Baixe Antropologia Jurídica: Papel e Importância na Formação de Juristas e outras Notas de aula em PDF para Antropologia, somente na Docsity!
Data de recebimento: 24/10// Data de aceitação: 04/11/
A ANÁLISE ANTROPOLÓGICA NO ÂMBITO DOS ESTUDOS
SOCIOJURÍDICOS: APORTES PARA A CONSTRUÇÃO DE UM
CAMPO INTERDISCIPLINAR
ORLANDO VILLAS BÔAS FILHO^1
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 2 A CONSTITUIÇÃO DA
ANTROPOLOGIA JURÍDICA NO CONTEXTO DA
EXPANSÃO IMPERIALISTA: AS AFINIDADES DE UM
SABER COM AS RELAÇÕES DE PODER. 3
ANTROPOLOGIA JURÍDICA: A ESPECIFICIDADE DE
UM ENFOQUE SOBRE A REGULAÇÃO JURÍDICA NO
ÂMBITO DOS ESTUDOS SOCIOJURÍDICOS. 4 À GUISA
DE CONCLUSÃO: UMA BREVE ALUSÃO A AUTORES E
A TEMÁTICAS INCONTORNÁVEIS NO CAMPO DA
ANTROPOLOGIA JURÍDICA. REFERÊNCIAS.
RESUMO: Este artigo tem o intuito de analisar o papel da antropologia jurídica no
âmbito dos “estudos sociojurídicos”, concebidos como um campo interdisciplinar em que
contribuições provenientes das mais diversas áreas das ciências sociais podem ser
apropriadas pelos juristas para uma melhor compreensão da regulação jurídica. Assim,
após uma breve digressão pelo desenvolvimento da antropologia, são enfocados alguns
aspectos que permitem delimitar as características próprias a essa forma de tematização
da regulação jurídica no “campo de estudos sociojurídicos”. Por fim, à guisa de
conclusão, são feitas algumas referências pontuais a autores e temáticas que permitem
ilustrar os potenciais aportes da análise antropológica para o desenvolvimento do “campo
de estudos sociojurídicos”.
PALAVRAS-CHAVE: Antropologia jurídica. Vigilância epistemológica. Estudos
sociojurídicos. Interdisciplinaridade.
(^1) Professor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduação e Licenciatura Plena em História pela Universidade de São Paulo. Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Mestrado em Direito e Doutorado em Direito, na área de concentração Filosofia e Teoria Geral do Direito, pela Universidade de São Paulo. Pós- Doutorado na Université de Paris X – Nanterre , França. Pós-Doutorado na École Normale Supérieure de Paris , França. E-mail : ovbf@usp.br; ovbf@mackenzie.br.
THE ANTHROPOLOGICAL ANALYSIS IN THE CONTEXT OF
SOCIO-LEGAL STUDIES: CONTRIBUTIONS TO THE
CONSTRUCTION OF AN INTERDISCIPLINARY FIELD
ABSTRACT: This article intends to analyze the role of legal anthropology within the
framework of “socio-legal studies”, conceived as an interdisciplinary field in which
contributions from the most diverse areas of the social sciences can be appropriated by
jurists for a better understanding of legal regulation. Thus, after a brief digression through
the development of anthropology, some aspects are focused that allow to delimit the
characteristics proper to this form of approach of the juridical regulation in the field of
“socio-legal studies”. Finally, some specific references are made to authors and themes
that allow us to illustrate the potential contributions of the anthropological analysis to the
development of the field of “socio-legal studies”.
KEYWORDS: Legal anthropology. Epistemological vigilance. Socio-Legal Studies.
Interdisciplinarity.
INTRODUÇÃO
O ensino da antropologia jurídica é de grande importância para a formação crítica
do jurista.^2 Especialmente em um contexto universitário como o brasileiro, no qual ainda
prepondera uma (de)formação^3 dogmática e formalista, ela pode contribuir para o
desenvolvimento de uma compreensão mais adequada da complexidade social na qual se
inscreve a regulação jurídica, permitindo, ademais, a percepção de suas diversas formas
de expressão de modo a ensejar a apreensão mais consequente da complexidade social
que a permeia. Assim, mesmo não sendo essa sua finalidade precípua, a antropologia
jurídica pode, inclusive, colaborar para uma atuação jurídica mais consistente, uma vez
que propicia instrumentos analíticos capazes de ensejar uma formação desvencilhada do
“praxismo forense” e da mera “erudição ornamental”.^4 Por outro lado, cabe considerar
(^2) Não se desconsidera aqui, em primeiro lugar, a dificuldade de definir a antropologia jurídica como uma disciplina. Malgrado seja assim que ela figure no bojo da estrutura curricular dos cursos de direito, é possível concebê-la, em termos mais amplos, como um enfoque marcado por certas especificidades que, por esse motivo, não se prende a um rol taxativo de temas, podendo, ao contrário, recobrir uma imensa gama de objetos de análise. (^3) André-Jean Arnaud, referindo-se ao contexto francês, ressaltava que “dans les Facultés de droit, on continue cependant imperturbablement à former, sinon à déformer les étudiants dans l’idée que le droit est l’émanation d’un pouvoir souverain unique, absolu, entier, exclusif : l’État” (ARNAUD, André-Jean. Entre modernité et mondialisation : leçons d’histoire de la philosophie du droit et de l’État. 2e^ édition. Paris: LGDJ, 2004, p. 18). (^4) Conforme constata José Eduardo Faria, “em nossos meios jurídicos, como é sabido, ainda predomina uma cultura essencialmente formalista que (a) insiste em associar o direito a um sistema fechado e racional de
como for, seguindo a clássica definição de Norbert Rouland, é possível afirmar, em linhas
gerais, que a “antropologia jurídica”, mediante a análise dos discursos (orais e escritos),
práticas e representações, estuda os processos de juridicização que ocorrem nas diversas
sociedades, procurando compreender as lógicas que lhe são subjacentes.^10 Rouland
sustenta, também, que essa abordagem procuraria realizar um ordenamento da cultura
humana em sua generalidade, no que se refere ao domínio do direito, mediante a
comparação das formas de regulação jurídica de todas as sociedades que possam ser
observadas.^11
Além dessa dificuldade de delineamento do que seja a abordagem antropológica
da regulação jurídica, cumpre considerar as dificuldades ínsitas à relação entre juristas e
antropólogos.^12 Trata-se de uma seara em que a incompreensão e a falta de disposição
para uma efetiva cooperação acadêmica são recorrentes.^13 Por um lado, os juristas, em
sua esmagadora maioria, definem a regulação jurídica a partir de representações
circunscritas às suas experiências, ignorando completamente a diversidade das montagens
que a juridicidade (no sentido em que a concebe Étienne Le Roy) é capaz de
experimentar.^14 De outro lado, os antropólogos comumente pautam suas análises por uma
visão de senso comum acerca do que vem a ser o direito. Aliás, não poucas vezes,
assumem representações defasadas acerca da juridicidade que, paradoxalmente, os
(^10) Cf. ROULAND, Norbert. L’anthropologie juridique. 2 ème (^) éd. Paris: Presses Universitaires de France,
- p. 7. No âmbito da antropologia anglófona, cabe aludir, por exemplo, à definição de Sally Falk Moore, segundo a qual “an anthropological approach to law inquires into the context of enforceable norms: social, political, economic, and intellectual. This includes, but goes further than, what Western governments and courts, define as law. In anthropology, while the ‘socio-legal’ includes formal juridical institutions and their social surroundings, it also encompasses law-like activities and processes of establishing order into many other social domains, formal and informal, official and unofficial, in our own society and in others” (MOORE, Sally Falk (Ed.). Law and anthropology : a reader. Malden: Blackwell, 2005. p. 1). Acerca dos paradigmas fundamentais desenvolvidos especialmente na tradição anglófona, ver: COMAROFF, John; ROBERTS, Simon. Rules and processes : the cultural logic of disputes. Chicago: The University of Chicago Press, 1981. p. 4-17. (^11) Cf. ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique. Paris: Presses Universitaires de France, 1988. p. 122; ROULAND, Norbert. L’anthropologie juridique , p. 12. Aliás, no que concerne às práticas comparativas fundamentais na pesquisa antropológica, ver: ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique , p. 174-177. (^12) Para os juristas etnocêntricos e ignorantes, o antropólogo aparece como um diletante incompetente em “matéria jurídica” a quem não cabe dar maior atenção. Aos antropólogos arrogantes e provincianos o jurista afigura-se apenas como portador de um saber dogmático que não se pode levar a sério. (^13) Geertz identifica claramente essa situação (GEERTZ, Clifford. Local knowledge : further essays in interpretative anthropology. New York: Basic Books, 1983. p. 167-168). A respeito, ver também: ROULAND, Norbert. L’anthropologie juridique , p. 8. (^14) Segundo Hugues Dumont e Antoine Bailleux, “les juristes qui ont tenté de définir le droit à partir de leur expérience première sont généralement passés à côté de l’essentiel en méconnaissant les leçons de l’anthropologie juridique, en présupposant l’identité du droit et de l’État, en amalgamant ce que nous avons appelé avec Hart les normes primaires et les normes secondaires ou en méconnaissant la relativité des critères de juridicité et leur dépendance d’une interprétation controversable” (DUMONT, Hugues; BAILLEUX, Antoine. Esquisse d’une théorie des ouvertures interdisciplinaires accessibles aux juristes. Droit et Société, n. 75, p. 279, 2010).
conduzem a uma espécie de celebração do direito positivo, ainda que seja para criticá-
lo.^15
Ademais, cumpre notar que o que se pode designar, genericamente, de
“antropologia jurídica” não é redutível às pesquisas desenvolvidas pelos antropólogos.
Nesse sentido, seria possível sustentar a existência de uma “antropologia jurídica dos
antropólogos” e de uma “antropologia jurídica dos juristas”.^16 A primeira, entendida
como a tematização da regulação jurídica mediante a aplicação do aparato metodológico
e conceitual da antropologia, poderia ser exemplificada, no Brasil, a partir das pesquisas
de autores como Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Roberto Kant de Lima ou Luís Roberto
Cardoso de Oliveira.^17 A segunda, em virtude da especificidade do âmbito em que se
(^15) A respeito, são elucidativas as observações feitas por Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer relativamente ao fato de, no Brasil, os antropólogos interessados pela regulação jurídica terem se inclinado a assumir que seu objeto primordial de estudo seria o Estado, suas leis, suas instâncias produtoras e aplicadoras de normas, seus agentes e suas dinâmicas. Cf. SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Por que um dossiê voltado para a antropologia do direito? Revista de Antropologia da USP , v. 53, n. 2, p. 441-448, 2010. A isso cabe acrescentar que o próprio uso indiscriminado do termo “Direito”, por parte dos antropólogos brasileiros, sugere que eles ignoram ou desconsideram o que está implicado em propostas como a de Étienne Le Roy. A respeito, ver: LE ROY, Étienne. Le jeu des lois. Une anthropologie “dynamique” du Droit. Paris: LGDJ,
- p. 189 e ss.; LE ROY, Étienne. Le pluralisme juridique aujourd’hui ou l’enjeu de la juridicité. Cahiers d’anthropologie du droit. Les Pluralismes juridiques. Paris: Karthala, 2003. p. 7-15; LE ROY, Étienne. Le tripode juridique. Variations anthropologiques sur un thème de flexible droit. L’Année Sociologique , v. 57, n. 2, p. 341-351, 2007; LE ROY, Étienne. Place de la juridicité dans la médiation. Jurisprudence – Revue Critique, n. 4 (La médiation. Entre renouvellement de l’offre de justice et droit ), p. 193-208, 2013; LE ROY, Étienne. Pour une anthropologie de la juridicité, p. 241-247. Acerca do pensamento de Étienne Le Roy, ver: VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. A mediação em um campo de análise interdisciplinar: o aporte da teoria do multijuridismo de Étienne Le Roy. Revista Estudos Institucionais , v. 3, n. 2, p. 1112-1162, 2017; VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. A regulação jurídica para além de sua forma ocidental de expressão: uma abordagem a partir de Étienne Le Roy. Revista Direito & Práxis , v. 6, n. 12, p. 159-195, 2015; VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Juridicidade: uma crítica à monolatria jurídica como obstáculo epistemológico. Revista da Faculdade de Direito da USP , v. 109, p. 281-325, jan.-dez. 2014; VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. O direito de qual sociedade? Os limites da descrição sociológica de Niklas Luhmann acerca do direito a partir da crítica antropológica. In: FEBBRAJO, Alberto; LIMA, Fernando Rister de Sousa; PUGLIESI, Márcio (Coord.). Sociologia do direito : teoria e práxis. Curitiba: Juruá, 2015. p. 337-366. (^16) Assim, do mesmo modo que autores como Norberto Bobbio e Michel Troper distinguem a “filosofia do direito dos filósofos” da “filosofia do direito dos juristas” e que teóricos com André-Jean Arnaud e María José Fariñas Dulce contrastam a “sociologia jurídica dos juristas” com a “sociologia jurídica dos sociólogos”, caberia também diferenciar a “antropologia jurídica” dos juristas da dos antropólogos. A respeito das distinções aqui mencionadas, ver: TROPER, Michel. Philosophie du droit. 2 ème^ éd. Paris: Presses Universitaires de France, 2008. p. 12-15; ARNAUD, André-Jean; FARIÑAS DULCE, María José. Introduction à l’analyse sociologique des systèmes juridiques , p. 103 e ss. (^17) Como exemplo dessa produção, ver: CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. A dimensão simbólica dos direitos e a análise de conflitos. Revista de Antropologia da USP , v. 53, n. 2, p. 451-473, 2010; KANT DE LIMA, Roberto. Ensaios de antropologia e de direito : acesso à justiça e processos institucionais de administração de conflitos e produção da verdade em uma perspectiva comparada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Jogo, ritual e teatro : um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome, 2013. Cabe sublinhar aqui a notável experiência do “Núcleo de Antropologia do Direito” da Universidade de São Paulo (Nadir-USP), coordenado por Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer.
características próprias a essa forma de tematização da regulação jurídica no “campo de
estudos sociojurídicos”. Por fim, à guisa de conclusão, serão feitas algumas referências
pontuais a autores e temáticas que ilustram as potenciais contribuições da análise
antropológica para o desenvolvimento do referido “campo de estudos sociojurídicos”.
2 A CONSTITUIÇÃO DA ANTROPOLOGIA JURÍDICA NO CONTEXTO DA
EXPANSÃO IMPERIALISTA: AS AFINIDADES DE UM SABER COM AS
RELAÇÕES DE PODER
É possível afirmar que a antropologia jurídica seria uma espécie de “produto
cultural do ocidente moderno”. Conforme nota Norbert Rouland, ela seria “filha da
história do direito” e teria nascido na segunda metade do século XIX, desenvolvendo-se
em um contexto internacional marcado pela expansão imperialista ocidental que, por sua
vez, teria fornecido às escolas nacionais de antropologia jurídica seus respectivos campos
de experimentação.^22 Trata-se, assim, de um saber que se inscreve, de um lado, na
configuração epistemológica moderna^23 e, de outro, no contexto da expansão imperialista
com a qual manterá uma relação complexa que poderia ser qualificada, em termos
weberianos, de “afinidade eletiva”. 24
O imperialismo, que tem como contrapartida a expansão colonial dos Estados
nacionais europeus, demandava justificação de onde pudesse haurir sua legitimidade.^25
(^22) Conforme o autor, “l’anthropologie juridique, fille de l’histoire du droit, naît dans la seconde moitié du XIXe siècle de l’activité de quelques pères fondateurs. [...] Ces démarches prennent place dans un contexte international, dominé par la colonisation, qui donna aux principales nations européennes des champs d’expérimentation varies et inégaux: aussi ne s’étonnera-t-on pas de constater qu’il existe en anthropologie juridique des écoles nationales” (ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique , p. 47). (^23) Cf. VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. O direito de qual sociedade? Os limites da descrição sociológica de Niklas Luhmann acerca do direito a partir da crítica antropológica, p. 338. (^24) Cf. VILLAS BOÂS FILHO, Orlando. A constituição do campo de análise e pesquisa da antropologia jurídica. Prisma Jurídico , n. 6, p. 333-349, 2007. Sobre a questão da “afinidade eletiva” entre antropologia e imperialismo, ver: VILLAS BOÂS FILHO, Orlando. Ancient Law : um clássico revisitado 150 anos depois. Revista da Faculdade de Direito da USP , v. 106-107, p. 550-552, jan.-dez. 2011-2012. (^25) Eric Hobsbawm ressalta que, entre os anos de 1875 e 1914, assiste-se à cristalização de um novo tipo de império, o colonial, que se baseia na repartição do mundo em países “avançados” e “atrasados”. Hobsbawm enfatiza, ademais, o caráter inovador assumido pelo imperialismo. Segundo ele, “mesmo sendo o colonialismo apenas um dos aspectos de uma mudança mais geral das questões mundiais, foi, com toda a certeza, o de impacto mais imediato. Ele constituiu o ponto de partida de análises mais amplas, pois não há dúvida de que a palavra ‘imperialismo’ passou a fazer parte do vocabulário político e jornalístico nos anos 1890, no decorrer das discussões sobre a conquista colonial. Ademais, foi então que adquiriu a dimensão econômica que, como conceito, nunca mais perdeu. Eis por que são inúteis as referências às antigas formas de expansão política e militar em que o termo é baseado. Os imperadores e os impérios eram antigos, mas o imperialismo era novíssimo. A palavra (que não figura nas obras de Karl Marx, falecido em 1883) foi introduzida na política na Grã-Bretanha nos anos 1870, e ainda era considerada neologismo no fim da década. Sua explosão no uso geral data dos anos 1890” (HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios – 1880 -
Como enfatiza Eric Hobsbawm, em uma era de política de massa, havia a necessidade de
angariar o apoio popular para a expansão imperialista, sobretudo do grande contingente
de descontentes.^26 Ora, o Estado-nação opera, nesse contexto, como uma máquina de
produção de “outros”, fazendo com que o africano, o ameríndio e o oriental apareçam
como o contraponto negativo da identidade europeia. Assim, o colonizado se afigura, no
imaginário europeu de época, como uma espécie de amálgama indefinido composto por
tudo aquilo que, de modo geral, se opõe à civilização. Assim, conforme observam
Michael Hardt e Antonio Negri, “a construção negativa de outros não europeus é,
finalmente, o que funda e sustenta a própria identidade europeia”.^27 E é preciso notar que
esse processo de produção depreciativa do outro encontrará na antropologia nascente,
quiçá, um dos mais influentes mecanismos de apoio. É nesse sentido que Hardt e Negri
salientam que:
[...] O sujeito colonizado é construído no imaginário metropolitano como o outro, e, dessa maneira, tanto quanto possível, o colonizado é posto fora das bases definidoras dos valores civilizados europeus. [...] Essa construção colonial de identidades repousa pesadamente na fixidez da fronteira entre a metrópole e a colônia. A pureza de identidades, tanto no sentido biológico como no cultural, é da maior importância, e a manutenção da fronteira é motivo de considerável ansiedade. [...] A alteridade não é dada, é produzida. [...] Entre as disciplinas acadêmicas envolvidas nessa produção cultural de alteridade, a antropologia foi, talvez, a rubrica mais importante, sob a qual o outro nativo foi importado para a Europa e dela exportado. A partir das diferenças reais dos povos não europeus, antropólogos do século XIX construíram outro ser, de natureza diferente; desencontros culturais e características físicas foram construídas como a essência do africano, do árabe, do aborígene, e assim por diante. Quando a expansão colonial estava no auge e as potências europeias disputavam a África aos empurrões, a antropologia e o estudo de povos não europeus tornaram-se não apenas um esforço de estudiosos, mas também um vasto campo para a instrução pública. O outro foi importado para a Europa – em museus de história natural, em exposições públicas de povos primitivos, e assim por diante – e, dessa maneira, posto cada vez mais à disposição do imaginário popular. Tanto em sua forma erudita como popular, a antropologia do século XIX apresentava culturas e indivíduos não europeus como versões subdesenvolvidas dos europeus e de sua civilização: eram sinais de primitivismo representando estágios no caminho da civilização europeia. Os estágios diacrônicos da evolução humana rumo à civilização foram, dessa forma, concebidos como presentes sincronicamente nos diversos povos e culturas primitivos espalhados pelo globo. A apresentação antropológica dos outros não europeus dentro dessa teoria evolucionária da civilização serviu para confirmar e ratificar a posição eminente dos europeus e, com isso, legitimar todo o projeto colonialista.^28
- Tradução Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 92 e 114). Para uma análise dos diversos tipos interpenetração entre colonização e imperialismo, ver: FERRO, Marc. História das colonizações : das conquistas às independências, séculos XIII a XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 37-38. (^26) Cf. HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios – 1880 - 1914, p. 105-107. (^27) HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Tradução de Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 141-143. (^28) HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império , p. 141-143. A respeito, ver: WARNIER, Jean-Pierre. La mondialisation de la culture. 4 ème^ éd. Paris: La Découverte, 2007. p. 36-38.
a antropologia durante o período colonial, tendo como base as mais variadas instâncias.^32
Aliás, como sublinha Claude Rivière, “situado na história, o discurso antropológico não
é inocente: numa determinada conjuntura colonial, ele é o discurso do explorador, do
missionário, do administrador, do jurista, o que em nada afeta a competência e a
perspicácia de alguns dentre eles”.^33
Portanto, a relação da antropologia, em sentido genérico, com o processo de
colonização, decorrente da expansão imperialista europeia, mostra-se fundamental para a
compreensão não apenas das orientações conceituais das primeiras escolas de
antropologia jurídica, mas, inclusive, do seu desenvolvimento posterior enquanto
disciplina.^34 É possível, aliás, apontar certas inflexões do contexto em que surge a
antropologia no delineamento preliminar do seu campo de análise e de pesquisa. Tendo
se constituído em um período histórico marcado pela expansão imperialista ocidental, a
antropologia do século XIX apresentou a nítida prevalência de uma dimensão
instrumental, vocacionada à gestão de populações, a partir de uma visão etnocêntrica que
as desqualificava como “primitivas”.^35
É certo que, ao longo de seu desenvolvimento, a antropologia afastou-se
progressivamente dessas características de origem, de modo a superar as determinações
de seu contexto de formação. Entretanto, não se pode desconsiderar que, tendo surgido
em uma época marcada pela violência e pela espoliação decorrentes da dominação
colonial, a antropologia reforçou as relações de assimetria que o Ocidente impingiu a
outros povos no bojo da construção de sua hegemonia.^36 Assim, se o saber antropológico,
de um lado, forneceu uma visão mais objetiva acerca dos fenômenos humanos, por outro,
(^32) Cf. JAMES, Wendy. The Anthropologist as Reluctant Imperialist. In: ASAD, Talal. (Ed.) Anthropology & the Colonial Encounter , p. 41-69. (^33) RIVIÈRE, Claude. Introdução à antropologia. Tradução de José Frederico Espadeiro Martins. Lisboa: Edições 70, 2004. p. 34-35. (^34) Ao referir-se à antropologia qualificada como jurídica, Jacques Vanderlinden ressalta que “la qualification juridique se situe alors sur le même plan que d’autres adjectifs, par exemple, culturelle, économique, politique ou sociale, pour définir un compartiment particulier de ce savoir global que serait l’anthropologie [...]” (VANDERLINDEN, Jaques. Anthropologie juridique. Paris: Dalloz, 1996. p. 36). (^35) Acerca do perfil originalmente assumido pela antropologia jurídica no momento de sua formação, ver: VILLAS BOÂS FILHO, Orlando. A constituição do campo de análise e pesquisa da antropologia jurídica, p. 333-349. (^36) A respeito, ver, por exemplo: L’ESTOILE, Benoît de; NEIBURG, Federico; SIGAUD, Lygia. Antropologia, impérios e estados nacionais: uma abordagem comparativa, p. 21; L’ESTOILE, Benoît de. Ciência do homem e “dominação racional”: saber etnológico e política indígena na África colonial francesa, p. 61 e ss.; MATTEI, Ugo; NADER, Laura. Plunder : when the rule of law is illegal. Oxford: Blackwell Publishing, 2008. p. 17; NADER, Laura. The life of the law : anthropological projects. Berkeley: University of California Press, 2002. p. 47 e ss.; SAID, Edward. Cultura e imperialismo. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 108-109. No que tange aos estudos orientalistas, ver: SAID, Edward. Orientalismo : o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 11-60 e 178 e ss.
é preciso notar que isso se deu, conforme ressalta Claude Lévi-Strauss, a partir de uma
relação em que uma parte da humanidade se arrogou o direito de tratar a outra como um
objeto.^37
Conforme enfatiza Maurice Godelier, desde a sua origem, a antropologia teria se
desenvolvido de maneira contraditória, muitas vezes misturando práticas racionais e
ideologia. Por isso, segundo o autor, ela estaria condenada a lutar em si mesma contra si
própria ( lutter en elle-même contre elle-même ).^38 Esse desenvolvimento paradoxal da
antropologia pode ser interpretado como a tentativa de ela obter maior nível de
cientificidade, mediante modificações metodológicas sucessivas, com o intuito de
habilitar-se à consecução de sua pretensão de implementar uma crítica epistemológico-
política, pautada pelo descentramento e pela alteridade, do etnocentrismo. Outrora
direcionada à descrição, muitas vezes caricata e depreciativa das práticas de “sociedades
exóticas”, a antropologia reconfigurou-se paulatinamente de modo a subverter clivagens
etnocêntricas e defasadas que, entretanto, paradoxalmente, serviram originalmente à sua
própria constituição identitária.^39 Trata-se, assim, de uma perspectiva dotada de
importantes instrumentos analíticos para a compreensão da regulação jurídica nas
próprias sociedades ocidentais modernas.^40
3 ANTROPOLOGIA: A ESPECIFICIDADE DE UM ENFOQUE SOBRE A
REGULAÇÃO JURÍDICA NO ÂMBITO DOS ESTUDOS SOCIOJURÍDICOS
(^37) Segundo Lévi-Strauss, “l’anthropologie est fille d’une ère de violence ; et si elle s’est rendue capable de prendre des phénomènes humains une vue plus objective qu’on ne le faisait auparavant, elle doit cet avantage épistémologique à un état de fait dans lequel une partie de l’humanité s’est arrogé le droit de traiter l’autre comme un objet” (LÉVI-STRAUSS, Claude. Anthropologie structurale – Deux. Paris: Plon, 1996. p. 69). (^38) Cf. GODELIER, Maurice. Au fondement des sociétés humaines : ce que nous apprend l’anthropologie, p.
(^39) No que tange especificamente à antropologia jurídica, Rouland ressalta que “anthropologie et sociologie juridiques naissent dans les dernières décennies du XIXe^ siècle. Fondamentalement, leur but est le même: comprendre le fonctionnement des sociétés humaines. Mais le partage opéré par A. Comte entre les champs des différentes sciences humaines donnera à chacune de ces disciplines une spécificité qu’elle possède encore, même si le clivage va en s’atténuant. À l’ethnologie devait en effet revenir l’étude des sociétés exotiques, et à la sociologie celle des sociétés occidentales. Le tracé de ces frontières n’est pas principalement géographique: il repose sur des jugements de valeur aujourd’hui dépassés. En effet, les ‘primitifs’ étant alors jugés radicalement différents de nous (dans le sens de l’arriération), leur étude devait être faite par une discipline particulière. Dès lors, sociologie et ethnologie juridique vont se constituer selon des traditions différentes. […] Cependant, dans le futur, les clivages épistémologiques entre les deux disciplines devraient aller en s’atténuant” (ROULAND, Norbert. L’anthropologie juridique , p. 12-13). (^40) Conforme ressalta Rouland, “l’anthropologie juridique ne borne point son champ à l’étude des sociétés lointaines ou ‘exotiques’. Elle se veut aussi réflexion sur notre propre droit” (ROULAND, Norbert. L’anthropologie juridique , p. 6).
nos são familiares e que tendemos a naturalizar.^47 É, nesse sentido, aliás, que diversos
autores a caracterizam como uma espécie de ciência da alteridade.^48
Além disso, como sustenta Norbert Rouland – contrastada com a etnografia
jurídica, que consistiria na coleta e na descrição de dados qualificados como jurídicos nos
níveis do discurso, das práticas e das representações, no seio de uma dada sociedade, e
com a etnologia jurídica, que se preocupa em interpretar as articulações de cada um desses
níveis com os outros dois no funcionamento geral de uma mesma sociedade – , a
antropologia jurídica caracterizar-se-ia por um enfoque generalizador, cuja pretensão
consistiria em realizar uma espécie de ordenamento da cultura humana em sua
generalidade, no tocante ao domínio do direito, mediante a comparação entre os sistemas
jurídicos de todas as sociedades que possam ser observadas.^49 Nesse particular, cumpre
notar que, conforme Claude Lévi-Strauss, etnografia, etnologia e antropologia não
constituiriam três disciplinas distintas ou três concepções diferentes dos mesmos estudos,
e sim três etapas ou três momentos de uma mesma pesquisa.^50
(^47) Sobre a questão da technique de dépaysement , ver: LÉVI-STRAUSS, Claude. Anthropologie structurale
- Deux, p. 320. Lévi-Strauss, aliás, observa que “l’anthropologue ne fait donc pas seulement taire ses sentiments. Il façonne de nouvelles catégories mentales [...]” (LÉVI-STRAUSS, Claude. L’Anthropologie face aux problèmes du monde moderne. Paris: Éditions du Seuil, 2011. p. 34). Analogamente, Maurice Godelier estabelece como tarefa do antropólogo “briser le miroir du soi et se construire un nouveau moi” (GODELIER, Maurice. Au fondement des sociétés humaines : ce que nous apprend l’anthropologie, p. 46). A respeito da technique de dépaysement , ver também: HÉNAFF, Marcel. Claude Lévi-Strauss et l’anthropologie structurale. Paris: Belfond, 1991. p. 40-42. Sobre essa questão, ver: ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique , p. 163-164; ROULAND, Norbert. L’anthropologie Juridique , p. 13. A respeito, ver também: VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. O direito de qual sociedade? Os limites da descrição sociológica de Niklas Luhmann acerca do direito a partir da crítica antropológica, p. 339. (^48) Conforme Rouland, “l’anthropologie juridique est conditionnée par l’évolution du regard posé sur les sociétés différentes de la sienne par l’observateur occidental. Le problème de l’altérité – et des difficultés à la penser que révèle l’évolution des théories – est donc déterminant” (ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique , p. 23). No mesmo sentido, ver: KROTZ, Esteban. Sociedades, conflictos, cultura y derecho desde la perspectiva antropológica, p. 28-29. (^49) A respeito, Rouland assevera que “ l’ethnographie juridique consiste dans la collecte et la description des données qualifiées de juridiques au triple niveau des discours, des pratiques et des représentations au sein d’une société donnée. L’ethnologie juridique s’attache à interpréter les articulations unissant chacun de ces niveaux aux deux autres, et l’ensemble de ces trois niveaux au fonctionnement général de la même société donnée. L’anthropologie juridique tente, dans une démarche ultime, d’atteindre à un ordonnancement de la culture humaine dans sa généralité par rapport aux domaines du droit, par la voie de la comparaison entre les systèmes juridiques de toutes les sociétés qu’il est possible d’observer” (ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique , p. 122). A respeito, Rouland, contrastando etnologia e antropologia, ressalta que “l’ethnologue le sait bien: toute recheche d’un ailleurs commence par une lassitude du familier. A priori, l’ethnologie n’apporte aucun sentiment de sécurité: à la certitude d’un astre unique, elle substitue tout d’abord le vertige de la contemplation du ciel étoilé. Mais l’anthropologie juridique, qui entend penser conjointement les droits de toutes les sociétés, apporte plus de sérénité. […] Plus que jamais, elle entend partir du distinct pour parvenir à l’universel, en refusant l’uniforme” (ROULAND, Norbert. L’anthropologie juridique , p. 124 e 126). Em sentido análogo, ver: VANDERLINDEN, Jacques. Anthropologie juridique , p. 11. (^50) Cf. LÉVI-STRAUSS, Claude. Anthropologie structurale. Paris: Plon, 1974. p. 413.
Aliás, a esse respeito, Norbert Rouland, baseando-se em Étienne Le Roy, capitula
as fases da investigação antropológica acerca da regulação jurídica, de modo a descrevê-
las da seguinte forma:^51
Fases Denominação Implicações Consequências técnicas I Formação Endoculturação. Aculturação científica. Formação especial Definição do sujeito. Passagem necessária pela fase II II Coleta de dados Informações escritas e orais (investigações); escolha de métodos Retorno à fase I para complementos ou passagens à “exploração”. Formulação de hipóteses III Análise Estudos das relações significativas no seio de conjuntos considerados como sistemas Retorno às fases I e II, ou formulação de explicações (fase VI) IV Comparação Verificação de hipóteses pela utilização de modelos direcionados ao estudo das propriedades de diferentes sistemas Conforme os resultados, retorno a uma das fases precedentes ou generalização V Generalização Définition des principes généraux de fonctionnement du système de données Passagem para a fase VI. Definição de um novo assunto. Retorno às fases I ou II VI Apresentação dos resultados Descrição dos dados utilizados e dos significados apurados a partir das diversas fases da pesquisa Fonte: Rouland, Norbert. Anthropologie juridique , p. 177.
Por conseguinte, como sublinha Norbert Rouland, a antropologia teria uma
“vocação totalizante” ( vocation totalisante ) que se expressa na procura de aspectos
comuns a todas as sociedades.^52 Essa questão é ilustrada, por exemplo, pela asserção de
Shelton H. Davis, que indica três proposições a respeito das quais, segundo ele, os
antropólogos estariam de acordo: a) em toda sociedade, existiria um corpo de categorias
culturais, de regras ou códigos que definem os direitos e deveres legais entre os homens;
b) em toda sociedade, disputas e conflitos surgiriam quando essas regras fossem
rompidas; c) em toda sociedade, existiriam meios institucionalizados pelos quais esses
conflitos seriam resolvidos e pelos quais as regras jurídicas seriam reafirmadas e/ou
(^51) Norbert Rouland refere-se ao texto intitulado Méthodologie de traitement et d’exploitation des données , não publicado, que comporia o Cours d’Histoire des Institutions d’Afrique noire , ministrado, entre 1975 e 1976, por Étienne Le Roy. Cf. ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique , p. 176. (^52) Cf. ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique , p. 12. No mesmo sentido, ver: ROULAND, Norbert. L’anthropologie juridique , p. 126.
concerne à motivação que conduz a investigação, não há um vínculo direto com a
aplicabilidade dos resultados da pesquisa.^58 Poder-se-ia, contudo, ir mais além e afirmar
que a pretensão de descentramento da antropologia jurídica relativamente às categorias,
instituições, valores e conceitos ocidentais a levaria a uma radicalização da crítica
zetética, o que expressa a sua possibilidade de servir de ponto de ancoragem de uma
“crítica à razão sociológica”, como, aliás, sublinha Eduardo Viveiros de Castro.^59
Um típico exemplo do contorno zetético assumido pela antropologia jurídica está
em seu questionamento crítico do vínculo inextricável entre direito e Estado.^60 O
pressuposto fundamental da descrição do direito como ligado ao Estado é, como se sabe,
amplamente questionado pela antropologia jurídica, uma vez que esta, pautada que é pelo
descentramento e pela alteridade, direciona-se a contextos sociais em que a regulação
jurídica prescinde de organização estatal, motivo pelo qual sempre lhe soou natural
contestar a ideia de que apenas o direito estatal das sociedades modernas seja considerado
expressão da juridicidade.^61 Portanto, as discussões relativas ao pluralismo jurídico no
campo antropológico servem de clara ilustração de seu viés zetético.^62
Ademais, cabe notar que a antropologia jurídica – tal como ocorre com a
sociologia jurídica, a história do direito, a psicologia jurídica etc. – consigna uma
perspectiva externa de análise e de crítica da regulação jurídica.^63 Desse modo, é
particularmente vocacionada a enxergar o ponto cego da observação dos juristas, o que
(^58) Cf. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo o direito : técnica, decisão, dominação, p.
(^59) Eduardo Viveiros de Castro afirma que, “na medida em que muitos antropólogos concebem sua atividade como sendo primordialmente a de empreender uma crítica político-epistemológica da razão sociológica ocidental, esta posição ocupa um lugar central na disciplina” (VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O conceito de sociedade em antropologia. In: ______. A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002. p. 309). A respeito, ver: VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. O direito de qual sociedade? Os limites da descrição sociológica de Niklas Luhmann acerca do direito a partir da crítica antropológica, p. 339; VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. A regulação jurídica para além de sua forma ocidental de expressão: uma abordagem a partir de Étienne Le Roy, p. 184. (^60) Cf. ROULAND, Norbert. L’anthropologie juridique , p. 39-41. (^61) Cf. LE ROY, Étienne. Le jeu des lois. Une anthropologie “dynamique” du Droit, p. 189 e ss. (^62) É por isso que Shelton H. Davis, por exemplo, problematizando as representações tradicionais dos juristas, define a antropologia jurídica nos seguintes termos: “é a investigação comparada da definição de regras jurídicas, da expressão de conflitos sociais e dos modos através dos quais tais conflitos são institucionalmente resolvidos. Como tal, a antropologia do direito tem como ponto de partida que os procedimentos jurídicos e as leis não são coincidentes com códigos legais escritos, tribunais de justiça formais, uma profissão especializada de advogados e legisladores, polícia e autoridade militar etc. O direito tal como existe nas organizações políticas complexas como o Estado moderno é concebido pela antropologia apenas como um caso especial, ainda que importante dentro do conjunto de dados etnográficos” (DAVIS, Shelton H. Introdução, p. 10). Em sentido semelhante, ver, por exemplo: ROULAND, Norbert. L’anthropologie juridique , p. 39 e ss. (^63) Cf. ARNAUD, André-Jean; FARIÑAS DULCE, María José. Introduction à l’analyse sociologique des systèmes juridiques , p. 4.
lhe confere, tal como ocorre com a sociologia, a possiblidade de um distanciamento
crítico que muito contribui para desestabilizar certezas sedimentadas no “senso comum
jurídico”. Em termos ilustrativos, é possível mobilizar o quadro proposto por Donald
Black para contrastar os modelos da “ciência do direito” e “sociológico” para elucidar
essa característica da perspectiva antropológica, uma vez que esta apresenta, em linhas
gerais, um perfil semelhante ao que este autor atribui ao “modelo sociológico”:
Dois modelos analíticos de abordagem do direito
Jurisprudential Model Sociological Model
Focus
Process
Scope
Perspective
Purpose
Goal
Rules
Logic
Universal
Participant
Practical
Decision
Social Structure
Behavior
Variable
Observer
Scientific
Explanation
Fonte: Black, Donald. Sociological justice , p. 21.
A antropologia jurídica, como mencionado, pretende descentrar-se das categorias,
dos valores, das experiências, das instituições e, em vertentes mais radicais,^64 da própria
racionalidade do Ocidente. Decorrem daí a sua intensa crítica ao etnocentrismo e a sua
atenção à alteridade, assim como as suas reservas à suposta universalidade da “razão
ocidental”.^65 Logo, a perspectiva antropológica, em virtude de se pautar por essa
pretensão de descentramento, radicaliza a crítica zetética à regulação jurídica.
Em razão dessas características, seria possível afirmar que a perspectiva
antropológica, no que concerne aos estudos sociojurídicos, afigura-se como um
instrumento de “vigilância epistemológica”, no sentido em que a definem Pierre
Bourdieu, Jean-Claude Chamboredon e Jean-Claude Passeron.^66 Não se desconsidera
aqui que os autores estão preocupados com o “métier de sociologue”, contudo, com as
devidas mediações, as suas propostas podem ser mobilizadas para assegurar a
(^64) A respeito, ver, por exemplo: EBERHARD, Christoph. Le Droit au miroir des cultures. Pour une autre mondialisation, p. 220-227; EBERHARD, Christoph. Towards an intercultural legal theory: the dialogical challenge, p. 171-201; VACHON, Robert. L’étude du pluralisme juridique: une approche diatopique et dialogale. Journal of legal pluralism and unofficial law , n. 29, p. 163-173, 1990. (^65) Cf. ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique , p. 37 e ss. (^66) Referindo-se à necessidade de dotar o pesquisador de instrumentos que o permitam assumir ele próprio “la surveillance de son travail scientifique”, os autores ressaltam que “la vigilance épistémologique s’impose particulièrement dans le cas des sciences de l’homme où la séparation entre l’opinion commune et le discours scientifique est plus indécise qu’ailleurs” (BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean- Claude; PASSERON, Jean-Claude. Le métier de sociologue , p. 14 e 27).
4 À GUISA DE CONCLUSÃO: UMA BREVE ALUSÃO A AUTORES E A
TEMÁTICAS INCONTORNÁVEIS NO CAMPO DA ANTROPOLOGIA
JURÍDICA
Escassamente mobilizados nas pesquisas jurídicas, autores da antropologia – tais
como Baldouin Dupret, Brian Z. Tamanaha, Henry Sumner Maine, Marcel Mauss, Lucien
Lévy-Bruhl, Bronislaw Malinowski, Alfred R. Radcliffe-Brown, Franz Boas, Max
Gluckman, Paul Bohannan, Pierre Clastres, Maurice Godelier, Roscoe Pound, Leopold
Pospisil, Michel Alliot, Jean Poirier, Clifford Geertz, Bruno Latour, Étienne Le Roy,
Christoph Eberhard, Louis Assier-Andrieu, Louis Dumont, Franz von Benda-Beckmann,
Shelton H. Davis, Sally Engle Merry, Laura Nader, Sally Falk Moore, Norbert Rouland,
Robert Vachon, Gilda Nicolau, Robert Weaver Shirley, Conrad Arensberg, Solon
Kimball, Edmund Leach, Rodolfo Sacco, John Griffiths, Jacques Vanderlinden, Roderick
Macdonald, Edwige Rude-Antoine, Geneviève Chrétien-Vernicos, Alain Rochegude,
Moustapha Diop, Chantal Kourilsky-Augeven, Raymond Verdier, Raimon Panikkar,
Jean-Guy Belley – podem fornecer aportes extremamente significativos ao
aprimoramento das análises que tematizam a regulação jurídica, especialmente em
pesquisas pautadas pela interdisciplinaridade.
Por outro lado, não menos diversificado e extenso é o âmbito das questões
abrangidas pela antropologia jurídica. É, aliás, por essa razão que autores como Robert
Weaver Shirley referem-se a ela em termos de um “campo sem fronteira”.^74 Em meio a
(^74) Cf. SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 1. No mesmo sentido, ver: CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. A dimensão simbólica dos direitos e a análise de conflitos, p. 456.
ais questões, encontram-se, por exemplo: o pluralismo jurídico,^75 a juridicidade,^76 a
aculturação jurídica,^77 a crítica à concepção convencional de direitos humanos,^78 as
diversas formas de apropriação fundiária,^79 as formas alternativas (ou não judiciais) de
resolução de conflitos,^80 a relação entre regulação jurídica e Estado, socialização jurídica,
(^75) Cf. BELLEY, Jean-Guy. Pluralismo jurídico. In: ARNAUD, André-Jean (Dir.). Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. Tradução de Patrice Charles, F. X. Willaume. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 585-589; DUPRET, Baudouin. La nature plurale du droit. Cahiers d’Anthropologie du droit. Les pluralismes juridiques. Paris: Karthala, 2003. p. 81-93; DUPRET, Baudouin. What is plural in the law? A praxiological answer. Égypte/Monde Arabe , 3 rd^ serie, n. 1, p. 159-172, 2005; DUPRET, Baudouin. Droit et sciences sociales: Pour une respécification praxéologique. Droit et Société, n. 75, p. 315 - 335, 2010; DUPRET, Baudouin. Réflexions sur le concept de droit à partir de quelques cas limites. Droit et Société , n. 94, p. 645-661, 2016; LE ROY, Étienne. Le pluralisme juridique aujourd’hui ou l’enjeu de la juridicité, p. 7-15; MACDONALD, Roderick A. Here, there… and everywhere. Theorizing legal pluralism. Theorizing Jacques Vanderlinden. In: KASIRER, Nicholas; CASTONGUAY, Lynne (Éd.). Étudier et enseigner le droit : hier, aujourd’hui et demain – études offertes à Jacques Vanderlinden. Montreal: Yvon Blais, 2006. p. 381-413; MOORE, Sally Falk. Certainties undone: fifty turbulent years of legal anthropology, 1949-1999. Huxley Memorial Lecture. Journal of the Royal Anthropological Institute , v. 7, n. 1, p. 95-116, 2001; MOORE, Sally Falk. Law and anthropology : a reader. Malden: Blackwell, 2005; MOORE, Sally Falk. Law as process : an anthropological approach. Hamburg: LIT Verlag, 2000; ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique , p. 74 e ss.; ROULAND, Norbert. L’anthropologie Juridique , p. 39 e ss.; ROULAND, Norbert. Nos confins do direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 155 e ss.; ROULAND, Norbert. Pluralismo jurídico (Teoria antropológica). In: ARNAUD, André-Jean (Dir.). Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito, p. 589-590; TAMANAHA, Brian Z. A non-essentialist version of legal pluralism. Journal of Law and Society , v. 27, n. 2, p. 296-321, 2000; VANDERLINDEN, Jacques. Anthropologie juridique , p. 47 e ss.; VANDERLINDEN, Jacques. Le pluralisme juridique – essai de synthèse. In: GILISSEN (Dir.). Le pluralisme juridique. Bruxelles: Éditions de l’Institut de Sociologie, 1972. p. 19-56; VANDERLINDEN, Jacques. Les pluralismes juridiques. In: RUDE-ANTOINE, Edwige; CHRÉTIEN- VERNICOS, Geneviève. Anthropologies et droits : état des savoirs et orientations contemporaines, p. 25- 76; VANDERLINDEN, Jacques. Return to legal pluralism: twenty years later. The Journal of Legal Pluralism , n. 28, p. 149-157, 1989; VANDERLINDEN, Jacques. Trente ans de longue marche sur la voie du pluralisme juridique. Cahiers d’anthropologie du droit. Les pluralismes juridiques. Paris: Karthala,
- p. 21-33. (^76) Cf. LE ROY, Étienne. Le jeu des lois. Une anthropologie “dynamique” du Droit, p. 189 e ss.; LE ROY, Étienne. Pour une anthropologie de la juridicité, p. 241-247. VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. A regulação jurídica para além de sua forma ocidental de expressão: uma abordagem a partir de Étienne Le Roy, p. 159- 195; VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Juridicidade: uma crítica à monolatria jurídica como obstáculo epistemológico, p. 281- 325 ; VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. O direito de qual sociedade? Os limites da descrição sociológica de Niklas Luhmann acerca do direito a partir da crítica antropológica, p. 337-366. (^77) Cf. CARBONNIER, Jean. Sociologie juridique. 2 ème (^) éd. Paris: Presses Universitaires de France, 2008. p. 377 e ss.; SACCO, Rodolfo. Antropologia jurídica : contribuição para uma macro-história do direito. Tradução de Carlo Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. 83 e ss. (^78) Cf. EBERHARD, Christoph. Le Droit au miroir des cultures. Pour une autre mondialisation, p. 110 e ss.; EBERHARD, Christoph. Les droits de l’homme face à la complexité: une approche anthropologique et dynamique. Droit et Société , v. 51/52, p. 455-486, 2002; EBERHARD, Christoph. Towards an intercultural legal theory: the dialogical challenge, p. 171-201; SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: ______ (Org.) Reconhecer para libertar : os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 429-461; ROULAND, Norbert. Retour du Brésil : impressions d’un juriste anthropologue français. Paris: L’Harmattan, 2018. p. 71 e ss. (^79) Cf. RUDE-ANTOINE, Edwige; CHRÉTIEN-VERNICOS, Geneviève. Anthropologies et droits : état des savoirs et orientations contemporaines, p. 315 e ss. (^80) Cf. LE ROY, Étienne. Place de la juridicité dans la médiation, p. 193-208; NICOLAU, Gilda. Entre médiation et droit, les enjeux d’une bonne intelligence. Jurisprudence – Revue Critique, n. 4 (La médiation. Entre renouvellement de l’offre de justice et droit ), p. 209-235, 2013; VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. A