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A Consciência Intencional e o Ego: Desafios Filosóficos e Psicológicos, Esquemas de Psicologia

Este texto discute as dificuldades enfrentadas pela filosofia e pela psicologia no tratamento da consciência intencional e do conceito de ego. A autoria critica as perspectivas pós-kantianas e as psicologias do século xix, propondo uma nova abordagem para a compreensão da relação entre consciência e mundo, e entre sujeito e objeto.

Tipologia: Esquemas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Tucupi
Tucupi 🇧🇷

4.6

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A CONSCIÊNCIA ENTRE O FORMALISMO E A PSICOLOGIA EM
SARTRE
(Conscience between formalism and psychology on Sartre)
Marcio Luiz Miotto
(Doutorando em Filosofia pela UFSCAR, e Pesquisador FAPESP)
Resumo: O presente artigo pretende problematizar, nos três primeiros livros filosóficos de Sartre, a noção de
consciência, em torno de um duplo horizonte de interlocução: o legado “formalista” kantiano, e os
diversos projetos de “ciência psicológica” existentes nos séculos XIX e XX. Para isso, recompõem-se
esses dois horizontes a partir do panorama feito por Sartre desde o momento cartesiano, discutindo
as diferentes filosofias da subjetividade, e culminando na noção de “intenc ionalidade”, formulada por
Husserl. A noção de consciência intencional serviria como referência para julgar tanto o legado
filosófico, quanto para depurar seus prejuízos, entrevistos até mesmo nos contemporâneos de
Sartre.
Palavras-chave: Sartre, intencionalidade, consciência, psicologia, formalismo
Abstract: This paper intends to discuss, in the three first philosophical books of Sartre, the concept of
“conscience”, on two sorts of problems: the kantian legacy, called “formalist”, in one side, and the
several projects of “psychological sciences” of XIX and XX´s centuries. In order to do that, the text
retraces the panorama made by Sartre, beginning with the cartesian moment, passing by the theme
of “subjectivity”, and culminating with the notion of “intentionality”, on Husserl. The notion of
intentional conscience would function as referencial, to judge the philosophical legacy, and even
though to purify its defects, seen through the contemporaries of Sartre.
Keywords: Sartre, intentionality, conscience, psychology, formalism
É conhecida do leitor a atitude fenomenológica, e a tentativa de Husserl de recompor a
teoria do conhecimento para além dos prejuízos da “atitude natural”, figurada no século XIX.
Esta “atitude” acarretou, no início das ciências humanas, uma série de problemas insolúveis,
desde questões de unidade e especificidade, até o problema do fundamento do conhecimento:
como poderia o homem sustentar a evidência do conhecimento a partir de seu estatuto de ser
natural? Se o homem é objeto à mercê dos acontecimentos da natureza, pretende-se que o
próprio conhecimento se subsuma a essas mesmas determinações. Logo, o conhecimento (que
recebe dos séculos anteriores a tarefa de ser apodítico) incorre, de saída, no risco da
contingência.
Por uma via, o pensamento do século XIX se deparava com o formalismo kantiano:
em diversos momentos, os formuladores da psicologia nascente mostraram que noções como
“consciência de si” detinham “apenas” valor lógico, sem métodos apropriados que pudessem
dar conta tanto de seu conceito, quanto de sua passagem para a consciência empírica. O veto
Kantiano à psicologia - prefigurado tanto pelo cuidado de não confundir consciência empírica
com apercepção transcendental, quanto não tomar relações temporais por análises
quantitativas e espaciais, passando pela não confusão entre as noções de Geist, Gemüt, e
Seele1 - denotava que o conhecimento não poderia se fundar em princípios subjetivos, ou
intuições intelectuais. Do lado dos psicólogos, o veto foi interpretado como um impedimento
de ordem “metafísica” (em sentido pejorativo), e a psicofísica de Fechner vinha
pretensamente mostrar como se poderia ultrapassar o impedimento kantiano em direção a uma
psicologia efetiva.
Tal é, em linhas gerais, um duplo bloco de interlocução que encontrou a
fenomenologia de Husserl, e várias formulações de seus epígonos. Em Sartre, tornava-se
clara, desde suas primeiras obras, a busca de um caminho alternativo: de um lado, resolver o
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A CONSCIÊNCIA ENTRE O FORMALISMO E A PSICOLOGIA EM

SARTRE

(Conscience between formalism and psychology on Sartre)

Marcio Luiz Miotto (Doutorando em Filosofia pela UFSCAR, e Pesquisador FAPESP)

Resumo: O presente artigo pretende problematizar, nos três primeiros livros filosóficos de Sartre, a noção de consciência, em torno de um duplo horizonte de interlocução: o legado “formalista” kantiano, e os diversos projetos de “ciência psicológica” existentes nos séculos XIX e XX. Para isso, recompõem-se esses dois horizontes a partir do panorama feito por Sartre desde o momento cartesiano, discutindo as diferentes filosofias da subjetividade, e culminando na noção de “intencionalidade”, formulada por Husserl. A noção de consciência intencional serviria como referência para julgar tanto o legado filosófico, quanto para depurar seus prejuízos, entrevistos até mesmo nos contemporâneos de Sartre. Palavras-chave: Sartre, intencionalidade, consciência, psicologia, formalismo

Abstract: This paper intends to discuss, in the three first philosophical books of Sartre, the concept of “conscience”, on two sorts of problems: the kantian legacy, called “formalist”, in one side, and the several projects of “psychological sciences” of XIX and XX´s centuries. In order to do that, the text retraces the panorama made by Sartre, beginning with the cartesian moment, passing by the theme of “subjectivity”, and culminating with the notion of “intentionality”, on Husserl. The notion of intentional conscience would function as referencial, to judge the philosophical legacy, and even though to purify its defects, seen through the contemporaries of Sartre. Keywords: Sartre, intentionality, conscience, psychology, formalism

É conhecida do leitor a atitude fenomenológica, e a tentativa de Husserl de recompor a teoria do conhecimento para além dos prejuízos da “atitude natural”, figurada no século XIX. Esta “atitude” acarretou, no início das ciências humanas, uma série de problemas insolúveis, desde questões de unidade e especificidade, até o problema do fundamento do conhecimento: como poderia o homem sustentar a evidência do conhecimento a partir de seu estatuto de ser natural? Se o homem é objeto à mercê dos acontecimentos da natureza, pretende-se que o próprio conhecimento se subsuma a essas mesmas determinações. Logo, o conhecimento (que recebe dos séculos anteriores a tarefa de ser apodítico) incorre, de saída, no risco da contingência. Por uma via, o pensamento do século XIX se deparava com o formalismo kantiano: em diversos momentos, os formuladores da psicologia nascente mostraram que noções como “consciência de si” detinham “apenas” valor lógico, sem métodos apropriados que pudessem dar conta tanto de seu conceito, quanto de sua passagem para a consciência empírica. O veto Kantiano à psicologia - prefigurado tanto pelo cuidado de não confundir consciência empírica com apercepção transcendental, quanto não tomar relações temporais por análises quantitativas e espaciais, passando pela não confusão entre as noções de Geist, Gemüt , e Seele^1 - denotava que o conhecimento não poderia se fundar em princípios subjetivos, ou intuições intelectuais. Do lado dos psicólogos, o veto foi interpretado como um impedimento de ordem “metafísica” (em sentido pejorativo), e a psicofísica de Fechner vinha pretensamente mostrar como se poderia ultrapassar o impedimento kantiano em direção a uma psicologia efetiva. Tal é, em linhas gerais, um duplo bloco de interlocução que encontrou a fenomenologia de Husserl, e várias formulações de seus epígonos. Em Sartre, tornava-se clara, desde suas primeiras obras, a busca de um caminho alternativo: de um lado, resolver o

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problema de uma consciência empírica que fuja aos formalismos pós-kantianos, criticados como insuficientes para dar conta da passagem da função lógica da consciência à consciência empírica; de outro lado, as psicologias do século XIX, assentadas no lado empírico, ensejavam uma série de contra-sensos, desde a formulação de uma espécie de atomismo analítico da consciência, à incapacidade dessa perspectiva dar conta dos próprios processos mentais superiores. Entre as contradições das psicologias, e o formalismo, tal é o trajeto percorrido por Sartre desde A Transcendência do Ego , até o Esboço sobre uma teoria das emoções , para compor sua perspectiva fenomenológica. Como enuncia já no início de A Transcendência do Ego , Para a maior parte dos filósofos o Ego é um “habitante” da consciência. Alguns afirmam sua presença formal no seio das “ Erlebnisse” , como um princípio vazio de unificação. Outros – a maior parte, psicólogos – pensam descobrir sua presença material, como centro dos desejos e dos atos, em cada momento de nossa vida psíquica. Pretendemos mostrar aqui que o Ego não está nem formalmente, nem materialmente na consciência: está fora, no mundo ; é um ser do mundo, como o Ego do outro. (1937/1994, p. 43)

Entre o “formal” e o “material”, Sartre buscará tecer sua perspectiva fenomenológica. De um lado, o “formalismo” diz respeito tanto ao legado pós-kantiano, quanto a certas atitudes de Husserl classificadas como artifícios desnecessários diante da epoché. Assim, do lado “formal” os alvos são tanto alguns pós-kantianos (desde aqueles que mantém a separação entre a função lógica e a empírica, até os que buscam realizar a apercepção transcendental), quanto o Husserl das Idéias Relativas a uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica , que pressuporia uma espécie de Eu como função unificadora do mundo vivido. No limite, o próprio Cogito estabeleceria uma “egologia”. Do lado “material”, a crítica incide tanto sobre a “realização” mencionada acima, quanto às diversas metodologias e conceitos da psicologia nascente. A pedra de toque da crítica sartreana é a noção de consciência como intencionalidade. Esta auxiliaria tanto no deslocamento das condições do conhecimento da esfera lógica à empírica, quanto em contribuições para uma revisão crítica da psicologia, para além de suas diversas contradições. 2

O formalismo e o recuo da experiência

Em linhas gerais, a objeção de Sartre ao formalismo caracteriza-se pelos seguintes parâmetros: Assim, Kant respondia a Hume: “Pode ser que no terreno da experiência não se possa descobrir outro laço entre a causa e o efeito que não seja a consecução empírica. Mas para que uma experiência seja possível é preciso que princípios sintéticos a priori se constituam. Mas essa resposta, admissível quando se trata da constituição da experiência, não o é mais quando é preciso, no interior dessa experiência, dar conta do pensamento. O pensamento de que se trata não é constituinte; é a atividade concreta do homem, fenômeno constituído no meio de outros fenômenos. Uma coisa é constituir minha percepção presente (um quarto, livros, etc.) por meio de sínteses categoriais que tornam possível a consciência, outra é formar pensamentos conscientes sobre esta percepção uma vez ela constituída (por exemplo, pensar: os livros estão sobre a mesa, isto é uma porta, etc.). Neste segundo caso a consciência existe em face do mundo: se, pois, formo um pensamento sobre o mundo, cumpre que ele me apareça como fenômeno psíquico real. Não há aqui “virtualidade” nem “possibilidade” que satisfaça: a consciência é ato e tudo o que existe na consciência existe em ato. (1936/1980, p. 29-30).

Esse movimento entrevisto por Sartre, da filosofia pré-crítica a Kant, e depois de Kant à fenomenologia, permite mostrar a postura crítica elaborada em A Imaginação , e o mote de Sartre em seus primeiros livros. Em primeiro lugar, as teorias clássicas da imagem (representadas por Descartes, Leibniz e Hume) afastariam seu estatuto de uma experiência legítima. Cada qual a seu modo trataria de diminuir o papel dessa noção: afastando

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impossibilidade de uma intuição intelectual, e a passividade originária da intuição. Husserl daria um passo adiante ao colocar o mundo “entre parênteses”, e deslocar esse resquício clássico de exterioridade em direção à imagem como Erlebnisse intencional: “A distinção consciência-mundo perdeu seu sentido. Agora o corte se faz de outra forma (...). A realidade psíquica concreta será chamada de noese e o sentido que vem habitá-la noema (...)” ( ib. , p. 114). Mas a inversão feita por Kant do esquema clássico - perguntando-se antes pelas condições do conhecimento para depois constituir a ciência - acarreta outras conseqüências, para Sartre. Esse recuo para as condições da experiência, por sua vez, não daria conta da existência da consciência “em ato” (citação acima). Se Kant inverte o esquema clássico, ainda manteria aberto o problema da própria passagem do direito ao fato, ou das condições da experiência à experiência ativa. Daí Sartre chamar a atenção à insuficiência do formalismo, ou de outros artifícios que buscam recuar da experiência para princípios unificadores: o “recuo” da experiência a esses princípios não é suficiente para dar conta da própria experiência efetiva. Dada a redução fenomenológica, tal operação de “recuo” seria inclusive desnecessária. Tal é o plano da primeira parte de A Transcendência do Ego , escrito antes de A Imaginação. Sob o modelo kantiano de subjetividade, a questão de saída é a da apercepção transcendental. Sartre retira duas passagens principais da Crítica da Razão Pura , para guiar sua análise. A primeira é “o Eu Penso deve poder acompanhar todas as nossas representações”; a segunda contém uma referência indireta (“uma dessas condições é que eu possa considerar sempre minha percepção ou meu pensamento como meus ”, 1937/1994., p. 43-44. 3 ). Sartre interpreta que o Eu Penso na filosofia kantiana trata de “determinar as condições de possibilidade da experiência”, ou “as condições necessárias para a existência de uma consciência empírica”. À luz da passagem sobre Hume enunciada acima, vê-se como Kant ultrapassa a consciência empírica que lhe relegou a tradição. Em Hume, “pode ser que no terreno da experiência não se possa descobrir outro laço entre a causa e o efeito que não seja a consecução empírica”. Ora, esse enunciado se apóia para Sartre em outro princípio já enunciado acima, o de uma “identidade radical do modo de ser dos fatos psíquicos e do modo de ser das coisas”. A consciência empírica em Hume se fundaria nessa “identidade radical”, que permitiria grosso modo seguir das impressões às idéias, por conseguinte não fornecendo ao conhecimento outro princípio que o empírico (o “panpsiquismo” alardeado por Sartre). O problema da apercepção, portanto, diz respeito ao conhecimento não se fundar apenas nas associações do dado, mas em princípios transcendentais. Mas seria “forçar o pensamento de Kant” pressupor que o Eu Penso da apercepção acompanha as representações como uma espécie de “inconsciente pré-empírico” uma “consciência superior” ou “hiperconsciência constituinte”, a partir da qual a consciência empírica se destacaria ( ib. , p. 44-45). Dizer que o Eu Penso “deve acompanhar” as nossas representações é diferente de afirmá-lo como “companheiro inseparável de cada uma de nossas ‘consciências’” ( ib., p. 45). A apercepção transcendental é função lógica; nisso, pressupô-la como companheira “prévia” e “inseparável” significa passar do direito ao fato , transpondo um nível no outro, o que atesta o perigo de realizar a apercepção conferindo a ela simultaneamente estatuto empírico, prévio e impreciso. O que Sartre sintetiza como “uma hipóstase de direito, um inconsciente flutuando entre o ideal e o real” ( ib. , p. 45). Vê-se como se abrem dois caminhos, e Husserl seria responsável pelo intermediário. De um lado, a apercepção transcendental kantiana postularia apenas a questão de direito, detida em condições de possibilidade resumidas em aspecto lógico, onde “as representações de uma consciência devem estar unidas e articuladas de tal sorte que um Eu Penso de comprovação seja sempre possível a propósito delas”; de outro, aparece a ameaça de hipostasiar a apercepção, confundindo o nível empírico com o transcendental. Entre a questão

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de direito, e a má colocação da questão de fato, Husserl viria a resolver “o problema da existência de fato do Eu da consciência” ( ib. , p. 45). Em Husserl, a consciência não é um “conjunto de condições lógicas”, mas um “fato absoluto” (“Com efeito, a existência da consciência é um absoluto, porque a consciência é consciência de si mesma”, ib., p. 48). A crítica se desloca em direção à fenomenologia como ciência descritiva ou “estudo científico” da consciência. Esta consiste, pela epoché , em um campo transcendental, “impessoal” ou “pré-pessoal”, plano pré-reflexivo e intencional a partir do qual as relações se dão como transcendências ( ib. , p. 45-46). “Toda consciência é consciência de algo” ( ib. , p. 50) significa postular a consciência como ultrapassagem, antecipação de um “campo” unificador e pré- reflexivo no qual o “mundo” será apreendido no movimento mesmo em que a consciência é atividade que ultrapassa o dado. O segredo está na intencionalidade. Enquanto ultrapassagem (“Pela intencionalidade ela se transcende a si mesma, se unifica escapando-se”, ib., p. 47), ela postula um objeto transcendente, contornando o problema da representação como “conteúdo” interior da consciência, e por conseguinte os problemas da exterioridade entre sujeito e objeto postulados pelos clássicos. O objeto não se apreende na consciência como um “conteúdo” representativo; precisamente essa concepção do “conteúdo” requer um “princípio transcendental e subjetivo de unificação”. Mas para a fenomenologia, trata-se de projetar o objeto para fora dos conteúdos internos: “O objeto é transcendente às consciências que o apreendem, e é nele que se encontra sua unidade”, ou “a unidade das mil consciências ativas pelas quais juntei, junto a juntarei dois e dois para fazer quatro, é o objeto transcendente ‘dois e dois são quatro’”( ib. , p. 47). Tornada intencionalidade, ou modo de “animar intencionalmente um conteúdo hilético” (1936/1980, p. 111), a consciência dispensa princípios unificadores recuados, que implicariam ainda a permanência dos problemas clássicos, tais como os objetos como conteúdos internos da consciência, a passagem do objeto-coisa ao objeto representado, e portanto todo o problema da exterioridade entre sujeito e objeto elencado acima. Tanto em A Imaginação , quanto no Esboço para uma teoria das emoções , vê-se a passagem: de questão menor e "imperfeita", a imagem e a emoção passam à alçada de atos intencionais da consciência. No mesmo movimento, não são “conteúdos” internos, mas transcendências. Dada como ato intencional, a consciência reduzida fenomenologicamente contornaria a necessidade de um “Eu” recuado e unificador. Sobre o estatuto de fato da consciência, Husserl “respondeu à questão” (1937/1994, p. 46) nas Investigações Lógicas. Mas Sartre entende que Husserl dá um passo atrás, quando nas Idéias reoferece a noção de um "Eu" transcendental. Lá, o Eu aparece como um princípio “pessoal” e unificador, “produtor de interioridade”, “núcleo permanente”, “cujos raios ( Ichstrahl ) recairiam sobre cada fenômeno que se apresenta no campo da atenção”( ib., p. 46-47). Ora, se a consciência é auto- unificadora, recolocar um Eu transcendental implicaria para Sartre “a morte” dela ( ib., p. 48). O problema todo reside no princípio do Eu unificador das consciências. Se a consciência unifica a si mesma, implicar um princípio recuado e unificador das consciências é pressupor que os atos conscientes não formam uma totalidade sintética transparente a si própria, fazendo no limite a consciência perder seu caráter ativo e intencional. A consciência intencional implica que o ato consciente seja consciência de algo, e portanto, transparência: “Tudo é então claro e lúcido na consciência: o objeto está frente a ela com sua opacidade característica, mas ela é pura e simplesmente consciência de ser consciência desse objeto” ( ib. , p. 48). Um Eu recuado da consciência, e que unificaria as consciências, faria das “várias” consciências elementos opacos entre si e em relação à totalidade, o que eludiria a própria noção de consciência intencional, e novamente retornariam os problemas tanto do objeto, como da concordância da consciência e do objeto, quanto o estatuto da consciência e de seus modos de representação. Sartre quer depurar esse “passo atrás” de Husserl, recuperando a noção de consciência tal como se formula: “a individualidade da consciência provém,

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especialmente as de inspiração positivista - garantiriam a harmonia do conhecimento conservando a relação de exterioridade entre sujeito e objeto, porém abolindo antigos princípios de concordância – no texto de Merleau-Ponty, figurados segundo a questão do Infinito.^6 Como define Sartre no Esboço , o objeto da investigação dos psicólogos do século XIX resume-se aos fatos : estes se definem como aquilo mesmo que se oferece à experiência; esta, por sua vez, caracteriza-se como uma “coleção” daqueles, ordenados em ordem espacial ou temporal por uma intuição própria desdobrada em consciência reflexiva (1939/2006, p. 13). Lembrando uma fórmula já clássica, o escopo da psicologia é “investigar os fatos da consciência, suas combinações e relações”, bem como “as leis que governam essas relações e combinações”; nisso, a consciência “consiste na soma total dos fatos de que somos conscientes” (Wundt 1912/1921, p. 01). Em outras palavras e diante dessa formulação, no viés de Sartre as psicologias clássicas se apóiam numa noção de experiência que requer, de um lado, que os objetos sejam dados ao sujeito, e de outro, que esse sujeito seja capaz, por algum princípio não fornecido de antemão, de se auto-observar a partir da composição dos dados que lhe são oferecidos. Para tanto, vê-se que nessa relação de subjetividade (em que objetos subsistentes são dados a um sujeito que os compõe) tanto a natureza unificadora da consciência, quanto sua possibilidade de auto-reflexão, devem se assentar em um dos dois princípios: ou em um sujeito unificador e ativo que permaneça por sobre a experiência, ou no próprio dado, em algum princípio inerente aos “fatos”. A recusa da “metafísica” pela psicologia “científica” nascente exclui o primeiro princípio: postulando que a consciência é objeto acessível experimentalmente, não se pode admitir paradoxalmente que ela ocorre por sobre a própria experiência. Quanto ao segundo princípio, aí reside a “ingenuidade” do realismo espontâneo: em primeiro lugar, pressupõe um acordo prévio e instantâneo entre o fato e a síntese; e em segundo lugar, postula a atividade sintética a partir de uma evidência ingênua, como se a positividade imediata do dado fosse por si só legítima, e isenta de qualquer perspectiva “metafísica" ou necessidade de justificação. A evidência ingênua desse princípio sintético provém de uma confusão conceitual e metodológica. Como conclui Sartre em A Imaginação, “pretendeu-se reencontrar a síntese psíquica partindo de elementos fornecidos pela análise a priori de certos conceitos metafísicos-lógicos” (1936/1980, p. 119). Em outras palavras, a psicologia postula de saída a consciência como complexa e sintética; mas o método empregado, emprestado das ciências naturais, pressupõe que tal caráter sintético é acessível por recomposição analítica, sem problematizar como se faz a passagem entre os dois níveis. Isso cria um desbalanço: se a psicologia atém-se aos fatos, pressupõe a consciência como uma “soma total” deles, e os ordena a partir de uma evidência espontânea, mais do que uma unidade sistemática, o que encontra é uma justaposição de elementos. No fim da pesquisa, a “soma” dos dados projetará uma unidade apenas por via indutiva: “A introspecção é um modo especial de reflexão que procura apreender e fixar os fatos empíricos. Para converter seus resultados em leis científicas é preciso, em seguida , uma passagem indutiva para o geral” (1936/1980, p. 105). Vê-se o prejuízo da indução: pela própria natureza dos dados agrupados, não se parte de uma unidade ou universalidade prévia que guia a pesquisa; ao final dela, ocorrerão inevitavelmente problemas de unificação: “Mas, antes de experimentar, não convém saber tão exatamente quanto possível sobre o que vamos experimentar? A esse respeito a experiência nunca dará mais do que informações obscuras e contraditórias” (1936/1980, p. 105-106). No Esboço , os problemas da indução, da ausência de unidade, da justaposição dos dados, e da evidência factual “insuspeita” recebem uma formulação ainda mais completa. Lá Sartre alude às psicologias acolherem o fato de modo imediato e insuspeito, e portanto conservarem tanto o problema da unificação, quanto de uma antropologia prévia que serviria para direcionar a

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pesquisa e agrupar os dados. Um índice disso é o resultado dispersivo das diversas psicologias. Se o fato se define como “algo que se deve encontrar no curso de uma pesquisa, e que se apresenta sempre como um enriquecimento inesperado e uma novidade em relação a fatos anteriores”, a inexistência de um critério a priori de pesquisa mostra que não há um horizonte prévio de seleção desses “fatos”. Desde que pertençam à esfera humana, são relativamente válidos (e aí reside sua evidência ingênua). Diferente da sociologia e da fisiologia, que ainda preservam “certas ligações objetivas” nos seus alvos de estudo, o objeto da psicologia pode convir tanto ao “primitivo australiano” quanto ao “ operário americano de 1939” (1939/2006, p. 14-15). Mas como se pode antever com a questão da indução acima, os fatos não proporcionam mais do que uma soma heteróclita, sem ligação. “Que há de mais diferente, por exemplo, que o estudo da ilusão estroboscópica e o complexo de inferioridade?”. Não há passagem de um fato ao outro, são isolados entre si, acidentes diante de uma essência não definida, e por fim não supõem um horizonte antropológico regedor de sua busca. O resultado é sempre regressivo: supõe-se uma idéia de homem que não se oferece no próprio dado, e que se afasta sempre da soma dos resultados dispersos.^7 Como se por trás dos fatos se encontrasse sem maiores justificações um “homem”, e a própria parcialidade das análises permitisse recompor no final um objeto complexo, total e sintético. Mas além da confusão de método, ocorre também uma confusão conceitual. Como Sartre aponta acima, permanecem alguns conceitos “metafísico-lógicos” não elucidados, quando o psicólogo nega a metafísica e acolhe os fatos em sua positividade imediata. Para que os objetos do mundo sejam subsistentes, ofereçam-se à atividade subjetiva, e tal atividade seja por sua vez acessível experimentalmente, apela-se a uma série de pressupostos não admitidos explicitamente. Daí, em A Imaginação, a recorrência das afirmações de Sartre quanto aos psicólogos repetirem as fórmulas clássicas. Taine, por exemplo, seria menos “hábil” do que Hume, criando uma psicologia associacionista em termos correspondentes aos do filósofo inglês, e ainda estabelecendo uma passagem ingênua do psíquico ao fisiológico: como em Hume, o psíquico é objetivado, as imagens tornam-se impressões com menor intensidade, a ordem da percepção duplica a ordem das imagens, o psiquismo se reduz a elementos simples, tais elementos implicam ao mesmo tempo uma exterioridade recíproca e um princípio externo de relação entre eles, e por fim a consciência se resume a uma coleção de fatos (“O espírito é um ‘polipeiro de imagens’”, 1936/1980, p. 23). Mas quando Taine julga que a lei da associação psíquica das imagens é contingente , e de modo correspondente os átomos que se oferecem à consciência provém de leis fisiológicas e necessárias , acaba formulando nada mais do que uma “metafísica frustrada” ( ib. , p. 24). Outro exemplo é a escola de Wurzburg. Como em Descartes, admitem a divisão entre entendimento e imaginação. Menos rigorosos, entretanto, elaborariam um “cartesianismo decaído, tombado ao plano do naturalismo”, provavelmente por apelar à harmonia entre o juízo e o fato sem recorrência ao argumento ontológico ( ib. , p. 59). Mesmo para além do “tempo dos associacionistas”, a pretensão dos psicólogos é estar à frente de seu objeto “como o físico diante do dele” (1939/2006, p. 13). Nesse sentido, as psicologias do início do século XX, alvos do Esboço , também persistiriam em certos caracteres deficitários, para Sartre. Tal como os fatos são agrupados parcial e isoladamente, sem um horizonte prévio de ordenação dos dados, o estudo das funções mentais superiores foi relegado à psicologia também sob heranças clássicas. Assim a emoção torna-se “irredutível” às outras funções mentais (atenção, memória, percepção, etc.), e um capítulo dentre outros nos manuais de psicologia. Novamente, tem-se a evidência imediata: não importa perguntar antes sobre como “a estrutura mesma da realidade humana torna as emoções possíveis e como as torna possíveis”; a emoção é fato, simplesmente “ é ” ( ib. , p. 18). Dada a condição parcial e “acidental” da emoção, ela mesma pode ser dividida em outros fatores. Assim o estado emocional complexo desmembra-se em “reações corporais”, “condutas”, e estados de

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princípio de causalidade rígida, a consciência é sempre efeito de operações alheias a ela; no mesmo movimento, a consciência é compreensiva, e portanto “ maleável ” ao estabelecer as relações (“intraconscientes”) “entre simbolização e símbolo” ( ib. , p. 54). Para além de todos os recuos e caracteres negativos da emoção, Sartre aponta para o ganho da fenomenologia: pela epoché , torna-se desnecessário buscar a raiz das significações ou uma finalidade exterior à própria atividade. Os princípios parciais e a necessidade de recuo advêm precisamente quando não se parte das “essências”. Nisso, o ponto de partida é a emoção como experiência organizada, funcional, significativa e orientada; aspectos não externos ou acidentais, mas “inerentes” à sua “estrutura” ( ib., p. 48). A emoção é “estrutura afetiva da consciência” ( ib. , p. 56). Se ocorre assim, tanto as relações entre corpo e consciência, quanto entre qualidade e quantidade, devem receber um novo estatuto. Por um lado, as reações fisiológicas se constituirão não como falha da consciência, involução ou retorno ao mecanismo; são “transcendidas por uma intenção que visa o mundo através delas” ( ib. , p. 72). Do mesmo modo, elas comporão com as condutas e as intenções conscientes “uma forma sintética total e não poderiam ser estudados por si mesmos” ( ib., p. 76). Entre a conduta, o corpo, e a intenção visada, o ato emotivo forma uma totalidade sintética, indivisível (o que mostra, por exemplo, a plena possibilidade de condutas fingidas ou atuações, sem configurar entretanto verdadeiras experiências emotivas^9 ). Se os psicólogos enxergavam um salto entre os elementos parciais (condutas, reações, estados conscientes) e o postulado da totalidade sintética, a fenomenologia parte precisamente da totalidade. Um princípio fundamental rege essa concepção de totalidade. Trata-se, novamente, da noção da consciência intencional: “De fato, é evidente que o homem que tem medo, tem medo de alguma coisa (...). Em uma palavra, o sujeito emocionado e o objeto emocionante estão unidos numa síntese indissolúvel. A emoção é uma certa maneira de apreender o mundo” ( ib. , p. 57). Para demonstrar a “síntese indissolúvel” entre consciência e mundo, Sartre recorre, como anteriormente, à distinção entre consciência irrefletida e reflexiva. Uma ação é sempre ação irrefletida enquanto se efetua. Escrever ou agir espontaneamente não consiste em refletir sobre cada elemento da ação separadamente, mas “acompanhar” a própria ação em sua continuidade. A consciência que “utiliza” a mão que escreve não se atém a cada ato separado, mas se enreda em uma continuidade imediata, como num “ato especial de espera (...) criadora”, como se a própria palavra se servisse da mão ( ib. , p. 59). O caráter espontâneo da ação irrefletida implica algo como uma “exigência”, de antecipação sobre a totalidade, que faz parte do próprio mundo aberto pela consciência. Na fórmula de Sartre, o mundo se abre como totalidade sintética constituída de uma série de caminhos ou exigências possíveis, alteráveis e possivelmente reforçados pelas possibilidades realizadas; na própria medida em que se realizam, as possibilidades imporiam por sua vez novas exigências de realização. Nesse plano de uma consciência que abre um mundo, e altera continuamente seus modos de visá-lo, Sartre insere a emoção. Ela aparece quando os caminhos apresentados pelo mundo são “barrados”, e exigem outros modos de visá-lo: “Então tentemos mudar o mundo, isto é, vivê-lo como se as relações das coisas com suas potencialidades não estivessem reguladas por processos deterministas, mas pela magia” ( ib. p. 63). A emoção consiste em uma “mudança de intenção”, um novo modo da consciência captar o mundo, dada a “captura de um objeto sendo impossível ou engendrando uma tensão insustentável” ( ib., p. 64-65). Por meio da emoção a consciência visa novas qualidades no mundo, de modo que o “objeto” apareça como mais ou menos suportável, e a consciência atue comprometendo mais ou menos sua ação. Diante de um animal feroz, o desmaio é uma “intenção aniquiladora”, que suprime o objeto suprimindo a consciência; o medo e suas condutas (fuga, etc.) servem para negar um objeto do mundo; já o indivíduo alegre comporta-se de modo a realizar instantaneamente o

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objeto visado, como se estivesse impaciente, e assim por diante. A emoção não é desordem, déficit de ação ou retorno ao mecanismo do corpo; pelo contrário, figura uma reordenação da relação com o mundo. Essa nova relação de ordenação, para Sartre, tem o aspecto da “magia” e da “crença”. “Chamaremos emoção uma queda brusca da consciência no mágico” ( ib. , p. 90). Em outras palavras, a consciência que “cai” na emoção passa de um mundo a outro: um mundo experimentado como determinado cede lugar a um “enfeitiçamento”, onde “as qualidades intencionadas para os objetos são percebidas como verdadeiras” ( ib. , p. 75). Diferente da ação ordinária, a mudança das qualidades visadas denota que a emoção compromete toda a consciência. Em alguns momentos Sartre associa o “feitiço” emocional aos mundos do sonho e da loucura: no mesmo movimento, a emoção compromete a consciência de modo a torná-la “cativa” (sem deixar de ser “vítima de sua própria armadilha”), e a consciência enreda-se a si mesma numa “degradação espontânea”( ib. , p. 79). “Degradação” não no sentido de queda no mecanismo do corpo, mas mudança de regime do “mundo”, tal como no “sono”. Por fim, Sartre separa os dois modos de visar o mundo que implicam a emoção: um mundo “complexo e organizado de utensílios”, sem ações radicais e absolutas que mudam sua organização; e o mundo “mágico”, cuja dinâmica difere pela totalidade ser “modificável sem intermediário e por grandes massas”. Na emoção, uma qualidade ou um conjunto delas interferem “sem distância” em toda a consciência. Cabe à consciência re-modificar globalmente seu modo de visagem para que o regime “mágico” mude (Cf. ib., p. 89-90). Os elementos elencados acima permitem avaliar de modo preliminar como Sartre, em suas três primeiras obras filosóficas, estabelece um horizonte de debate com seus contemporâneos. A fenomenologia se pretende, desde Husserl, como novidade e superação, tanto diante das filosofias do século XIX, quanto dos nascentes projetos das ciências humanas. De um lado, julga desnecessários certos recursos conceituais que buscam ordenar a experiência a partir de princípios dela recuados. Nisso, a própria consciência, unidade sintética intencional, serviria como “campo transcendental” que abre as relações do homem com o mundo. De outro lado, frente às diversas tentativas de fundar as ciências do homem, a fenomenologia pretenderia resolver questões herdadas sem cair na rede de suas contradições. Assim se mostra sua manobra, diante das psicologias, de contornar a ingenuidade de acolher os “fatos” em sua positividade imediata, resultante de dados “heteróclitos”, carências de unidade, e portanto de uma perpétua crise de credibilidade. No horizonte de todas essas questões, figura o projeto de superar antigos preceitos. Dizer que uma consciência é relação imediata com um mundo, ou que ocorre uma “síntese indissolúvel” entre sujeito e objeto, implica afirmar uma alternativa aos antigos modelos de representação. Se a consciência apenas se dá em ato, se ela transcende o dado em direção ao mundo, e se tanto a imaginação como a emoção se alçam a modalidades de visar o mundo, revisam-se as diferentes opções das filosofias da representação: desde aquelas que acolhem os acontecimentos sem diferença de grau com as representações, até aquelas que evocam princípios ontológicos de unificação, ou mesmo buscam recuar a experiência para suas condições lógicas.

Notas

(^1) Pontos comuns desde a Crítica da Razão Pura , e que Kant trabalha por exemplo em sua crítica a Samuel Sömmering (Cf. Kant, 2003) (^2) Para uma análise pormenorizada das descontinuidades conceituais dos textos sartreanos até O Ser e o Nada,

Cf., por exemplo, Moutinho (1995). Aqui, a intenção é analisar (como um estudo preliminar) em que medida, nas primeiras obras de Sartre, esse filósofo critica e contorna os pontos em questão.