dados da OMT (Organização Mundial do Turismo), o turismo tem se consolidado co- mo a principal atividade econômica de muitos países e como um setor de crescimento rápido em termos de entrada de divisas e criação de emprego. Disponível em: <http://www.world-tourism.org/aboutwto/ esp/menu.html>. Acesso em 15 set. 2004.

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Segundo Giddens (1991), na “supermo- dernidade”, os sujeitos e objetos circulam em escalas cada vez maiores, e o tempo e o espaço são “desencaixados” de seu conteú- do concreto. Existem dois tipos de desen- caixe: 1) criação de fichas simbólicas (di- nheiro, cartões de créditos); 2) estabeleci- mento de sistemas peritos (excelência téc- nica, competência profissional). Esses ele- mentos dependem da confiança. Assim, em relação às viagens, cada vez mais os riscos e as incertezas do deslocamento são dimi- nuídos por meio de um conjunto de expe- riências codificadas. De acordo com a tipologia de Cohen (1972) apud Wearing e Neil (2001), há qua- tro tipos de turistas: os turistas de massa organizados, os turistas de massa individu- ais, os exploradores, e os sem-destino – es- tes últimos também chamados de turistas alternativos, conforme tradução encontra- da na obra de Burns (2002). Os turistas de massa organizados ou individuais querem conforto e nunca mergulham em um meio ambiente estranho, já que a familiaridade é uma preocupação fundamental para eles. O turista de massa individual difere ligeira- mente do turista de massa organizado pe- lo fato de que sua viagem não é totalmente pré-planejada. As duas últimas categorias são explici- tadas da seguinte forma: Os exploradores e os sem-destino se dife- renciam pelo grau em que se comunicam,

interagem e aprendem com a comunida- de receptora. O explorador é semelhante ao ecoturista, já que ambos viajam individual- mente e procuram ‘fugir da rotina’. Embo- ra ambos abandonem a ‘bolha ambiental’, o explorador, ao contrário do ecoturisrta, muitas vezes requer acomodação confortá- vel e transporte confiável.

O último tipo de turista definido por Co- hen (1972) é o sem-destino. Este se aven- tura muito além da rotina e mergulha in- teiramente nos costumes e na cultura da comunidade, experiência e novidade é da mais alta importância e desaparece toda necessidade de familiaridade. [...] Esse tipo de turista é semelhante ao ecoturista, pois está motivado pela vontade de ‘experien- ciar’, mas não viaja necessariamente para experienciar os cenários das áreas naturais. (WEARING; NEIL, 2001, p. 205) Seguindo a orientação dessa tipologia, pode-se dizer quais categorias de turistas são predominantes em Lençóis: os explo- radores e os alternativos/sem-destino. Os primeiros são os velejadores de várias par- tes do mundo que aportam por lá geral- mente em suas confortáveis embarcações, dependendo muito pouco da infra-estrutu- ra local; os segundos são pessoas, sozinhas ou em pequenos grupos, que buscam o ine- ditismo, o “diferente”. Fazendo uma ligação da idéia de via- gem enquanto um rito de passagem e o

ções e ao entretenimento. Tudo era negociado na própria Ilha, exceto o transporte de ida. Havia um in- tenso regateio, negociação direta, sobretudo com os proprietários das duas pequenas pousadas que ha- viam na localidade. Atualmente, já existem agências de viagem que fazem pacotes ecoturísticos para o Pólo Floresta dos Guarás e, em especial, para a Ilha dos Lençóis, com hospedagem pré-definida na úni- ca pousada (exclusivamente com fins comerciais neste setor), em funcionamento, no momento, na Ilha: o Ecolodge “Filhos da Lua”. Por seu turno, existe uma outra forma de hospedagem que está se esboçan- do, com a iniciativa de nativos, em especial de um casal, que construíram cômodos em sua residência, com o propósito de alugar diárias, com ou sem refeição.

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viajante enquanto um neófito desse rito, passo agora a identificar um aspecto que põe em xeque a visão romântica desse en- contro com o “outro”. Burns (2002) analisando os três com- ponentes essenciais dos ritos de passagem, como propõe Van Gennep (1978) – sepa- ração, liminaridade e incorporação – que visam a mudança de categoria social ou a intensificação, o reforço, questiona se a função do turismo no “retorno para ca- sa” não seria então reforçar o sentimento coletivo e a integração social. E Krippen- dorf (1989, p. 113) vai ainda mais longe, ao afirmar que as viagens muitas vezes confirmam e até mesmo reforçam precon- ceitos: “Os outros são pobres, mas felizes. Despreocupados e hospitaleiros. Mas, na- turalmente, um tanto desorganizados, não muito limpos, pode-se até dizer que sujos, de qualquer forma, extravagantes, pregui- çosos e pouco inteligentes”.

3. ECOTURISMO E EXOTISMO EM QUESTÃO

Para a proposta do trabalho aqui apre- sentado, procuro transcender a noção de turismo de forma genérica e costurar as diretrizes que norteiam a noção de ecotu- rismo e ecoturista nos dias de hoje, e por que tal setor tem se desenvolvido^17 de for- ma considerável.

Utilizo aqui como fonte de análise pri- mária a noção de ecoturismo^18 dada pela EMBRATUR (Empresa Brasileira de Turis- mo). Por meio do seu documento Diretrizes para uma política nacional de ecoturismo , de 1994, conceituou ecoturismo como: Segmento da atividade turística que utili- za, de forma sustentável, o patrimônio na- tural e cultural, incentiva a sua conserva- ção e busca a formação de uma consciência ambientalista por meio de interpretação do ambiente, promovendo o bem-estar das po- pulações envolvidas. (BRASIL, 1994, p. 19)

De uma maneira geral, o que constitui hoje uma concepção sobre ecoturismo en- volve os seguintes objetivos: identifica-se como uma atividade econômica; promo- ve o uso sustentável dos recursos; busca a conscientização ambiental; envolve as po- pulações locais. Há um enfoque muito grande sobre a natureza como motivação principal da viagem. Por seu turno, essa motivação de- verá promover tanto a conservação quanto a fruição da natureza, colocando no cen- tro dos discursos sobre o ecoturismo a sua preocupação com a degradação ambiental, o impacto sobre as comunidades locais e a necessidade de um gerenciamento turís- tico responsável, engajado na questão da sustentabilidade 19.

17. Segundo a OMT, para cada dez empregos gerados, dois estão diretamente relacionados à atividade do turismo, sendo o ecoturismo a modalidade que apresenta maior crescimento – 20% ao ano, enquan- to que o turismo convencional registra um crescimento de 7,5%. 18. Hector Ceballos-Lascurain é amplamente reconhecido como o primeiro a usar o termo ecoturismo. Segundo Wearing e Neil (2001, p. 6) “O termo apareceu escrito pela primeira vez na edição de março/ abril de 1984 da American Birds, como propaganda para uma atividade turística dirigida por Ceballos- Lascurain.” 19. Discussão pautada no conceito de desenvolvimento sustentável, nos termos do Relatório Brun- dtland, identificado como “... aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possi- bilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades (CMMAD, 1988, p. 46).

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tanciados de sua vida diária, nos termos de um “peregrino contemporâneo”, só que ao invés de prestar homenagem a um único centro sagrado, como faz o peregrino re- ligioso, “o turista presta homenagem a um enorme centro de atração”. A meu ver, essa busca de autenticidade atrelada à concepção de peregrinação só é compatível a determinados tipos de turis- tas que têm motivações diferenciadas dos grupos de turismo convencional. Entre as motivações principais, pode-se citar a bus- ca por lugares pouco explorados, “semi- virgens”, por lugares repletos de lendas, de mistérios, e muitas vezes isso implica per- correr um trajeto difícil, e que envolva um certo grau de risco. De forma geral, os ecoturistas (e outras categorias entre os “alternativos”) não fi- cam alheios aos problemas dos locais visi- tados. Alguns procuram conversar com os nativos, mas poucos percebem as reais di- ficuldades enfrentadas pela comunidade. Em pesquisa realizada por meio de questio- nário, constatei que a maioria dos visitan- tes da Ilha dos Lençóis^20 , quando apontam pontos negativos em sua avaliação sobre a localidade, referem-se muito mais em rela- ção a problemas ambientais na localidade, com um peso à falta de conscientização dos

moradores no trato dos mesmos (e por uma “falta” de conhecimento sobre a demanda do mercado ecoturístico), que a problemas sociais vivenciados no dia-a-dia da comu- nidade^21. Seguem-se abaixo dois exemplos de cada situação, respectivamente: Muito bonita, mas falta conscientizar a po- pulação de sua importância ecológica sa- bendo recolher seu lixo e cuidar de sua ilha. (Ecoturista, residente em São Luís, estudan- te universitária, 20 anos. Em: 03/08/2004)

Considerando que muitos turistas, especial- mente de nível internacional são exigentes do ponto de vista das condições da saúde do ambiente, deve-se fazer um trabalho de ba- se com a comunidade local... (Ecoturista, re- sidente em São Luís, biólogo, 40 anos. Em: 30/07/2004)

Bonita, mas a população encontra-se aban- donada pela administração pública local. Por ser uma ilha de difícil acesso deveria ter uma infra-estrutura mínima para aten- der urgências. (Aventureira, residente em São Luís, estudante universitária, 24 anos. Em:10/07/2004)

O lugar é realmente bonito. Fiquei impres- sionada com a condição de pobreza da po-

20. Essas impressões foram registradas por pessoas que responderam ao questionário que elaborei co- mo instrumento de coleta de dados, com vistas a saber qual o perfil dos visitantes da Ilha dos Lençóis. Em uma das perguntas, solicito que a pessoa assinale uma categoria de auto-identificação enquanto hóspede na localidade. Constam as seguintes opções: visitante; viajante; turista; ecoturista; turista al- ternativo; aventureiro; outra. Sendo assim, coloco nos depoimentos/impressões a identificação dada por eles próprios. 21. Do total de 52 (cinqüenta e dois) questionários, apenas em 7 (sete) são encontrados registros de pes- soas que se sensibilizam com problemas sociais da comunidade. Na grande maioria, em 33 (trinta e três) questionários não se verifica nenhum registro de ponto negativo apontado pelo “visitante”, e em 12 (do- ze), tem-se o registro de pontos negativos no que se refere a problemas ambientais, sobretudo, em rela- ção ao lixo encontrado na praia. Ou seja 13,46% - apontaram os problemas sociais, 23,07% - aponta- ram somente problemas ambientais, e 66,46% – não registraram qualquer ponto negativo na comuni- dade (posto que a localidade é vista como um “paraíso”).

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pulação, embora já soubesse disso antes de vir^22. De fato, a pobreza é comum em to- do o Estado do Maranhão, mas as pessoas dessas ilhas estão completamente isoladas e abandonadas à própria sorte. (Ecoturista, residente em São Paulo, artesã, 38 anos. Em 17/07/2004)

A maneira mais atual de manter uma interlocução, uma troca de informações sobre viagens, é o que vem ocorrendo na internet , onde os incluídos digitais podem registrar suas experiências em sites espe- cializados em viagens ou em seus próprios blogs , ou ainda em fotologs. Muitas dessas viagens aparecem como troféu, isto é, algo muito difícil que foi atingido e merece uma exaltação. Como, por exemplo, percebe-se nas seguintes expressões: “Olhem, eu esti- ve nesse lugar. [...] Vocês não imaginam o perrengue que é pra chegar lá. [...] Mas va- leu a pena. É o paraíso na Terra”.^23 E, dessa maneira, ao considerar a via- gem como um ritual, após o período de suspensão (que é o deslocamento, a esta- da – temporária – no local visitado), o re- torno para casa deve ser visto como uma reintegração, que até pode causar um cho- que cultural reverso, na medida em que os que viajaram passam a pensar no sentido da vida, nas lógicas culturais de diferen- tes sociedades, podendo efetivamente fa- zer apologia da “riqueza de uma vida sim- ples” encontrada no “outro”, muitas vezes, longínquo. Mas, em muitos casos, eles aca- bam considerando a sua forma de viver co-

mo melhor do que a do “outro”, no que se refere a um bem-estar associado a bens de consumo e à utilização de serviços básicos como saúde e educação. Retomando um ponto já ventilado, os ecoturistas se diferenciam pela busca de uma certa autenticidade. Mas acredito que, como qualquer outro segmento, estes “no- vos viajantes” acabam sendo alvo do mer- cado, pois, como nos lembra García Can- clini (1983, p.29), “não existe produção de sentido que não esteja inserida nas estru- turas materiais”. No debate sobre a contemporaneida- de, no contexto “pós-fordista”, há um fornecimento constante de signos e re- presentações para serem consumidos, e a singularidade passa a ser orientadora da oferta. Substituem-se os produtos maci- ços, não diferenciados, e nascem os pro- dutos específicos para segmentos con- cretos da população. Trazendo para a análise sociológica do turismo, no contexto fordista, o turismo ti- nha por base uma oferta caracterizada pela homogeneização. O destinatário era visto como uma massa uniforme, esquecendo- se da singularidade da procura e das novas exigências. A lógica dos números predo- minava, incentivando um turismo de mas- sa que em grande medida foi responsável por processos de degradação ambiental. O turismo pós-fordista, por seu turno, entra em cena com a crise da estandardi- zação, sentindo a necessidade de diferen- ciar vários estilos de turismo: turismo de

22. O descaso com as populações litorâneas do Estado do Maranhão sempre foi notório. O município de Cururupu destaca-se nesse cenário de abandono, principalmente nas questões de educação e saúde. 23. Cf. o depoimento e fotos de Regina Ramoska sobre sua viagem à Ilha dos Lençóis. Disponível em: http://www.ecoviagem.com.br/suaaventura/def_aventura.asp?codigo=36&dia=268. Acesso em: 02 jan. 2005.

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No que se refere à Ilha dos Lençóis, a esfe- ra edênica é vendida sob a marca do isola- mento, do refúgio. Os discursos oficiais so- bre ecoturismo giram em torno da idéia de que as ilhas cururupuenses têm uma “vo- cação natural” para esse empreendimento, por possuir um litoral repleto de paraísos ecológicos de rara beleza. Somos convida- dos a embarcar em busca desse éden: Imagine-se aventurando por arquipélagos^24 que abrigam ilhas e enseadas de impressio- nante beleza, usufruindo de paraísos eco- lógicos formado por praias extensas e de- sertas, dunas e morros; ou embrenhando-se numa região que abriga berçários com di- versificadas e exóticas espécies de peixes, crustáceos e moluscos, com extensas flores- tas de manguezais. Ou ainda, vislumbran- do refúgios de aves típicas da região (Gua- rá, Marreco e Jaçanã) e migratórias, como o maçarico (que na sua trajetória do Canadá à Terra do Fogo/Argentina, pousam para se alimentar e reproduzir em alguns pontos do litoral brasileiro, como as Reentrâncias Ma- ranhenses). Isso não é um sonho. É o litoral de Cururu- pu, porta de entrada para o Pólo Turístico “Floresta dos Guarás”, distante a 360 quilô- metros de São Luís. (PREFEITURA MUNICI- PAL DE CURURUPU, 2005).

Atualmente, como é possível se perce- ber nesta citação, referente à propaganda realizada pela prefeitura de Cururupu, no ano de 2005, há toda uma iniciativa pa-

ra se destacar aspectos naturais da região, que fornecem atrativos para um público- alvo do setor ecoturístico e de observado- res de pássaros. É um reflexo do que o go- verno do Maranhão indicou em seu pri- meiro plano de desenvolvimento do turis- mo – o PLANO MAIOR – Plano de Desen- volvimento Integral do Turismo, concebido em 1999, “levando em consideração que, a condição básica para o crescimento turísti- co no Estado, está no desenvolvimento in- tegrado dos aspectos sociais, econômicos, urbanos e na preservação dos recursos na- turais.” (MARANHÃO, 2000). Com o “Plano Maior”, o governo do Maranhão estabeleceu a regionalização do Estado em cinco Pólos para o desenvolvi- mento do turismo, levando em considera- ção os recursos naturais e sócio-culturais dos municípios que constituem cada pólo de atração, a saber: Pólo Floresta dos Gua- rás (Cururupu, Guimarães, Cedral e Porto Rico – litoral ocidental do Maranhão); Pó- lo dos Lençóis Maranhenses (Barreirinhas, Humberto de Campos, Primeira Cruz, San- to Amaro do Maranhão e Morros – litoral oriental do Maranhão); Pólo do Delta das Américas (Tutóia, Paulino Neves e Araió- ses – divisa com o Estado do Piauí); Pólo de São Luís (São Luís, Alcântara, São José de Ribamar, Raposa e Paço do Lumiar); Pó- lo da Chapada das Mesas (Carolina, Impe- ratriz e Riachão – região sul do Estado). Cada Pólo tem um potencial turísti- co destacado, que parte de olhares de em-

24. A frase que inicia esta propaganda, das potencialidades ecoturísticas das ilhas cururupuenses, leva- nos a pensar na casual coincidência com a abertura do postulado de Malinowski sobre o fundamento da pesquisa de campo como um deslocamento em busca do outro, quando, na introdução de Argonautas do Pacífico Ocidental, escreveu: “Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, nu- ma praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista.” (1978, p. 19)

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preendedores que colocam em close up de- terminadas marcas da região. Assim, por exemplo, quando se fala em “Floresta dos Guarás”, há uma associação com uma das maiores regiões de manguezais do mundo, aves exóticas, e com a parte amazônica do Estado; quando se fala em “Chapada das Mesas”, há uma associação com a região de cerrado (o mais preservado da América do Sul), sobressaindo-se atrativos como caver- nas, cachoeiras e rios de águas cristalinas. No diagnóstico sobre o turismo no Maranhão, no final da década de 90, que deu subsídios para a elaboração do “Pla- no Maior”, foi verificado que o Estado era desconhecido dos destinos turísticos na- cionais e internacionais. Com isso, atual- mente, há todo um investimento para que o Maranhão seja “desbravado”. O slogan oficial do “Plano Maior” é bem significa- tivo – “Maranhão: o segredo do Brasil” -, chamando a atenção dos potenciais turis- tas para o diferencial que o Estado possui: algo ainda considerado escondido ou guar- dado, e por isso valioso. Mas antes da consolidação do “Plano Maior”, os discursos de um incipiente turis- mo na região aqui estudada não faziam re- ferência ao Pólo Floresta dos Guarás, e toda a atenção girava em torno das ilhas cururu- puenses como refúgio de belezas naturais e de mistérios, por possuir um litoral que “... esconde tesouros, lendas e santuários eco- lógicos – preservados e sem ação predatória do homem. São ilhas-praias encantadoras.” (PREFEITURA MUNICIPAL DE CURURUPU, 1999). E ao nome da Ilha dos Lençóis, logo se associava à imagem do exotismo. Pode- mos analisar o seguinte exemplo:

Fala-se tanto de paraísos terrestres – peda- ços de terra privilegiados no planeta que têm um pouco do dedo de Deus. Lugares onde a natureza é generosa. Não é apenas o pano de fundo de um cotidiano, mas um ce- nário marcante e presente na vida das pes- soas que ali residem ou dos que lhes visi- tam. Cururupu, mais precisamente a sua re- gião costeira que abriga arquipélagos com pequenas ilhas e encantadoras praias, é um desses paraísos na face da Terra! [...] São ilhas-praias encantadoras. Algumas exten- sas, solitárias. Outras povoadas por colô- nias de pescadores e albinos, ou ornamen- tadas por enormes coqueiros. Lugarejos com características próprias e de impressionan- te beleza, que fazem de Cururupu um dos maiores pólos de ecoturismo do Maranhão. (PREFEITURA MUNICIPAL DE CURURUPU, 1999). [Grifo meu].

Analisando o texto acima não é difí- cil se perceber em que categoria os pesca- dores e, de forma mais enfática, os albinos da “ilha encantada” e “encantadora” fo- ram colocados^25 : um artigo natural expos- to à visitação pública, quando comparados aos enormes coqueiros que ornamentam as ilhas-praias de Cururupu. É notório que há um mercado simbólico do exotismo que está se vinculando a um mercado do naturalismo. E de uma manei- ra geral o que se vê ecoar na comunicação publicitária turística é o reforço de um mi- to, do paraíso perdido, e que o mesmo não é um sonho inacessível. Ele pode ser alcan- çado; basta que se eleja alguma ilha isola- da, de beleza fascinante, onde se possa ter um refúgio do cotidiano.

25. Texto sem autoria.

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te do diferente, contribuindo para a imagi- nativa popular. O que dizer então dos dis- cursos sobre ilhas isoladas^26 que oferecem praias desertas, paisagens desconhecidas que abrigam um povo e sua cultura qua- se intocados? O imaginário sobre as ilhas é reforçado pelas metáforas presentes na nostalgia do paraíso, pela mitologia generalizada, quase arquetípica, que vem do exterior, ampliada pela mídia e pela publicidade. A atração pela ilha para os que moram nos continentes se dá justamente pela con- traposição ao continente, este visto como um lugar que perdeu a aura de mistério. E, portanto, a ilha teria algo a ser conquis- tado, através de uma transposição de obs- táculos, que possibilitaria o encontro com o exótico, o fantástico, o misterioso. Die- gues (1998, p. 108), fazendo referência a Racault (1995) diz que: Não é necessário que a ilha seja longínqua, nem mesmo de acesso difícil: o importante é que uma fronteira visível marque seus li- mites, menos como um obstáculo material que como sinal de uma alteridade. O que importa é seu distanciamento causado pelo elemento líquido que a rodeia e alimenta o sonho de uma ruptura com o universo ho- mogêneo das leis e das normas que dirigem a vida da sociedade no continente.

O trinômio travessia-obstáculo-alteri- dade é colocado. O significado da traves- sia extrapola a questão geográfica para ser abraçada pelo campo existencial. Volta-se aqui à discussão da liminaridade. Trans- porta-se a outro espaço, com regras dife- renciadas ou suspensão de leis a que se es- tava habituado, para depois se retornar ao lugar de partida. Ao trazermos à baila a força do sim- bolismo, alguns questionamentos tornam- se pertinentes para a temática aqui abor- dada, tais como: 1) O que será que instiga na mente do leitor da “poética” do ecotu- rismo quando se apresenta a Ilha dos Len- çóis como sendo palco de várias curiosida- des, dentre as principais a do reinado de El Rei D. Sebastião que se transforma em um touro negro^27 , e da presença dos “Filhos da Lua”? 2) Será que ele é atraído/seduzido a ver de perto esse universo, a concretizar as imagens produzidas sejam através de foto- grafias e vídeos, sejam através dos seus de- vaneios? 3) E qual sentimento o ilhéu tem pela sua terra natal; será que há a idéia de paraíso? São questões que são desenvolvi- das ao longo do trabalho. De certo, posso afirmar que, pela pes- quisa realizada (PEREIRA, 2000; PEREI- RA, 2007), o imaginário sobre ilhas de di- fícil acesso é bastante fértil e atraente. E o

26. O acesso à Ilha dos Lençóis é muito difícil. O mesmo se dá somente de barco ou de avião mono ou bimotor. A viagem de barco dura, em média, 12 horas a partir de São Luís, capital do Estado do Mara- nhão, e 7 horas a partir de Cururupu. 27. A crença é que o reino sebástico está encantado na Ilha dos Lençóis e que El-Rei D. Sebastião apa- rece nas noites de São João, 24 de junho, ...sob a forma de um touro de cujas narinas saem chispas tão luminosas quanto o penacho que reluz na sua testa. E em desembalada carreira sai pela praia emitindo berros tremendos. E o encantamento prolongar- se-á até o dia em que alguém que testemunhe a aparição e se revista de coragem para fazer na testa do tou- ro uma incisão de onde jorre sangue, aí então El Rei D. Sebastião se desencantará, emergindo glorioso das profundezas do mar com toda pompa de sua corte. O maremoto ocasionado por tal acontecimento fará sub- mergir na fúria das águas a ilha de São Luís do Maranhão.(in Vagalume, jan./fev. 1989).

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ecoturismo revigora uma postura romanti- zada construída sob o signo da nostalgia, embalada por porções da natureza geográ- fica que fornecem imagens “exuberantes”, “fantásticas”, “paradisíacas”, e tantas ou- tras que povoam um imaginário acerca da existência de lugares edênicos. O imaginário sobre a existência de ilhas paradisíacas parece povoar as mentes hu- manas. A sedução pelo tema paradisía- co instaurou-se com força durante a Idade Média e a era dos grandes descobrimentos marítimos, ora pensado como o éden bíbli- co, ora como um eldorado pagão. Se os viajantes de outrora se aventu- ravam além-mar em busca do éden bí- blico que se acreditava perdido em al- gum lugar recôndito ou de um eldora- do pagão – as “Ilhas Afortunadas” que “[...] se achavam perdidas entre as águas do oceano, quase inacessíveis aos mor- tais...” (HOLANDA, 1994, p. 160), os via- jantes atuais, como os que visitam a Ilha dos Lençóis, parecem continuar envolvi- dos com a busca de espaços desconhe- cidos, de preferência, terras distantes e isoladas, só que agora em busca de um outro tipo de “riqueza”: a possibilidade de encontrar um refúgio paradisíaco pa- ra que possam se afastar dos problemas das sociedades urbanizadas e industria- lizadas (conseqüência da “perda do pa- raíso”). Estão se aventurando a encon- trar a natureza em estado “puro” onde habitem pessoas não corrompidas pela civilização, como se verifica nas seguin- tes impressões, registradas nos questio- nários sobre o perfil do visitante da Ilha dos Lençóis: Lugar de magnetismo sem igual onde a be- leza natural e a receptividade da comuni- dade faz com que a gente se sinta integra- do a tudo e a todos. Um dos poucos lugares

que me fizeram desligar da minha vida es- tressante. (Visitante, residente em São Luís, professora, 30 anos. Em:12/07/2004)

É um lugar lindo!As pessoas são tran- qüilas e amáveis. A comida é saudável e nunca falta. Apesar da cansativa viagem. Sempre vale a pena. (Ecoturista, residen- te em São Luís, professora, 24 anos. Em: 13/07/2004)

A Ilha dos Lençóis é altamente atrativa pelo seu contraste com a cidade: interação com os nativos, o “modus vivendi”, a seguran- ça, além dos atrativos naturais. Aqui parece ser um eterno domingo! (Turista alternati- vo, residente em São Paulo, auditor fiscal, 50 anos. Em: 20/08/04)

Ilha maravilhosa com pessoas puras e ex- celentes com sua simplicidade, ilha mági- ca pelas suas crenças, mitos. (Ecoturista, re- sidente em São Paulo, figurinista, 27 anos. Em: 26/08/2004)

Se há por um lado questões sobre a natureza do espaço, há também questões sobre as gentes que ocupam esse espa- ço. O foco central continua sendo a busca desse “outro”. A busca se dá ou como for- ma de exploração ou como forma de re- flexão e anseio por um “retorno” a uma vida mais natural. Nesse sentido, o turismo pode servir pa- ra a valorização dos referenciais culturais locais? Ou a consolidação de destinos tu- rísticos é possível apenas pela adaptação a padrões considerados desejáveis mercado- logicamente? Uma discussão interessante que é ven- tilada por Diegues (2000, p. 27) é sobre os vários olhares na construção da paisa- gem, e mais especificamente da ilha, que