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4. O Rito Seráfico Penitente da Procissão das Cinzas, Notas de estudo de Riqueza

O soneto que descreve a procissão das cinzas de Pernambuco foi escrito ... e não sei se me adiantarei em dizer a mais rica de quantas ultramarinas o Reino.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Barros32
Barros32 🇧🇷

4.4

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4.
O Rito Seráfico Penitente da Procissão das Cinzas
A Procissão das Cinzas de Pernambuco
Um negro magro em sofolié justo,
De joias azorragues dois pendentes,
Bárbaro Peres, e outros penitentes,
De vermelho um mulato, mais robusto.
Com as asas seis anjinhos, sem mais custo,
Uns meninos fradinhos inocentes,
Dez ou doze brichotes mui agentes,
Vinte ou trinta canelas de ombro onusto.
Sem debita reverencia, seis andores,
Um pendão de algodão, tinto em tejuco,
Em parelha dez pares de menores;
Atrás um negro, um cego, um mameluco,
Três lotes de rapazes gritadores:
Eis a procissão de cinza em Pernambuco.
Gregório de Matos
O soneto que descreve a procissão das cinzas de Pernambuco foi escrito
provavelmente entre 1695 e 1696, tempo em que o poeta Gregório de Matos
(1633 ou 1636-1696), de volta do exílio de Angola, viveu uma vida de privações
na capitania de Pernambuco, vindo a falecer no Recife em 26 de novembro de
1696, no ano seguinte da constituição canônica da Ordem Terceira do Recife,
quando já estavam em curso as obras da capela. Embora crítico irreverente da
Igreja católica, no corpo da obra poética do Boca do inferno, há uma variante
marcadamente religiosa, de inspiração franciscana, que tematiza a culpa, o perdão
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O Rito Seráfico Penitente da Procissão das Cinzas

A Procissão das Cinzas de Pernambuco

Um negro magro em sofolié justo, De joias azorragues dois pendentes, Bárbaro Peres, e outros penitentes, De vermelho um mulato, mais robusto.

Com as asas seis anjinhos, sem mais custo, Uns meninos fradinhos inocentes, Dez ou doze brichotes mui agentes, Vinte ou trinta canelas de ombro onusto.

Sem debita reverencia, seis andores, Um pendão de algodão, tinto em tejuco, Em parelha dez pares de menores;

Atrás um negro, um cego, um mameluco, Três lotes de rapazes gritadores: Eis a procissão de cinza em Pernambuco.

Gregório de Matos

O soneto que descreve a procissão das cinzas de Pernambuco foi escrito provavelmente entre 1695 e 1696, tempo em que o poeta Gregório de Matos (1633 ou 1636-1696), de volta do exílio de Angola, viveu uma vida de privações na capitania de Pernambuco, vindo a falecer no Recife em 26 de novembro de 1696, no ano seguinte da constituição canônica da Ordem Terceira do Recife, quando já estavam em curso as obras da capela. Embora crítico irreverente da Igreja católica, no corpo da obra poética do Boca do inferno , há uma variante marcadamente religiosa, de inspiração franciscana, que tematiza a culpa, o perdão

e a efemeridade da vida. O poeta foi devoto de São Francisco de Assis e chegou a tomar o hábito seráfico na Ordem Terceira de Salvador.

A procissão das cinzas dos penitentes, tema do soneto, está inscrita no campo característico da religiosidade franciscana, voltada para a questão da salvação e da expiação dos pecados.^142 Entretanto, o soneto não tem a marca da poesia religiosa gregoriana, mas dos seus versos de circunstância, voltados para a realidade circundante, caracterizados pela ambiguidade e pelo tom irônico impiedoso de sua sátira social. Na “Procissão das Cinzas de Pernambuco”, Gregório de Matos assinala a pobreza dos andores e das figuras alegóricas do préstito, frequentado por “um cego”, “um mameluco”, “um negro magro”, “mulatos” e agentes estrangeiros, ou “brichotes”, figuras caricatas de inversão da ordem social vigente na colônia. Ainda que a sátira gregoriana seja impregnada de artifícios persuasivos da retórica barroca, sem compromisso realista, o poeta descreve um quadro social transgressor, identificado com as camadas mais inferiores da hierarquia social, em contraste com os valores vigentes nas sociedades ibéricas do Antigo Regime, transplantados para o ambiente colonial, nomeadamente os ideais de “qualidade” e de “pureza de sangue”, que fundamentavam a base social das Ordens Terceiras franciscanas.^143 O soneto realça o estranhamento do poeta mediante a quebra de um princípio hierárquico de um rito social realizado às avessas. A procissão dos penitentes dos irmãos franciscanos, tradicionalmente organizada com o zelo das precedências e com o aparato faustoso preparado pelas Ordens Terceiras franciscanas, compostas pelas elites locais, desfila em Pernambuco pobre e desqualificada socialmente, suscitando a verve satírica do poeta.

(^142) O poeta escreveu outros versos sobre a questão da salvação e da expiação dos pecados na quarta-feira de cinzas, notadamente o soneto: “No dia de Quarta-feira de Cinzas / Que és terra, homem, e em terra hás de tornar-te, / Te lembra hoje Deus por sua Igreja; / De pó te faz espelho, em que se veja / A vil matéria, de que quis formar-te. / Lembra-te Deus, que és pó para humilhar- te, / E como o teu baixel sempre fraqueja / Nos mares da vaidade, onde peleja, / Te põe à vista a terra, onde salvar-te. / Alerta, alerta, pois, que o vento berra. / Se assopra a vaidade e incha o pano, / Na proa a terra tens, amaina e ferra. / Todo o lenho mortal, baixel humano, / Se busca a salvação, tome hoje terra, / Que a terra de hoje é porto soberano”. Apud WISNICK, José Miguel. Poemas escolhidos de Gregório de Matos 143. São Paulo: Editora Cultrix, 1975. p. 309. João Adolfo Hansen, em sua obra clássica, A sátira e o engenho , acrescenta que o termo “mulato” ocorre na obra de Gregório de Matos como “uma persona satírica” referida a um “campo institucional”. HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho. Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 133.

consolidação da ordem e da promoção social dos seus congregados “homens de negócio” da praça.

O lustre e a grandeza do ato público soteropolitano

O cortejo das cinzas que Gregório de Matos satirizou em seu soneto, possivelmente testemunhado por ele a desfilar pelas ladeiras da vila duartina no último decênio do século XVII, era apenas um reflexo pálido dos espetáculos penitentes promovidos pela Ordem Terceira de Salvador, sua vila natal, onde ele professou a fé seráfica e era identificado com o grupo de “letrados” da Ordem leiga.^144 De acordo com Marieta Alves, historiadora da Irmandade soteropolitana,

[...] a procissão das cinzas era levada muito a sério pelos administradores da Ordem Terceira de São Francisco, a ponto de, para não haver interrupção no antigo compromisso, se responsabilizarem os Mesários pela grande despesa que o cortejo ocasionava.^145

Com efeito, o préstito da penitência na cidade da Bahia foi iniciado em 1649, pouco mais de uma década após a primeira eleição canônica para a eleição da Mesa da Ordem Terceira em 23 de dezembro 1635. Pelo menos até o final do século XVIII, a procissão foi dominada pelo aparato e pela pompa barroca dos irmãos penitentes, que tinham obrigação estipulada no Compromisso de participar do cortejo.

O desfile da procissão das cinzas de Salvador foi narrado pelo historiador, poeta e cronista-mor da Ordem franciscana, Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, em sua obra basilar Novo orbe seráfico brasílico ou crônica dos frades menores da província do Brasil , publicada pela primeira vez em Lisboa

(^144) Ao tomar o hábito franciscano, Gregório de Matos escreveu o seguinte soneto: “Ó magno Serafim, que a Deus voaste / Com asas de humildade, e paciência / E absorto nessa divina essência / Logras o eterno bem, a que aspiras / Pois o caminho aberto nos deixastes / Para alcançar de Deus também clemência / Na ordem singular de penitência / Destes filhos Terceiros que criastes / A filhos como / Pai, olhas queridos, / E intercede por nós, Francisco Santo / Para que te sigamos, e imitemos / E assim esse teu hábito vestidos / Na terra blasonemos de bem tanto, / E depois para o céu juntos voemos”. 145 ALVES, Marieta. História da venerável Ordem Terceira da Penitência do seráfico Padre São Francisco da Congregação da Bahia. Salvador: Mesa Administrativa da Ordem, 1948. p.

em 1761. O frade nasceu na freguesia de Jaboatão (nas proximidades do Recife), em 1695, quando o poeta Gregório de Matos vivia em Pernambuco. Ingressou na Ordem franciscana em 1716, professando em 1717 no Convento de Paraguaçu na Bahia. Ele ocupou os postos de maior destaque na Ordem franciscana da Custódia de Santo Antônio. Jaboatão viveu em Olinda, Recife e Salvador, onde faleceu no Convento de São Francisco em 7 de julho de 1779. Entretanto, foi a procissão das cinzas promovida pelos Terceiros de Salvador a que mereceu o maior destaque na sua crônica seráfica. Frei Jaboatão registrou com acuidade a procissão da penitência da quarta-feira de cinzas dos Terceiros soteropolitanos, que integrava o calendário dos ritos franciscanos articulados à paixão e morte de Cristo, à vida do Padre Seráfico e dos santos leigos adotados pela Ordem.

Tendo como referência modelar o préstito organizado pela Ordem Terceira franciscana da cidade do Porto, cuja primeira saída conhecida data de 1661, a procissão das cinzas era considerada o mais relevante dos ritos seráficos realizados na colônia brasileira. O desfile penitente na quarta-feira de cinzas, logo após a folia da carne, rito de origem pagã incorporado ao cristianismo pelo Concílio de Trento (1545-1563), estava impregnado do espírito de exaltação e glória. Inaugurar a quaresma era para os irmãos Terceiros sinônimo de privilégios perante as outras Ordens religiosas, pois a cerimônia litúrgica dava início ao período de purificação, abstinência e de reflexão contrita, considerado o tempo da graça para os cristãos. Frei Jaboatão certamente teve a oportunidade de testemunhar a realização do séquito pomposo de Salvador, e assim o descreveu:

Os atos públicos e funções desta Venerável Ordem são os que dispõem a regra, e estatutos gerais, e o de maior expectação que costuma é a procissão das cinza, que se faz na primeira Quarta-Feira da quaresma, com todo lustre e grandeza; e por ser uma ação que dá brado em muitas partes, faremos dela uma breve memória. No ano de 1649 em dezessete de fevereiro se deu princípio a este santo costume, publicando-se neste dia o jubileu, e na tarde dele saiu a procissão da penitência, a qual perdurou, e se faz ao tempo presente na forma seguinte: Primeiramente vai a figura do paraíso terreal, que se demonstra em uma árvore frondosa com os pomos proibidos, e aos lados Adão e Eva, nossos primeiros pais, com as insígnias do seu trabalho, já despidos da primeira graça, e vestidos de peles, e detrás deles o anjo querubim, lançando-os fora do paraíso, com uma espada de fogo, o qual vai vestido rica e especiosamente, cobertas as roupas de galos finíssimos, peças de diamantes e ouro batido. Segue-se logo a figura da morte, com as insígnias da brevidade da vida; e depois a Santa Cruz com as armas da Ordem Seráfica, acompanhada de dois anjos com brandões nas mãos. Seguem-se mais sete figuras, vestidas de saco penitente, com insígnias nas mãos,

dos santos do Japão, temas que remetem à pregação ascética de Francisco de Assis e dos Espirituais, seus seguidores, que proclamavam o caminho penitencial como conversão, e a devoção ao sacrifício do Cristo na cruz, como exemplo para a redenção dos pecados dos homens e a cristianização do mundo. As figurações evocativas à doutrina da regra faziam-se acompanhar do aparato rico e pomposo das figuras e da profusão de alegorias do préstito, fortemente imbuído do espírito reformista e propagandista do Concílio de Trento e da cultura barroca. As palavras do cronista da província franciscana realçam a sequência dos andores e a riqueza dos ornatos “cobertos de tela de ouro roxa”, “roupas de galos finíssimos” e “peças de diamantes e ouro batido”. Tudo com “muita propriedade”, “lustro”, “asseio” e a “maior grandeza”. O testemunho de Jaboatão aduz ao relevo social dos homens que formavam a Ordem leiga dos seráficos daquela vila. No seu dizer, a Ordem dispunha de

[...] um bom e abastado patrimônio, não só por este crescimento de seus irmãos, como por serem muitos deles de avultados cabedais, e haverem feito grandes doações à mesma Ordem: tanto para suprimento dela, como para obras pias, sufrágios, esmolas para pobres, dotes para as órfãs, e outras semelhantes de piedade e zelo cristão. Daqui vem mais terem a sua igreja custosa e ricamente ornada, celebrarem com asseio, lustre e custosos aparatos a sua procissão de cinza. 147

Os irmãos Terceiros franciscanos de Salvador constituíam uma das irmandades mais prestigiosas da Bahia. Integravam a Ordem figuras de destaque da elite branca de letrados, senhores de engenho, plantadores de cana e criadores de gado do sertão, os “principais” da governança da capitania. Entre eles, o coronel Domingos Pires de Carvalho, pertencente ao clã dos Garcia D’Ávila, responsável pela construção da capela dos Terceiros em 1702. O pertencimento a uma Ordem religiosa de prestígio era sinônimo de reconhecimento pessoal e de obtenção de privilégios, de acordo com os valores vigentes do Antigo Regime lusitano. Também foram irmãos franciscanos os governadores Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça, cujas exéquias ocorridas em Salvador, em 1675, foram marcadas pela pompa e pela suntuosidade, e Luís César de Meneses, o

(^147) JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Novo orbe seráfico brasílico ou crônica dos frades menores da província do Brasil. v. III. Recife: Assembleia Legislativa de Pernambuco,

  1. p. 299.

Conde de Sabugosa, que serviu como ministro da Mesa nos anos de 1707, 1708 e

  1. 148 Entretanto, os magistrados do Tribunal da Relação eram proibidos de fazer parte da Irmandade franciscana. Esse grupo social tendia a integrar a Santa Casa da Misericórdia. A agremiação leiga franciscana estava mais identificada com o poder local. No decorrer do século XVIII, com o “abrasileiramento” dos magistrados, esse quadro foi sendo flexibilizado. A Ordem Terceira seráfica de Salvador primava pelo gosto dos ritos e dava grande importância à perfeição cerimonial dos cortejos.

O desfile dos penitentes de Salvador, registrado pelo frade historiador da Ordem, contrasta fundamentalmente com o quadro da “Procissão das Cinzas de Pernambuco” do soneto de Gregório de Matos. Entretanto, é necessária uma ponderação sobre as diferenças das naturezas dos discursos abordados. Se o soneto, enquanto gênero literário, é mais permeável ao campo ficcional, tanto mais quanto inscrito na clave da retórica persuasiva barroca, a narrativa de Frei Jaboatão pode ser compreendida como uma escrita de cunho mais realista, que se pretendia inserida no campo da história. O franciscano, ao lado do Padre Domingos da Silva Teles, foi sócio fundador da Academia dos Renascidos, estabelecida na Bahia em 1759, para congregar letrados com o propósito de promover estudos abrangendo questões de história, geografia etnografia e botânica da colônia brasileira.^149 Imbuído da missão de elucidar a história da Ordem franciscana na América portuguesa, Jaboatão foi nomeado, em 1755, cronista da província franciscana, por seus notórios conhecimentos históricos. Sua escrita apresenta uma separação com o discurso teológico, tratando fundamentalmente da ação dos frades na obra da catequese dos índios e na construção de conventos na faixa litorânea do território da colônia, correspondente à atual região Nordeste do Brasil. O seu Novo orbe seráfico não é apenas uma

(^148) Ver MARQUES, Maria Eduarda Castro Magalhães. Os azulejos de Ordem Terceira de São Francisco de Salvador : uma representação simbólica da cultura política barroca portuguesa no Brasil durante o reinado de D. João V. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. 149 Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão foi professado no convento franciscano de Paraguaçu (BA) em 1717. Depois de concluir os estudos, dedicou-se por trinta anos à pregação. Além de poeta, foi mestre dos noviços no convento de Igaraçu e guardião dos conventos de João Pessoa e do Recife. Ocupou os cargos de definidor, secretário e cronista da província de Santo Antônio. Como historiador, escreveu O catálogo genealógico das principais famílias que procederam de Albuquerques e Cavalcantis em Pernambuco e Caramuru na Bahia , importante estudo da genealogia das principais famílias coloniais de Pernambuco e da Bahia. O catálogo foi editado pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1889.

“muito anterior a fundação do Convento de Olinda”, como observou Frei Jaboatão.^152 O historiador franciscano escreveu sobre a existência em “Marim de Pernambuco” (Olinda) de um religioso Menor que teria construído uma capelinha dedicada a São Roque, onde nela teria iniciado uma Irmandade Terceira, ainda durante a administração do donatário fundador da Nova Lusitânia Duarte Coelho Pereira. Segundo Jaboatão, desde então os moradores da vila podiam vestir o hábito, fazer os exercícios e as obrigações da regra seráfica. Por volta de 1577, o observante Frei Álvaro da Purificação, vindo da Ilha da Madeira, por conta do regime dos ventos, deu nas costas de Pernambuco, permanecendo por um tempo em Olinda, como pregador. Mas Frei Álvaro era mais uma dentre as “luzes errantes neste Novo Orbe”, como escreveu Jaboatão.^153 A população ansiava por ter permanentemente na vila uma casa dos religiosos franciscanos. Em nome dos fiéis pernambucanos, o donatário Jorge de Albuquerque Coelho, filho de Duarte Coelho Pereira, solicitou a Frei Francisco Gonzaga, ministro geral da Ordem, a fundação de uma Custódia no Brasil. Vivia nesta época em Olinda a viúva do rico agricultor Pedro Leitão, chamada Dona Maria da Rosa, que, ao final do século XVI, doou terreno de sua propriedade para a construção do Recolhimento de Nossa Senhora das Neves, para abrigar um grupo de Terceiras regulares. O Recolhimento de mulheres serviu de base para o estabelecimento definitivo da Ordem dos Frades Menores na vila duartina, a partir de 1584, quando foi criada a Custódia da Ordem franciscana do Brasil, a cargo do Frei Melchior de Santa Catarina. Em 1585, teve início a construção do primeiro convento franciscano na colônia americana, o Convento de Nossa Senhora das Neves, no qual foi instalada a capela dos Terceiros, no corpo da igreja.^154

Não há registro documental a respeito da data precisa referente à primeira saída da procissão das cinzas de Olinda. Sabe-se, entretanto, que a procissão promovida pela Ordem Terceira da vila saiu por volta de 1620, portanto, pelo menos duas décadas antes da procissão dos Terceiros de Salvador, o que garantia

(^152) JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Novo orbe seráfico brasílico ou crônica dos frades menores da província do Brasil. v. II. Recife: Assembleia Legislativa de Pernambuco,

  1. p. 381. 153 JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Novo orbe seráfico brasílico ou crônica dos frades menores da província do Brasil. v. II. Recife: Assembleia Legislativa de Pernambuco,
  2. p. 54. 154 No Convento de Nossa Senhora das Neves de Olinda, Frei Vicente do Salvador começou a escrever a sua História do Brasil , terminada em 1627.

a primazia e certas prerrogativas aos irmãos olindenses em relação às demais irmandades franciscanas quanto à organização do rito penitente no ambiente colonial. Apesar de dedicar a parte primeira de sua crônica aos primórdios da devoção seráfica e à instalação definitiva dos religiosos Menores no Convento de Nossa Senhora das Neves, quando se fizeram “estrelas fixas”, Frei Jaboatão, curiosamente, não faz menção à procissão dos Terceiros olindenses, a despeito do tratamento minucioso de sua narrativa no registro dos primórdios e do processo de dilatação da Ordem em direção ao norte da capitania de Pernambuco e também rumo ao sul, até o Rio de Janeiro, por onde os frades capuchos fundaram seus conventos. Neste livro, o historiador franciscano também se dedica à saga da viagem da missão de Frei Santa Catarina de Melchior, à criação da Custódia de Santo Antônio do Brasil, oriunda da província de Santo Antônio de Portugal, e às querelas relativas à confirmação da Custódia encabeçadas por Frei Francisco de São Boaventura da Bahia.

Entretanto, da crônica histórica de Jaboatão, é possível apreender a sociabilidade e poder dos primeiros seráficos olindenses. Esta aduz à origem “aristocrática” da formação da Ordem Terceira de Olinda à época de sua criação, no último quartel do século XVI. Felipe Cavalcanti e sua esposa Dona Catarina de Albuquerque, membros de ramos familiares identificados com os primeiros colonos agricultores de cana-de-açúcar e fundadores da Nova Lusitânia, logo tomaram o hábito franciscano, quando da chegada da missão de Frei Santa Catarina de Melchior. Felipe Cavalcanti, considerado homem de grande autoridade, “ilustre fidalgo florentino”, fugido de sua cidade por uma conspiração contra Cosmo de Médicis, teria passado a viver em Portugal por volta de 1558, quando se transferiu para Pernambuco para dedicar-se à produção do açúcar.^155 Dona Catarina de Albuquerque era filha bastarda do fidalgo português Jerônimo de Albuquerque, cunhado do donatário Duarte Coelho Pereira, chamado o “Adão pernambucano”, em consórcio com a índia Arcoverde; era ainda prima do

(^155) Em Rubro veio , Evaldo Cabral de Mello pondera sobre a possibilidade de fraude na certidão do título de nobreza de Felipe Cavalcanti. “Em 1683, os Cavalcanti obtiveram em Florença a cópia autenticada de uma certidão, datada de 1559, na qual o mesmo Grão-Duque contra o qual Felipe Cavalcanti teria conspirado, declarava sua origem nobre. Transcreveram-na com certa fanfarra tanto Borges da Fonseca quanto Frei Antônio de Santa Maria de Jaboatão no seu Catálogo Genealógico , mas apesar de terem-na apresentado como documento irretorquível, há bons motivos para se descrer da sua autenticidade”. CABRAL DE MELLO, Evaldo. Rubro veio. O imaginário da Restauração pernambucana. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 184-185.

Para este, assim, e na forma em que tinha fabricado a sua Fundadora, se passarão das casas, em que até então assistirão junto à Misericórdia, os nossos Religiosos, no dia quatro de outubro, solenidade festiva do Seráfico N. P. S. Francisco, do já referido ano de 1585. Junto um e outro povo, o Clero com seu Reverendo Vigário Geral, o secular com o Senado, e Câmara, e mais nobreza com numeroso concurso na Santa Casa da Misericórdia, daí sairão em uma bem composta e ordenada Procissão, a que presidia, com o Governador da terra, o Vigário Geral, e Padre Custódio, entoado o festivo cântico Te Deum Laudamus , até o Convento, pela rua direita, que estava toda ornada em arcos triunfais, e verdes palmas, anunciadoras felizes de muitas vitórias, que estes novos conquistadores hão de alcançar do comum inimigo.^157

Se da narrativa de Frei Jaboatão é possível aferir as origens “aristocráticas” da Ordem Terceira de São Francisco de Olinda, quando do momento de sua criação no século XVI, é preciso também refletir sobre as razões de seu silêncio com relação à realização do tradicional rito penitente dos seráficos da vila duartina. A procissão olindense certamente não escapou à crônica acurada do frade historiador por descuido, mas talvez pelo fato de o préstito nunca ter experimentado em Olinda a relevância e a magnificência que veio a alcançar em outras vilas coloniais. As circunstâncias históricas específicas da capitania de Pernambuco podem ter sido determinantes para a falta de “grandeza” da procissão das cinzas dos Terceiros em Olinda.

Durante as primeiras décadas do século XVII, no período ante bellum , a vila duartina, “cabeça” da Nova Lusitânia, vivia o auge da grandeza da produção açucareira da capitania. De acordo com os estudos realizados por Stuart Schwartz, em 1550 o primeiro donatário Duarte Coelho Pereira pôde dar conta ao rei da existência de cinco engenhos em funcionamento na capitania. Em 1580, segundo alguns cronistas, Pernambuco já possuía 66 engenhos. Outros relatos feitos entre 1583 e 1585 indicam um número maior, entre 108 e 128 unidades produtivas. A “discrepância numérica” dos diferentes relatos, conforme Schwartz, não reduz a preponderância da produção açucareira da capitania de Pernambuco, inegavelmente a principal região produtora de açúcar da América portuguesa.^158 A lavoura da cana-de-açúcar era incentivada pela Coroa. Os senhores de engenho gozavam de privilégios e isenções fiscais para a instalação de novos engenhos e

(^157) JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Novo orbe seráfico brasílico ou crônica dos frades menores da província do Brasil. v. II. Recife: Assembleia Legislativa de Pernambuco,

  1. p. 145-146. 158 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 34.

canaviais. Também era proibida a execução de penhoras dos bens dos produtores de açúcar. Com o desenvolvimento das lavouras no massapê das terras litorâneas sul de Pernambuco, floresceram também em opulência e grandeza os agricultores e senhores de engenho da capitania.

O historiador Francisco Augusto Pereira da Costa (1851-1923), valendo-se da crônica setecentista do dominicano Domingos José Loreto Couto (c. 1700- 1757), Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco , resume, em seus Anais pernambucanos , a pujança econômica de Pernambuco nas primeiras décadas do século XVII:

À invasão holandesa em 1630 florescia o comércio animado por especulações e lanços vantajosos, encontrando os gêneros coloniais pronta saída e preços compensadores, impulsionando assim o alargamento da esfera de ação produtora, e particularmente ocupando o primeiro lugar os produtos da indústria açucareira pela quantidade e vantajosos preços reputados nos mercados consumidores, graça à superior qualidade do gênero, vinha daí, naturalmente, o alargamento da esfera de ação do seu fabrico, que teve tal desenvolvimento, que na época campeava na florescente colônia 150 engenhos ou fábricas de açúcar, melaço e aguardente, cuja safra anual daquele primeiro produto regulava média de 150 mil arrobas. 159

Ainda que pese o franco favoritismo de Loreto Couto e de Pereira da Costa pelas virtudes empreendedoras e aristocráticas dos agricultores produtores de cana-de-açúcar, às vésperas da chegada da esquadra neerlandesa do almirante Hendrick Loncq, a capitania de Pernambuco continuava a figurar como a mais rica e próspera da América portuguesa – embora, nas primeiras décadas do século, a produção e o comércio do produto já tivessem enfrentado certo decréscimo resultante do preço do açúcar no mercado internacional.^160

(^159) COSTA, F. A. Pereira da. Anais pernambucanos : 1493-1590. v. 2. Recife: Arquivo Público Estadual, 1951. p. 4. 160 Em Olinda restaurada , Evaldo Cabral de Mello analisa os estudos realizados pelos historiadores da economia Pierre Chaunu e Frédéric Mauro, que apontam para o fim da primeira fase da expansão da economia açucareira por volta do ano de 1600, seguida de um período de estabilidade até 1625. Cabral de Mello menciona ainda Stuart B. Schwartz, que adotou uma nova periodização, considerando os anos entre 1612-1630 de relativa expansão da atividade açucareira, notadamente no Recôncavo baiano, em virtude da introdução tecnológica da moenda de três cilindros verticais, ou o “engenho de três paus”. CABRAL DE MELLO, Evaldo. Olinda restaurada. Guerra e açúcar no Nordeste 1630-1654. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p.

Para Frei Calado, a abundância excessiva da riqueza gerada pelo açúcar trouxe também o pecado e o vício para os moradores de Olinda. Imperava na vila duartina a “ladroice”, o “roubo”, os “amancebamentos públicos”, os “adultérios”, os “estupros” e as “mortes”. Aos olhos do franciscano, a ocupação holandesa serviu como punição divina “às usuras, onzenas e ganhos ilícitos” promovidos pelos cristãos novos atraídos pelo comércio do açúcar. Frei Calado identifica uma deterioração moral da vida pública e privada em Olinda nos anos anteriores à ocupação holandesa. Frei Jaboatão compartilha com Frei Calado o juízo sobre a riqueza de Olinda no século que se seguiu entre sua fundação e o assalto dos holandeses. Também para Jaboatão, a destruição da vila pelos flamengos foi uma consequência de sua opulência:

[...] no decurso de cem anos, desde o de 1530, da sua fundação até o de 1630, em que foi tomada, e destruída depois pelos holandeses, chegou a tanta opulência de riquezas, e grandeza de edifícios, que só de ruas passeavam os seus colonos setenta e duas principais. E suposto se acha hoje bastantemente reedificada, ainda os que discorrem por ela, ou se desviam para qualquer do seu alto, baixas e quebradas, só topam com ruínas de seus antigos edifícios, e pedras que servem de escândalo fatal à vista, e de mágoa terníssima à memória, que por força lhe há de ocorrer, que o nome de Olinda, que lhe deram, assim como foi presságio feliz de sua futura grandeza, foi também anúncio triste de sua vindoura fatalidade, em que só com a breve, e ligeira mudança de uma letra, se havia tornar Olanda, a que era Olinda, destino fatal, e que acompanha de ordinário as coisas, grandes, que com seu mesmo crescimento acrescentam e acarretam a sua própria ruína.^162

O aumento da riqueza de Pernambuco no começo do século XVII, o luxo e a prodigalidade dos moradores de Olinda, bem como a distensão da moralidade e da observância dos princípios religiosos católicos suscitaram interpretações providencialistas com respeito à destruição de Olinda pelo invasor holandês. Em Rubro veio , Evaldo Cabral de Mello estuda as leituras providencialistas relativas à conquista holandesa de Pernambuco, que oscilavam entre a noção de providência divina medieval e da “roda da fortuna” renascentista. Segundo Cabral de Mello, os cronistas luso-brasileiros viam a queda de Olinda como um castigo

(^162) JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Novo orbe seráfico brasílico ou crônica dos frades menores da província do Brasil. v. II. Recife: Assembléia Legislativa de Pernambuco,

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divino pelos pecados dos moradores de Pernambuco ou como uma alternância da fortuna do luxo e riquezas aos vícios e abusos.^163

A nobreza da terra olindense na Câmara e na Misericórdia

A procissão da penitência dos leigos franciscanos começou a desfilar pelas ruas de Olinda em um momento de muita conspicuidade, luxo e opulência dos senhores de engenho, que costumavam só permanecer na vila entre os meses de fevereiro e junho, para atender a um calendário festivo, do carnaval ao São João, como observou Gilberto Freyre.^164 Além de não habitarem na vila durante todo o ano, pois se ocupavam da safra e da moenda nos seus engenhos, os agricultores de cana e produtores de açúcar e suas famílias vinham para Olinda para exercer uma sociabilidade essencialmente urbana no Senado da Câmara e na Santa Casa da Misericórdia, onde se ocupavam, respectivamente, da governança da terra e das obras de caridade cristã, tais como a assistência aos pobres, a administração de hospital, o acompanhamento dos enfermos e o enterro dos mortos. Os membros da Misericórdia comandavam também atividades espirituais, promoviam diversas cerimônias litúrgicas e desfrutavam do privilégio do uso de vestuário e insígnias próprias, por ocasião dos enterros e procissões. Na Olinda ante bellum , as duas instituições, “pilares gêmeos da sociedade colonial portuguesa”, a Câmara e a Misericórdia, agregavam “açucarocracia”, conformando a esfera do poder local. O provérbio alentejano recuperado por Charles Boxer, em seu estudo clássico O Império marítimo português , “quem não está na Câmara está na Misericórdia”, era muito pertinente à elite da sociedade olindense de então.^165

A Santa Casa da Misericórdia de Olinda foi fundada provavelmente em 1539, logo após o povoado ter recebido de D. João III o título de vila, em 1534.^166

(^163) CABRAL DE MELLO, Evaldo. Rubro veio. O imaginário da Restauração pernambucana. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. 164 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 22. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1983. p. 260. 165 BOXER, Charles R. O Império marítimo português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 299. 166 De acordo com Pereira da Costa, em 1540 já existiam em Olinda a igreja de Nossa Senhora da Luz e a Santa Casa da Misericórdia com seu hospital, conforme a escritura de demarcação de terras que consta no Livro de Tombo da freguesia de Nossa Senhora da Luz. Os primeiros tempos da Misericórdia de Olinda foram obscuros. Entretanto, a documentação relativa à demarcação do

insígnias de prestígio e de estima social vigentes no espectro de valores do Antigo Regime português transplantados para a colônia.^168 Vivendo a lei da nobreza, em riqueza e opulência, no ambiente exclusivo criado pelas regras rigorosas de admissão, na Santa Casa da Misericórdia de Olinda estava lotada a “nobreza da terra”. O pertencimento à instituição era um sinal distintivo de qualidade e de “nobreza”.^169

Os compromissos fundadores das Misericórdias criadas nas diversas regiões do Império deviam obedecer aos princípios estabelecidos no compromisso da Misericórdia de Lisboa, redigido pela primeira vez em 1577 e depois revisto em 1618, nos quais estavam estabelecidos os critérios restritivos de acesso vetado às mulheres, aos pobres, aos impuros de sangue e àqueles que trabalhavam com as mãos. Ainda que regida pelo mesmo compromisso, a instituição olindense apresentou algumas especificidades, diferenciando-se, por exemplo, com relação à entidade congênere de Salvador, no tocante à composição social de seus membros e ao abrandamento das regras de exclusão. De acordo com A. J. R. Russell-Wood, a Santa Casa soteropolitana registrou, com frequência, a ocupação do cargo de provedor por parte dos principais agentes da administração imperial e de governadores, a exemplo de Mem de Sá em 1560 e Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça em 1671, entre outros. Além de criadores de gado e senhores de engenho, a Misericórdia de Salvador foi permeável à admissão de mercadores e de financistas, principalmente a partir da crise do açúcar de 1680. Em 1700, a instituição recebeu um vultoso legado por parte de João de Mattos Aguiar, um

(^168) Em O nome e o sangue , Cabral de Mello estuda o processo das provanças póstumas de Felipe Pais Barreto, filho do 4º morgado do Cabo e descendente de João Pais Barreto, um dos mais ilustres colonos fixados na capitania no século XVI. O historiador levanta a questão da presença de sangue converso em vários troncos das famílias antigas que vieram povoar a Nova Lusitânia, tema ocultado pelos genealogistas coloniais. CABRAL DE MELLO, Evaldo. O nome e o sangue. Uma parábola familiar no Pernambuco colonial. 2. ed. Rio de Janeiro:Topbooks, 2000. 169 De acordo com Evaldo Cabral de Mello, a nobreza dos colonos duartinos foi objeto de mitificação histórica. O estrato fidalgo dos primeiros colonos incluiu também portugueses ricos sem linhagem. “O que se entendia concretamente em Pernambuco por ‘nobreza da terra’? Di-lo o regimento concedido em 1730 ao Senado da Câmara de Olinda pelo governador Duarte Sodré Pereira, ao reservar seu acesso às pessoas da ‘nobreza da terra’, que definia como sendo as ‘limpas de sangue e de geração verdadeira, nobres, infanações, fidalgos da Casa real e descendentes dos conquistadores e povoadores da terra, que ocuparam cargos civis e militares, e os perpetuaram em suas famílias’. A ‘nobreza da terra’ compreendia, portanto, duas categorias principais de indivíduos: os colonos de ascendência nobre do Reino e os moradores descendentes dos primeiros troncos, socialmente depurados pelo exercício dos ‘cargos honrosos da república’, isto é, das funções locais administrativas e militares”. CABRAL DE MELLO Rubro veio. O imaginário da Restauração pernambucana. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 181.

destacado financista e membro da comunidade comercial de Salvador.^170 Grosso modo, pode-se dizer que a Misericórdia de Olinda era menos inflexível ao ingresso de pessoas com “defeito de sangue” e mais intransigente quanto ao “defeito mecânico”, ao contrário do que ocorreu em Salvador, onde os irmãos permitiram, ao fim do século XVII, o acesso de pessoas com “defeito mecânico”. Apesar das diferenças, em nível local, as Santas Casas da Misericórdia de Olinda e de Salvador ocuparam os primeiros lugares na hierarquia associativa.

Com o número de irmãos limitado, o pertencimento à Misericórdia era um sinal distintivo de superioridade na escala social, em que vigorava a ideologia da “nobreza” em espetáculo. Em Olinda, onde prevaleceu o caráter marcadamente oligárquico da agremiação, seus membros tenderam a aliar o princípio de caridade cristã com o de representação social. No seu Diálogos das grandezas do Brasil , composto em 1618, o médico Ambrósio Fernandes Brandão, na figura de Brandônio, relata o gosto pelo luxo e a liberalidade dos senhores de engenho na administração da Misericórdia olindense:

Eu vi já afirmar a homens mui experimentados na corte de Madri que não se traja melhor nela do que se trajam no Brasil os senhores de engenho, suas mulheres e filhas e outros homens afazendados e mercadores. E prova disso quero dar somente um assaz bastante, a qual é que na capitania de Pernambuco há uma Casa da Misericórdia, a qual faz despesa em cada um ano na obrigação dela, treze, catorze mil cruzados, pouco mais ou menos; estes são dados de esmola pelos moradores da mesma capitania por não ter a casa de renda coisa que seja de consideração, e tanto isto é assim, que os provedores que se sucedem para o seu serviço, em cada ano, gastam de sua bolsa mais de três mil cruzados, e as demais capitanias todas têm Misericórdia também, nas quais se gastam igualmente muito dinheiro; mas nesta de Pernambuco se faz com mais excesso. 171

Para a Santa Casa da Misericórdia e seu hospital, eram revertidos amplos cabedais. Os grandes legados estavam associados à riqueza e ao poder social dos doadores, sinônimo de “nobreza” e de estatuto social privilegiado. João Pais Barreto, o velho, foi um dos destacados beneméritos da instituição. Pais Barreto, oriundo da pequena nobreza do Minho, detinha uma das maiores fortunas de Pernambuco e da colônia brasileira na segunda metade do século XVI. Ele

(^170) RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos. A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Editora de Universidade de Brasília, 1981. 171 Apud GONSALVES DE MELLO, José Antônio (Org.). Diálogos das grandezas do Brasil. 2. ed. Recife: Imprensa Universitária, 1966. p. 91.