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Este documento discute a centralidade da sanção na teoria de direito de kelsen, incluindo sua importância jurídica e funcional. O texto também aborda diferentes tipos e sentidos de sanções na obra de kelsen, além de suas relações com outros conceitos jurídicos.
Tipologia: Notas de aula
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Já foi dito que a tradição analítica do direito inaugurou-se com os trabalhos de Jeremy Bentham no final do séc. XVIII, não obstante a escola só ter recebido tal título a partir da contribuição de John Austin e seus escritos apresentados na primeira metade do séc. XIX. A continuidade entre referidos autores, que nos permite situá-los como adeptos de uma mesma corrente de pensamento jurídico, torna-se perceptível na formulação teórica de Austin. Este reproduziu o método científico iniciado por Bentham — no sentido de construir uma teoria do direito, sem descuidar dos aspectos lingüísticos — filiou-se à tese imperativista do direito, e dedicou-se, em seus escritos, a delimitar os contornos do direito, numa busca pelo sentido particular da teoria jurídica. As semelhanças e convergências teóricas em ambos foram amplamente desenvolvidas nos capítulos precedentes, possibilitando o alcance de algumas conclusões. Para os precursores do positivismo jurídico não há como pensar o direito antes de se aferir a existência de um estado, que se funda e se corporifica na figura do soberano; este, por sua vez, é representando pela pessoa (ou pelas pessoas) que detém o poder supremo de comandar os demais membros da sociedade política independente e o faz de forma ilimitada e irrestrita, pois não se sujeita a nenhuma ordem. É aquele que comanda a todos, sem ser comandado por ninguém, e adquire o papel de autoridade máxima que legisla para regular e ordenar as condutas sociais. Por exclusão do conceito anterior chega-se aos súditos, aqueles que afirmam a condição do soberano ao obedecerem, por qualquer razão, às ordens que ele dita. Tais ordens — que são as leis que compõem o direito positivo e originam-se, como parece intuitivo neste momento, do próprio soberano — precisam de um respaldo que lhes garanta e assegure a eficácia. O modo encontrado pelos autores de ampará-las foi estabelecer sanções, entendidas como um dano que terá lugar sempre que alguém desobedecer a uma ordem ou transgredir um dever. A centralidade da sanção na teoria desses autores bem como a importância que lhe é atribuída, é indiscutível; em pelo menos dois momentos se
torna claro o papel de destaque que ocupa: as normas jurídicas só são assim consideradas se possuem cláusulas sancionadoras (o que vale para todas as normas austinianas e para as obrigatórias em Bentham), e, sob a perspectiva funcional, a sanção desempenha relevante papel motivacional, pois crêem que ela é a razão, ou motivo, que necessita o destinatário das normas para cumpri- las. Ainda que Austin distancie-se ligeiramente de Bentham ao desconsiderar as recompensas e os prêmios e determinar que as sanções serão sempre castigos danosos, pode-se afirmar que para ambos o fundamento das sanções é a eficácia das normas, vale dizer, a efetiva observância das mesmas. A herança intelectual, sumariamente descrita acima, que une esses estudiosos — e tem Jean Bodin e Thomas Hobbes como os precursores — exerceu grande influência em Hans Kelsen, um dos maiores estudiosos da teoria jurídica que o século XX conheceu. Kelsen se tornou mundialmente conhecido como o autor da Teoria Pura do Direito ; observe-se, porém, que a teoria pura não é tão somente o título de uma obra e sim de um empreendimento que tencionava livrar o Direito de elementos estranhos à uma leitura jurídica de seu objeto — isto é, visava desconsiderar a influência de outros campos do conhecimento como o político, o social, o econômico, o ético e o psicológico, uma vez que estes em nada contribuíam para a descrição das normas jurídicas — possibilitando que o Direito se elevasse à posição de verdadeira ciência jurídica (A. Sgarbi, 2006, p. 1). Como teoria do direito positivo, a doutrina kelseniana pretendia delimitar o campo exclusivamente jurídico frente aos demais e à doutrina de direito natural. Kelsen sempre sustentou a legalidade própria do direito, ante uma realidade social determinada conforme a natureza, reconhecendo tal legalidade a partir da oposição fundamental entre ser e dever ser. Desde, pois, a publicação, em 1911, de sua primeira importante obra Problemas Fundamentais do Direito Público , até nos últimos meses de sua vida — os quais dedicou a elaboração de uma ampla obra que levaria o nome de Teoria Geral das Normas , mas que não foi terminada; tendo sido, todavia, seu primeiro capítulo publicado, postumamente, em alemão em 1965 e inglês em 1979 — Kelsen se ocupou deste projeto: elaborar uma teoria do direito positivo capaz de superar os particularismos regionais. Em virtude dos êxitos encontrados em seu campo de aplicação, o direito, e também por ser extremamente racional e lógica, a teoria pura se tornou internacionalmente (re) conhecida e forneceu as bases dos novos estudos para teoria do direito. Nada obstante, muitas foram as críticas recebidas, nem sempre
Hans Kelsen nasceu em Praga (Áustria) em 11 de outubro de 1881 e morreu em Berkeley, Califórnia, EUA, em 11 de abril de 1973. Praticamente toda sua formação profissional se deu em Viena, Áustria, onde se doutorou em Direito (no ano de 1906, na Universidade de Viena), e começou a lecionar, primeiro na Academia de Exportação do Real e Imperial Museu de Comércio de Viena em 1909, e, posteriormente, tendo sido aceito como privatdozent em direito constitucional e filosofia do direito, na Faculdade de Direito de Viena, em 1911. A publicação de seu primeiro trabalho deu-se quando ainda era estudante (no ano de 1905) e consistiu num ensaio dedicado à Dante Alighieri, sob o título A teoria do estado de Dante Alighieri por Hans Kelsen , que obteve êxito literário na época. Segundo o próprio Kelsen foi “en todo caso el único de mis libros que no experimentó una crítica negativa. Aun en Italia fue bien recibido”. Tempos depois o próprio autor falará dessa obra como um mero trabalho escolar desprovido de qualquer originalidade. Em 1911, depois de aproximadamente cinco anos de trabalhos preparatórios em difíceis circunstâncias — a adversidade relaciona-se principalmente às dificuldades financeiras que a família do autor suportava na época e que o obrigou a sujeitar-se à empregos pouco atrativos e que nada tinham que ver com seus impulsos para o trabalho científico — Kelsen publica Problemas Fundamentais de Direito Público , sua primeira importante obra, apresentada à Faculdade de Direito em Viena como solicitação de habilitação que resultou na sua admissão como professor ordinário. Sua obra seguinte, publicada em 1913, foi O ilícito do Estado , consistente em um amplo tratado sobre o ilícito estatal, no qual se ocupou, simultaneamente, dos atos estatais irregulares e da capacidade das pessoas jurídicas para delinqüir. Com o início da primeira guerra mundial, Kelsen, na qualidade de primeiro tenente, foi chamado em Agosto de 1914 a prestar o serviço militar. Durante o período em que esteve a serviço do Ministério de Guerra, publicou muito pouco (basicamente um artigo que tratava da plausibilidade de uma reforma constitucional para depois da guerra, publicado no primeiro número de uma revista de direito militar fundada na ocasião); em compensação foram os laços de amizade, a boa relação com seus superiores e os altos postos alcançados no Ministério que o ajudaram a tornar-se, em julho de 1918, professor extraordinário
da Universidade de Viena — preterindo um outro candidato que já havia ministrado a disciplina direito militar como professor ordinário e desejava disputar a cátedra para extraordinário, pleito que acabou por retardar um pouco a nomeação de Kelsen. A pausa em seus escritos, impostas pela guerra e pelo serviço militar, teve efeitos favoráveis aos seus trabalhos desenvolvidos posteriormente, principalmente porque Kelsen iniciou naquela época alguns estudos relativos à soberania, reunindo pesquisadores em seu seleto círculo de discussões sobre o direito. Desses encontros participavam, em sua grande maioria, ex-alunos ouvintes das aulas ministradas durante os anos de 1911-14, mas, aos poucos, jovens de outros países, interessados em conhecer um pouco mais a doutrina que surgia, juntavam-se aos primeiros — como foi o caso do dinamarquês Alf Ross. Surgia, assim, a escola de Viena, essencialmente desenvolvida sob a influência direta de Kelsen. Em 1919 Kelsen contribui sobremaneira no projeto de Redação da Constituição Austríaca que foi definitivamente aprovada no ano seguinte. Sem dúvida, o capítulo que mais lhe orgulhava versava sobre o controle de constitucionalidade — foi o principal idealizador do controle na via concentrada —, pois o via como a garantia efetiva da Constituição e a marca distintiva da austríaca. Como peça jurídica central da organização constitucional foi previsto um Tribunal Constitucional e Kelsen, como criador e idealizador deste, foi eleito por todos os partidos da assembléia Nacional como membro vitalício da Suprema Corte Austríaca. Nesse ínterim, publica O Problema da Soberania e a Teoria Geral do Estado. Em 1930 Kelsen vai para Colonia, onde lecionou a disciplina direito internacional até 1933, mudando-se, em seguida, para Genebra. Essa mudança deveu-se à ascensão do partido Nacional Socialista que, numa manobra política, destituiu Kelsen da cátedra que ocupava na Universidade de Colonia. O autor tomou conhecimento de tal fato lendo um jornal matutino que noticiou seu pedido de licença; algo que equivaleria, praticamente, a sua destituição como professor em Colonia. Nada obstante a Universidade ter preparado um documento repudiando a destituição de Kelsen, no qual constava que os membros da faculdade estariam fortemente convencidos de sua valiosa personalidade humana, bem como que seria uma perda imensa para a universidade e para a ciência alemã — e que foi assinado por quase todos os docentes, com a exceção de Carl Schmitt —, não foi possível evitar a saída do professor.
acadêmica, mais uma vez num país estrangeiro cuja língua dominava só parcialmente. Lecionou em Harvard até 1943, quando, então, se muda para Berkeley, onde permanecerá como professor até se aposentar no ano de 1952. Suas atividades acadêmicas, entretanto, não se encerram; o autor continuou a publicar obras, proferir palestras como professor convidado, dedicando-se intensamente àquilo que foi seu projeto de vida: construir uma teoria global do direito.
Como dito nas passagens anteriores, o intuito de Kelsen foi tornar o conhecimento jurídico um conhecimento científico; para tanto, dedicou-se a elaborar uma teoria pura do direito que fosse capaz de superar os particularismos de cada país, isto é, que pudesse ser vista como uma teoria jurídica global. Nesse sentido, dois esclarecimentos precisam ser feitos: em primeiro lugar o que é “pura”, ou em outras palavras, qual o significado de “pura”; secundariamente, é preciso analisar o que receberá tal qualificação, o direito ou a teoria (Sgarbi, 2007, p. 2). Quanto ao primeiro aspecto, pode-se dizer que “pura” refere-se à tentativa de “viabilizar uma leitura específica da juridicidade” (Sgarbi, 2007, p. 2), isto é, estabelecer uma técnica de leitura capaz de identificar e delimitar precisamente o que é o direito. Todos os aspectos que não contribuem para o reconhecimento de uma norma como jurídica, devem ser afastados — por exemplo, os aspectos sociológicos (referentes ao comportamento dos sujeitos ante à norma); os éticos (quais valores foram determinantes na criação da prescrição); os psicológicos (qual foi a intenção do legislador ao estabelecer a norma); os factuais (referentes ao conteúdo da norma); bem como os políticos (razões políticas que induziram a elaboração da norma, assim como a finalidade a ser por ela perseguida) — para que a mesma possa ser considerada pura, ou em outros termos, livre de quaisquer considerações ideológicas e concepções de direito justo. Assim, o estudo sociológico da prática do direito e a análise das influências políticas, econômicas ou históricas sobre o desenvolvimento do direito ficam
além dos interesses e das possibilidades da teoria pura. Tais estudos pressupõem uma investigação prévia sobre a natureza do direito; vale dizer, são estudos possíveis e úteis, mas para que sejam perpetrados — para que o direito seja avaliado em sua prática cotidiana e valorado econômica, política ou socialmente — uma análise ao modo da teoria pura tem que ter sido feita, para que o estudioso conheça seu objeto de trabalho. Por estas razões é que o que pode ser adjetivado de “pura” é a teoria e não o direito, afinal Kelsen reconhece que o direito em si não pode ser dissociado da política, uma vez que é um instrumento da mesma: tanto a criação do direito quanto sua aplicação são baseados em valorações. Todavia, a ciência jurídica, se quer ser verdadeiramente uma ciência, deve se manter distante de considerações de cunho político, pois seus objetivos são bem diversos. A teoria do direito quer conhecer a unicidade do fenômeno ao qual se denomina direito, de modo que necessita de um instrumental capaz de ser fiel ao fenômeno. Nos dizeres de Kelsen:
A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo — do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica específica. [...] Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito (Kelsen, 2003, p. 1). Utilizando como referência as ciências da natureza, que se valem de um modelo de observação e comprovação para enunciar leis gerais que permitem predizer os eventos seguintes, Kelsen pretende aplicar esse mesmo método para criar uma teoria jurídica apta a prever, com a devida segurança, as possibilidades normativas que o direito pode oferecer. Da mesma forma que o cientista aquece um metal e assiste como conseqüência a dilatação do mesmo, em qualquer lugar e em qualquer tempo, sem influenciar diretamente no comportamento dos corpos metálicos e sem ter criado a regra de expansão pelo calor, também o jurista pode identificar o direito simplesmente o descrevendo, sem emitir nenhum juízo de valor. Isso possibilita, para além da descrição precisa da ocorrência do fenômeno, tecer prognósticos sobre futuros acontecimentos. Apesar desta apreensão do modelo das ciências da natureza ser válida para o propósito de explicar, controlar e prever o fenômeno normativo, ela não pode ser implementada ipsis literis, afinal, o direito possui algumas diferenças dos fenômenos da natureza. A começar por seu princípio regente. Enquanto os
efeito; este último independe de qualquer ato humano (até mesmo sobre- humano), enquanto a aplicação da sanção depende sempre de um poder criador, que a estabeleça e imponha. Diga-se, ainda, que se a sanção está ligada ao delito com o intuito de responsabilizar alguém, isto é, se existe uma norma que a estabelece com o fim de impor uma punição, não é possível considerar que a sanção seja causada pelo delito, visto que ela existe antes e previamente a ele. Vale dizer, através de critérios de política criminal estabelecem-se quais são os comportamentos indesejáveis e, visando evitá-los, comina-se penas para os que ousarem desobedecer. No momento em que algum cidadão descumpre/viola o conteúdo da norma, a sanção será “imputada” ao agente, não porque a infração a “causou” e sim porque ela já possuía existência normativa e sua condição de aplicabilidade era a ocorrência do delito. Não se pode olvidar, todavia, que ocorrências meramente causais também permeiam o comportamento dos homens^2 , só que o Direito permanece imune a elas, afinal não pode ordenar ou proibir meros processos causais. Como exemplo, cite-se o quão absurdo seria estabelecer a proibição para uma mulher de sofrer um aborto espontâneo, ou obrigá-la a gerar um bebê perfeito, plenamente desenvolvido e saudável aos 4 meses de gestação. Estes acontecimentos são regidos por leis causais, não há como o ser humano se determinar de acordo tais perspectivas. Porém, todos os atos passíveis de serem orientados finalisticamente (ou seja, os processos que se organizam orientados pelo fim antecipado na mente do agente) podem ser proibidos — por exemplo, a circunstância de o Direito poder ordenar que uma mulher se comporte de maneira a impedir um aborto provocado pela vontade. Tudo exposto, a conclusão a qual se chega é que as relações humanas não estão ligadas por um nexo causal e sim por um nexo imputativo. Evidentemente há grande diferença entre essas duas expressões, assim como entre os dois princípios. Primeiramente partem ambos de um mesmo julgamento hipotético ligando alguma coisa como condição a outra coisa como conseqüência, no entanto, o significado da ligação é distinto, pois enquanto na causalidade temos “se A existe, B existe (ou existirá)”, na imputação tem-se “se A existe, B deve existir”. Kelsen utiliza de exemplos bastante esclarecedores: se aqueço um corpo metálico (se A), ele se expande ou expandirá (então ocorre B). Por outro lado, se um homem pratica roubo (se A), ele deve ser punido (então deve ocorrer B). Nos dizeres do professor:
(^2) “Uma vez estabelecido, o princípio de causalidade é aplicável também à conduta humana” (Kelsen, 2001, 329).
A diferença entre causalidade e imputação é que a relação entre a condição, que na lei da natureza é apresentada como causa, e a conseqüência, que é aqui apresentada como efeito, é independente de um ato humano ou sobre-humano; ao passo que a relação entre condição e conseqüência afirmada por uma lei moral, religiosa ou jurídica é estabelecida por atos de seres humanos ou sobre-humanos. É justamente este significado específico da ligação entre condição e conseqüência que é expresso pelo termo ‘dever ser’ (Kelsen, 2001, p. 331). Ademais, diga-se que com relação à causalidade a cadeia de causa e efeito é indefinida, visto que a cada causa corresponde um efeito que sempre é considerado causa de outro efeito e assim sucessivamente, de modo que, por definição, pode-se alcançar o infinito. A adoção do critério da imputação soluciona esse problema vez que a condição à qual a conseqüência é imputada não é necessariamente, ao mesmo tempo, conseqüência imputável a alguma outra condição. Conforme Kelsen: “A linha de imputação não tem, como a linha de causalidade, um número infinito de vínculos, mas apenas dois” (Kelsen, 2001, p. 332). Solucionada a questão relativa aos distintos princípios aplicáveis à ciência natural e à ciência jurídica, a delimitação perfeita do objeto do direito, para ser alcançada, ainda depende da solução de um problema estrutural: as normas jurídicas possuem a estrutura de um dever e nesse ponto se assemelham às normas morais e as religiosas, portanto, ainda há a necessidade imperiosa de destacar o dever jurídico, dos morais e religiosos — não que com isso se esteja declarando impossível um dever jurídico que seja ao mesmo tempo condizente com preceitos morais ou religiosos. A reposta não será dada, certamente, pela finalidade das normas: todas elas (sejam jurídicas, morais ou religiosas) possuem o claro intento de determinar os comportamentos adequados e desejados. À diferença das demais ordens sociais, o Direito é uma ordem coativa, no sentido de que reage às situações indesejáveis (porque contrárias ao que o ordenamento preceituou anteriormente como devido) com um mal que pode ser aplicado ao destinatário até mesmo contra a sua vontade. A possibilidade de aplicação das sanções por parte do Estado dá ao Direito o seu caráter coercitivo, na medida em que todo aquele que descumprir o dever inscrito na norma jurídica terá cometido um ilícito, ou seja, uma conduta considerada pressuposta para a sujeição à sanção. E para os que rejeitam uma definição de Direito que dependa tão visivelmente das sanções? Kelsen responde:
É, por isso, de rejeitar uma definição do Direito que o não determine como ordem de coação, especialmente porque só através da assunção do elemento coação no conceito de Direito este pode ser distintamente separado de toda e qualquer outra
impulsos e desejos de agir em oposição ao dever e sucumbem à prescrição para evitar o prejuízo que ela prevê. Kelsen reconhece, porém que tal função não pertence ao Direito: ela é possível, mas não obrigatória, haja vista a obediência poder advir de outros motivos, até mesmo morais ou religiosos^4. Uma outra razão que demonstra o desinteresse do autor em questão com relação à coação psíquica que a sanção pode desencadear refere-se ao fato dela não ser uma nota distintiva do Direito — outras ordens sociais, como a religiosa, se valem desse caractere com muito mais habilidade e eficácia —; o que o separa das demais ordens são os atos de coação, precisamente a privação coercitiva dos bens mais valiosos como conseqüência de certos pressupostos. Há, no entanto, uma última informação sobre a motivação que as ordens sociais amplamente consideradas exercem nos indivíduos que parece importante, concernente à circunstância de poder ser direta ou indireta. A ordem pode vincular certas vantagens à observância de determinadas condutas ou desvantagens frente à sua não observância e, conseqüentemente, gerar um desejo no agente em obter a vantagem ou medo de se submeter à desvantagem. Atuaria, desta forma, motivando indiretamente a conduta dos indivíduos. Ao contrário, se a ordem jurídica determina uma conduta que pareça vantajosa aos indivíduos, mesmo sem prometer benesses ou sem ameaçar com desvantagens os atos desobedientes, acreditando que simplesmente a idéia de uma norma em essência boa para a comunidade, estará valendo-se da técnica de motivação direta. Esse tipo de motivação não é utilizada pelo Direito, na medida em que não se concebe uma norma cujo teor seja tão diretamente atraente aos indivíduos, de maneira que a sua simples existência seja suficiente para gerar obediência inconteste à prescrição. É exatamente pelo fato do Direito utilizar a técnica de motivação indireta, valendo-se das sanções punitivas de maneira a organizar institucionalmente o uso da força para condicionar os comportamentos dos indivíduos — incentivando o que é adequado e desestimulando aquilo que não é —, o que gera a classificação das normas por Kelsen em primárias ou secundárias. As primárias seriam as verdadeiras normas por conterem a sanção, enquanto as secundárias seriam meros reflexos das primeiras, tendo em vista somente prescreverem o comportamento adequado, sem preverem a punição para o caso de
(^4) “É bem provável [...] que as motivações da conduta lícita não sejam, de modo algum, apenas o medo das sanções legais ou mesmo a crença na força de obrigatoriedade das regras jurídicas. Quando as idéias morais e religiosas de um indivíduo são paralelas à ordem jurídica à qual ele está sujeito, seu comportamento em conformidade com a lei é, muitas vezes, devido a essa idéias morais e religiosas” (Kelsen, 2005, p. 34).
descumprimento. Tal afirmação leva à conclusão de que existem normas no conjunto normativo desprovidas de sanção e também à indagação relativa a isso ser possível numa estrutura flagrantemente coercitiva. Mas Kelsen apresenta uma solução: todas as normas secundárias são fragmentos de norma que dependem de uma ligação com uma norma primária para serem identificadas^5. São, pois, incompletas. No que tange as nulidades, Kelsen se aproveita da construção austiniana que concebe as nulidades como sanções em sentido amplo. Ademais, como ordem social que imputa sanções, o Direito não só regula as ações humanas de modo positivo, prescrevendo condutas ao ligá-las às sanções, como também de forma negativa, na medida em que não liga determinada conduta a nenhuma sanção, e, assim, não proíbe essa conduta nem prescreve a oposta. Um comportamento que se enquadre na descrição anterior, isto é, não seja juridicamente proibido, é, nesse sentido negativo posto pelo autor, uma conduta juridicamente permitida. A liberdade dessa pessoa que vê sua conduta permitida pelo Direito, exatamente porque ele não a proíbe, é garantida pela ordem jurídica apenas no sentido em que esta prescreve às demais pessoas o respeito dessa liberdade e proíbe a ingerência nessa esfera particular. Só que nem a toda conduta permitida, no sentido negativo de não ser proibida, corresponde uma obrigação correlativa de outra pessoa. Logo, conflitos podem acontecer:
(...) pode, por exemplo, não ser proibido que o proprietário de uma casa faça uma abertura numa parece no limite da sua propriedade e aí instale um ventilador. Mas também pode, ao mesmo tempo, não ser proibido que o proprietário do terreno adjacente construa neste uma casa de que uma das paredes fique colada à parede do vizinho provida da abertura de ventilação, por forma a malograr-se o uso do ventilador. Nesse caso é permitido a um impedir o que ao outro é permitido fazer” (Kelsen, 2003, p. 47). Em assim sendo, como as ordens jurídicas não têm meios de limitar a totalidade da conduta dos indivíduos, restará, mesmo nos regimes mais totalitários, um mínimo de liberdade, decorrente da limitação operacional e técnica do próprio direito. Nesse sentido, Kelsen diz que:
A ordem jurídica pode limitar mais ou menos a liberdade do indivíduo enquanto lhe dirige prescrições mais ou menos numerosas. Fica sempre garantido, porém, um mínimo de liberdade, isto é, de ausência de vinculação jurídica, uma esfera de existência humana na qual não penetra qualquer comando ou proibição (Kelsen, 2003, p. 48).
(^5) “Quando uma norma prescreve uma determinada conduta e uma segunda norma estatui uma sanção para a hipótese da não-observância da primeira, estas duas normas estão essencialmente interligadas” (Kelsen, 2003, p. 60-61).
simples ameaça, ou seja, a afirmação de que será executado um mal, enquanto no outro caso, a conexão é vista no sentido de que deve ser executado um mal. Tudo isso ainda não responde uma outra questão, que parece decisiva: por que num caso considera-se o sentido subjetivo do ato como sendo também um sentido objetivo e no outro não? Dito de outra forma: por que apenas um dos atos produz objetivamente uma norma válida que vincula os agentes e qual é o fundamento desta norma que se considera como o sentido objetivo de um dos atos? Em verdade a solução pode ser encontrada na fundamentação do direito. Uma norma será considerada válida se possuir um fundamento jurídico, se for juridicamente obrigatória. Mas obrigatória sob dois pontos de vista: tanto para os sujeitos que devem observá-la, quanto para os órgãos jurisdicionais que devem aplicá-la coativamente toda vez que for desobedecida. Conforme Sgarbi:
Portanto, conforme a teoria kelseniana, dizer que uma norma é válida é o mesmo que dizer que existe no conjunto normativo e que, por existir, deve ser obedecida e aplicada juridicamente (Sgarbi, 2006, p.41). A questão passa a ser, então, qual será o critério utilizado para determinar a validade das normas. Kelsen afirma a possibilidade de existência de dois tipos de derivações, segundo a natureza do fundamento de validade, a saber, a estática e a dinâmica. A derivação num sistema de normas estático dá-se pela via de uma operação lógica, na qual o pertencimento é aferido através de sucessivas deduções de preceitos gerais em preceitos particulares, levando-se em conta o conteúdo encerrado nos dispositivos. Caracteriza-se pelo fato das normas derivadas já se encontrarem implícitas na norma de origem, havendo necessidade, tão somente, de inferi-las. Um exemplo de conjunto normativo organizado nesses termos é o moral, pois a partir de uma norma cujo conteúdo considera-se evidente, obtêm-se várias outras normas que dela sejam deduções. Assim, segundo exemplo do autor “as normas: não devemos mentir, não devemos fraudar, devemos respeitar os compromissos tomados, não devemos prestar falsos testemunhos, podem ser deduzidas de uma norma que prescreve a veracidade” (Kelsen, 2003, p. 217-218); exatamente utilizando o mesmo processo é possível deduzir da norma de que devemos amar o próximo, várias outras mais particulares, como as normas: não se deve fazer mal ao próximo, não se deve causar-lhe a morte, deve-se ajudá-lo quando ele precise de ajuda, etc.
Num sistema regido pelo princípio estático a norma pressuposta como fundamental fornece não só o fundamento de validade, como também o conteúdo de validade das normas dela deduzidas. Quando o sistema baseia-se numa norma fundamental incapaz de conferir o conteúdo de validade das normas, mas tão somente o fundamento de validade, estar-se-á frente a um sistema de derivação operado pelo princípio dinâmico. Neste a relação entre as normas não significa nada mais do que sucessivas autorizações, através das quais normas são criadas por outras normas que conferem o poder da produção normativa a alguém, de forma que a validade é aferida a partir do respeito a essa regra, ou em outras palavras, uma norma é válida se foi criada pela autoridade competente, observados os requisitos para o exercício dessa competência. Percebe-se que não tem cabimento, no sistema dinâmico, apoiar a validade de uma norma no fato de ela possuir determinado conteúdo, vez que “A norma fundamental apenas fornece o fundamento de validade e já não também o conteúdo das normas que formam esse sistema” (Kelsen, 2003, p. 219-220). Assim posto, o autor considera que os sistemas de normas que se apresentam como ordens jurídicas têm, essencialmente, um caráter dinâmico: uma norma jurídica não vale porque possui determinado conteúdo, mas porque é criada de uma forma específica, determinada pela norma fundamental pressuposta. Em última análise uma norma jurídica pode ter qualquer conteúdo, desde que tenha sido produzida em conformidade com as diretrizes postas pela norma fundamental. Vê-se, assim, que o ordenamento jurídico precisará, então, além das usuais normas de conduta, de normas de competência, aptas a determinar como as outras normas serão produzidas. Conseqüência direta das afirmações anteriores é a consideração de que no mundo das normas jurídicas uma norma só pode receber validade de outra norma, de modo que a ordem jurídica sempre se apresenta estruturada em normas superiores fundantes — que regulam a criação das normas inferiores — e normas inferiores fundadas — aquelas que tiveram a criação regulada por uma norma superior. Essa relação de validade gera um escalonamento hierárquico dentro do sistema jurídico, uma vez que as normas não estão lado a lado, ao contrário, apresentam, ademais da comum relação de precedência/posteridade, posicionamento diferenciado em graus inferiores e superiores. Conforme o autor:
As normas de uma ordem jurídica cujo fundamento de validade comum é esta norma fundamental não são [...] um complexo de normas válidas colocadas umas
depender de outra que lhe dê suporte. E esta independência é característica que decorre do próprio sentido que ela possui: não é um documento factual, mas sim algo pressuposto. Kelsen explica melhor:
A norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é, em face desta, uma norma superior. Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta , visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. [...] Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental. [...] Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum (Kelsen, 2003, p. 217). Ao se valer, pois, dessa pressuposição — de que há uma norma básica, através da qual todas as outras podem ser identificadas numa seqüência de atribuição de validade — Kelsen demonstra se submeter à influência de Kant no que diz respeito a aceitação de que em todo ramo do conhecimento haverá de se reconhecer alguma pressuposição^7. Para finalizar, diga-se que o intuito do presente item, em face da complexidade que o tema encerra, foi modesto: procurou-se, tão somente, fornecer um esboço da teoria pura capaz de sustentar as afirmações que mais adiante serão feitas sobre as sanções na doutrina kelseniana. Essa abordagem, ainda que concisa, possibilitou o alcance das primeiras conclusões sobre a importância do conceito para o autor; expostas logo em seguida.
Ante todo o exposto, pode-se concluir que para Kelsen a sanção vem ocupando lugar de destaque desde as suas primeiras publicações, por ser o conceito primário de direito em sua teoria e, conseqüentemente, conectar muitos dos demais conceitos jurídicos básicos. Ademais, o autor revoluciona o pensamento jurídico tradicional ao afirmar a sanção como a atribuição de uma
(^7) “Segundo Kant, o trabalho de se encontrar os elementos universais do conhecimento não se dá sem alguma pressuposição, através da qual todo o resto obtém sentido” (Sgarbi, 2006, p. 48).
conseqüência ante a prática de um ilícito^8 , decorrente de um juízo de dever ser formulado em todas as normas jurídicas em respeito ao princípio da imputação. Este, como visto, desmistifica a idéia recorrente de que o ilícito é um comportamento contrário em si mesmo e a sanção é somente seu efeito^9. Em verdade, a conduta só é taxada de ilícita em virtude da sanção que lhe é imputada. Tal consideração fez com que Kelsen invertesse a visão das normas até então utilizada pelos positivistas, notadamente Austin, ao chamar de primárias (ou verdadeiras normas) as normas sancionadoras (tratadas na tradição positivista por secundárias) e de secundárias (espectros ou reflexos das primárias) aquelas que prescrevem ou proíbem determinado comportamento e que na tradição vinham sendo chamadas de primárias. Tal virada de perspectiva, por si só, justificaria um estudo das sanções em Kelsen. Some-se a circunstância do autor ter se valido das sanções para identificar e distinguir o direito dos outros sistemas normativos e, exatamente por esta razão, ter estabelecido uma relação muito estreita entre direito e o exercício da força e ter recebido, pela adoção de referida postura, inúmeras críticas acusando-o de reducionista (pois o direito seria algo mais nobre e elevado do que ameaças e exercício do poder), para a investigação do conceito no autor tornar-se imperiosa. A fim de compreender, para além da construção e definição do conceito de sanção, a técnica de descrição que Kelsen propõe das normas de uma ordem jurídica relacionada com os eventos que dela decorrem, necessita-se conhecer o instrumental oferecido pela teoria pura para proceder-se à tarefa, e este passa, sem dúvida, pela consideração de que as normas são ferramentas de motivação indireta das condutas e só o são, por contarem com o respaldo das sanções. A estratégia que será utilizada para realizar tais objetivos consiste em, num primeiro momento, determinar o conceito de sanção — abordando quais são as propriedades necessárias e suficientes para estruturá-lo de acordo com a doutrina kelseniana —; em seguida, analisar-se-á a relação existente entre as sanções e os outros conceitos jurídicos fundamentais, explicitando porque as sanções podem ser tidas no autor como o conceito primário de direito e quais as conseqüências da adoção de tal perspectiva; para, ao final, expor e avaliar as principais críticas decorrentes da definição do direito a partir da sanção e da
(^8) “Certa conduta humana é um delito porque a ordem jurídica vincula a essa conduta como condição, como conseqüência, uma sanção” (Kelsen, 2005, p. 73). 9 “O pressuposto costumeiro, segundo o qual certo tipo de conduta humana acarreta uma sanção por se tratar de um delito, não é correto. É um delito porque acarreta uma sanção. Não existe delito em si” (Kelsen, 2005, p. 73).