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Este texto discute a importância dos costumes na formação de identidade humana, utilizando o exemplo da diferença entre grupos culturais. O autor argumenta que as crenças, hábitos e impossibilidades de uma pessoa são influenciadas pelos costumes de seu grupo, e que essas diferenças podem ser uma barreira para o entendimento entre povos. O texto também aborda a importância de estudar as sociedades pré-letradas para entender processos culturais universais.
O que você vai aprender
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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Ruth Benedict
O que distingue a Antropologia entre as Ciências Sociais é que ela abrange, num estudo sério, outras sociedades que não a nossa. Para os seus objetivos qualquer regulamentação social de casamento e reprodução é tão significativa quanto a nossa, embora seja relativa aos Dyaks do mar e não tenha possível relação histórica com a da nossa civilização. Para o antropólogo, os nossos costumes e os de uma tribo da Nova Guiné são dois possíveis esquemas sociais para se tratar um problema comum, e enquanto ele permanecer antropólogo é obrigado a evitar dar mais peso a um do que a outro. Ele está interessado no comportamento humano, não por ter sido ele moldado por uma tradição, a nossa, mas por ter sido moldado por qualquer tradição, seja qual for. Ele está interessado na extensa escala do costume que se encontra com várias culturas, e o seu objetivo é compreender o modo pelo qual essas culturas mudam e se diferenciam, as diferentes formas através das quais elas se exprimem e a maneira pela qual os costumes de quaisquer povos funcionam nas vidas dos indivíduos que os compõem. Ora, o costume não tem sido comumente considerado como assunto muito momentoso. Achamos que as fermentações Íntimas do nosso próprio cérebro são a única coisa digna de investigação, e temos o hábito de pensar que o costume é o comportamento na sua maior banalidade. Na realidade, dá-se justamente o contrário. O costume tradicional, considerado em todo o mundo, é um conjunto de comportamento pormenorizado mais espantoso do que o que qualquer pessoa pode jamais desenvolver em ações individuais por mais aberrantes que sejam. Entretanto, esse é um aspecto um tanto trivial da questão. O fato de primordial importância é o papel predominante que o costume representa na experiência e na crença e as variedades muito grandes que ele pode manifestar. Homem algum olha para o mundo como o faziam os homens primitivos. Ele o vê arranjado por um conjunto definido de costumes e instituições e modos de pensar. Mesmo em suas investigações filosóficas não pode ele penetrar atrás
(^1) Capítulo I, "The Science of Custom", pp, 1-20, do livro Patterns 0f C ulture (Bostou: Houghton Mifflin Company, 1934), de Ruth Beuedict. Traduzido por Olga Dória e publicado aqui com a permissão, gentilmente concedida, do autor e de Houghton Mifflin Company.
desses estereótipos; seus próprios conceitos do verdadeiro e do falso ainda serão referentes aos seus costumes tradicionais particulares. John Dewey disse com toda seriedade que a parte representada pelo costume no moldar o comportamento do indivíduo em comparação com o que possa fazer o indivíduo para afetar o costume tradicional, é como a proporção que existe entre o vocabulário total de sua língua materna e as palavras da sua própria linguagem infantil que são adotadas no vernáculo de sua família. Quando se estudam seriamente as ordens sociais que têm tido a oportunidade de se desenvolverem autonomamente, essa imagem não se torna mais do que uma observação exata e real. A história de vida de um indivíduo é primeiro e antes de tudo uma acomodação aos padrões tradicionalmente transmitidos em sua comunidade. Desde o momento do seu nascimento, os costumes em que ele nasce dão forma à sua experiência e ao seu comportamento. Quando chega a falar, ele é a pequena criatura de sua cultura, e quando cresce e pode tomar parte nas atividades dessa mesma cultura, os hábitos desta são os seus hábitos, suas crenças são as suas crenças, suas impossibilidades são as suas impossibilidades. Toda criança que nasce em seu grupo compartilhará com ele esses costumes e nenhuma criança que nasça no lado oposto do globo poderá jamais alcançar a milésima parte desses costumes. Não há problema social que mais se nos imponha compreender do que esse do papel do costume. Até que tenhamos compreendido bem suas leis e variedades, os principais fatos complicados da vida humana têm que permanecer ininteligíveis. O estudo do costume pode ser proveitoso somente depois que tenham sido aceitas certas proposições preliminares e que algumas dessas proposições tenham sido violentamente combatidas. Em primeiro lugar qualquer estudo científico requer que não se dê mais peso a um ou outro dos itens da série escolhida para consideração. Em todos os campos menos passíveis de controvérsia, como o estudo dos cactus ou das térmitas ou a natureza das nebulosas, o método necessário de estudo é agrupar o material que interessa e tomar nota de todas as possíveis formas e condições que variem. Desse modo temos aprendido tudo quanto sabemos das leis da Astronomia, ou sobre os hábitos dos insetos sociais, digamos. É somente no estudo do próprio homem que as principais Ciências Sociais se limitaram ao estudo de uma variação local, o da civilização ocidental. A Antropologia foi, por definição, impossível enquanto essas distinções entre nós e o homem primitivo, entre nós e o bárbaro, entre nós e o pagão, oscilaram nos espíritos das pessoas. Foi necessário primeiro chegar àquele grau de sofisticação em que não mais colocávamos a nossa própria crença contra a superstição do
conhecido. Ela tem se padronizado na maior parte do globo e temos sido levados, portanto, a aceitar uma crença na uniformidade do comportamento humano, crença essa que em outras circunstâncias não teria surgido. Mesmo os povos muito primitivos são algumas vezes muito mais conscientes do que nós do papel dos traços culturais, e com boa razão. Eles tiveram uma experiência íntima de culturas diferentes. Viram sua religião, seu sistema econômico, suas leis matrimoniais, sucumbir diante da religião, do sistema econômico e das leis matrimoniais do homem branco. Sacrificaram uma e aceitaram a outra, muitas vezes de modo bem incompreensível, mas eles bem sabem que existem modalidades variantes da vida humana. Algumas vezes atribuirão eles características dominantes do homem branco à sua competição comercial, ou à sua instituição de guerra, de modo muito semelhante ao do antropólogo. O homem branco teve uma experiência diferente. Talvez nunca tivesse visto um estranho, a não ser o estranho que já foi europeizado. Se tem viajado, muito provavelmente tem percorrido o mundo sem jamais deter-se fora de um hotel cosmopolita. Pouco conhece de quaisquer modos de viver a não ser o seu. A uniformidade de costume, de perspectiva, que vê espalhada em torno de si parece- lhe bastante convincente e oculta-lhe o fato de que se trata afinal de contas de um acidente histórico. Ele aceita sem maior dificuldade a equivalência da natureza humana e os seus próprios padrões culturais. Entretanto, a grande difusão da civilização branca não é circunstância histórica isolada. O grupo polinesiano em época relativamente recente, espalhou-se de Ontong, Java ate a Ilha de Páscoa, do Havaí até a Nova Zelândia e as tribos de língua Bantu espalharam-se do Saara até a África do Sul. Mas em caso algum consideramos esses povos como sendo mais do que uma enorme variação local da espécie humana. A civilização ocidental teve todas as suas invenções em matéria de transporte e todas as suas muito distanciadas disposições comerciais para apoiar a sua grande difusão e é fácil compreender historicamente como isto se deu. As conseqüências psicológicas dessa difusão da cultura do branco tem sido fora de toda proporção para o materialista. Essa difusão cultural mundial tem nos protegido como o homem jamais fora protegido antes, da necessidade de levar a sério a civilização de outros povos; ela tem dado à nossa cultura uma universalidade maciça a qual de há muito tínhamos cessado de atribuir à história e a qual consideramos mais como necessária e inevitável. Interpretamos nossa dependência, em nossa civilização, da competição econômica, como prova de que esse é o principal motivo com o qual a natureza humana pode contar. Ou consideramos o
comportamento das criancinhas tal como é moldado em nossa civilização e é consignado em clínicas infantis, como psicologia infantil ou o modo pelo qual o jovem animal humano é obrigado a comportar-se. Tanto faz que se trate de uma questão de nossa ética ou de nossa organização de família. É a inevitabilidade de cada motivo familiar que defendemos, tentando sempre identificar os nossos próprios modos locais de comportar-nos com o Comportamento, ou os nossos próprios hábitos socializados com a Natureza Humana. Ora, o homem moderno fez dessa tese um dos resultados vivos de seu pensamento e de seu comportamento prático, mas as fontes dessa tese remontam àquilo que parece ser, pela sua distribuição universal entre os povos primitivos, uma das primeiras distinções humanas, a diferença em espécie entre o "meu próprio" grupo fechado e o estranho. Todas as tribos primitivas concordam em reconhecer essa categoria dos estranhos, aqueles que não só se acham fora dos dispositivos do código de moral que prevalece dentro dos limites do próprio povo de alguém, mas aos quais é sumariamente negado um lugar em qualquer parte da espécie humana. Um grande número de nomes de tribos comumente usados - Zuñi, Déné, Kiowa, e outros, são nomes pelos quais os povos primitivos se conhecem a si, e são somente os termos nativos para designar “os seres humanos", isto é, eles mesmos. Fora do grupo fechado não existem seres humanos. E isto é a despeito do fato de que, de um ponto de vista objetivo, cada tribo é circundada por povos que compartilham suas artes e invenções materiais, assim como práticas elaboradas que nasceram em virtude de um mútuo dar e tomar de comportamento de um povo para o outro. O homem primitivo nunca procurava examinar o mundo e via a "humanidade" como um grupo e sentia a sua causa comum à sua espécie. Desde o começo ele foi um provinciano que erguia alto as barreiras. Quer se tratasse de escolher uma esposa ou de caçar uma cabeça, a primeira e importante distinção era entre o seu próprio grupo humano e aqueles que se achavam fora do seu território. O seu próprio grupo e todas as suas maneiras de comportar-se eram sui-generis. Assim o homem moderno − que se diferencia em Povo Escolhido e estrangeiros perigosos, grupos dentro de sua própria civilização genética e culturalmente relacionados entre si como quaisquer tribos das matas australianas o são entre si − tem a justificativa de uma vasta continuidade histórica atrás de sua atitude. Os Pigmeus têm feito as mesmas reivindicações. Não é provável que nos desembaracemos facilmente de um traço humano tão fundamental, mas podemos pelo menos aprender a reconhecer a sua história e suas multiformes manifestações.
lidades sociais em que todos os fatores sejam, talvez, arranjados diferentemente. Isto é, ele não considera o condicionamento cultural. Vê o traço que está estudando como se tivesse manifestações conhecidas e inevitáveis, e projeta essas manifestações como absolutas porque elas constituem todo o material com o qual ele tem de pensar. Identifica as atitudes locais de 1930 com a Natureza Humana, a sua descrição com a Economia ou a Psicologia. Praticamente, isso muitas vezes não tem importância. Nossos filhos precisam ser educados na nossa tradição pedagógica, e o estudo do processo de ensino em nossas escolas é de capital importância. Há a mesma espécie de justificativa para o dar-de-ombros com que muitas vezes saudamos uma discussão sobre outros sistemas econômicos. Afinal de contas, precisamos viver dentro do arcabouço do meu e do teu que a nossa própria cultura institucionaliza. Isto é verdade, e o fato de que as variedades de cultura podem ser melhor discutidas segundo a sua existência no espaço, dá colorido à nossa indiferença. Mas é somente a limitação de material histórico que evita que sejam tirados exemplos da sucessão de culturas no tempo. Não poderíamos, se quiséssemos, escapar a essa sucessão. E quando olhamos para trás mesmo uma geração, concebemos até que ponto a modificação teve lugar, algumas vezes no nosso mais íntimo comportamento. Por enquanto essas modificações têm sido cegas, e nós só podemos registrar retrospectivamente o resultado de circunstâncias. Exceto a nossa má vontade cm encarar a mudança cultural em questões íntimas até que ela nos seja imposta, não seria impossível tomar uma atitude mais inteligente e diretiva. A resistência é em grande parte um resultado da nossa má compreensão das convenções culturais e especialmente uma exaltação daquelas que acontece perten- cerem à nossa nação e à década que atravessamos. Um diminuto conhecimento de outras convenções e um conhecimento de quão várias elas podem ser, muito fariam para promover uma ordem social racional. O estudo de diferentes culturas tem outra influência importante sobre o pensamento e o comportamento de nossos dias. A existência moderna tem forçado o contato íntimo de muitas civilizações, e no momento a reação esmagadora dessa situação é o nacionalismo e o esnobismo racial. Nunca houve tempo em que a civilização tivesse maior premência de indivíduos genuinamente cônscios da cultura para poderem ver com objetividade o comportamento socialmente condicionado de outros povos, sem temor e recriminação. O desprezo pelo estrangeiro não é a única solução possível do atual contato de raças e nacionalidades nos Estados Unidos. Não é nem mesmo uma solução
cientificamente fundada. A tradicional intolerância anglo-saxônica é um traço de cultura, local e temporal, como qualquer outro. Nem mesmo um povo como o espanhol, cujo sangue e cultura é quase o mesmo, tem tido essa intolerância, pois o preconceito racial nos países povoados pelos espanhóis é uma coisa inteiramente diferente do que se dá nos países dominados pela Inglaterra e pelos Estados Unidos. Neste ultimo país é óbvio que não se trata de uma intolerância dirigida contra a mistura de sangue de raças biologicamente bem separadas, pois há ocasiões em que o excitamento se eleva tanto contra o católico irlandês em Boston, ou contra o italiano nas cidades industriais de New England, quanto contra o oriental na Califórnia. É a velha distinção do "nosso grupo" e do "grupo alheio", e se levarmos avante a tradição primitiva neste assunto, teremos muito menos desculpa do que as tribos selvagens. Temos viajado, orgulhamo-nos da nossa sofisticação. Mas temos deixado de compreender a relatividade dos hábitos culturais e permanecemos privados de muito proveito e prazer em nossas relações humanas com povos de padrões diferentes e dos quais desconfiamos em nossos tratos com eles. O reconhecimento da base cultural do preconceito racial é necessidade premente na atual civilização ocidental. Chegamos ao ponto de alimentar preconceito de raça contra os irlandeses, nossos irmãos de sangue, e de falar da inimizade da Noruega e da Suécia, como se esses países representassem povos de sangue diferente. A chamada "linha de raça", durante uma guerra em que a França e a Alemanha lutam em lados opostos, é mantida para dividir o povo de Baden do da Alsácia, embora fisicamente ambos pertençam à sub-raça alpina. Numa era de movimentos livres de povos e de casamentos mistos na ascendência dos melhores elementos da comunidade, pregamos sem pejo o evangelho da raça pura. À isto a Antropologia dá duas respostas. A primeira diz respeito à natureza da cultura e a segunda diz respeito à natureza da herança. A resposta quanto à natureza da cultura faz-nos retroceder às sociedades pré-humanas. Existem sociedades em que a natureza perpetua o modo de comportamento mais superficial por meio de mecanismos biológicos, mas essas não são as sociedades dos homens, mas sim as dos insetos sociais. A formiga-rainha, removida 'para um ninho solitário, reproduzirá cada traço de comportamento sexual, cada detalhe do ninho. Os insetos sociais representam a Natureza numa disposição em que ela não deixa nada ao acaso. O padrão de toda a estrutura social é atribuído ao comportamento instintivo da formiga: Não há probabilidades maiores de que as classes sociais de uma sociedade de formigas ou que os seus padrões de agricultura sejam perdidos pelo
Em todo o mundo, desde o começo da história humana, pode-se demonstrar que os povos têm podido adotar a cultura de povos de outro sangue. Não há nada na estrutura biológica do homem que torne mesmo isso difícil. Ao homem não é atribuída detalhadamente pela sua constituição biológica qualquer determinada variedade de comportamento. A grande diversidade de soluções sociais que o homem tem engendrado em diferentes culturas com relação ao casamento, por exemplo, ou ao comércio, são todas igualmente possíveis na base de seu equipamento original. A cultura não é um complexo transmitido biologicamente. O que se perde na garantia de segurança da Natureza se recupera com a vantagem de uma plasticidade maior. No animal humano não cresce, como no urso, um casaco polar para que ele se adapte, depois de muitas gerações, ao Ártico. O homem aprende a fazer para si um casaco e a levantar uma casa de neve. De tudo que podemos aprender da história da inteligência, tanto nas sociedades pré- humanas, quanto nas humanas, essa plasticidade tem sido o solo em que começou o progresso humano e em que ele se tem mantido. Nas eras dos mamutes, surgiram espécies após espécies sem plasticidade, que se sobrepujaram e se extinguiram, desfeitas pelo desenvolvimento dos próprios traços que haviam biologicamente produzido a fim de atuar no seu meio. Os animais de rapina e finalmente os macacos superiores foram lentamente dependendo de outras adaptações que não biológicas e sobre a conseqüente plasticidade aumentada foram, pouco a pouco, assentados os alicerces para o desenvolvimento da inteligência. Talvez, como é muitas vezes sugerido, venha o homem a destruir-se por esse mesmo desenvolvimento da inteligência. Mas ninguém sugeriu qualquer meio pelo qual possamos voltar aos mecanismos biológicos do inseto social, e não temos qualquer outra alternativa. A herança cultural humana, aconteça o que acontecer, não é biologicamente transmissível. O corolário na política moderna é que não há base para o argumento do que podemos confiar as nossas realizações espirituais e culturais a quaisquer plasmas germinativos hereditários selecionados. Em nossa civilização ocidental, a liderança tem passado sucessivamente, em diferentes períodos, aos povos de língua semítica, aos hamíticos, ao subgrupo mediterrâneo da raça branca e, ultimamente, aos nórdicos. Não há dúvida acerca da continuidade cultural da civilização, sejam quais forem os seus portadores no momento. Precisamos aceitar todas as implicações da nossa herança humana, das quais uma das mais importantes é a pequena amplitude do comportamento biologicamente transmitido, e o enorme papel do processo cultural da transmissão da tradição.
A segunda resposta que a Antropologia dá ao argumento do purista racial diz respeito à natureza da hereditariedade. O purista racial é a vítima de uma série de mitos. Por que, que é "herança racial"? Sabemos de um modo geral o que é a hereditariedade de pai para filho. Dentro de uma linha de família a importância da hereditariedade é tremenda. Mas a hereditariedade é um assunto de linhas de família. Fora disso é mitologia. Em comunidades pequenas e estáticas como uma isolada aldeia esquimó, a hereditariedade "racial" e a hereditariedade de filho e pai são praticamente equivalentes, e a hereditariedade racial, portanto, tem significação. Mas como um conceito aplicado a grupos distribuídos numa área ampla, digamos, aos nórdicos, não tem base na realidade. Em primeiro lugar, em todas as nações nórdicas existem linhas de família que são representadas também em comunidades alpinas ou mediterrâneas. Qualquer análise da formação física de uma população européia indica overlapping; o sueco de olhos escuros e cabelos escuros representa linhas de família que estão concentradas mais para o sul, mas devemos compreendê-lo em relação ao que sabemos sobre esses últimos grupos. Sua hereditariedade, quanto a ter qualquer realidade física, é uma questão de sua linha de família, que não se acha confinada à Suécia. Não sabemos até que ponto os tipos físicos podem variar sem intermistura. Sabemos que o cruzamento entre membros do mesmo grupo ocasiona um tipo local. Mas esta é uma situação que mal existe em nossa cosmopolita civilização branca, e quando se invoca a "here- ditariedade racial", como usualmente se faz para reunir um grupo de pessoas mais ou menos do mesmo "status" econômico, formadas nas mesmas escolas, e lendo os mesmos periódicos, tal categoria é apenas outra versão do "nosso grupo" e do "grupo alheio" e não se refere à verdadeira homogeneidade biológica do grupo. O que realmente liga os homens entre si é a sua cultura, − as idéias, os padrões que eles têm em comum. Se em vez de escolher um símbolo, como a hereditariedade de sangue comum, e de fazer disto uma divisa, a nação voltasse sua atenção preferivelmente para a cultura que une o seu povo, ressaltando-lhe os principais méritos e reconhecendo os diferentes valores que se podem desenvolver numa cultura diferente, ela substituiria por um modo de pensar realista, uma espécie de simbolismo que é perigoso por ser ilusório. No pensamento social é necessário um conhecimento de formas culturais, e o presente volume diz respeito a esse problema da cultura. Como acabamos de ver, a forma corporal, ou raça, é separável da cultura, e pode, para os fins que temos em vista, ser posta de lado, salvo em certos pontos em que por alguma razão especial torna-se ela relevante. O principal requisito para uma discussão da cultura é basear-
do grupo são moldadas de acordo com um padrão geral bem definido. É possível estimar a inter-relação dos traços nesse ambiente simples de um modo que seria impossível nas correntes contrárias da nossa complexa civilização. Nenhuma dessas razões para dar relevo aos fatos da cultura primitiva tem qualquer coisa que ver com o uso que tem sido classicamente feito desse material. Esse uso dizia respeito a uma reconstrução das origens. Os primeiros antropólogos tentaram dispor todos os traços de diferentes culturas numa seqüência evolucionista desde as formas mais remotas até o seu desenvolvimento final na civilização ocidental. Mas não há razão para supor que, discutindo a religião australiana em vez da nossa, estejamos descobrindo a religião primitiva ou que discutindo a organização social iroquesa, estejamos voltando a hábitos matrimoniais dos primeiros ascendentes do homem. Desde que somos forçados a acreditar que a raça do homem é uma só espécie, segue-se que o homem em toda parte tem uma história igualmente longa atrás de si. Algumas tribos primitivas podem ter-se mantido relativamente mais pró- ximas às formas primordiais de comportamento do que o homem civilizado, mas isso só pode ser relativo e as nossas adivinhações tanto poderão ser certas como erradas. Não há justificativa para identificar um costume primitivo contemporâneo qualquer com o tipo original de comportamento humano. Metodologicamente, há apenas um meio pelo qual podemos adquirir um conhecimento aproximado desses princípios remotos. Isto é, por meio de um estudo da distribuição dos poucos traços que são universais ou quase universais na sociedade humana. Há diversos que são bem conhecidos. Entre esses, todos concordam com o animismo e com as restrições exógamas a respeito do casamento. Diversas como se mostram, as concepções da alma humana, e de uma vida futura, provocam mais questão. Crenças tão universais como essas podemos justificadamente considerar como invenções humanas muitíssimo antigas. Isto não equivale a considerá-las como biologicamente determinadas, pois elas podem ter sido invenções muito remotas da raça humana, traços do "berço" que se tornaram fundamentais em todo pensamento humano. Em última análise, podem elas ser condicionadas socialmente como qualquer costume local. Mas de há muito se tornaram automáticas no comportamento humano. Elas são velhas, e são universais. Tudo isso, porém, não faz das formas que podem ser observadas hoje as formas originais que surgiram em épocas primordiais. Nem há meio algum de reconstruir essas origens pelo estudo de suas variedades. Pode-se isolar o cerne universal da crença e diferenciar daí suas formas locais, mas ainda é possível que o traço tivesse começado a desenvolver-se
numa forma local pronunciada e não em algum denominador original menos comum entre todos os traços observados. Por essa razão, o uso dos costumes primitivos para estabelecer origens é especulativo. É possível construir um argumento para qualquer origem que se possa desejar, origens que se excluam mutuamente, bem como aquelas que sejam complementares. De todos os usos do material antropológico, este é aquele em que a especulação seguiu-se mais rapidamente à especulação, e em que, quanto à natureza do caso não se pode dar prova. Nem a razão para usar as sociedades primitivas para discutir as formas sociais tem necessária relação com. uma volta romântica ao primitivo. Essa razão não existe com o espírito de poetizar os povos mais simples. Existem muitos modos pelos quais a cultura de um ou outro povo nos atrai fortemente nesta era de padrões heterogêneos e de tumulto mecânico confuso. Mas não é por meio de um regresso aos ideais preservados para nós pelos povos primitivos que a nossa sociedade poderá curar-se de suas moléstias. O utopismo romântico que se dirige aos primitivos mais simples, por mais atraente que seja, às vezes tanto pode ser no estudo etnológico, um empecilho como um auxílio. O estudo cuidadoso das sociedades primitivas é importante hoje em dia, mais porque, como dissemos, elas fornecem material de casos para o estudo de formas e processos culturais universais. Elas nos auxiliam a diferenciar entre as reações que são específicas de tipos culturais locais e aquelas que são comuns à humanidade. Além disso, elas nos auxiliam a aferir e compreender o papel imensamente importante do comportamento culturalmente condicionado. A cultura, com seus processos e funções, é um assunto sobre o qual necessitamos de todo o esclarecimento que podemos alcançar, e não há direção em que possamos procurar com maior proveito do que nos fatos das sociedades pré-letradas.
Extraído de: PIERSON, Donald. 1970. Estudos de organização social – Tomo II: leituras de sociologia e antropologia social. São Paulo: Martins. p. 497-513.