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Violência e Sociedade: Análise da Presença de Anísio em classes sociais distintas, Notas de estudo de Cultura

Este texto analisa a presença da violência em diferentes classes sociais através da personagem anísio, um matador de aluguel, na novela 'o invasor' de marçal aquino. O documento explora o jogo entre agente e paciente da violência, a questão do crime disseminado em todas as esferas sociais e a aproximação entre classes sociais distintas em busca de um objetivo comum.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Osvaldo_86
Osvaldo_86 🇧🇷

4.5

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4. O Invasor: a violência social disseminada
Outra obra literária que também ganhou as telas de cinema foi O Invasor,
de Marçal Aquino. Neste livro, assim como em sua adaptação cinematográfica,
não encontraremos presidiários rebelados, chacinas, tiros e sangue derramado. O
que será analisado é a presença da violência em classes sociais distintas e o
despertar violento do homem.
O Invasor, de Marçal Aquino, é um romance que virou filme antes de ser
romance, como cita Ângela Gandier em seu ensaio O Invasor de Marçal Aquino –
quando os manos e os bacanas cheiram o mesmo pó. A dupla adaptão – em
roteiro e produção cinematográfica quase simultaneamente aponta para o
nascimento de um tipo experimental em que o diálogo, literatura x cinema se
consolida em bases diversas daquelas que fundamentaram a cinematografia
brasileira.
As o lançamento do filme, Aquino decide retomar o desenvolvimento e a
conclusão do livro, quando percebe o equívoco da opção feita pela focalização
interna: o ponto de vista do narrador e personagem principal, Ivan, está atado à
restrição dos elementos a relatar, em função da reduzida capacidade de
conhecimento dessa personagem a respeito dos acontecimentos do tempo futuro,
ou seja, o desconhecimento do narrador é semelhante ao dos leitores. Ivan é o
personagem que rege a representação narrativa, que tem como ponto de partida o
acerto como matador de aluguel, Anísio, habitante da periferia de São Paulo. Os
fatos da narrativa ocorrem fora de sua consciência e fora mesmo de sua
existência, e aqui entra o desconcerto maior: o narrador esbarra na
impossibilidade de relatar a própria morte.
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Ângela Gandier, continua sua reflexão alertando para a emergência de um
diálogo da literatura com o cinema, nas recentes produções cinematográficas
oriundas de romances literários que ganharam as telas:
Percebe-se a emergência de um diálogo da literatura com o cinema, neste caso, a
da produção literária recente que coloca em pauta a questão da violência urbana e
suas teias. Contudo, as tendências do cinema atual não nos autorizam a pensar
em termos de um cinema de autor; ao contrário,o que há é a subordinação a um
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GANDIER, Ângela In Estéticas da Crueldade, páginas 133-134
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310544/CA
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4. O Invasor: a violência social disseminada

Outra obra literária que também ganhou as telas de cinema foi O Invasor , de Marçal Aquino. Neste livro, assim como em sua adaptação cinematográfica, não encontraremos presidiários rebelados, chacinas, tiros e sangue derramado. O que será analisado é a presença da violência em classes sociais distintas e o despertar violento do homem. O Invasor , de Marçal Aquino, é um romance que virou filme antes de ser romance, como cita Ângela Gandier em seu ensaio O Invasor de Marçal Aquino – quando os manos e os bacanas cheiram o mesmo pó. A dupla adaptação – em roteiro e produção cinematográfica quase simultaneamente– aponta para o nascimento de um tipo experimental em que o diálogo, literatura x cinema se consolida em bases diversas daquelas que fundamentaram a cinematografia brasileira. “Após o lançamento do filme, Aquino decide retomar o desenvolvimento e a conclusão do livro, quando percebe o equívoco da opção feita pela focalização interna: o ponto de vista do narrador e personagem principal, Ivan, está atado à restrição dos elementos a relatar, em função da reduzida capacidade de conhecimento dessa personagem a respeito dos acontecimentos do tempo futuro, ou seja, o desconhecimento do narrador é semelhante ao dos leitores. Ivan é o personagem que rege a representação narrativa, que tem como ponto de partida o acerto como matador de aluguel, Anísio, habitante da periferia de São Paulo. Os fatos da narrativa ocorrem fora de sua consciência e fora mesmo de sua existência, e aqui entra o desconcerto maior: o narrador esbarra na impossibilidade de relatar a própria morte”.^1

Ângela Gandier, continua sua reflexão alertando para a emergência de um diálogo da literatura com o cinema, nas recentes produções cinematográficas oriundas de romances literários que ganharam as telas:

“Percebe-se a emergência de um diálogo da literatura com o cinema, neste caso, a da produção literária recente que coloca em pauta a questão da violência urbana e suas teias. Contudo, as tendências do cinema atual não nos autorizam a pensar em termos de um cinema de autor; ao contrário,o que há é a subordinação a um

1 GANDIER, Ângela In Estéticas da Crueldade, páginas 133-

padrão internacionalizado de experiências técnicas, afastadas de qualquer movimento de ruptura com as regras estabelecidas pela indústria cultural.” 2

Na novela de Marçal Aquino, dois empreiteiros, Alaor e Ivan, contratam um matador de aluguel para eliminar um terceiro sócio, Estevão, que estaria inviabilizando um contrato ilegal. O primeiro encontro entre eles, os sócios inconformados e o bandido, se dá num bar sujo da periferia de São Paulo. Ali, são os dois homens ricos que estão em desvantagem, deslocados em suas roupas caras, acuados pelo olhar do outro. O jogo entre agente/paciente da violência começa a se confundir no personagem narrador, Ivan. Fato que mais tarde é explícito na narrativa.

"Merecemos uma rápida avaliação dos dois sujeitos que bebiam cerveja debruçados no balcão, conversando com o velho que devia ser o dono do bar. Os quatro homens que jogavam bilhar também nos olharam por um instante, e depois retomaram sua conversa" (Aquino, 2002, 8).

Dono da situação, antes de qualquer coisa, por ser senhor do espaço que ocupa, Anísio, o assassino, os interpela e, num simples aperto de mão, identifica, de forma debochada, o lugar de cada um deles:

“Anísio acendeu um cigarro e olhou para Alaor. Você por exemplo nunca precisou pegar no batente. Dá para ver isso pela sua mão. Lisinha, lisinha. Achei aquilo divertido e gostei de Anísio. Alaor olhou para as palmas das mãos e riu. Eu e Alaor tínhamos nos conhecido na Escola Politécnica e, naquela época, ele – Alaor – ainda era sustentado pelo pai. Só começou a trabalhar quando abrimos a construtora. Se bem que supervisionar serviço de peão nunca foi trabalho pesado. Seu caso é um pouco diferente, Anísio voltou-se para mim (Ivan – o narrador). Você já trampou pesado, mas faz muito tempo, não é isso”? (AQUINO, p.09-10, 2003).

Sofrimento e crueldade, não só psicológica, fazem parte também da trama literária, apesar de no filme, não existir nenhum derramamento de sangue explícito. A película aproxima-se mais da violência psicológica. Ainda durante a contratação dos serviços do matador, Alaor, o sócio mais sádico, se interessa em saber a forma como Anísio executa os seus “serviços”, dessa forma outro diálogo é travado entre o matador, perguntando para a dupla os passos que deveria seguir para a execução..

2 Idem, p.134.

para Mirna, a mais cobiçada dentre as moças. Após ter atingido sua satisfação sexual, pega no sono e logo após acordar, novamente, ela – sua consciência – o perturba:

“Lavei o rosto e, no momento em que peguei a toalha para enxugá-lo, recuperei o sono que tinha me assustado. Nele, meu pai aflito me pedia ajuda para livrar-se de sua tatuagem. Ele estava sem camisa, mas eu me recusava a olhar para aquele símbolo, cobrindo os olhos com as mãos. Meu pai gritava comigo e puxava meus braços, me obrigando a olhar. Estevão também estava no sonho e dizia que eu não precisava me preocupar, ele conhecia um homem que poderia resolver aquele problema. Embora o homem não aparecesse no sonho, eu sabia que se tratava de Anísio. Então Estevão me entregava um alicate e ordenava que eu arrancasse a tatuagem da pele de meu pai. Eu protestava, mas Estevão insistia aos berros, dizendo que era preciso fazer aquilo. Meu pai, submisso e de cabeça baixa, apenas repetia: “É preciso, meu filho”. (AQUINO, p.26 – 2003)

Na volta para casa, Ivan questiona a proximidade que Alaor tinha com a “casa de ninfetas”. Ao ser indagado, Alaor diz ser sócio, complementando que: “a onda do momento é a diversificação de negócios”. Talvez pelo seu caráter eclético no emprego de seu capital, em diferentes segmentos, sem perceber, tinha iniciado um novo contrato com o matador Anísio, que mais tarde tornar-se-ia seu sócio, ocupando assim o lugar de Estevão, não com um grande percentual de ações, mas com a liberdade da dupla Ivan e Alaor em mãos. Todo esse arranjo, que dá a Anísio uma posição de superioridade, deveria ser desmontado em seguida, após a efetivação do acordo e o pagamento do combinado. Ele, o matador, então, desapareceria de suas vidas, seria esquecido e tudo voltaria ao normal. Só que as coisas não acontecem exatamente assim. Não porque Anísio vá exigir mais e mais dinheiro, como seria de se esperar, mas porque ele vai querer ocupar um outro espaço, querendo fazer parte daquilo tudo, daquelas vidas que não são a sua, a inclusão de um matador da periferia em meio ao luxo dos “politicamente corretos”. Começando aí uma incursão interclasses. Após executar o "empreiteiro honesto", Estevão – o maior acionista da companhia que não concordava com o contrato ilícito capitaneado pela dupla Alaor e Ivan – Anísio faz uma visita ao escritório de seus contratantes, cumprimenta-os como se fossem velhos amigos, elogia a reprodução de Cartier- Bresson pendurada na parede, e pede um emprego:

“Quando abri a porta, Anísio veio em minha direção, com a mão estendida. Anísio entrou na minha sala, examinou o ambiente e se deteve diante da reprodução de Cartier-Bresson” (AQUINO, p.69 – 2003)

O matador de Marçal Aquino gosta do que vê e se acha bastante digno a pertencer àquele lugar. Tem gestos seguros e controle emocional. Ameaça com tranqüilidade. Mais uma vez, a sensação de desconforto ficava com os empresários, não só pelo medo de serem desmascarados, mas também pela vergonha de terem aquele sujeito ao seu redor, com suas roupas fora de moda e seu jeito abusado. Como a narrativa é feita por um dos sócios, o dos “calos e da barriga”, acompanhamos esse desconforto até as suas raízes.

“Na manhã seguinte, quando cheguei à construtora, Anísio já estava lá. Sentado numa das poltronas da recepção, ele conversava animadamente com nossa secretária. Ao me ver, Márcia parou de rir na hora. Anísio me cumprimentou e perguntou se estava tudo bem. Resmunguei a resposta e fui para minha sala. Antes de entrar, ainda consegui ouvi-lo perguntando a Márcia se ela já havia reparado como a maioria das pessoas acorda mal-humorada. Meu trabalho não rendeu. O tempo inteiro me senti oprimido pela presença de Anísio na empresa. De vez em quando, ouvia suas risadas na recepção. O filho da puta estava à vontade.” (AQUINO, p.78, 2003)

Mas se Anísio não se sente desconfortável diante dos empreiteiros, também não é imune à sua aura de poder. Não basta para ele ter dinheiro e circular em seus ambientes. Quer ter influência, ser como eles. Por isso leva um amigo seu até o escritório, recomendando-o a um empréstimo, numa clara demonstração de força:

“Na tarde daquele dia, Anísio havia entrado na minha sala acompanhado por um mulato barrigudo. Este é o Claudino, meu cumpadre, ele disse. Sou padrinho da filha dele. E explicou a situação: o homem estava desempregado havia meses e, como não achava trabalho, planejava abrir um bar na periferia em que morava. Precisava de um empréstimo para isso.” (AQUINO, p.91 – 2003)

Da mesma maneira, Anísio fez um churrasco para comemorar seu aniversário e praticamente exigiu a presença de seus “novos amigos”, falando em desfeita e olhando de cara feia. Ou seja, pretendia mostrar para seus antigos conhecidos que agora fazia parte de um outro mundo, mas ainda precisava convencer a si mesmo disso - daí a necessidade de se relacionar socialmente com gente rica, o que deixa os empreiteiros horrorizados, é claro.

realidade, algo acontece inevitavelmente com os sentidos. Na sociedade de risco o homem está alerta para não perder a sensibilidade que o norteia na vida. Os cinco sentidos guiam o homem na sociedade de riscos múltiplos”.^3

O filme, lançado em 2001, segue de forma bem próxima a estrutura da narrativa da obra literária. Sem deixar a desejar, a atuação dos artistas também merece um destaque especial, uma vez que o clima de tensão por que passam os personagens, oferecido aos leitores do livro, permanece vivo na tela do cinema. Como já mencionado, o filme contribuiu para a finalização do romance de Aquino, talvez desta forma aumentando sua importância no circuito cinematográfico e literário, sendo ganhador dos prêmios do Festival de Brasília como melhor direção e melhor filme, prêmio do Sundance Film Festival de 2002, como melhor filme Latino-Americano.

“O filme salva o romance: em primeiro lugar, por dar conta das falhas; em segundo, por ser um bom filme, dirigido de forma competente pelo cineasta Beto Brant, apontado pela crítica como uma das melhores produções recentes do cinema nacional. Devido aos procedimentos da linguagem cinematográfica, o problema da focalização é resolvido graças á mobilidade do foco narrativo e das mudanças de perspectiva, operadas pela câmera, e pela concepção da montagem a ser escolhida, que elabora reenquadramentos e continuidade temporais.” 4

O desenvolvimento da trama do filme é fidedigno à obra literária. O fluxo de consciência de Ivan, no filme representado por Marco Ricca, segue a risca todo o jogo que Aquino usa para dar um toque thriller a sua obra, mostrando na composição da narrativa uma característica peculiar a este gênero, que também pode ser aproximada às cenas do filme dirigido por Beto Brant. Um personagem que se autoflagela por ter se permitido participar de um crime, onde ele e seu sócio, Alaor, que tem seu nome no filme mudado para Giba, na figura de Alexandre Borges, sente-se mais culpado por ter feito parte do “acordo-assassino” do que efetivamente matado o sócio majoritário da empreiteira.

“Se pensarmos no filme de Brant como uma espécie de thriller , a montagem manejada em O Invasor resultaria de uma prática concebida pela escola americana tradicional, na sua narrativa linear, na qual se é obrigada a esperar a cena seguinte para compreender, já que a cena seguinte dá sentido a cena anterior. Quanto ao gênero, logo nos vem à mente Sam Peckinpah, diretor

3 MAIA, João In Estéticas da Crueldade, p.125-126. 4 GANDIER, Ângela. O Invasor de Marçal Aquino – quando os manos e os bacanas cheiram o mesmo pó. In Estéticas da Crueldade, p.

americano cujo cinema girou exatamente em torno do universo barra pesada da marginalidade. Estas ressalvas tentam reafirmar o que foi dito anteriormente, ou seja, que as tendências atuais do cinema brasileiro não nos autorizam a falar na possibilidade do surgimento de um cinema autor.”^5

Além do jogo de consciência, vivido por Ivan, a crítica que Aquino problematiza é a questão do crime disseminado em todas as esferas sociais, ou seja, os mais “abastados” como – por uma convenção social – não são permitidos a sujarem as mãos com sangue, delegam poderes a um outro que, separado por questões histórico-sociais, se submete a tal iniciativa, havendo uma aproximação entre classes sociais distintas, em busca de um objetivo comum. Luiz Zanin Oricchio comenta em seu livro cinema de novo: um balanço da retomada o caráter que é peculiar à dupla de empreiteiros, reforçando a tese de uma corrupção pessoal e profissional desde o início da trama e mais tarde justificando a crise pessoal sofrida por Ivan:

“Há, desde o início, um delineamento de caráter dos dois personagens. Giba é o arrivista, integralmente convicto de que qualquer método é bom para se vencer na vida. Ivan é menos adaptado a ética dominante. Ainda sente um pouco de escrúpulos e tenta pular fora do barco. Mas é um fraco, outro traço bem distribuído pela totalidade da população, e acaba fazendo o que Giba deseja. Sente culpa, entra em crise, quase põe tudo a perder. Não chega a ser um personagem positivo, Longe disso.” 6

À proporção que Anísio invade o espaço, antes negado a ele, aumenta a decadência da dupla de empresários, pois eles jamais poderiam esperar que a aproximação, da filha de Estevão uma suave menina desajustada aos padrões elitistas da sociedade que pertencia, com o matador seria o ponto de partida para o início de outro grande desastre na vida dos empresários. A realidade dos que vivem em qualquer cidade grande é indescritível e real. A natureza da realidade é cruel. O matador é o inimigo e, Marina, filha de Estevão, é ao mesmo tempo, vítima e refúgio desse matador, como uma ponte que ele percorreria até atingir o seu maior objetivo: pertencer à classe dos mais ricos.

5 Idem, p. 137-138. 6 ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo – um balanço da retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p.177.

assumia o papel de “dono” dando ordens e ameaçando de demissão os peões de uma obra administrada por Ivan e Giba. Enquanto isso, em paralelo, Ivan – perturbado por ele mesmo – tenta buscar uma alternativa para se proteger do perigo, armando-se com um revólver, conseguido com um segurança, sem se dar conta de que sua fantasia o atrapalhava e mais tarde o condenaria. Ao longo do filme, a loucura de Ivan aumenta e Giba procura por Anísio para que este possa dar uma solução em seu sócio arrependido de ter compartilhado com o crime. De inimigo para amigo em apenas alguns dias, Anísio, já na casa de Marina, vestido com um roupão, aparentando ser dono do espaço recebe a visita de Giba que pede para Anísio dar uma solução para o problema. O matador, agora “elitizado” responde a Giba dizendo que não mata mais e que agora é bacana.

“Anísio é o mal, a violência, a morte, mas também aquele que vem desestruturar outra violência, aquela bem posta e bem arranjada, a do mundo dos altos negócios. Não seria a primeira vez que uma platéia de classe média esclarecida simpatiza com a idéia de uma violência que vem de fora e desarruma aquilo que ela entende ser matriz da grande violência social do país: o abismo das classes sociais, uma das piores distribuições de renda do planeta, a indiferença das elites, o caráter predatório do capitalismo à brasileira.” 9

A dialética cruel entre centro e periferia é mostrada no filme. Sem glamour , a violência percorre as camadas sociais, comunicando assim sua presença insólita em qualquer lugar social. O filme, assim como o livro, condensa- se em uma situação dramática, cheia de pormenores morais e sociais, levantando a questão do dinheiro que pode comprar tudo e de que honrando com nossos deveres sociais podemos dormir tranqüilos, longe de qualquer ameaça.

“Esse desencadear de forças que, uma vez libertas, já não podem mais ser controladas, parece metáfora bastante boa sobre o estado atual da sociedade brasileira. Depois de uma história secular de injustiças de todos os tipos, má distribuição de renda, opressão, achincalhe e chacota sobre os mais fracos, descuido com a educação e a saúde, com o básico e o mínimo que todos precisam para viver e ter esperança – depois de tudo isso –, a boa sociedade, a nossa sociedade de homens honestos, começa a ser atingida e se pergunta, perplexa, o que fez para merecer tanta infelicidade.” 10

9 ibidem, p. 180. 10 Ibidem, p. 205.

4.1 A invasão do outro: amigo ou inimigo?

O retrato da sociedade paulista que é feito tanto pela obra literária O Invasor de Marçal Aquino, como pelo filme homônimo de Beto Brant, levanta questões sociais e principalmente a questão humana: até que ponto um ser- humano é capaz de chegar para que suas vontades prevaleçam diante do outro? Seria este um indício da violência social? Há aproximadamente vinte séculos, filósofos, sociólogos e psicanalistas tentam chegar a um conseso sobre a necessidade de reconhecer no outro um semelhante e, talvez, um irmão para poder ocupar uma posição de ser humano, ser social, porém essa perspectiva vem sendo constantemente escarnecida pelos fatos.

Diante da presença insólita de Anísio, Ivan desenvolve um processo de auto-reconhecimento e começa a ver no outro uma ameaça a sua integridade social e moral. Ivan incomoda-se mais do que Anísio o faz.

Eugène Enriques em seu artigo O outro, semelhante ou inimigo? Menciona que:

“O outro está, portanto, presente, já de início, com suas cargas positivas e negativas, e não é de surpreender que mais tarde, embora seja indispensável para a construção do sujeito como ser humano, o outro possa, ao mesmo tempo, aparecer na forma de adversário, ou mesmo de inimigo que busca a eliminação psíquica ou física do sujeito.” 11

O sociólogo questiona o modo como o outro entra na construção do sujeito humano em duas formas: uma forma imaginária e uma forma simbólica. No caso de O Invasor , Anísio, apesar de ser real e estar presente na vida de Ivan, passa a agir de uma forma mais imaginária do que real, pois as idéias que Ivan oxigena só existem em sua mente. Anísio age de uma forma fria e sua presença é essencial para que as fantasias de Ivan tornem-se realidade, levando-o a se entregar. Enriques desenvolve a idéia da imagem especular, conceito previamente discutido por Lacan:

“A imagem especular é, portanto, a imagem do semelhante, mas ela nos adverte da presença de um outro “si mesmo” no espelho, e de um outro real que nos fala, nos designa e nos atribui qualidades e defeitos. Assim, se o outro nos constitui em nossa unidade, também nos constitui em nossa divisão. Pois ele nos lembra

11 ENRIQUEZ, Eugène. O outro, semelhante ou inimigo? In Civilização e Barbárie, p.46.

inimigo potencial dedicado à nossa destruição interna.” (ENRIQUES, p.49,

A chamada feita por Aquino em sua obra – a questão da violência social – tornou-se um fator para a compreensão do cinismo presente da cultura brasileira. A violência está sendo disseminada em diferentes segmentos sociais, como já mencionado anteriormente e como sua veiculação na mídia é freqüente, torna-se complicado pensar o Brasil, hoje, sem levar em conta esse “fenômeno” como fator social e cultural. Todavia, não apenas essa presença marcante da violência representa uma novidade de expressão, mas os seus diferentes modos de manifestação completam algo que deixa a sociedade bastante perplexa. São atitudes violentas que surpreendem , que parecem vir de toda parte (a exemplo do livro temos a violência como fio condutor tanto da classe alta, na figura dos empreiteiros, como na classe da periferia, na figura de Anísio) que se instalam e corroem famílias e pessoas consideradas de boa índole.

“Os poderes constituídos parecem insuficientes e/ou impotentes para lidar com ela – a violência –. A sociedade civil se vê cada vez mais desprotegida e, de modo cada vez mais claro, formula-se aqui e ali, um discurso que fala de ”justiça pelas próprias mãos.” 13

Levantar a questão do lugar da violência nas classes sociais torna-se tarefa árdua, uma vez que, constantemente, seu lugar oscila e hoje parece ocupar um espaço cada vez maior. Já se foi o tempo em que as classes marginalizadas detinham o rótulo de “classe violenta” e que as classes mais favorecidas eram tidas apenas como vítimas. O que ocorreu com os sócios, em O Invasor foi justamente uma aproximação entre classes, como eles não tinham coragem ou preparo para “executar o serviço” se viram obrigados a contratar alguém especializado nesse tipo de trabalho, aproximando-se de uma outra classe. Em seu artigo: Violência urbana e constituição de sujeitos políticos , Suely Sousa de Almeida, corrobora com a as diferentes gradações que a violência social apresenta:

13 PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O Brasil do sertão e a mídia televisiva. In Linguagens da Violência, p.121 – 2000

“A violência urbana tem gradações diferenciadas e é assimilada de formas distintas de acordo com as frações de classe e as categorias sociais contra as quais é dirigida. Quando esta modalidade de violência é impingida aos setores mais privilegiados da população, as reprovações sociais e legal são inequívocas. No entanto, ao atingir os setores historicamente excluídos – exclusão que já encerra, em sua própria lógica, boa dose de violência –, as reações são ambíguas, dada a associação exclusão – marginalidade – violência, e sua conseqüente banalização. Incluir esta forma de violência na agenda nacional de direitos humanos exige embates e negociações.” 14

Seguindo esse raciocínio, pode-se chegar a conclusão de que Marçal Aquino mostra que se torna mais fácil contratar alguém de uma outra classe social, a mais inferior, seguindo os preceitos apresentados em sua obra, para praticar a violência, poupando os “bons moços” de terem sua imagem associada com tamanha atrocidade, ou seja, tornou-se mais cômodo para Ivan e seu sócio, se comunicarem com alguém da periferia, considerado apto para tal serviço, do que eles mesmos praticarem o crime. Pode-se cogitar uma suposta ocupação social das classes distantes dos grandes centros através desse tipo de prática, ou seja, se há uma demanda por um crime por parte dos habitantes da alta sociedade e se existe oferta do outro lado, porque não estreitar os laços de convívio, mesmo sendo através de uma ação nada convencional? Dialogando com Luiz Eduardo Soares, ex-subsecretário de Pesquisa e Cidadania da Secretaria de Segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, em seu artigo Uma interpretação do Brasil para contextualizar a violência , observamos que ele divide em três partes as modalidades da violência, são elas: a modalidade de violência criminal que se verifica nos circuitos em que operam as elites econômicas e políticas; a violência que se verifica, com fins lucrativos, sobretudo nos circuitos geográficos em que vivem os mais pobres e por último a violência que atravessa todos os circuitos sociais e não tem fins lucrativos, nem se submete a cálculos estratégicos, movidos por interesses mercantis. Em todas as três modalidades classificadas pelo ensaísta, a que mais se aproxima da obra aqui estudada é a violência criminal com fins lucrativos que transitam entre as classes.

14 DE ALMEIDA, Suely Souza. Violência urbana e constituição de sujeitos políticos. In Linguagens da violência, p. 102, 2000

A prática da violência por parte do assassino pode até certo ponto ter contribuído para sua inclusão, pois agora ele era o principal agente transformador da realidade social que se encontrava inserido. Pode-se pontuar o fato: antes de ter sido descoberto pelos empresários, Anísio era um pobre morador da periferia, após ser contratado, passou a fazer parte de uma outra camada social. Seu incurso rumo a urbanização e a obtenção de um status quo indica a transformação por que passa a sociedade contemporânea.

“O urbano, nas análises recentes sobre violência, deixa de ser o lugar exclusivamente do moderno e dos comportamentos racionais de tipo utilitarista, abrindo-se a pesquisas sobre intensa fragmentação cognitiva e valorativa dos seus habitantes e sobre os canais de circulação entre os diferentes “mundos” que ali interagem. Nesse caso, a qualidade “urbana” da violência aponta menos para o repertório clássico da sociologia – com os temas da migração interna e da inadaptação dos migrantes ao universo moderno-industrial – e mais para a tensão constitutiva das cidades contemporâneas, em uma chave, por sua vez, menos normativa e mais compreensiva.” 17

A transformação do espaço urbano das grandes metrópoles brasileiras, ocupado agora por Anísio, um antigo morador da periferia, reflete a transformação pela qual a sociedade contemporânea atualmente passa. Uma intensa alteração com inclusão de diferentes valores sociais. O livro com este enfoque sugere que essa mesclagem de classes e conseqüentemente o estabelecimento de um entre-lugar da violência, a distância entre tais práticas cruéis fica cada vez menor, pois antes, os atos violentos eram restritos a camadas sociais tidas como inferiores, agora já não há mais essa secção.

“Enfim, pode-se dizer que a discussão sobre a violência urbana no Brasil tem abandonado a preocupação estrita com os nexos entre a pobreza e o crime e apontado para questões mais amplas – a delinqüência, o desregramento e a generalização social de práticas violentas – , derivadas de causas igualmente mais complexas, como, por exemplo, a ausência de uma cultura cívica e a insociabilidade que tem presidido o processo de individuação nos grandes centros urbanos do país.” 18

Com base nesta análise, é possível observar que há uma dimensão ainda pouco freqüente na discussão sobre a violência nos grandes centros urbanos.

17 DE CARVALHO, Maria Alice Rezende. Violência no Rio de Janeiro: uma reflexão política. In Linguagens da violência, p. 53 –2000. 18 Idem, p.54.

Trata-se da dimensão política, que nos grandes centros estreitou excessivamente a cidade e de uma forma pouco convencional condena todos ao regresso à barbárie. Desprovida de qualquer legitimação, a violência nas grandes cidades avança com seus personagens mais ecléticos possíveis, o matador de aluguel, o bandido, o empresário e aos poucos se acomoda diante das autoridades tentando dessa forma ocupar um lugar seu, na representação de diferentes grupos que tentam afirmar sua unicidade e não a sua exclusão, buscando um reconhecimento na fragmentação social existente. A violência estando desterritorializada passa a sucumbir ao longo do tempo, por mais que possa parecer impossível, porém suas manifestações em diferentes espaços sociais a sustenta e faz com que ela emane ramificações, ocupando cada vez mais territórios sociais distintos. Entretanto, torna-se complexa a avaliação das inúmeras ramificações da adoção por uma dada sociedade ou grupo social da violência como parte constitutiva de seu elenco de artefatos culturais, mas posso inferir que, se há um consenso que nos permite falar da presença da violência em uma sociedade intensamente fragmentada, ela se processa em uma dinâmica, semelhante àquela observada por Michel de Certeu, de oscilação entre singularidade e pluralidade:

“De um lado, ela [a cultura] é aquilo que “permanece”, do outro, aquilo que se inventa. Há, por um lado, as lentidões, as latências, os atrasos que se acumulam na espessura das mentalidades, certezas e ritualizações sociais, via opaca, inflexível, dissimulada nos gestos cotidianos, ao mesmo tempo os mais atuais e milenares. Por outro lado, as irrupções, os desvios (...). A cultura no singular impõe sempre a lei de um poder. A cultura no plural exige incessantemente uma luta.” (Michel de Certau, 1993: 239-242).

Em situações onde a inclusão social acaba por ocorrer através de meios sórdidos, a criação do desejo de ser bem sucedido produz a circulação, de forte valor simbólico, entre o “oficial” e o proibido, entre a via restrita do consumo e o caminho do sucesso, o reconhecimento da capacidade e a futura carreira criminal.