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A forma de expressão da fé de Abraão é diversa do modo como um cristão dos dias de hoje exprime a sua, não só porque lhe falta Jesus Cristo, mas também porque o ...
Tipologia: Slides
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A principal intuição de Ratzinger que iremos abordar neste capítulo se encaminha, por assim dizer, em demonstrar que a fé cristã não é um sistema, uma ideia, uma entrega cega ao irracional, mas é um ir ao encontro do logos, do sentido , da própria verdade, por isso a possibilidade de uma verdadeira existência humana. Portanto, é necessário apresentar a fé não como uma construção intelectual fechada, mas como um caminho, que tem em Abraão o começo, onde um Deus-Pessoa atua translocalmente e de modo transtemporal. Um caminho cuja referência está naquele que pode dispor do futuro, um firmar- se, um colocar-se com confiança no chão da Palavra de Deus. Caminho que mostra harmonia entre Deus e o mundo, entre a razão e o mistério, revelando o cristianismo como síntese entre fé e razão. Por isso nosso percurso discutirá o sentido do crer, isto é, buscará apresentar uma definição da essência da fé, que a demonstre como uma possibilidade do existir humano em relação àquela que se apresenta de modo dominante nos dias atuais, uma existência voltada para o factível, para o saber e o fazer. A seguir, desenvolverá o pensamento de Ratzinger sobre a compreensão da fé como atitude da existência humana circunscrita pela palavra confiança , enquanto decisão fundamental que norteia toda a vida e atinge as camadas mais profundas do ser humano. Não menos importante, corrobora a estes argumentos, a reflexão sobre a eclesialidade da fé, uma vez que “não há fé sem a Igreja”. Por fim, é necessário perquirir o argumento principal do autor: a razoabilidade da fé cristã, demonstrando que a fé implica a pessoa toda e é credível porque concilia inteligibilidade e sentimento, é relacional e voltada para a verdade, isto é, “o ato de fé cristã inclui essencialmente a convicção de que o fundamento que lhe dá sentido, o logos, sobre o qual nos firmamos, é justamente, como sentido, também a verdade”.^1 (^1) RATZINGER, J. Introdução ao cristianismo, p. 57.
4.1 – Em busca de uma definição da essência da fé O pensamento de Ratzinger apresentado até aqui nos remete à pergunta formal: o que é a fé e onde ela pode encontrar o seu ponto de partida e exercer uma função no mundo do pensamento moderno? Função esta, que tomamos como ideia norteadora de nosso trabalho, a saber: a fé cristã enquanto possibilidade de uma verdadeira existência para o ser humano. Não se trata, primeiramente, de abordar o conteúdo da fé, cuja forma concreta se encontra no assim chamado Símbolo Apostólico da Fé, mas entender o que significa a atitude de fé do ser humano para compreendê-la como possibilidade de existência verdadeira, uma vez que a fé, de fato, corresponde à natureza do homem.^2 A intenção deste nosso percurso é esclarecer o que significa “crer” e o quanto esse problema só pode ser discutido com as marcas e categorias do tempo em que é formulado: “o que a afirmação ‘creio’ quer dizer e o que ela significa na boca de um cristão nos dias de hoje , nas condições da nossa existência atual e de nosso posicionamento presente diante da realidade como um todo?”.^3 Que atitude é esta, portanto, que toma o cristão, a qual manifesta que a existência cristã se exprime em primeiro lugar e ante de tudo no verbo “creio”? Se é assim que se caracteriza a vida cristã, “o âmago do cristianismo consiste no fato de ser uma ‘fé’”.^4 Não é algo evidente definir o cristianismo, nem mesmo demonstrar que a existência cristã encontra a sua expressão central na palavra “credo”, pois antes de tratarmos do cristianismo enquanto religião é necessário compreendemos que se trata de uma atitude de fé; uma vez que religião e fé não são realidades coincidentes.^5 Embora o ato de fé tenha suas condições próprias: o homem só é capaz de ver o que Deus não é, de modo que Deus é e sempre será para o ser humano, essencialmente, o invisível, aquele que se encontra fora: (^2) Id., Fé, Verdade e Tolerância, p. 128. (^3) Id., Introdução ao cristianismo, p. 37. (^4) Ibid., p. 38. (^5) A interpretação de que qualquer religião pode ser chamada de fé se dá em sentido muito restrito. O Antigo Testamento, por exemplo, como um todo, não se entendia como uma “fé”, mas como uma “Lei”, uma ordem de vida, onde o ato de fé adquire importância cada vez maior. Ratzinger vê como exemplo significativo nesta distinção a religiosidade romana, na qual se entendia por “religio” a observância de determinadas formas e práxis, sem a necessidade de um ato de fé em elementos sobrenaturais. O elemento decisivo é antes a observância de um sistemas de ritos do que a adesão pessoal.
A oração hebraica, ao ser transportada para o grego, isto é, na tradução grega do Antigo Testamento (Sptuaginta), assumiu uma forma conceitualmente diferente: “Se não crerdes, não entendereis”.^9 Não obstante, a essência ficou resguardada. O conteúdo da fé descrito no texto hebraico “firmar-se” tem relação com o ato de entender. Mesmo assim difere totalmente do plano em que se situam o fazer e a factibilidade e de uma tentativa de similá-la ao sentido do conhecimento da factibilidade. A fé não pode ser encontrada nessa estrutura de conhecimento, como esclarece Ratzinger: A dúvida insistente do talvez, com que a fé questiona o ser humano em toda parte e em todo lugar, não remete a uma insegurança dentro do conhecimento factível, antes questiona o caráter absoluto desse âmbito, relativizando-o com um dos níveis da existência humana e do ser em geral que só pode ter o caráter de penúltimo.^10 O confronto do binômio pode ser melhor compreendido a partir desta distinção dos dois níveis da existência. Fica claro que existem duas formas fundamentais do comportamento humano em relação à realidade e que uma não pode ser reduzida ou substituída à outra. Ambas se localizam em planos diferentes.^11 A fé não é uma forma imperfeita de conhecimento ou uma opinião que depois deva ser trocada por um conhecimento factível, não um pré- conhecimento pronto a substituição quando diante de algo mais completo, mas trata-se de uma forma essencialmente diferente, autônomo e próprio, que não deve ser reduzido nem derivado de algum outro conhecimento. Ratzinger insiste nesta distinção para evitar uma redução, pois, uma vez que a fé não faz parte do âmbito da factibilidade e do feito, ela situa noutro âmbito, naquele das decisões fundamentais que o ser humano precisa tomar, dos planos humanos que não se cumprirão”. (^9) Ratzinger tem presente que nesta tradução com mudança conceitual se manifesta, de certo modo, o processo de helenização que permite a pergunta sobre o sentido bíblico original, uma vez que a fé, nesta versão, teria sido intelectualizada. Se na versão hebraica a fé exprime uma atitude de fincar-se sobre o chão da Palavra confiável de Deus, a grega vincula a fé com a faculdade de entendimento e da razão. (^10) Ibid. , p. 53. (^11) Ratzinger recorda, para iluminar a questão abordada, a confrontação feita por Martin Heidegger da dualidade do pensamento calculador e do pensamento reflexivo, as quais são duas maneiras legítimas e necessárias que não podem simplesmente fundir-se ou reduzir-se uma à outra, mas ambas devem existir: o pensamento calculador reduzido à factibilidade e o pensamento reflexivo voltado para o sentido das coisas. Em sentido proporcional, o entender da fé, não pode ser reduzido ao factível: concentrado no factível o ser humano corre o risco de esquecer-se da reflexão sobre si mesmo e sobre o sentido de seu ser.
decisões que só podem ser tomadas de uma única forma, isto é, pela fé. Forma que não se associa a nenhuma outra, é única e inevitável: Parece-me imprescindível ver isso com toda clareza: todo ser humano precisa de alguma forma tomar posição diante desse âmbito das decisões fundamentais; e para o ser humano não existe outra maneira de fazê-lo que não seja a fé. Existe uma área que ninguém pode contornar totalmente. Todo ser humano precisa “crer” de alguma maneira.^12 Após estas considerações, é necessário inquirir no pensamento ratzingeriano o significado desse ato humano existencial, perguntando o que é ter fé. Em relação ao já apresentado, pode-se resumir, conforme a orientação do autor, o significado da fé:
com Deus e a com os semelhantes são inseparáveis entre si. Logo, o diálogo do ser humano do ser humano com Deus e o diálogo dos homens entre si postulam e condicionam-se mutuamente. Fica evidente, então, que a fé não é o resultado de uma reflexão solitária em que o eu chega a uma conclusão qualquer, mas que “a fé é o resultado de um diálogo, que pressupõe a disposição de ouvir, de receber e de responder, que remete o ser humano, pela relação do eu com o tu , ao nós daqueles que participam dessa mesma fé”.^17 Daí decorre a certeza cristã de que “a salvação não vem da grandeza do homem, mas da misericórdia condescendente de Deus”^18 , noutras palavras, “a fé faz com que o homem reconheça a sua incapacidade para alcançar por si só a salvação e, portanto, faz com que ele perceba o caminho, ou seja, o meio de salvação que vem de Deus”.^19 4.3 - Crença e existência: a fé como atitude humana fundamental Já apontamos teoricamente o significado da fé, segundo Ratzinger, e a necessidade de um salto em demanda do infinito. Seguiremos nesta mesma linha de pensamento, mas direcionando a abordagem conceitual para o âmbito bíblico, para colher as experiências que melhor possam descrever a fé no sentido cristão, não como um sistema misterioso de conhecimentos, mas uma atitude da existência, uma decisão fundamental sobre a direção da existência, circunscrita com a palavra “confiança”. A pergunta norteadora que exige uma resposta mais clara sobre a essência própria da fé é: que direção existencial escolhe o ser humano que se decide a afinar o instrumento de sua vida pelo tom fundamental da “fé”? É certo que esta questão exige adentrar em camadas mais profundas do ser humano, as quais não são visíveis, mas que penetram e caracterizam o todo sem que em alguma parte possa ser medido. É necessário entrar no movimento do qual as grandes decisões fundamentais da vida procedem, seja de um grande amor ou de uma grande renúncia. Por isso que se torna impossível expor abstratamente o que significa a fé sem fazê-la compreensível em pessoas que viveram essa atitude consequentemente até o fim. É partindo de grandes figuras (^17) Ibid. , p. 67. (^18) RATZINGER, J., Dogma e Anúncio , São Paulo: Loyola, 2007, p. 273. (^19) Id., O Novo Povo de Deus, São Paulo: Paulinas, 1974, p. 18.
da História da Salvação, da vida da Igreja, que podemos ilustrar que espécie de decisão é a fé.^20 Para uma melhor resposta para a inquietante pergunta pela direção proporcionada pela fé, Ratzinger se defronta com a figura exemplar da fé, Abraão.^21 Ele se depara com a vida de Abraão não apenas porque se trata da primeira etapa na história da fé, mas porque proporciona o seu critério permanente. A forma de expressão da fé de Abraão é diversa do modo como um cristão dos dias de hoje exprime a sua, não só porque lhe falta Jesus Cristo, mas também porque o monoteísmo não era ainda claramente caracterizado. Mas o importante está naquilo que consiste propriamente a fé de Abraão, isto é, na sua forma. Podemos nos perguntar: Que exigência da fé fez de Abraão uma das maiores personalidades bíblicas? Ratzinger responde demonstrando a peculiaridade e originalidade da resposta de Abraão: Ele abandona o presente por causa do futuro. Ele abandona o seguro, o visível, o calculável pelo incerto, confiando numa palavra. Ele encontrou a Deus e em suas mãos coloca o futuro; confiando em Deus, ousa buscar um novo futuro que, antes de mais nada, é tenebroso. A palavra que ele ouviu é mais real do que o calculável que ele pode tomar nas mãos. Confia naquilo que ainda não pode ver e assim se torna capaz de partir para o que é novo, capaz de deixar de lado sua segurança. A importância da realidade e até mesmo o conceito da realidade se muda. O futuro adquire primazia sobre o presente; a palavra ouvida, sobre a paupável.^22 A atitude de Abraão caracteriza a direção da fé. Demonstra a primazia de Deus sobre o eu e as coisas visíveis, o rompimento com o calculável, a abertura a um novo horizonte, infinitamente mais amplo, que se abre e chega até o eterno, o criador. Trata-se de uma atitude que termina com a conformidade com o ambiente e se abre para o todo, que não se detém em nenhum limite, mas (^20) Ratzinger sinaliza para figuras (Francisco de Assis, Inácio de Loyola, Teresa d'Ávila, Vicente de Paulo, e tantos quantos se lançaram na aventura da fé) demonstrando que a fé, em última análise, é um amor que se apodera do homem e lhe mostra um caminho que ele deve andar mesmo que tal caminho seja penoso. Caminho que, para um cidadão comum, se afigura sem sentido, mas àquele que deixou-se envolver por ela aparece como o único caminho, o qual não trocaria por comodidade nenhuma (cf. Fé e futuro , p. 24). Síntese simples, mas bastante descritiva daquele que se deixa enamorar pelo mistério. (^21) Vale lembrar a declaração de Ratzinger naquilo que tange às grandes figuras e sua experiência de fé: “No cristianismo, o decisivo não são as grandes personalidades religiosas: o que conta é a obediência, a humildade em face da palavra de Deus”. RATZINGER, J. Dogma e Anúncio , p. 273. (^22) Id., Fé e Futuro , p. 27.
céu, antes ela se realiza no embate com a fé dos outros, na seleção e reinterpretação combativa que é simultaneamente referência e transformação. Mas é preciso perguntar de novo sobre a constituição da fé de Abraão, a qual, segundo a Bíblia, representa a forma fundamental de toda a fé. Certamente que essa fé se relaciona essencialmente com o futuro, ela é promessa. Significa a superioridade do futuro sobre o presente, a certeza de que é Deus quem concede ao ser humano o futuro. Por isso, a fé do patriarca deve ser compreendida como a passagem do mundo calculável e do cotidiano para o contato com o eterno. Não apenas um interesse pelo eterno, mas por Aquele que é eterno. A fé coloca o ser humano num outro patamar em relação ao futuro. Um futuro não construído por suas mãos, mas na responsabilidade da resposta generosa ao projeto de Deus, prometido por Ele. Não se trata de uma inatividade, mas encaminha, introduz numa responsabilidade sobre o futuro: a responsabilidade da esperança, como afirma a Primeira Carta de Pedro (1Pd 3,15). Mas para tal atitude é necessário ousar crer que o homem está relacionado para o Eterno. A paternidade de Abraão na fé desperta a consciência de uma lei estrutural da fé bíblica, a qual pode exprimir-se na fórmula bíblica: Deus vem aos homens só através do homem. A fé não subsiste para si, mas para o outro.^28 Isso se dá de tal modo que é correto dizer que, como Deus vem aos homens só através do homem, assim os homens se encontram através de Deus. “Só no inter- relacionamento é que os homens chegam a Deus e justamente a busca de Deus os relaciona entre si”.^29 Indo um pouco além, Ratzinger se pergunta também em que direção para a existência resulta da decisão da fé segundo o Novo Testamento.^30 Perquire o pensamento paulino, no texto decisivo em que Paulo pormenorizadamente anuncia o direito cristão à verdadeira continuação da linha de Abraão (Rm 4), e afirma que a conclusão do apóstolo está na mesma medida do já dito: Abraão creu contra toda aparência que Deus iria lhe dar, através de sua mulher Sara, o herdeiro que o poderia fazer pai de muitos povos. Noutras palavras, Paulo (^28) Ibid., p. 336. Ratzinger ainda salienta, referindo-se à fé cristã: “Ela também mantém intercâmbio com o outro. Mais: a fé cristã provém de outro que ela acolhe em si e sempre carrega consigo. O homem se origina do que o precede, tornando-se, no entanto, essencialmente distinto daquilo e daquele que o precede”. (^29) Id., Fé e Futuro, p. 29. (^30) Ibid. , p. 31.
constata que o conteúdo da fé de Abraão era a esperança da posteridade e a esperança da terra, isto é, a esperança num grande futuro. Assim como de um ventre estéril adviria o herdeiro, o portador do futuro, portanto, como que da morte a vida. Aqui está o ponto em que se torna possível a transformação para o que é cristão. A fé cristã é a confiança no Deus que ressuscitou Jesus dos mortos e, portanto, é sempre fé no Deus que através da morte dá vida.^31 Assim, a fé em Cristo Ressuscitado é a fé de Abraão: promessa de um futuro, de uma terra, orientação para lá. No entanto, trata-se de um futuro incomparavelmente maior, pois transcende o limite da morte que é a própria antítese para a relação do ser humano com o futuro, uma vez que “o homem é constituído de tal modo que não pode viver sem futuro. (…) Sem futuro também o presente se torna insuportável para ele. (…) Nada é mais difícil ao homem suportar do que ausência de futuro”.^32 Todos os elementos fundamentais dessa fé permanecem e recebem uma nova fisionomia a partir do novo conceito de futuro dado pela Ressurreição. No entanto, também agora a fé significa sair do visível e calculável para algo maior, significa peregrinar e, de tal modo, uma inversão dos valores, uma nova fixação dos valores e dos critérios da existência a partir do critério do futuro, ou seja, o que corresponde ao homem não é o momentaneamente útil, mas aquilo que o orienta para a eternidade. Trata-se de compreender agora que “o homem Jesus que ao mesmo tempo é Deus é para nós a garantia infinita de que o ser-homem e o ser-Deus podem existir e viver eternamente um no outro”.^33 A eternidade se torna o critério para o viver. Assim, a fé no Deus de Jesus Cristo significa fé no Deus que, atrás do muro da morte, ainda mostra um futuro e até mais intenso. Em sua estrutura, a fé no Deus que ressuscitou Jesus dos mortos é de fato a exata continuação da fé de Abraão. (^31) As confissões primitivas eram, essencial e simplesmente, uma confissão na ressurreição de Jesus dentre os mortos, como a de 1Cor 15,3-8, mas também a fórmula cristológica simples “Jesus é o Cristo” (1Cor 12,3) na realidade é uma confissão da Ressurreição, que é abreviada e ao mesmo tempo aberta para o seu sentido, pois que Jesus é o Cristo, mostra-se na Ressurreição, é ela exatamente que o constitui nesse múnus (cf. Rm 1,4). (^32) Ibid. , p. 33. Este argumento de Ratzinger pode ser considerado como um contra-senso que mostra a constituição própria do homem. O suicídio para fugir da morte ilustra esse paradoxo da existência humana. Ela está inteiramente relacionada com o futuro e no entanto, no final, o futuro lhe escapa, pois seu fim se chama: morte. Refere-se à alegria de existir e o horror do fim para aqueles que já não creem num futuro posterior. (^33) Id., Dogma e Anúncio, p. 354.
novo o fato de que a fé do cristão abrange a vida inteira, de que o seu lugar é no meio da história e do tempo, ultrapassando a sua importância o âmbito meramente subjetivo”.^36 Para Ratzinger, “o futuro se forma onde as pessoas se unem em torno de convicções que dão forma à vida. E o futuro bom cresce onde essas convicções têm a sua origem na verdade para dentro dela”.^37 Assim, a fé deve tomar a forma experiencial da vida, acompanhada da alegria de pôr-se a caminho, para participar do mistério do fermento que penetra e renova o todo a partir de seu interior. A importância desta abordagem parte de uma leitura da conjuntura histórico-sócio-cultural, pois dificilmente terá havido outro momento na história em que a questão do conteúdo e do sentido autêntico da fé cristã estivesse envolta por uma névoa de incertezas tão densa como nos dias de hoje. A fé cristã, hoje, corre grande risco de ser transformada num mero palavreado que tem dificuldade de esconder um vazio espiritual completo, de um assombro diante da descrença em nossos dias ou o assombro que acompanha empreendimento de comunicá-la, por isso, a importância de uma compreensão da fé como possibilidade de uma verdadeira existência humana no mundo de hoje, a compreensão de que a palavra “crer” significa uma decisão da existência, isto é, viver para o futuro que Deus nos outorga para além do limite da morte. Voltar à existência na direção do eterno, dando importância para a vida, para seus critérios, suas ordens e, justamente nisso, sua liberdade. 4.4 - A razão da fé A partir do prólogo de João está no centro de nossa fé cristã em Deus o conceito do Logos, que significa razão, sentido, mas também palavra – um sentido portanto, que é palavra, que é relação, que é criador. O Deus que é Logos nos afiança a racionalidade do mundo, a racionalidade do nosso ser, a adequação da razão a Deus e a adequação de Deus à razão, mesmo que a sua razão ultrapasse infinitamente a nossa e nos pareça tantas vezes como escuridão.^38 Diante da crise da fé, perante as caricaturas e as formas raquíticas com que é apresentada, ante as manifestações equivocadas ou distorcidas da fé, isto é, de uma fé limitada e comunicada por vias apenas intelectuais por uma “Igreja (^36) RATZINGER, J. Introdução ao cristianismo, p. 12. (^37) Ibid. , p. 17. (^38) Ibid., p. 21.
de pagãos que ainda insiste em chamar-se de cristãos”^39 , é imprescindível colocar algumas interrogações: qual, no fundo, a forma essencial da fé? De que modo se deve configurar uma fé capaz de responder aos sinais dos tempos e assim indicar, nesta hora, ao ser humano o caminho da salvação? Como demonstrar que “a fé não cresce a partir do ressentimento e da rejeição da racionalidade, mas sim da sua fundamental afirmação e da sua inscrição numa razoabilidade ainda maior”?^40 Ratzinger menciona três linhas de reflexão para demonstrar a razão da fé e em que medida fé e razão se relacionam: primeiramente é necessário entender que crer é razoável, depois que a verdadeira unidade do crer se dá na reciprocidade da inteligência e do sentimento e, por fim, que na fé cristã, há uma dimensão pessoal que é fundamental para compreender a estrutura do crer. O ponto de partida não poderia ser outro: saber que o mundo vem da razão, e essa razão é pessoa, é amor e que é isso o que a fé bíblica diz a respeito de Deus. A razão pode e deve falar de Deus, do contrário ela se mutila a si mesma. 4.4.1 - Crer é razoável A fé cristã reafirma que existe um Absoluto que se comunica e com quem também nós podemos comunicar-nos. Esse é um dos grandes pomos de discórdia entre a própria fé cristã que acredita na sua comunicação com o Absoluto e, de outro lado, encontra-se o caráter politeísta do ateísmo moderno.^41 O caminho percorrido demonstra que a fé se realiza no ato de firmar-se com confiança num chão que sustenta, num futuro que é proporcionado por Aquele que é o fundamento de tudo, ato que concede o primado da existência ao invisível, ao Absoluto. Por isso, vale salientar que O que se realiza nesse ato não é uma entrega cega ao irracional. Pelo contrário, é um ir ao encontro do logos , da ratio , do sentido e, assim, da própria verdade, porque a razão sobre o qual o ser humano se firma no final das contas não pode nem deve ser outra que a própria verdade de que se franqueia.^42 (^39) Id., O Novo Povo de Deus, p. 297. Frase colhida do texto “Os neopagãos e a Igreja” para demonstrar o ambiente de paganismo que penetrou na Igreja e, de certo modo, deturpou o conceito de fé. A frase aqui é apenas elucidativa. (^40) Id., A Igreja e a Nova Europa, p. 68. (^41) Id., O Novo Povo de Deus , p. 340. (^42) Id., Introdução ao Cristianismo , p. 56.
vaivém de racionalismo e irracionalidade, a fé precisa deixar brilhar sua natureza essencialmente razoável. A fé, desde seu radical hebraico ' mn (“amen”), corresponde até certo ponto à palavra grega logos , incluindo em seu significado amplo as acepções de palavra, sentido, razão, verdade.^47 Por isso, não é justo pensar o mistério como inimigo da razão. Pelo contrário, urge a certeza de que “a fé salva a razão, até porque a abraça em toda a sua amplitude e profundidade e a protege contra as tentativas para reduzir àquilo que pode ser verificado experimentalmente”.^48 O obscurecimento da verdadeira dignidade da razão impossibilita de conhecer a verdade e de procurar o absoluto, por isso devem juntas, razão e fé, descobrir o caminho da verdade. Razão e fé ficam reciprocamente mais enriquecidas quando em relação. Na mesma medida que a fé enriquece a razão e a salva de estar apenas a serviço de fins utilitaristas, de prazer ou poder, é justo também pensar que a razão corrige a fé de seus fundamentalismos inoportunos, que a fé, privada da razão, corre o risco de deixar de ser uma proposta universal, podendo ser reduzida a um mito ou superstição. A cooperação é necessária, tal como a Encíclica Fides et Ratio recordou: “A fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade” (FR 1). Portanto, se crer é razoável, é necessário o respeito da recíproca autonomia e relação entre fé e razão. Com estas reflexões fica expresso a opção fundamental de Ratzinger acerca da razoabilidade da fé. É necessário passar do âmbito do conhecimento para o da vontade e do sentimento. 4.4.2 - Reciprocidade de inteligência, vontade e sentimento, na unidade do crer Crer envolve vontade e sentimento em reciprocidade com inteligência. Não pode ser apenas sentimento, mas assumindo-o, liberta-o de sua indeterminação. A fé não pertence ao indefinido, nem mesmo se trata de uma esfera estranha à inteligência. “A religião deve ser a força sustentadora da vida inteira e, sem dúvida, necessita certa inteligibilidade”.^49 (^47) Id., Introdução ao cristianismo , p. 57. (^48) Id., A Igreja e a Nova Europa, p. 73. (^49) Id., Fé, Verdade, Tolerância, p. 132.
Ratzinger busca no passado as raízes de um problema que assola ainda hoje a realidade da compreensão da fé. Diante da radical ameaça representada pelo iluminismo, da “religião dentro dos limites da simples razão”, F. Schleiermacher procurou salvar a religião, definindo-a como sentimento,^50 argumento que uma parcela da teologia do século XIX seguiu na busca de reconciliar religião e ciência. Tratava-se de buscar um novo espaço para a religião, na qual ela pudesse viver imune aos avanços dos conhecimentos da razão.^51 A intenção era de que a religião, reduzida a puro sentimento,^52 não tivesse obstáculos e, livremente pudesse exprimir-se no campo do sentimento, ficando assim garantida a sua legitimidade própria.^53 Esta tentativa de reconciliação promoveu a divisão do ser humano, na medida em que distancia razão de sentimento. Promoveu-se uma verdadeira cisão com a razão e, de certo modo, uma renúncia a ela, pois a própria religião a restringiu ao âmbito do instrumental, privando-a de alcançar a verdade do ser. Nesse âmbito, também a religião é prejudicada na busca da verdade sobre Deus. No entanto, se a religião não seguir o caminho do logos, permanecerá no mito, tal como na antiguidade: a derrocada interna da religião da antiguidade deve-se a essa impossibilidade de unir as duas tendências: razão e fé.^54 A fé cristã deve firmar-se numa opção pelo logos, contra todo e qualquer mito ou isolamente em si, por isso uma opção a favor da verdade. Busca-se salvar a fé reservando a ela a capacidade de agir como puro sentimento, mas na verdade “não se salva a fé amesquinhando-a. (…) Só quando se lhe reconhecem todas as suas potencialidades é que ela adquire significado. Então, não somos já nós que salvamos a fé; é a fé que nos salva”.^55 A posição da fé diante do mundo não está amparada nas definições de “opinião” e “puro sentimento”, mas na unidade das duas palavras, a grega e a (^50) Scheleiermacher, se referindo à religião, afirmou que “a sua essência não é pensamento nem ação, mas opinião e sentimento” e ainda: “A praxis é a arte, a especulação é a ciência, a religião é sensibilidade e ânsia do Infinito”. Frases recolhidas por Ratzinger da obra de Scheleiermacher , Über die Religion , Berlim, 1958, p. 29-30. Cf. RATZINGER, J. A Igreja e a Nova Europa, p. 73. (^51) Cf. RATZINGER, J., Fé, Verdade, Tolerância, p. 132. (^52) “Sentimento”, aqui, como setor particular da ação da religião no mundo da existência humana. (^53) Id., A Igreja e a Nova Europa, p. 74. (^54) Ver texto de Ratzinger sobre “O Deus da fé e o Deus dos filósofos”, In.: Introdução ao Cristianismo , pp. 103-112. É esclarecedor ao demonstrar que a religião que se recolhe ao ambiente puramente religioso, como queria Scheleiermacher, cairá inevitavelmente na ruína, em consequência da separação do âmbito da razão. (^55) Id., A Igreja e a Nova Europa, p. 75.
A filosofia da liberdade, que nasce da fé, tem como fórmula a liberdade do amor de Deus, que chama em Jesus Cristo e mostra incessantemente o caminho para a liberdade humana. Não é a negação da pessoa que gera a unidade com Deus, mas a relação de amor que faz com todos sejam um. O amor cria aquela unidade que é anelo mais profundo da existência humana: o encontro com o Tu: A fé se torna o encontro do tu que me sustenta e me dá a promessa de um amor indestrutível, apesar de toda a insatisfação e insatisfazibilidade última do encontro humano; na fé não apenas aspiramos à eternidade, ela nos é realmente concedida.^63 Essa peculiaridade da dimensão pessoal da fé cristã é fundamental, pois se Deus é pessoa significa que ele próprio pode manifestar-se e comunicar-se. Os elementos do caráter pessoal da proximidade, da invocabilidade, da acessabilidade se concretizam em Jesus Cristo. O Deus cristão tem um rosto, e revelou sua face em Jesus Cristo, por isso a fé cristã vive do fato de não apenas haver um sentido objetivo, mas de esse sentido me conhecer e amar, de eu poder me confiar a ele com a atitude da criança que se sabe acolhido com todas as suas perguntas no tu da mãe. Dessa maneira, a fé, a confiança e o amor são, em última análise, uma coisa só, e todos os conteúdos que a fé envolve são nada mais que concretizações daquela reviravolta que forma a base de tudo, ou seja, o “Creio em ti”, da descoberta de Deus na face do homem Jesus de Nazaré.^64 4.5 – A forma eclesial da fé Na exposição do significado da fé para Ratzinger um aspecto central, que se encontra no âmago do cristianismo, é a constatação da forma eclesial da fé, da verificação de que “o lugar da fé é dentro da Igreja”.^65 A Igreja possibilita a fé enquanto movimento da existência humana como um todo. A Igreja anuncia em todas as nações fazendo discípulos pelo batismo que é o começo desta nova existência pela fé.^66 (^63) RATZINGER, J. Introdução ao cristianismo , p. 59. (^64) Ibid., pp. 59-60. (^65) Ibid., p. 23. (^66) Fé e Igreja vinculam-se pela obediência ao Senhor: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; quem não crer será condenado” (Mc 16,15s). A missão da Igreja não reside apenas no anúncio, mas no acolhimento e no espaço da vivência de uma vida nova iniciada no batismo.
O Símbolo da Fé, forma original da doutrina cristã, é uma fórmula que nasceu do diálogo original: “Crês? – Creio!”. Esse diálogo remete ao “cremos” da Igreja. O Eu do “eu creio” encontra seu lugar devido na Igreja. “A fé procede da audição” (Rm 10,17), do anúncio da Igreja, portanto, não é fruto de uma reflexão, mas o resultado de um diálogo. A Palavra precede o pensamento; o diálogo suscita a adesão. A profissão de fé que brota deste anúncio é adesão e conversão, um redirecionamento do ser humano no sentido de dar à vida um novo rumo. Um direcionamento para Deus, mas também um virar-se um para o outro para realizar em comunidade a glorificação de Deus. Portanto, “a fé exige união, ela clama pelo que crê comigo, ela é essencialmente relacionada com a Igreja”.^67 A Igreja não é um mal necessário, ela faz parte de uma fé. E tal como a Igreja é mais do que uma institucionalização externa e uma organização de idéias, a fé também não pode ser uma idéia ou mística de auto-identificação: a fé cristã é aquela que nos dá a verdade como caminho. No entanto, A própria igreja como um todo tem em suas mãos a fé apenas como um “symbolon”, ou seja, como uma metade partida, que corresponde à verdade somente na medida em que indica para além de si mesma, isto é, para aquilo que é totalmente outro. É só pela fragmentação infinita do símbolo que a fé, como auto-superação contínua do ser humano, avança para o seu Deus.^68 Mas o que é a Igreja? Qual a sua finalidade? De onde provém e que relação estabelece com a fé?^69 Ratzinger, para demonstrar a forma eclesial da fé, parte da convicção de que Cristo tinha intenção de formar uma nova comunidade religiosa, um novo povo^70 , ou seja, compreende a origem da Igreja naquele que é chamado pela carta aos Hebreus de “Autor e plenificador da fé” (Hb 12,2).^71 (^67) Ibid., p. 72. (^68) Ibid., p. 72. (^69) São questões abundantemente tratadas por Ratzinger, o qual mostrou ao longo de sua produção teológica, uma forte preocupação eclesiológica. A bibliografia é abundante e não pretendemos esgotar o tema. (^70) Ratzinger, J. O novo povo de Deus , p. 77. (^71) Ao tratarmos da relação da fé e da Igreja não queremos abordá-las como poderiam ser tratadas a partir de questões práticas. Por exemplo: Qual é a responsabilidade do bispo na propagação da fé? Qual a missão do leigo? Para que existe o Papado? Etc. A compreensão da verdadeira relação entre ambas parte da origem e natureza da Igreja. É das questões fundamentais que devemos partir, segundo Ratzinger, para entender o dinamismo fé-Igreja e para repensar, quando oportuno, problemas singulares de ordem prática.