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A Evolução dos Métodos de Alfabetização: De Cartilhas para Livros, Exercícios de Linguística

Este texto discute a história do ensino de leitura e escrita no brasil, desde a utilização de cartilhas com sílabas até a substituição delas por livros de leitura. O documento aborda a importância da prontidão psicológica do aluno, a necessidade de ensinar a decifração da escrita e a importância de abordar a variedade linguística. Além disso, o texto critica a abordagem acrofônica e a falta de explicação sobre o sistema de escrita na maioria das cartilhas.

Tipologia: Exercícios

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Florentino88
Florentino88 🇧🇷

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Luiz Carlos Cagliari*
A Cartilha e a Leitura
Cartilha: no Princípio era a Leitura
As cartilhas surgiram muito tempo antes das aulas de alfabetização nas escolas. Antigamente,
as cartilhas serviam de subsídios para as pessoas aprenderem a ler (e a escrever) em casa.
Eram feitas na forma de tabelas (taboas), com grupos de letras que a escrita usava para
representar os diferentes padrões silábicos correspondentes à fala. O tipo de letra era sempre o
de imprensa, em uso na época. Na tradição da Língua Portuguesa, a Gramática de João de
Barros (Século XVI) já trazia agregada uma cartilha (ou cartinha = mapa, pequeno documento),
cujo subtítulo era Introducam pera aprender a ler. No final, o autor concluía: "Em acartinha
passáda, demos árte pera os minimos fáçilmente aprenderé aler: cõ toda adiuersidáde de
syllabas que a natureza de nóssa linguágé padeçe".
*Professor de Fonética e Fonologia do Depto. de Lingüística da Unicamp, é autor da obra Alfabetização & Lingüística.
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Luiz Carlos Cagliari*

A Cartilha e a Leitura

Cartilha: no Princípio era a Leitura

As cartilhas surgiram muito tempo antes das aulas de alfabetização nas escolas. Antigamente, as cartilhas serviam de subsídios para as pessoas aprenderem a ler (e a escrever) em casa. Eram feitas na forma de tabelas ( taboas ), com grupos de letras que a escrita usava para representar os diferentes padrões silábicos correspondentes à fala. O tipo de letra era sempre o de imprensa, em uso na época. Na tradição da Língua Portuguesa, a Gramática de João de Barros (Século XVI) já trazia agregada uma cartilha (ou cartinha = mapa, pequeno documento), cujo subtítulo era Introducam pera aprender a ler. No final, o autor concluía: "Em acartinha passáda, demos árte pera os minimos fáçilmente aprenderé aler: cõ toda adiuersidáde de syllabas que a natureza de nóssa linguágé padeçe".

*Professor de Fonética e Fonologia do Depto. de Lingüística da Unicamp, é autor da obra Alfabetização & Lingüística.

Cartilhas desse tipo ainda são vendidas hoje: comprei uma delas, recentemente, num supermercado.

Com o surgimento das aulas de alfabetização nas escolas, após a Revolução Francesa, as cartilhas foram se modificando. Antes, elas tinham, basicamente, o alfabeto e os grupos de letras em tabelas de sílabas, vindo secundariamente os exemplos de palavras com seus respectivos desenhos, para facilitar o reconhecimento e a leitura. Depois, houve uma inversão: as palavras, que serviam de exemplos, tornaram-se palavras-chave , e os grupos de letras, agora separados por categorias de acordo com a primeira letra, tornaram-se as sílabas-geradoras. Isto acarretou uma mudança no modo de se aprender a ler e de se alfabetizar. Antes, ler era saber o alfabeto, os grupos de letras e reconhecê-los em palavras. Agora, ler é desmontar uma palavra em suas sílabas, pegar um desses padrões silábicos e gerar outros semelhantes, mantendo as consoantes e variando as vogais; em seguida, montar palavras com os elementos já dominados. No caso anterior, o leitor podia tomar qualquer palavra da língua e tentar lê-la. No segundo caso, ele só pode ler à medida que seu conhecimento dos padrões silábicos progredir. No primeiro, a alfabetização podia se realizar com um mínimo de auxílio de outra pessoa. No segundo, a alfabetização precisa ser conduzida por um professor e seguir um programa rígido e sob controle constante a cada passo, a cada lição.

Com o tempo, as cartilhas incorporaram pequenos textos que deveriam ser usados especialmente como exercícios de leitura, e apresentavam apenas palavras já dominadas, estudadas nas lições anteriores. Depois surgiram os exercícios estruturais, visando a ensinar o aluno a desmontar e a montar palavras, e a reconhecer, em palavras diferentes, a ocorrência de letras iguais. Nas cartilhas, este é o exercício considerado mais importante para se ensinar a ler. Em seguida, vieram os exercícios gramaticais e os de compreensão de texto. Como complemento, algumas cartilhas passaram a contar com um livro de leitura, com textos mais longos, porém elaborados de acordo com o nível das lições da cartilha, com a idade dos alunos, levando em conta ainda as características regionais e sociais dos possíveis leitores.

As cartilhas, praticamente, proíbem a produção de textos, permitindo que os alunos escrevam ape- nas palavras formadas de elementos já estudados, ou frases com palavras já vistas. O máximo de li- berdade que permitem ao aprendiz é escrever, por exemplo, uma estória , em quatro ou cinco linhas, em geral recontando algo que ouviu. Não raramente, acompanha este exercício, um roteiro com perguntas que o aluno deve responder, e, dessa forma, obter as frases que formarão o seu texto.

A melhor maneira para se descobrir o que os alunos pensam da escrita e da leitura é através da produção de textos espontâneos. Quando os alunos só fazem cópias e ditados, ou trabalham apenas com elementos já dominados, nem sempre é fácil distinguir quem, de fato, sabe o que faz e por que faz, de quem simplesmente reproduz o modelo que viu e memorizou, atendo-se apenas à forma gráfica da escrita.

A cartilha tem uma obsessão tão forte pela avaliação e fixação da aprendizagem, que se esquece de ensinar o que os alunos devem aprender. Com relação à leitura, pode levar alguns alunos a decorar tudo, fazendo-os escrever aquilo que ela exige deles, sem contudo levá-los a descobrir como, de fato, se deve fazer para ler. Mais cedo ou mais tarde, entretanto, tais alunos se revelam e a professora não sabe o que fazer com eles.

A cartilha começou com o estudo da leitura e se tornou, depois, um instrumento de ensino da escrita, com o ensino da leitura ocorrendo em decorrência dos exercícios de escrita: cópia, ditado, reprodução de modelos, exercícios estruturais, roteiro para compreensão de texto etc. Até os exercícios de análise fonética, como dividir palavras em sílabas, reconhecer a sílaba tônica, passaram a ser feitos através da escrita e não da fala.

Livrinhos de Leitura: a Cartilha da Fantasia

Desde o colapso das cartilhas como método ideal de alfabetização, com a preocupação da condição psicológica do aluno, por um lado, e, por outro, com a preocupação de fazer o aluno descobrir, através de textos, os princípios gramaticais que precisa estudar, tem acontecido que muitos professores abandonaram as cartilhas ou reduziram seu uso ao mínimo, e, em seu lugar, trouxeram, para as salas de aula, montanhas de livrinhos de leitura.

Sem dúvida alguma, ler e ler muito e as mais variadas coisas é a grande meta do ensino escolar. Mas isto depende muito do que se lê. A quase totalidade dos livrinhos infantis, que conheço, são estórias fúteis, ridículas, que exploram ao exagero o maravilhoso (ou horroroso) fantástico, além de serem escritas de maneira pedante e com um mau gosto literário. Nessas montanhas de livrinhos, raramente se encontra uma obra de autores famosos, como Cecília MEIRELES, Monteiro LOBATO ou tantos outros consagrados nomes da literatura nacional e universal.

Para o processo de alfabetização, a substituição das cartilhas pelos livrinhos de leitura trouxe uma conseqüência terrível para alguns alunos. Os livros pressupõem leitores já formados, com relação ao trabalho básico de decifração da escrita. Acontece, porém, que a grande dificuldade de certos alunos é superar essa barreira e, sem um ensino específico sobre como decifrar uma escrita, esses alunos passarão o ano todo vendo figuras e ilustrações, adivinhando estórias, mas não lendo, de fato.

Assim como ler um livrinho novo pode ser uma recompensa e um estímulo à leitura para o aluno que sabe ler, do mesmo modo, um aluno que não sabe decifrar a escrita pode encarar a leitura de livrinhos como uma espécie de castigo, uma grande frustração e até mesmo uma prova de sua incapacidade para os estudos, com terríveis conseqüências na escola e na vida. A escola muda, muda, e acaba sempre fazendo as coisas erradamente.

Manual do Professor: Tentando Repensar o Saber Fazer

A cartilha, mais do que qualquer outro tipo de livro didático, por ser uma obra extremamente simplificada e esquemática, pressupõe, por parte de quem a usa, um conhecimento profundo do conteúdo da obra e das técnicas de ensino e aprendizagem.

As escolas de magistério logo reconheceram isto, mas se enganaram na sua prática acadêmica. Nas escolas de formação, os futuros professores alfabetizadores passaram a estudar, em excesso, matérias de Psicologia, Pedagogia e Metodologia, ficando em falta os estudos específicos de Português e de Matemática. Isto levou o ensino a se deteriorar por falta de competência técnica no desempenho dos professores.

Para resguardar os métodos das cartilhas dessa catástrofe, que se tornava cada vez mais evidente e comum, os autores juntaram às cartilhas os Manuais do Professor: agora, entenderam eles, se o ensino proposto na cartilha não der certo, o culpado não é o método, mas o professor que não o soube aplicar corretamente.

Os Manuais do Professor, por outro lado, trouxeram uma explicitação da concepção de linguagem que as cartilhas têm, do que elas entendem por fala, escrita, leitura etc., e de quais caminhos tomar e por que, ao se ensinar a ler e a escrever. Ficou claro também o motivo pelo qual as cartilhas não tratam de certos assuntos, que, por sua natureza, deveriam constituir partes fundamentais do ensino: isto aconteceu porque seus autores jamais pensaram no assunto.

Cartilha: uma Imagem Desfigurada da Linguagem

As cartilhas, com as mudanças sofridas no tempo, tornaram-se cada vez piores: não só resolveram os problemas anteriores, como juntaram a eles erros novos, equívocos e, sobretudo, continuaram deixando de lado inúmeros aspectos dos estudos da linguagem que são fundamentais para se ensinar corretamente alguém a ler e a escrever. As considerações abaixo vão lembrar alguns desses fatos.

Apesar de um certo esforço, por incompetência técnica, as cartilhas não tratam, de maneira separada e apropriada, os fatos de fala, de escrita e de leitura. Tudo vem muito misturado, sem o devido cuidado e explicações necessárias. Por exemplo, segundo a cartilha, uma palavra como lápis só pode ter duas sílabas: LÁ-PIS, mesmo que o mais comum seja dizer laps , com apenas uma sílaba. A cartilha pensa que ler direito é pronunciar sílaba por sílaba corretamente, quando, na verdade, este é o pior tipo de leitura que se pode fazer.

As cartilhas desenvolveram uma fala artificial silabada, desconhecendo a realidade das variações lingüísticas. Para a cartilha, quem fala drento fala errado e não apenas diferente. A cartilha pressupõe que todos os usuários são falantes de um mesmo dialeto e que a pronúncia padrão é a que mais se aproxima da forma ortográfica das palavras.

As cartilhas privilegiam a escrita sobre qualquer outro aspecto da linguagem, o que é uma concepção maluca de linguagem. Por exemplo, qualquer falante sabe usar corretamente palavras como pai-mãe , boi-vaca ; mas, nos exercícios gramaticais, ao formarem o feminino , os alunos cometem erros inacreditáveis (pai-paioa, boi-baia), simplesmente porque se apóiam em exercícios de escrita, que envolvem pôr e tirar letras, sem serem levados a refletir primordialmente sobre a fala.

As cartilhas pretendem se apoiar sobre a escrita para alfabetizar e, com raras exceções, não apresentam ao aluno o alfabeto, nem explicam corno o sistema de escrita funciona, o que é a ortografia etc.

As cartilhas adoram contar estórias para ensinar tudo, e não dizem nenhuma palavra sobre a verdadeira história da escrita, das letras, dos algarismos, das línguas etc.

As cartilhas (nem os Manuais do Professor) não trazem nenhuma análise das dificuldades que as crianças enfrentam ao aprender a ler e a escrever. O planejamento das cartilhas só se aplica a quem aprende todas as lições, uma após outra, numa determinada ordem, sem exceção. Para o aluno que fica para trás, a única coisa que ela recomenda é recomeçar de onde parou e repetir tudo de novo. Ora, se o aluno já provou que por aquele caminho não dá certo, é preciso encontrar outras saídas. Mas as cartilhas não têm alternativas que permitam resolver esses problemas e impasses.

As cartilhas entendem os erros como um resultado de déficits mentais ou da distração do aluno, e nunca como revelações de hipóteses que, embora não correspondam às expectativas da escola, revelam conhecimentos reais que os alunos possuem sobre a linguagem oral e o sistema de escrita. Por exemplo, um aluno que vê as pessoas assinando seus nomes com rabiscos pode achar que escrever é rabiscar e ler é reconhecer, no rabisco, o que se quis representar. Um aluno com essas idéias pode encontrar dificuldades nas lições da cartilha, para aprender a ler e a escrever, sobretudo se achar que os rabiscos que faz são formas pessoais de grafar as letras manuscritamente.

As cartilhas são muito restritivas, trabalham com palavras-chave e sílabas-geradoras, quando o