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A Primeira Entrevista na Psicanálise Infantil: Os Acontecimentos Iniciais, Trabalhos de Psicologia

Este artigo aborda a importância da primeira entrevista na psicanálise com crianças, explorando a dinâmica da interação entre o analista e o paciente, a construção de significado analítico e a comunicação de elementos desconhecidos ao paciente. O autor destaca a necessidade de atenção flutuante, a importância da cena de abertura e a potência terapêutica do primeiro encontro, ilustrando suas ideias com vinhetas clínicas.

Tipologia: Trabalhos

2025

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35Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 46, n. 4, 35-47 · 2012
A criança e o psicanalista.
Acontecimentos iniciais
Eliana da Silveira Cruz Caligiuri1
Resumo: Se análise é a prática diária de um psicanalista, as primeiras entrevistas são o prólogo inevitá-
vel desse trabalho. Elas podem ser também um prólogo maior do que a própria análise e até constituir-
-se no único contato, sem continuidade. Para além de abordar, neste artigo, o método psicanalítico
operando desde os primeiros encontros com o paciente– atenção flutuante a todo e qualquer mate-
rial surgido, busca por um tipo de interação que propicie a construção de algum significado analítico,
comunicação ao paciente de algo desconhecido de si–, procurei desenvolver as especificidades no
atendimento da criança, ilustrando minhas considerações com vinhetas clínicas.
Palavras-chave: primeiras entrevistas; interação; criança; consulta terapêutica; surpresa.
Introdução
Lembranças intensas de pequenos rostos há algum tempo esquecidos, percorrer nova-
mente seus desenhos, suas narrativas singulares, as brincadeiras nas sessões, suas palavras,
foram as imagens que surgiram a partir do tema “Primeiras entrevistas psicanalíticas”.
A memória viva daquelas crianças que, já no primeiro contato, haviam deixado suas
expressivas marcas.
Pretendo neste artigo convidar o leitor a se aproximar da força desses encontros, a
conhecer a inteligência e a criatividade dessas crianças com as quais interagi e que contri-
buíram para novamente revelar a potência da psicanálise.
O tema lançado pela Equipe Editorial da RBP estimulou o estudo e a escolha dos
autores que fundamentassem a experiência clínica vivida, experiência que aguardava meu
debruçar sobre ela e talvez, algum dia, sua escrita.
Um breve percurso teórico
Freud, no artigo Sobre o início do tratamento (1913/1993), argumentava que:
[…] a extraordinária diversidade das constelações psíquicas, a plasticidade dos processos aní-
micos e a riqueza dos fatores determinantes se opõem, certamente, a uma mecanização da
1 Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
RBP 46-4 PR-4 (LIVRO).indb 35 27/12/12 14:57
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Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 46, n. 4, 35-47 · 2012 35

A criança e o psicanalista.

Acontecimentos iniciais

Eliana da Silveira Cruz Caligiuri^1

Resumo: Se análise é a prática diária de um psicanalista, as primeiras entrevistas são o prólogo inevitá- vel desse trabalho. Elas podem ser também um prólogo maior do que a própria análise e até constituir- -se no único contato, sem continuidade. Para além de abordar, neste artigo, o método psicanalítico operando desde os primeiros encontros com o paciente – atenção flutuante a todo e qualquer mate- rial surgido, busca por um tipo de interação que propicie a construção de algum significado analítico, comunicação ao paciente de algo desconhecido de si –, procurei desenvolver as especificidades no atendimento da criança, ilustrando minhas considerações com vinhetas clínicas. Palavras-chave: primeiras entrevistas; interação; criança; consulta terapêutica; surpresa.

Introdução

Lembranças intensas de pequenos rostos há algum tempo esquecidos, percorrer nova- mente seus desenhos, suas narrativas singulares, as brincadeiras nas sessões, suas palavras, foram as imagens que surgiram a partir do tema “Primeiras entrevistas psicanalíticas”. A memória viva daquelas crianças que, já no primeiro contato, haviam deixado suas expressivas marcas. Pretendo neste artigo convidar o leitor a se aproximar da força desses encontros, a conhecer a inteligência e a criatividade dessas crianças com as quais interagi e que contri- buíram para novamente revelar a potência da psicanálise. O tema lançado pela Equipe Editorial da RBP estimulou o estudo e a escolha dos autores que fundamentassem a experiência clínica vivida, experiência que aguardava meu debruçar sobre ela e talvez, algum dia, sua escrita.

Um breve percurso teórico

Freud, no artigo Sobre o início do tratamento (1913/1993), argumentava que:

[…] a extraordinária diversidade das constelações psíquicas, a plasticidade dos processos aní- micos e a riqueza dos fatores determinantes se opõem, certamente, a uma mecanização da

1 Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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técnica, e tornam possível que uma maneira comum legítima não produza efeito algumas vezes, enquanto outra habitualmente considerada errada conduza ao objetivo, em alguns casos (p. 125).

O fundador da psicanálise já assinalava as coordenadas móveis, com certa flexibi- lidade, da técnica psicanalítica nas primeiras entrevistas. Elas poderiam iniciar-se com a biografia, o historial clínico ou as recordações da infância do paciente, mas o que realmente interessava era o relato do próprio paciente. Ainda nesse texto, o autor lança suas interrogações a respeito do momento oportuno de comunicar ao analisando o significado secreto de seus sintomas, as premissas e os proce- dimentos técnicos da análise. De acordo com suas ideias, seria apenas após ter se estabele- cido, no paciente, uma transferência operativa. Autores como Ogden (2002), Quinodoz (2002), Herrmann (2003), chegando até o texto de Wegner, publicado no Jornal de Psicanálise neste ano de 2012, abordam o tema acrescentando a importância dos movimentos transferenciais e contratransferenciais que se apresentam desde o primeiro contato, por telefone ou e-mail, seguido da “cena de abertura, a primeira comunicação verbal do paciente, a primeira intervenção do psicanalista” (Weg- ner, 2012, p. 225). Para Ogden, o primeiro encontro é uma interação cuja natureza não é simplesmente diagnóstica, de avaliação mútua, e sim

[…] uma interação na qual duas pessoas esforçam-se para gerar significado analítico, […] um encontro com algum valor para o paciente, como uma oportunidade de reconhecer e entender alguma coisa sobre sensações, sentimentos e pensamentos transferenciais com os quais ele está tendo que se debater (2002, p. 5).

A interação que ocorre em qualquer contato entre duas pessoas tem, no encontro analítico, algumas características específicas: a busca do reconhecimento e compreensão de sentimentos, de sensações vividas pelo paciente, até porque, como nos alerta Quinodoz (2002), as pessoas vivem sem levar em conta seu mundo interno e o papel que o inconsciente desempenha, inclusive nos momentos de intenso sofrimento. Para a autora, é importante que o analista, já nas primeiras entrevistas, comunique algo desse desconhecimento de si e do que pode acontecer entre eles, paciente e analista, “de maneira suficientemente sugestiva e numa linguagem que o toque” (p. 417). Assim, percorrendo os textos que abordam as primeiras entrevistas vão se configu- rando algumas das marcas singulares desse acontecimento: a diversidade das constelações psíquicas com as quais o analista terá contato, o protagonismo do paciente na cena de aber- tura e ao longo do trabalho analítico, a importância do analista ser uma companhia viva que, além disso, carrega consigo sua bagagem teórico-clínica desde o primeiro encontro. Uma presença viva que, segundo Herrmann (2003), acompanha o paciente em uma espécie de “passividade receptiva” (p. 52), pretendendo com isso “nada muito diferente do que nos mostram as sessões analíticas comuns. O mesmo método, no geral, é empregado. Apenas adapta-se ligeiramente a técnica, para cumprir um papel determinado, fornecendo o máximo de conhecimento num tempo bastante curto” (p. 52).

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Nessa interação mais livre, Winnicott afirma a necessidade do psicanalista ajustar-se à noção pré-concebida por seu paciente, o que construirá a oportunidade de estar em con- tato com a criança. O trecho que destaco a seguir revela a potência dessa interação:

Deve haver uma relação entre essa situação e a que se obtém de uma maneira muito menos útil através da hipnose. Tenho usado isso na teoria que venho construindo, no decorrer do tempo, em explicação para a enorme confiança que geralmente as crianças podem mostrar em mim (como em outros que fazem trabalho semelhante). Nessas ocasiões especiais, ocasiões essas portadoras de uma qualidade que me fazem usar a palavra sagrada. Ainda esse momento sagrado pode ser utilizado ou desperdiçado. Se desperdiçado, a confiança que tem a criança de que será entendida é prejudicada. Se por outro lado, é utilizado, a confiança da criança de que será entendida é forti- ficada. Haverá aqueles casos em que se faz um profundo trabalho na circunstância especial da pri- meira entrevista […] e as mudanças resultantes na criança podem ser utilizadas pelos pais (p. 13).

Winnicott alerta, nesta introdução, sobre a necessidade de avaliar o meio ambiente imediato da criança, pois se não houver provisão ambiental, a criança não poderá utilizar a mudança ocorrida. Portanto, no encontro com a criança há o cuidado necessário de levar em conta seus pais, seu ambiente e promover a aliança essencial com as figuras parentais. Se é dada à criança, de maneira adequada, a oportunidade de expor seu sofrimento ou o conflito emocional, ela terá a experiência de compreensão de si, muitas vezes mais do que realmente foi, “mas o efeito terá sido o de haver dado à criança alguma esperança de ser compreendida e talvez até mesmo ser ajudada” (p. 13). Gostaria de acrescentar como é significativa a surpresa da criança quando se vê diante de um adulto que, embora semelhante às pessoas com as quais convive, manifesta um inte- resse genuíno a respeito de seus desenhos, suas histórias, suas brincadeiras e palavras, de uma maneira muito diferente daquela a que a criança está habituada. Não é incomum que ela olhe intrigada para o psicanalista, achando estranhas nossas perguntas ou nossos comentários. Creio, então, que oferecemos algo talvez inédito à criança: interação, interesse, com- preensão, possibilidade de confiança e esperança de resgatar e refigurar um tempo e um espaço tidos como de algum jeito perdidos.

A Criança

Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças. (Barros, 1916/1999, s/p).

Primeiro adentra na mente do psicanalista a criança narrada por seus pais, porque usualmente será um deles a nos contatar. A escuta dos pais é inevitável e necessária para o acolhimento e cuidado de suas feri- das narcísicas e para o estabelecimento da aliança acima citada.

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A constituição da subjetividade de uma criança é complexa e “pode ser um caminho cheio de emboscadas” para pais e filho. “As simbioses, os pactos inconscientes entre pais e filhos e o mito edípico renovam-se cotidianamente nos nossos atendimentos […] com sua dimensão trágica” (Ranña, 2004, p. 69). Portanto, iniciaremos o contato com as perturbações no desenvolvimento da criança, que na maioria dos casos ocorrem nesse entrecruzamento de seu próprio equipamento pes- soal com seu meio ambiente, e os múltiplos elementos em jogo. No encontro com a criança precisamos considerar somente um pouco, ou quase nada, daquilo que foi dito pelos pais, porque ele é único e será essencial construir um espaço de narrativa, onde cada um dos participantes expressará algo do que viveu. A criança conta, através de seu sintoma, seus desenhos, suas brincadeiras e palavras

[…] algo de sua história interativa precoce; já no psicanalista, resta viva a criança que ele foi, que teme ter sido ou que crê ter sido. Deste face-a-face deve nascer uma co-construção de uma nova história, de uma terceira história, que não seja nem aquela do bebê escondido no adulto, nem a repetição infinita da história inicial da criança, [sendo esta] o principal narrador, o principal recitante (Golse, 2004, p. 34-35)^4.

Creio ter apresentado os fundamentos técnicos, que têm norteado minha prática clí- nica, e a pesquisa teórica realizada a partir do estímulo editorial. Convido o leitor a acompanhar o percurso de três crianças: Bianca, Vivi e Laura.

Dez sessões

Aos seus oito anos, recém-completados, conheço Bianca. Menina bonita, esperta e muito agitada. O que seu corpo anunciava com os sinais precoces de puberdade que eu visualizava? E ainda mais a intensa excitação e agitação que não permitiam que Bianca sentasse para desenhar ou mesmo conversar. A menina contou que recebera uma advertência na escola porque estava brigando muito com os amigos e com os professores. Perguntei por que ela brigava. Ela me disse que tinha uma coisa dentro dela que a fazia brigar e que depois iria me contar.

4 Um movimento contratransferencial ocorreu antes do meu primeiro contato com Davi. Ao telefone sua mãe me informou que o filho era psicótico e havia interrompido uma análise de quatro anos. Durante a entrevista com os pais, a mãe descreve Davi como inteligente, agressivo, e estava no momento isolado na escola, apenas com a professora. O pai considerava Davi intratável, cogitando sua internação. Na noite anterior à primeira entrevista com o garoto sonhei que o conduzia até a sala, me assustava com sua agressividade, saindo da sala e trancando-o pelo lado de fora. Imediatamente penso no perigo que ele corria, sozinho, num lugar com tesoura, que ele poderia machucar-se. Entro novamente na sala. Acordo. Estava com medo. No horário da entrevista encontro um menino descabelado (de fato seu cabelo precisava de um corte), lendo revistinha. Chamo, ele não me olha e segue na frente. Entrando na sala me diz: “Você tem cabelos pretos!”, um contraste com sua mãe. Pergunto se isso era bom ou ruim. Davi responde rápido: “Bom”. Numa próxima entrevista com os pais, a mãe relata a boa relação que a criança tinha com a professora, alguém empenhada, interessada, que promovia o crescimento cognitivo do menino. Perguntei qual era a cor do cabelo e ela me diz: “– Preto”. Davi já havia me dito, logo no primeiro encontro, que seria possível trabalharmos juntos.

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Após essa curta fala a respeito de Bianca, o pai começa a dizer que o problema da filha era consequência do conflito que o casal vivia há sete anos. A mãe, contrariada, inicia uma sequência de queixas de abandono, solidão e desamor, e a sessão é pautada pelas diver- gências e queixas mútuas, com o pai reclamando que a mãe comportava-se como criança, identificando-se com as filhas, usando-as como confidentes e trunfos durante as frequentes e violentas brigas. A mãe diz que só foi feliz no casamento nos primeiros quatro anos, e ambos abordam a ausência de vida sexual há quase sete anos. O pai revela então que é Bianca quem dorme na cama deles desde essa época. Em seguida à sessão com os pais, a mãe me liga e pede uma sessão urgente só para ela. Ao chegar diz, muito aflita, que sempre quis ser uma mãe melhor do que sua própria mãe. Conta do desamparo e pouco cuidado que recebeu porque o pai se ausentava muito, e sua mãe, infeliz, não a protegeu nem de seu avô materno, que abusou sexualmente dela. Estava preocupada em ser a responsável pelo que acontecia com as filhas. Acolhi seu sofrimento e falei que ela tinha muitas coisas para conversar sobre sua vida e que ela precisava de alguém que tivesse as condições necessárias para ouvi-la. Ao me relatar que só contava com suas filhas, procurei sensibilizá-la de que elas eram pequenas e despreparadas para ajudá-la com seu próprio sofrimento. Ela me pede mais uma sessão. Bianca retorna e conta que sua mãe estava chorando muitas vezes e que nunca a tinha visto chorar antes. Nesse momento digo que eu havia conversado com sua mãe, que ela estava triste e que nem sua irmã nem ela eram culpadas disso. Bianca me olha e fala: “– Sabe, eu durmo com a minha mãe. Eu gosto. Só não gosto quando ela quer dormir abraçada e me aperta. Fico com falta de ar”. Pergunto: “– Você fala pra ela?”. “– Não, minha mãe vai ficar triste”, diz a menina. Havia uma situação abusiva na família: o abuso sexual sofrido pela mãe, o lugar equi- vocado em que a mãe colocou Bianca, infligindo à filha um excesso de estimulação. Penso que esse excesso de estimulação contribuía para a situação confusa vivida por Bianca, e até para a aceleração da puberdade física, fato confirmado pelos pais. Recebo novamente a mãe, que me conta ter chorado muito, e que Bianca havia pedido para colocar um lençol de menina em sua cama porque ela queria dormir no próprio quarto. Argumenta que nunca viu qualquer problema de a filha dormir com ela e eu tento mostrar, a partir daí, que o lugar ao lado dela na cama do casal não era das filhas, que isso confundia o desenvolvimento de Bianca. Retomo a importância de ter alguém para conversar sobre a triste história vivida e seu sofrimento atual no casamento. Foram apenas seis sessões com Bianca, reveladoras de questões transgeracionais, de um intenso conflito conjugal, do desamparo e desesperança das crianças. A agita- ção e a atitude rebelde da menina eram apenas a ponta de um emaranhado de conflitos familiares. Durante os quatro atendimentos dos pais, dois individuais com a mãe e duas sessões com ambos, eles compreenderam um pouco da turbulência que já experimentavam há anos e que afetava as filhas. Os pais decidiram iniciar uma terapia de casal. Na última sessão com Bianca, ela quis jogar o Jogo da Vida. Comentei sobre as peripé- cias que vivíamos enquanto jogávamos, quanta coisa podia acontecer na nossa vida, e tinha muito mais que nem cabia no jogo.

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Disse que ela tinha me ajudado a compreender o que estava acontecendo com ela e com seus pais, ao que Bianca respondeu: “– Você sabe que minha mãe não está gritando nes- ses dias, nem chorando?”. “– Não sabia, Bianca. Agora eu sei porque você acabou de contar. Que bom!”. Foi meu último encontro, pois os pais deixaram para depois uma possível ludoterapia; um depois que ignoro se ocorreu. Creio que, neste breve período, a interação entre nós alcançou algum sentido sobre seu sofrimento e de sua família, com os quais se debatiam há alguns anos. Ocorreram algu- mas descobertas que favoreceram um início de modificação na dinâmica familiar.

10 meses

Vivi tinha dois anos quando foi adotada. Oitava filha biológica de uma moradora de rua, portadora de AIDS, ela fora recolhida a um abrigo para crianças abandonadas ou sepa- radas dos pais por maus tratos. Ao visitar o abrigo, a mãe adotiva encantou-se com Vivi e sua história. O processo de adoção durou seis meses, tanto para a adaptação da menina à nova família, quanto em função do levantamento de dados para a certidão de nascimento. Nada se sabia de seu pai. A mãe adotiva tinha uma companheira que não compartilhou do desejo de adotar uma criança, mas afeiçoou-se à menina. No momento em que sou procurada, Vivi tinha sete anos e sua mãe estava bastante frustrada com ela: a menina, embora esperta, não era disciplinada e estudiosa como a mãe; era respondona e ainda estava “roubando” na escola. Escola boa, particular. A mãe questio- nava continuar com ela, estava cansada, desesperançada, e já considerava que Vivi carregava a carga genética ruim da mãe. E talvez “do pai, que nem se sabe quem é”. Perguntei se ela não achava que Vivi tinha muitas coisas para entender sobre sua ori- gem e sua vida: mulata, filha de uma moradora de rua, sem saber quem era seu pai, adotada, mãe adotiva casada com outra mulher. A mãe concorda e diz: “E separada”. Conta da separação e do novo casamento com uma moça por quem estava muito apaixonada. Agendamos o encontro com a filha. Vivi entra na sala e fica muito animada com a caixa de brinquedos. Brinca com massi- nha, cola e acha os bonecos da família. Pega todos e não sabe bem o que fazer. Coloca a mãe e a filha em um dos balões, um móbile que havia na sala, e outra figura feminina no outro balão. Perguntei: “– A filha quer ficar sozinha com a mãe?”. Olha-me surpresa. Diz: “– É, faz tempo que ela não fica sozinha com a mãe. Agora a mãe só quer ficar com a namorada”. Deixa as três nos balões e tenta montar uma casa para os outros membros da família. Pega almofadas, monta uma casa e não fica satisfeita. Desmonta. Perambula pela sala carre- gando a família e desiste. Na sessão seguinte, coloca de novo as três mulheres nos balões e diz: “– Elas estão vendo os outros lá embaixo na rua”.

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quando adotei Vivi: um era a parte genética e outro era minha opção sexual. Me dê um tempo, não quero que minha filha pense nisso agora”.

10 anos

Em outubro de 2000, conheço Laura. Primeiro contato telefônico: a mãe liga, marca a entrevista, e Laura não aparece. Segundo contato: novamente a mãe liga, pede desculpas por não ter avisado que a filha não quisera vir. Conta, então, que haviam interrompido a terapia que a menina realizava há dois anos e que, embora relutante, Laura aceitara vir porque não estava bem. No primeiro encontro, Laura, de poucas palavras, me olhava desconfiada. Ao conversarmos sobre o porquê de estar novamente com uma psicóloga, Laura res- pondeu, com desencanto, que ela tinha interrompido a outra terapia porque não estava mais melhorando. Perguntei: “– O que precisa melhorar?”. Laura responde que a mãe só reclama dela, nada do que ela faz está bom. E que ela andava muito irritada com os irmãos – um garoto um ano mais novo e uma garota cinco anos mais nova. Não achava sua família feliz. Contou que o irmão e ela brigavam muito, dizendo: “– E ninguém faz nada”. “– Quem deveria fazer alguma coisa?”, pergunto. “– Os pais. Minha mãe só reclama da gente e meu pai só trabalha. Chega cansado e não tem tempo pra ligar pra essas coisas. No jantar todo dia tem provocação e briga. Nem dá vontade de ficar na mesa”. Digo, então: “– Acho que você precisa conversar com alguém sobre sua irritação, seus sentimentos e pensamentos. E também porque parece que conversar está difícil na sua família”. “– É, mas já fiz terapia e não adiantou nada”, diz Laura um tanto arrogante. “– Não posso dizer que não adiantou nada porque estou te conhecendo agora, mas você observa certas situações na sua família, questiona seus pais quanto a isso e está irritada, mas no fundo está é triste e desanimada, achando que não tem como melhorar. Será que não vale a pena ter alguém de fora da família para conversar?”. Laura permanece em silêncio. Depois de alguns minutos, pergunta: “– Você acha mesmo?”. Afirmo: “– Acho”. Considerei necessário expressar para a garota minha esperança nela e em um futuro trabalho. Na entrevista com os pais, a mãe relatou que a filha era mandona e difícil, e que a primeira busca por terapia foi em consequência de excessiva masturbação em momentos de ansiedade ou tristeza. Os pais contaram que outros problemas eram o sono e as brigas entre ela e seu irmão, frequentes e muito agressivas. Eles disseram também que às vezes discutiam, mas nunca bri- garam da mesma forma que os filhos. Perguntei o que eles faziam nessas ocasiões. Os pais consideravam melhor deixar os filhos resolverem sozinhos. Ao abordar esse tema, o pai diz que o menino faz análise há algum tempo porque estava muito angustiado, e que a caçula “já-já vai ter de ir porque também é um terrorzinho”.

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Ironicamente ele diz que nunca vai fazer uma análise porque ele não tem mais con- serto, mas para os filhos não irá negar ajuda. Essa fala e o tom irônico e desencantado reme- teram-me a Laura. Os pais tinham dificuldades em exercer as funções materna e paterna de acolhimento, orientação e limite, e me pareceu que não havia, neles, o registro desses aspectos. A mãe contou que ficou “órfã” aos sete anos, quando seus pais se separaram; o pai se ausentou da vida dela e a mãe foi trabalhar. Suas duas irmãs, pouco mais velhas que ela, é que cuidaram dela. Por seu lado, o pai de Laura disse que aprendeu que um pai trabalha, ganha o dinheiro para o sustento da família, e quem deve cuidar dessas brigas, das coisas dos filhos, é a mãe. Admitiram que precisavam de ajuda para entender a filha, mas percebi que esperavam que eu desse um jeito de melhorar sua personalidade difícil. Disseram que a garota aceitara experimentar fazer análise comigo. Após três anos, enquanto trabalhávamos a acentuada exigência de Laura com relação a si mesma e às outras pessoas, a rivalidade com sua mãe, tomando consciência dos pesade- los sobre acidentes e morte da mãe, apareceu um sintoma de uma doença autoimune e um agravamento da insônia. A mãe pede uma sessão urgente para si e conta um segredo familiar: aos treze anos ela, mãe, fora acometida de uma doença autoimune com o mesmo sintoma da filha. Foi tra- tada e aparentemente estava curada. Após a gravidez de Laura, o sintoma retornou, e depois do nascimento do filho a doença instalou-se definitivamente. Os sinais eram disfarçados por artifícios e ninguém da família podia falar disso. Havia um pacto entre eles e os filhos: não poderiam falar nem para as terapeutas. O pai, transtornado, me diz que não vai suportar tudo novamente, e que era desespe- rador estar ocorrendo esse pesadelo com um de seus filhos. Indiquei uma terapia para o casal, iniciada prontamente. Laura, inicialmente assustada, atravessou esse período turbulento muito colabo- rativa com os médicos e exames. Considero que havíamos construído um vínculo capaz de suportar essa experiência, conversar sobre ela e muitas situações vividas em segredo puderam ser faladas. O sintoma foi tratado e desapareceu. Iniciou uma medicação para seu antigo distúrbio do sono. Apesar das mudanças que estava enfrentando, a garota pare- cia mais aliviada. As dificuldades no relacionamento entre os membros de sua família, anunciadas pela garota no primeiro encontro, estavam distribuídas entre eles, e com um envolvimento dos pais, em uma medida maior do que no passado, para dar conta de sua história. A aliança estabelecida com eles, e construída com Laura, propiciou mais sete anos de trabalho analítico.

Conclusão

As primeiras entrevistas são o prólogo inevitável do trabalho analítico. Um tipo de interação que carrega um tanto de tensão entre paciente e analista, com um concentrado de informações, em um tempo curto, que podem estar contidas no relato do sofrimento, atual ou passado, de um sonho, de uma recordação, ou até um silêncio.

A criança e o psicanalista. Acontecimentos iniciais: Eliana da Silveira Cruz Caligiuri 47

The child and the psychoanalyst. Initial events

Abstract: If analysis is the daily practice of the psychoanalyst, the first interviews are the inevitable pro- logue to this work. They can be a prologue bigger than analysis itself and even be the only contact, in the case of non-continuity. Further than approaching, in this article, the psychoanalytic method in operation since the first encounters with the patient – fluctuating attention to any and every bit of material which shows up, the search for a kind of interaction which will provide the construction of some analytic mea- ning, communicating to the patient something unknown to himself – I attempted to develop the specificities when treating children, illustrating my considerations with clinical vignettes. Keywords: first interviews; interaction; child; therapy appointment; surprise.

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[Recebido em 9.12.2012, aceito em 27.11.2012]

Eliana da Silveira Cruz Caligiuri Rua Guilheme Bannitz, 90, cj. 34 04532-060 Itaim Bibi, São Paulo, SP Tel.: (11) 3845- elianacali@terra.com.br