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Este texto discute a crise espiritual de lutero e os princípios de sua nova teologia, enfatizando a decadência do homem e a justificação pela fé. Lutero rejeitou a autoridade da igreja e do papado, negando o livre arbítrio do homem e afirmando a imutabilidade da natureza humana definida pela corrupção do pecado. Ele sublinhou que a intervenção misericordiosa da graça podia salvar o homem através do dom da fé.
O que você vai aprender
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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4.1 – A crise espiritual de Lutero e os princípios de sua nova teologia: a natureza decaída do homem e a justificação pela fé.
A crise espiritual de Lutero se define pela natureza de seu profundo sentimento religioso, de seu desespero da miséria humana diante da onipotência infinita de Deus, de seu reconhecimento de que o homem, manchado pelo pecado, é incapaz de salvar-se mediante seus próprios esforços, estando predestinado à danação eterna, a menos que a Graça divina intervenha em seu socorro. A crise de Lutero parece já se iniciar em 1505, quando, repentinamente, abandona a carreira que pretendia seguir no ramo do Direito, e ingressa no convento agostiniano de Erfurt^1. Ela se intensificaria após 1511, com sua saída de Erfurt, e estabelecimento definitivo em Wittenberg. Foi sua crise espiritual que precipitou a formação de sua nova teologia, caracterizada por um agostinianismo extremado, tendo como centro a noção da natureza decaída do homem. Movido por sua angústia, Lutero formulou novos princípios para o verdadeiro sentimento cristão, indo contra a autoridade da Igreja e do Papado em matéria de fé, e criticando todo um conjunto de atitudes não só religiosas, mas sociais e políticas, ligadas à tradição romano católica^2 , que professava a crença no livre arbítrio do homem e de seu poder na condução do processo que o levaria à salvação. Dava início, então, ao movimento reformador, que iria cindir a cristandade ocidental, disseminando, a partir da questão confessional, conflitos políticos e sociais por toda a Europa dos meados do século XVI. Lutero deu forma pormenorizada às suas convicções teológicas no Du Serf Arbitre , onde tematizou da maneira mais detalhada e profunda a sua concepção pessimista da natureza humana_._ Respondendo ao Essai sur le libre Arbitre , com que Erasmo pretendeu demonstrar a inconsistência da teologia luterana, em seus
(^1) SKINNER, Q., op. cit., p. 289. (^2) Ibid., p. 285.
princípios fundamentais, o reformador atacou de forma violenta a noção ampla e elevada das virtudes e capacidades do homem, cerne do ideário humanista, tal como vimos expresso no Discurso sobre a Dignidade do homem de Pico, e afirmado na Diatribe de Erasmo. No Du Serf Arbitre, Lutero negou veementemente, o poder da ação do homem em transformar a si mesmo e ao mundo, afirmando, a partir do resgate de Sto Agostinho, uma natureza humana imutável, definida em sua essência pela corrupção do pecado, e, portanto, predestinada à danação. Negou também, o valor moral da experiência no mundo, enquanto espaço do pecado, situando-a no domínio da absoluta necessidade. A religiosidade de Lutero não se fundava no amor, mas no temor de Deus. Sua consciência, sempre intranqüila sobre o estado de sua alma, se em Graça ou danação, à mercê de uma divindade inescrutável em seus desígnios, se nutria de uma concepção de Deus como um juiz terrível, exigente e tirânico, a quem se deveria aplacar com boas obras, jejuns, mortificações da carne e pregações. Não era este, entretanto, o ensinamento que havia recebido de seus mestres e superiores em Erfurt, a começar por Juan Staupitz, que sempre afirmara a crença em um Deus consolador, pai das misericórdias, a quem os homens deveriam confiar e ter esperanças, e do Cristo redentor, personificação do perdão, tal como aparecia nas orações da liturgia romana. O temor da justiça divina permaneceu sempre arraigado no coração de Lutero, fruto de sua religiosidade profunda, convulsa e trágica^3. Precisava estar absolutamente certo de sua salvação, mas tal certeza não teria efeito para ele se baseada em razões objetivas pela persuasão, pelo mero cumprimento dos sacramentos e de boas obras, somente adquiriria sentido se vivenciada internamente como segurança subjetiva, paz de espírito. A estrita observância monacal e a prática de penitências com que procurou implorar o auxílio divino para pacificar seu espírito e extirpar sua inclinação maléfica, resultaram sempre em fracassos lamentáveis. Toda sua luta era vã, o pecado continuava a manchar sua alma, fazendo-se expressão de sua angústia espiritual, e sinal de sua incapacidade intrínseca em cumprir a Lei de Deus. Plenamente consciente de não poder mudar seu destino por suas próprias forças,
(^3) Ibid., p. 295.
desobediência, ao pretenderem obter a salvação por suas próprias ações. De acordo com Lutero, a fé, com que o cristão tornava-se objeto da misericórdia divina, traduzia-se antes de tudo, no reconhecimento de sua própria miséria, pelo qual se confiava inteiramente à onipotência da justiça de Deus, que, pronunciada no espírito como um milagre, jamais poderia ser representada pelo poder corrupto da Igreja Romana. Uma humildade de tipo passivo e derrotista se afirmou, portanto, no cerne de sua religiosidade. Sua confiança na Graça redentora de Deus, se fez acompanhar da convicção profunda de que a Lei divina havia sido formulada no Velho Testamento para que o homem se visse diante de sua incapacidade em cumpri-la, e encarasse o abismo que o separa do Criador. O verdadeiro cristão, segundo Lutero não se desesperava de sua miséria, mas, se deleitava na fé ardorosa que depositava em Cristo, que cumprira por nós a Lei que somos definitivamente incapazes de cumprir, nos libertando, assim, de suas exigências^5. Não é demais lembrarmos que, a intervenção de Deus e a iluminação pela fé, na perspectiva luterana não tornam o homem justo, não o purifica do pecado, mas apenas inicia um processo de regeneração, cujo desenlace só pode se dar após a morte. A ação do cristão no mundo deve ser apenas fortalecer sua fé na salvação futura através da Palavra viva de Deus. É importante sublinharmos que para Lutero, a misericórdia de Deus não tem qualquer proporção com os méritos humanos, desta forma, aqueles que são agraciados pela fé, não são exatamente os justificados, mas sim os que devem ser justificados após a morte. Como bem nos mostra Lucien Febvre: “ Para Lutero, a justificação deixa subsistir o pecado e não dá nenhum lugar à moralidade natural. A justiça própria do homem é radicalmente incompatível com a justiça sobrenatural de Deus.”^6 A revelação decisiva na religiosidade de Lutero se dá por ocasião da leitura dos textos de São Paulo. Nos escritos do apóstolo encontra a fórmula fundamental de sua descoberta: “ o justo viverá pela fé ”, que corrige como " somente pela fé "^7. Ele afirmava ter encontrado no s textos paulinos, a essência de sua doutrina, e, segundo
(^5) LUTERO, A Liberdade do Cristão , p. 31. (^6) Ibid., p. 59. (^7) SPENLÈ, J. E., O Pensamento Alemão , p. 11.
suas próprias palavras, em seu Comentário à Epístola aos Romanos : “ a luz clara quase o suficiente para clarear toda a Escritura”^8. Nesta sua obra de 1516 Lutero estabeleceu o significado do princípio da justificação pela fé, da indiferença entre as boas e as más ações dos homens, do ponto de vista de sua salvação, a partir da ênfase em sua natureza corrompida. Deus surge aqui, não como a justiça imanente dos teólogos, mas como uma vontade ativa e radiante, dando-se ao homem para que o homem se lhe dê de volta 9 :
“Primeiramente, temos de conhecer a linguagem e saber o que São Paulo quer dizer com estas palavras: lei, pecado, graça, fé, justiça, carne, espírito e coisas semelhantes, caso contrário a leitura de nada adiantará. Neste caso, tu não deves entender a palavra Lei de maneira humana como se fosse uma doutrina referente às obras que precisam ser feitas ou não, como ocorre com as leis humanas, quando a lei é cumprida por meio de obras apesar de o coração não estar presente. Deus julga considerando o fundo do coração; por isso, a sua Lei exige também o fundo do coração e não se dá por satisfeita com obras, mas pune, ao contrário aquelas obras que não vêm do fundo do coração por serem hipocrisia e mentira. Por essa razão, todas as pessoas são chamadas de mentirosas em si, pois ninguém cumpre a Lei de Deus do fundo do coração e porque todos encontram dentro de si mesmos a indisposição para o bem e a disposição para o mal. (...) Por isso, ele afirma no capítulo 7 que a Lei é espiritual. O que significa isso? Se a Lei fosse carnal as obras lhe bastariam. Sendo, porém, espiritual, ninguém a satisfaz, a não ser que tudo que tu faças venha do fundo do coração. Mas ninguém dá um coração assim, a não ser o espírito de Deus; é ele que iguala a pessoa à Lei.” 10 Em outubro deste mesmo ano, Lutero escreve a Spalatino, capelão de Frederico II, discordando da interpretação erasmiana dos escritos do apóstolo. Considerava um equívoco o entendimento do humanista acerca das obras e do cumprimento da Lei, no encarecimento que ele concedia em sua religiosidade à colaboração da ação do homem para a salvação, iniciando por si, um processo de purificação de sua natureza, pelo cultivo das virtudes dos Antigos e da moral cristã. Dizia que Erasmo deveria dar mais importância ao pecado original e ler mais Sto Agostinho. Mais tarde, em carta a Juan Lang, um partidário seu de Erfurt, insistiria na
(^8) LUTERO, Prefácio à Epístola de São Paulo aos Romanos , In: A Liberdade do Cristão , p. 82. (^9) FEBVRE, L., Martín Lutero un destino , p. 64. (^10) LUTERO., op. cit., p. 85.
dela, certa quantia em dinheiro. Mais do que isso sustentava que a Graça indulgencial era a mesma Graça pela qual o homem se reconciliava com Deus, não sendo necessário, nesta perspectiva, o arrependimento interno do pecador para sua salvação. Tais postulados iam radicalmente contra os princípios da religiosidade cristã de Lutero. Veementemente indignado, ele escreveu uma carta de protesto ao Arcebispo de Mongúcia, juntamente com uma cópia de suas recém escritas Noventa e cinco teses contra as indulgências. Não foi ele o primeiro em seu tempo, a levantar a voz contra os abusos da venda de indulgências, o Cardeal Cisneros, por exemplo, grande reformador da Igreja na Espanha já o havia feito antes em carta a Leão X^13. As teses de Lutero, entretanto, iam além da denúncia das indulgências como uma devoção supersticiosa, continham a impugnação de certos dogmas tradicionais, que o tornariam suspeito de heresia. Escandalizado, com o teor das teses, o Arcebispo de Mongúcia as enviou para os teólogos e juristas de sua Universidade, para que eles as examinassem e dessem seu parecer. Estes concordaram com o Arcebispo declarando que era preciso entabular um processo contra seu autor. As teses foram, então, transmitidas a Roma. A condenação Papal viria em 1518, com uma intimação de Leão X para que Lutero se retratasse. Mas, em carta ao Cardeal Cayetano, representante do Papa no Sacro Império, Lutero se recusava a obedecer às ordens do Pontífice, declarando não poder revogar uma doutrina fundada nas Escrituras indo contra a sua própria consciência. A questão sobre as indulgências marca o prelúdio da reforma. Como afirma Donald Kelley 14 , o caminho que leva das Noventa e cinco teses à negação radical do primado romano em 1520, foi contínuo e direto, impulsionado pela difusão e tradução dos escritos de Lutero por toda a Europa, através das novas técnicas da imprensa. Este caminho foi semeado de controvérsias e disputas acadêmicas que funcionaram como veículo primário de formação da doutrina luterana. O conteúdo heterodoxo das teses de Lutero se baseia no princípio da justificação pela fé. Seus leitores descobriram nelas uma atitude de autosuficiência teológica, e uma rebeldia latente^15. A heterodoxia se dava na negação do tesouro
(^13) Ibid., p. 330. (^14) KELLEY, D., The Begining of Ideology, p. 25. (^15) GARCÍA-VILLOSLADA, R., op. cit., p. 346.
espiritual da Igreja, ou seja, da crença de que ela dispunha dos méritos de Cristo e dos Santos, para conceder aos homens a remissão de seus pecados. Não poderia haver para Lutero, nenhuma instituição que pudesse funcionar como mediadora entre o homem e Deus, sendo, o mundo, em sua perspectiva, a dimensão da degeneração do pecado, e, portanto, totalmente oposto ao reino espiritual da infinita liberdade e majestade divinas. Lutero rechaçava a validade tradicional da penitência, questionava a autoridade espiritual da Igreja, e podia fazê-lo sem medo, proclamando uma nova concepção da religião cristã, pois Frederico II, o eleitor da Saxônia havia se comprometido em defendê-lo. Por esta época, Lutero ganhava cada vez mais notoriedade e formava adeptos na Universidade de Wittenberg, fundada por Frederico. Dali, ele desafiaria o Pontificado Romano e a todos os doutores e teólogos escolásticos, na formulação de sua própria doutrina, a partir da pureza da Palavra divina, uma vez desvendado o verdadeiro sentido das Escrituras pela luz da fé. As intervenções diplomáticas de Frederico, que não queria que um dos mais eminentes teólogos e professores de sua Universidade fosse condenado como herege, determinaram a mudança de atitude de Roma em relação à questão luterana. Leão X sabia da imensa influência que o eleitor da Saxônia tinha sobre os negócios do Império junto a Maximiliano, e procurava entabular com ele uma política aduladora e de negociações na esperança da retratação de Lutero, ou que Frederico permitisse que o monge fosse enviado a Roma. Em abril de 1518, os 27 conventos da observância alemã enviaram seus representantes a Heidelberg na reunião trienal do capítulo da Congregação, Lutero foi designado como representante de Wittenberg. As autoridades Romanas se enganaram quando esperaram que lhe fosse feito, nesta ocasião, alguma espécie de repreensão pelos membros da Congregação. A sombra do príncipe lhe protegia contra qualquer autoridade. Lutero aproveitou a ocasião favorável para expor as doutrinas fundamentais de sua nova religiosidade, indo além da crítica às indulgências. Defendeu na sala do convento de Heidelberg 40 teses contra a teologia tomista e a filosofia aristotélica, repudiando o princípio escolástico de que o homem pode compreender a Lei de Deus com sua razão e usá-la para sua conduta no mundo. Com
já proliferavam, também, por este tempo, os inimigos declarados do reformador, e as disputas acadêmicas, frutos das polêmicas que sua nova doutrina despertava entre os doutos, se multiplicavam, tais como as que o envolvera com Juan Tetzel em Frankfurt, e mais tarde, em Leipzig com Juan Eck., um dos maiores teólogos da Alemanha de então, que havia escrito contra Lutero, classificando sua doutrina de sediciosa, temerária e herética^17. Na disputa de Leipzig, com Eck, em 1519, Lutero negou sistematicamente a autoridade da Igreja, num prelúdio de seus escritos mais violentos contra a tradição romano-católica, que viriam a lume no ano seguinte. Pela primeira vez, condenou de forma explícita e veemente a regra da fé verdadeira estabelecida pela Igreja, retirando o poder tradicional do Papa e dos concílios, e centrando-se num novo critério, ou seja, na autoridade única das Escrituras, cujo sentido só poderia ser revelado numa persuasão de natureza interior pela luz do Espírito 18. Dessa forma Lutero rompia com séculos de uma vigorosa tradição segundo a qual, a verdade de qualquer proposição religiosa se fundava no fato de que era autorizada pela Igreja. Suprimia qualquer base objetiva para se testar a verdade de uma afirmação em matéria de fé, pois que o único novo critério por ele apresentado como princípio de sua teologia, consistia numa persuasão interior, e, portanto, pertencia somente ao foro privado da consciência. Neste momento, sublinha Popkin 19 , Lutero deixava de ser mais um reformador, atacando os abusos e a corrupção da Igreja, para tornar-se líder de uma revolta intelectual, a partir da natureza do conflito que inaugurava acerca do critério da verdade teológica, na tematização de um problema fundamental dos escritos pirrônicos de Sexto Empírico: " A caixa de Pandora aberta por Lutero em Leipzig viria a ter conseqüências extremamente amplas não só na teologia mas em todos os domínios intelectuais do ser humano ”.^20 A Alemanha dos inícios do século XVI é próspera, cheia de cidades deslumbrantes, com burgueses ricos e ativos, e formada por principados cada vez
(^17) Ibid., p. 348. (^18) POPKIN, R., op. cit., p. 26. (^19) Ibid. (^20) Ibid., p. 29.
mais poderosos empenhados num vigoroso esforço de concentração política e territorial, devendo, contudo, a legitimidade de seu poder ao Sacro Império^21. Se na maior parte dos Reinos europeus desta época, como França e Inglaterra, ricos e prestigiosos monarcas reuniam em torno de si as forças e energias da nação nos tempos de crise, a Alemanha sob a autoridade do Sacro Império, se definia pela falta de unidade política e moral, num agregado de anseios contraditórios, dispersos numa multidão de Reinos e cidades fortes econômica e politicamente. A submissão, ainda que apenas nominal, ao poder do Império, já fraco e decadente, impedia que os Reinos germânicos se unificassem numa organização principesca com um chefe soberano realmente digno do nome 22. Exatamente quando Lutero explicitava o radicalismo de suas idéias em Leipzig, morria o Imperador Maximiliano, e humanistas exaltados como Crotus Rubianus e Ulrich Von Hutten incitavam e catalizavam os anseios difusos nos territórios germânicos, de forjar uma independência, em meio ao vazio do trono imperial e o forte desejo de libertação do centralismo romano que tiranizava os povos sob a autoridade do Papa 23. Como nos lembra Skinner^24 , o descontentamento das autoridades seculares européias contra o poder de intervenção do Papado em seus territórios, cobrando impostos em seu nome, e controlando a concessão de benefícios no interior de cada Igreja nacional, já se fazia sentir desde a Idade Média. Em vários países os governos seculares conseguiram entrar num acordo com a Sé romana, e obtiveram concessões da Igreja, exercendo completo controle jurisdicional em seus territórios. Foi o caso da França em 1348, e da Espanha em 1482, que sempre manteriam relações amistosas com Roma. Nos países do norte, entretanto, em que as disputas sobre os direitos da Santa Sé, não encontraram soluções, a pressão sobre o Papado tenderia a aumentar, mesmo antes de Lutero. Foi o caso da Alemanha, da Inglaterra e da Escandinávia, que logo iriam aderir à Reforma. A crise entre as autoridades seculares da Alemanha e o Papado, encontrou uma forte expressão no texto do humanista Wimpfeling, Agravos
(^21) FEBVRE, L., Martín Lutero , p. 95. (^22) Ibid., p. 98. (^23) FEBVRE, L., op. cit., p. 129. (^24) SKINNER, Q., op. cit., p. 341.
pudesse ser realizada ainda na Europa a conciliação e a paz cristã, num espírito de unidade embebido de cultura Antiga, idealizado por Erasmo e seus seguidores. Nos inícios de 1520, no entanto, o círculo da ortodoxia mais e mais se fechava contra o reformador alemão. Eck, seu grande adversário, partia então, para Roma com a intenção declarada de obter da cúria Papal a sua condenação. Foi-lhe útil nesta ocasião o conhecimento da doutrina luterana que tivera a oportunidade de adquirir com a disputa de Leipzig. Em junho era, enfim, publicada em Roma a bula Exsurge Domine, que excomungava Lutero, entregava ao fogo as suas obras e lhe dava o prazo de sessenta dias para retratar-se. Porém, todos sabiam que isso não aconteceria. O Papa já se havia convencido, então, da ineficácia da política de negociações. Ineficácia esta, que se mostrava mais flagrante diante da perda de influência de Frederico junto ao Império, após a morte de Maximiliano e eleição de Carlos V 30. Mas, as idéias luteranas já se haviam difundido largamente, e ganhavam cada vez mais adeptos não somente entre os príncipes. Melanchton, representando a posição de muitos dos humanistas alemães, tomava o partido de Lutero, e em 1521, colocaria em ordem a doutrina do mestre em seus célebres Loci communes^31_._ Alguns artistas como Durer, Cranach e Holbein já abandonavam a Igreja Romana. Os burgueses urbanos, sobretudo, se inclinavam à Reforma, e numerosas cidades, como Constança, Nuremberg e Magdeburgo se recusariam a aplicar a condenação do luteranismo, muitas delas viriam a abraçar sem reservas a nova doutrina nos anos seguintes. Erasmo também se punha ao lado de Lutero, no interesse de salvaguardar seu ideal da reforma conciliatória, comprometendo-se a obter da Santa Sé, e se necessário impor-lhe com toda a deferência necessária, a suspensão da sentença. Para isso incitava os ânimos dos humanistas luteranos contra a bula, através de libelos anônimos, e usava de toda a sua influência junto aos conselheiros do Imperador para que o estimulassem à busca de uma solução pacífica para o conflito. As atividades do polemista Hutten em sua defesa, por sua vez, não foram menos expressivas. Assim que a bula foi publicada, apoderou-se dela e a divulgou por toda a Alemanha com
(^30) GARCIA-VILLOSLADA, R., Martín Lutero v. 2, p. 453. (^31) DELUMEAU, J., Nascimento e Afirmação da Reforma , p. 94.
mordazes glosas antipapais, tais como esta: “Não é de Lutero que se trata e sim de todos nós; o Papa não saca a espada contra um só, mas nos ataca a todos. Escutem- me, despertem porque sois germanos!”^32_._ Lutero podia estar seguro de que não seria preso sem fortes resistências. Em dezembro de 1520, queimou publicamente em Wittenberg a bula que lhe condenava e o corpus da Lei canônica, dramatizando sua ruptura definitiva com a tradição eclesiástica e a autoridade da Igreja Romana^33. Esta ruptura seria reafirmada oficialmente na Dieta de Worms em 1521, numa apresentação inflamada do novo critério^34 que justificava sua teologia, ou seja, a certeza subjetiva, a convicção interna do cristão iluminado pela fé ao ler os textos sagrados. Recusando retratar-se, Lutero pronunciou em Worms, estas já famosas palavras:
"A menos que eu seja convencido de estar errado pelo testemunho das Escrituras ou (pois não confio na autoridade sem sustentação do Papa e dos concílios, uma vez que é óbvio que mais de uma vez eles erraram e se contradisseram) por um raciocínio manifesto eu seja condenado pelas Escrituras a que faço meu apelo, e minha consciência se torne cativa da palavra de Deus, eu não posso retratar-me e não me retratarei acerca de nada , já que agir contra a própria consciência não é seguro para nós, nem depende de nós. Isto é o que sustento. Não posso fazê-lo de outra forma. Que Deus me ajude. Amém. "^35 Logo quando se afastava de Worms, o reformador foi levado ao castelo de Wartburg por cavaleiros de Frederico II, onde permaneceu a salvo do perigo de ser encontrado e enviado à justiça. Ali permaneceu até o ano seguinte, quando voltou às pressas para Wittenberg, ansioso por retomar a direção do movimento, que se descaracterizava sob a liderança de Carlstadt, um fervoroso partidário seu, desde a disputa de Leipzig. As prédicas de Carlstadt são em geral consideradas como a principal origem das dissensões mais radicais da Reforma 36 , que desde então proliferariam na Europa entre novos profetas celestes, anabatistas e sacramentários. Carlstadt negava o valor do batismo dos recém nascidos, e afirmava a necessidade do batismo dos adultos
(^32) Apud FEBVRE, L., Martín Lutero un destino , p. 148. (^33) KELLEY, D., op. cit., p. 25. (^34) POPKIN, R., op. cit., p. 27. (^35) Apud. Ibid.
4. 3 – Doutrina luterana e o Servo Arbítrio.
Foi em 1520 que Lutero publicou suas obras mais incendiárias. Em A Igreja no Cativeiro da Babilônia , destruía a autoridade clerical acusando sua corrupção face à pureza do espírito evangélico. No Manifesto à Nobreza Alemã , nitidamente inspirado por Hutten, exortava os príncipes e nobres da Alemanha à rebeldia contra um papado explorador que suprimia as liberdades cristãs essenciais, se imiscuindo no âmbito interno e espiritual dos fiéis. Finalmente em A Liberdade do Cristão, expunha a natureza da liberdade dos verdadeiros crentes. Se as duas primeiras obras se referiam, respectivamente, à doutrina do sacerdócio universal dos cristãos (diante do qual a Igreja perdia a primazia e legitimidade de seu poder), e das responsabilidades que os príncipes e os nobres deveriam ter no âmbito de uma religião reformada, A Liberdade do Cristão encerrava a crença essencial de Lutero^39 , numa salvação que depende só da fé, em oposição à obediência externa aos ditames da ortodoxia católica. Assim Lutero define e explica essa liberdade:
“Um cristão é um senhor livre sobre todas as coisas e não se submete a ninguém. Um cristão é um súdito e servidor de todas as coisas e se submete a todos. (...) Para compreender estas duas afirmações contraditórias sobre a liberdade e a servidão, devemos considerar que todo cristão possui uma natureza dupla, espiritual e corporal. Segundo a alma ele é chamado de espiritual, novo e interior; segundo a carne e o sangue ele é chamado de homem corporal, velho e exterior.” 40 No cerne da afirmação de Lutero está a concepção do homem corrompido essencialmente pelo pecado, ele é na verdade, um mal permanente do qual o homem só pode libertar-se na sua dimensão espiritual onde se faz objeto da intervenção externa da luz divina expressa no dom da fé. Esta última, fundamentalmente oposta à dimensão mundana da degeneração absoluta é tradução de uma liberdade que só se realiza ao preço da negação do mundo e do próprio homem, do reconhecimento que ele faz pela fé, de sua miséria, e, enfim, de sua condição irremediável de servo do pecado no plano temporal.
(^39) MESNARD, P., op. cit., p. 181. (^40) LUTERO , A liberdade do Cristão , p. 25.
Nesta perspectiva, o verdadeiro cristão, livre espiritualmente pela fé, é, em contrapartida, resignado à sua inalterável condição de pecador, despreza, assim, o significado tradicional do cumprimento da Lei e das boas obras assim como a obediência à Igreja, pois sabe que as coisas externas do mundo jamais poderão influir em sua natureza interna constitutiva, cuja promessa de modificação só pode se dar pela poderosa intervenção da Graça. É ela, que pronunciada no espírito cumpre as verdadeiras ações virtuosas, impossíveis de serem cumpridas pela vontade humana farisaica, manchada pela soberba. As prédicas de Lutero invertiam, assim, a relação tradicional entre as boas obras e a salvação, exigindo uma transformação total de nossos juízos morais: em seu ponto de vista, não são as boas ações que fazem um homem bom, mas, inversamente, é o homem bom que pratica boas ações. Face à expressão maciça da Igreja visível, ele opunha sua Igreja invisível^41 , daqueles que se encontravam unidos entre si pelos laços secretos da mesma e verdadeira fé, libertadora das coisas do mundo. Estes são, em sua doutrina, os verdadeiros crentes, juntos na comunhão profunda de suas alegrias espirituais, ignorando os laços externos de uma submissão hipócrita ao Papa e aos princípios da Igreja. A essência da religiosidade luterana, o princípio da união entre o homem e Deus, reside na negação do livre arbítrio humano, no reconhecimento de sua natureza decaída, na sua postura passiva e resignada ante a majestade do poder divino, através do qual, e somente dele, pode obter sua salvação. Tal negação tão radical e apaixonada escandalizava a Erasmo, que após ter envidado todos os seus esforços para salvar a verdade evangélica numa solução pacífica da questão, convencia-se finalmente da inevitabilidade do cisma, retirando-se da cena do conflito às vésperas da Dieta de Worms. Contestou então, a crítica que lhe havia sido feita por Lutero da importância que dera ao livre arbítrio em sua tradução da Epístola aos Romanos. A ameaça quietista e imoralista da interpretação luterana se lhe afigurava muito pior do que a ameaça farisaica^42. Em carta a Melanchthon datada de 1524, criticava a atitude dos reformadores que, por esta época já disseminavam conflitos pela Europa, estando em profundo
(^41) FEBVRE, L., Martín Lutero, un destino , op. cit., p. 154. (^42) BATAILLON, M., op. cit., p. 148.
idéias mas a pessoa de Erasmo, sua honra e fama de intelectual moralista. Nas primeiras páginas do livro, escritas em forma de carta endereçada ao humanista, Lutero dedica-se a desmascará-lo. Se ele era considerado superior no mundo intelectual europeu pela força de sua eloqüência, por sua linguagem impecável, de acordo com as regras da retórica Clássica, não podia, entretanto, aos olhos do reformador, dissimular, o conteúdo de seu discurso:
“ton petit livre à toi ma paru si bas et si vil que j
ai vivement plaint davoir Sali ton language si beau et si talentueux avec de telles immondices, et que je me suis indigne qu
une si indigne matière fût véhiculée par les si précieux ornements de leloquence: comme si l
on transportait des déchets et des excréments dans des vases dor et d
argent.”^47
Mais adiante, continua Lutero: “ si je suis malhabile sous le rapport du language, je ne suis pas sous le rapport de la connaissance, grace a Dieu.”^48. Considerava Erasmo como uma nulidade em conhecimentos teológicos, sendo fortemente perigoso por poder seduzir com sua linguagem àqueles que o lêem sem estar plenos internamente do espírito^49. A primeira parte do Du Serf Arbitre se inicia com a apresentação da definição do livre arbítrio dada pelo humanista em sua obra: “nous entendons ici par libre arbitre la force de la volonté humaine telle que par elle lhomme puise s
attacher aux choses qui conduissent au salut éternel ou se détourner de celles-ci”.^50 Lutero a considera obscura e mal explicada, e nos lembra da tradição jurídica que afirma que se alguém fala de modo obscuro, quando poderia falar claramente, pode-se usar de suas próprias palavras para o contradizer^51. Assim, propõe-se a analisar tal definição
(^47) “seu pequeno livro me pareceu tão baixo e tão vil que eu lamentei vivamente por você ter sujado sua linguagem tão bela e tão talentosa com tais imundícies e me indignei que uma matéria tão indigna fosse veiculada pelos preciosos ornamentos da eloqüência como se transportássemos dejetos e excrementos em vasos de ouro e prata.” LUTERO, 48 Du Serf Arbitre , p. 64. “ sou inábil no que diz respeito à linguagem, mas não o sou no que concerne ao conhecimento, graças a Deus.” Ibid. 49 50 Ibid., p. 65. “Nós entendemos aqui por livre arbítrio, a força da vontade humana, pela qual o homem pode se ligar às coisas que o conduzem à salvação eterna, ou se desviar delas.” Ibid., p. 181. 51 Ibid., p. 184.
parte por parte, usando seus conhecimentos das Escrituras para refutá-la na afirmação do princípio fundamental de sua teologia:
“Quant aux ‘choses qui conduissent au salut éternel’, je pense que ce sont les paroles et les oeuvres de Dieu, qui sont offertes à la volonté humaine, pour quelle s
y ‘attache’ ou sen ‘détourne’. Or j´apelle Parole de Dieu aussi bien la Loi que l
Evangile. La Loi exige les ouevres, lEvangile la foi. Rien d
autre, en effet, ne nous conduit à la grace de Dieu ou au salut éternel, si ce nest la Parole et l
oeuvre de Dieu: puisque la grace ou lEsprit est la vie même, à laquelle nous sommes conduits par la Parole et l´ouevre de Dieu. Mais cette vie, ou ce salut éternel, est une chose incompréhensible pour l
intelligence humaine, comme Paul le dit, en se reférent à Ésaie, I Corinthiens II: ‘C´est une des choses que loeil n´a point vue, que l
oreille na point entendue et qui n´est point montée dans lê coueur de l
homme, une chose que Dieu a préparée pour ceux qui l`aimaient.”^52
4. 3.1 – formação religiosa de Lutero.
Se quisermos plantear uma explicação histórica, ainda que remota, da aparição de certos dogmas luteranos não podemos esquecer dos possíveis influxos do contexto da decadência da teologia nos séculos XIV e XV, cuja atmosfera esteve presente na formação religiosa de Lutero e dos humanistas. As tradicionais disputas teológicas escolásticas, que, de início tinham finalidade pedagógica e de precisão de idéias, transformavam-se por esta época em meros torneios de agudeza dialética entre tomistas, escotistas e nominalistas. Não se distinguiam então, a palavra de Deus da palavra dos homens, já não mais se sabia onde terminava a interpretação do mestre e onde começava o dogma da fé, a teologia se tornava, portanto, totalmente obscura^53. O empenho de humanistas como Erasmo e
(^52) “ Quanto às coisas que conduzem à salvação eterna , eu penso que são as palavras e as obras de Deus, que são oferecidas à vontade humana para que a elas se ligue ou delas se desvie. Ora, eu chamo Palavra de Deus, tanto a Lei como o Evangelho. A Lei exige as obras, o Evangelho a fé. Nada mais, com efeito nos conduz à Graça de Deus e à salvação eterna, além da Palavra e a obra de Deus: já que a Graça, e o Espírito são a vida mesma, à qual somos conduzidos pela palavra e pela obra de Deus. Mas esta vida, ou essa salvação eterna, é uma coisa incompreensível pela inteligência humana, tal como diz Paulo, referindo-se à Isaías, I Coríntios II: Esta é uma das coisas que os olhos não podem ver, que os ouvidos não podem ouvir, que não está posto no coração dos homens, é uma das coisas que Deus preparou para aqueles que o amam 53 .” Ibid. GARCIA-VILLOSLADA, R., Raíces Historicas del Luteranismo , p. 101.