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Neste documento, freud discute a importância da teoria da sedução na configuração da sexualidade adulta, destacando a influência dos primeiros impulsos e a importância do papel do pai. O texto aborda as fantasias eróticas, a onipotência de figuras plenitudinárias e o medo de figuras terríveis, explorando as raízes psíquicas dos desejos e dos medos. O autor também discute a semelhança entre as explicações pseudomaterialísticas e as explicações religiosas.
Tipologia: Slides
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A carta que Freud redigiu a Fliess em 21 de setembro de 1897 é o marco de uma reorientação teórica decisiva para o nascimento da Psicanálise. Até então o autor acreditava, baseando-se no discurso de seus pacientes, que a causa da histeria era invariavelmente um trauma sexual na infância, uma sedução que a criança sofrera por parte ou de um adulto ou de uma outra criança que por sua vez reproduzia uma experiência que ela própria sofrera por iniciativa de um adulto. As experiências sexuais infantis que consistem na estimulação dos órgãos genitais, em atos semelhantes ao coito, e assim por diante, devem portanto ser consideradas, em última análise, como os traumas que levam a uma reação histérica nos eventos da puberdade e ao desenvolvimento de sintomas histéricos (...) todo relacionamento dessa natureza entre crianças pressupõe a sedução prévia de uma delas por um adulto (Freud, 1996 [1896a], pp. 203/210). Re-significada mais tarde como abuso, a lembrança da experiência seria conflituosa o suficiente para ser recalcada e substituída por sintomas neuróticos. Mas estas experiências causariam também as perversões, quando, ao invés de mobilizar defesas, persistissem como compulsões (Id., 1996 [1896b], p. 286). Portanto o adulto sedutor, pervertido, teria sofrido o mesmo tipo de trauma em sua infância. O sedutor precisava ainda ser significativo o suficiente para causar o trauma: na grande maioria dos casos, se tratava de “algum adulto que cuidava da criança — uma babá, uma governanta, um tutor ou, infelizmente, com freqüência grande demais, um parente próximo” (Id., 1996 [1896a], p. 204). De fato, com mais freqüência do que Freud estava disposto a admitir na época, o próprio pai da criança aparecia como promotor do trauma: “cada vez mais me parece que o ponto essencial da histeria é que ela resulta de perversão por parte do sedutor, e mais e mais me parece que a hereditariedade é a sedução pelo pai” (Id., 1996 [1896b], pp. 286-287). É neste contexto de hipóteses que a carta de 1897 introduz a descrença de Freud quanto à objetividade das lembranças e associações relativas ao trauma. Diante da grande freqüência de sintomas histéricos, em variados graus – Freud
identificava alguns em si próprio –, lhe pareceu inverossímil que tantos pais – inclusive o seu – promovessem tais experiências. A influência da fantasia na memória e o caráter psíquico da realidade começavam a se substituir aos determinantes factuais como norteadores de suas análises: no inconsciente, não há indicações da realidade, de modo que não se consegue distinguir entre a verdade e a ficção que é [investida] com o afeto. (Assim, permanecia aberta a possibilidade de que a fantasia sexual tivesse invariavelmente os pais como tema.) (...) Parece que novamente se tornou discutível se são somente as experiências posteriores que estimulam as fantasias, que então retornam à infância (Id., 1996 [1897], p. 310). Em janeiro de 1899 concluía, com base em sua auto-análise, que as fantasias são produtos de períodos posteriores e são projetadas para o passado, desde o que era então o presente até épocas mais remotas da infância (...). À pergunta: “O que aconteceu nos primórdios da infância?”, a resposta é “nada”. Mas o embrião de um impulso sexual estava lá (Id., 1996 [1899], p. 327). Desde então “caiu por terra a insistência no elemento “traumático” presente nas vivências sexuais infantis” (Id., 1996 [1905c], p. 260), e Freud passou a se referir à sedução principalmente como uma fantasia inconsciente ou ficção mnêmica que permeava as lembranças da infância e se interpunha entre estas e os sintomas histéricos. As fantasias de sedução, em seu teor passivo, eram distorções defensivas da atividade pulsional – “tentativas de rechaçar lembranças da atividade sexual do próprio indivíduo” (Ibid., p. 260) – análogas aos delírios paranóicos: “as fantasias dos histéricos sobre maus-tratos sexuais e cruéis correspondem, às vezes nos mínimos detalhes, às queixas dos paranóicos perseguidos” (Id., 1996 [1901], p. 251 nota 2). Mas é a fantasia que rege também os próprios desempenhos sexuais “pervertidos”, apesar de nunca realizar-se completamente nestes, dada a irredutibilidade da realidade psíquica à material. A incapacidade em perceber este descompasso, a mesma que permite que fantasias de sedução sejam tomadas como lembranças, influenciara a avaliação científica das perversões até então. Em uma conferência sobre o desenvolvimento da libido e as organizações sexuais Freud estranha o fato de essas perversões sexuais estarem sujeitas a uma condenação muito especial, que chegou mesmo a afetar a teoria e se opôs à avaliação científica delas.
que motivavam sintomas e atuações por si próprias. Isto indica que, por um lado, um sujeito pode exibir sintomas neuróticos e atuações perversas sem ter sido abusado na infância, e, por outro, que o abuso real não impõe um destino, perverso ou neurótico, à pulsionalidade. 4. Fantasia e masoquismo A natureza libidinal das fantasias de maus-tratos na infância é esclarecida quando Freud as remete ao cenário edipiano. Em 1919, em Uma criança é espancada – uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais (Freud, 1996 [1919a]), o autor analisa as fantasias de espancamento com as quais se deparou na clínica de pacientes neuróticos. Tais fantasias surgem precocemente, durante a infância, e sofrem modificações sucessivas, mas têm como conteúdo comum uma criança estar sendo espancada por alguém. Suscitam boa dose de prazer, mas atraem sobre si sentimentos de vergonha e culpa, sendo ainda mais hesitantemente relatadas do que as lembranças do início da vida sexual (Ibid., p. 195). A forma mais primitiva da versão feminina da fantasia é “o meu pai está batendo na criança que eu odeio” (Ibid., p. 201). Nesta versão, a criança espancada é uma competidora, freqüentemente um irmão ou irmã, e o adulto que bate é o pai; motivada pelo ciúme, a fantasia apropria-se da compreensão de que “ser espancado, mesmo que não doa muito, significa uma privação de amor e uma humilhação” (Ibid., p. 202). Seu significado primeiro, pois, é “o meu pai não ama essa criança, ama apenas a mim” (Ibid., p. 202). A forma final da fantasia introduz algumas modificações: o pai se torna um adulto indeterminado ou um substituto (como, por exemplo, um professor), e a criança espancada desdobra-se em várias, todas desconhecidas. O próprio espancamento pode transformar-se em um “castigo ou humilhação de outra natureza” (Ibid., p. 201). O amor pela instância punitiva desaparece, mas a fantasia passa paradoxalmente a ser acompanhada de excitação sexual, “proporcionando, assim, um meio para a satisfação masturbatória” (Ibid., p. 201).
A versão masculina da fantasia, por sua vez, desperta a excitação sexual através de uma cena em que o sujeito é ele próprio espancado, não pelo pai, mas pela mãe. Freud infere destes elementos que há uma versão da fantasia, comum a ambos os sexos, que foi recalcada. Nesta, a criança se coloca como a vítima do pai, satisfazendo ao mesmo tempo o desejo incestuoso por ele e a culpa que advém da re-significação deste desejo como transgressão: “esse ser espancado é agora uma convergência do sentimento de culpa e do amor sexual. Não é apenas o castigo pela relação genital proibida, mas também o substituto regressivo daquela relação” (Ibid., p. 205). As fantasias sado-masoquistas tornam-se então tributárias do próprio investimento do pai como objeto sexual – “a fantasia de espancamento tem sua origem numa ligação incestuosa com o pai” (Ibid., p. 213) –, que se choca com a proibição da transposição das barreiras entre as gerações e, no caso dos meninos, também dos sexos. A fantasia de espancamento, atuada ou não, é um resíduo do complexo de Édipo, uma cicatriz deixada pelo conflito. A sexualidade infantil, que é mantida sob repressão, atua como a principal força motivadora na formação de sintomas; e a parte essencial do seu conteúdo, o complexo de Édipo, é o complexo nuclear das neuroses. Espero haver levantado, neste artigo, a expectativa de que as aberrações sexuais da infância, bem como as da maturidade, são ramificações do mesmo complexo (Ibid., p. 218). A forma final da fantasia feminina é sádica, mas deve a excitação que desperta à organização masoquista precedente: a cena só é excitante se as vítimas
O medo de ser devorado pelo animal totêmico (o pai) origina-se da organização oral primitiva; o desejo de ser espancado pelo pai provém da fase anal-sádica que a segue; a castração, embora seja posteriormente rejeitada, ingressa no conteúdo das fantasias masoquistas como um precipitado do estádio ou organização fálica, e da organização genital final surgem, naturalmente, as situações de ser copulado e de dar nascimento, que são características da feminilidade (Ibid., p. 182). É justamente ao discutir a sexualidade feminina (Id., 1996 [1931]) que o autor estabelece de forma mais consistente a influência do desamparo, a impotência original comum a ambos os sexos, na economia pulsional e na ambivalência das satisfações passivas. Neste texto Freud aborda a relação com a mãe como precursora da rivalidade ambivalente com a instância paterna, investigando o que chamara em um artigo precedente (Id., 1996 [1925b]) de “longa pré-história” do complexo de Édipo. Este passara a constituir, “sob certos aspectos, uma formação secundária” (Ibid., p. 280) a uma insuficiência narcísica primeva que o autor ainda limitava ao psiquismo das meninas, por remetê-lo a um registro fálico, onde se apresenta como castração. No texto de 1931, Freud vai mais longe. Antes de qualquer investimento do pai como objeto – que começa a tomar as feições de uma fuga, um refúgio de uma fase mais primitiva –, a mãe, ao mesmo tempo intensamente amada e insatisfatória, fornece as bases para os conflitos posteriores por características intrínsecas a essa ligação: O amor infantil é ilimitado; exige a posse exclusiva, não se contenta com menos do que tudo. Possui, porém, uma segunda característica; não tem, na realidade, objetivo, sendo incapaz de obter satisfação completa, e, principalmente por isso, está condenado a acabar em desapontamento e a ceder lugar a uma atitude hostil (Id., 1996 [1931], p. 239). A intensidade destes primeiros impulsos é tomada como “superior a qualquer outra que surja depois” (Ibid., p. 251). O mal-estar, intenso, pois, da impossibilidade estrutural de satisfação plena das pulsões é elaborado pela transformação da insuficiência da mãe em uma intencional avareza, como demonstram as acusações de que a mãe não amamentou o suficiente, por exemplo. A insaciabilidade que acompanha o investimento intenso e exclusivo da mãe dá origem, assim, a uma hostilidade igualmente intensa, que poderá ser justificada de diversas formas, entre elas a acusação tanto de sedução quanto de interdição: a de
que a mãe, como primeiro objeto amoroso de toda criança, “primeiro despertou a sua atividade sexual e depois a proibiu” (Ibid., p. 242). O conflito em ambos os sexos se configura em função da ambivalência inerente a esta relação, residindo a crucial diferença em que “os meninos podem lidar com seus sentimentos ambivalentes com a mãe dirigindo toda sua hostilidade para o pai” (Ibid., p. 243). O pano de fundo destes investimentos é a antítese entre passividade e atividade. A este respeito faz diferença o fato de que “as primeiras experiências sexuais e sexualmente coloridas que uma criança tem em relação à mãe são, naturalmente, de caráter passivo. Ela é amamentada, alimentada, limpa e vestida por esta última” (Ibid., p. 244). Do desamparo, e da inescapável erotização dos cuidados recebidos, então, deriva uma posição passiva que é universal e originária, a mesma que configura o masoquismo erógeno e tem influência decisiva nos pesadelos, sintomas histéricos, delírios de perseguição e fantasias de espancamento ou sedução por adultos perversos: “o papel desempenhado, em seu começo, pela higiene infantil reflete-se na fantasia muito comum que transforma a mãe ou a babá em sedutora” (Ibid., p. 240). Inicialmente, o esforço da criança em reagir ativamente ao desamparo – “parte do trabalho que lhe é imposto de dominar o mundo externo” (Ibid., p. 244)
Das Unheimliche “relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador — com o que provoca medo e horror”, e com sentimentos “de repulsa e aflição” (Ibid., pp. 237-238). Quando adjetiva animais conota selvageria, indica que não são domesticados, e é aplicado a uma pessoa “quando lhe atribuímos intenções maldosas” (Ibid., p. 260 ). O termo tem afinidades com o latim suspectus (‘suspeito’) e, quando aplicado a pessoas, com o inglês repulsive (‘repulsivo’). Em árabe e hebreu “significa o mesmo que ‘demoníaco’, ‘horrível’” (Ibid., p. 239 ). Em português a tradução padrão, ‘estranho’, não faz jus a uma série de conotações, entre elas, a sensação de estar indefeso diante do que é unheimlich por ele ser indefinível e imprevisível; a idéia de algo insidioso e sorrateiro; a idéia de algo grandioso; a idéia de algo súbito e próximo; e a idéia de algo fantasmagórico, “que torna o das Unheimliche inapreensível e inefável e o dota de certa “irrealidade” ou de um “realismo fantástico”” (Hanns, 1996, p. 233). As alternativas de tradução incluem ‘lúgubre’, ‘sinistro’, ‘inquietante’ e ‘macabro’. ‘Estranho’ também adiciona uma conotação de absoluta alteridade – podendo significar ‘estrangeiro’, por exemplo –, algo bem mais ambíguo no termo alemão: este último deriva de Heim , que significa “lar” ou “casa”, mas que pode denotar, sob a forma heimlich , algo tanto familiar e conhecido quanto secreto e oculto (Ibid., pp. 231-235). É esta relação com o que é familiar, porém secreto, que permite a Freud valorizar a definição, proposta por Schelling, desta categoria do assustador “como algo que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz” (Freud, op. cit., p. 258). Trata-se, claro, do ameaçador retorno de pulsões recalcadas. O sentimento de algo sinistro, de intenções maldosas e poderes secretos, permeia, por exemplo, a percepção social da epilepsia e da loucura na medida em que o leigo vê nelas a ação de forças previamente insuspeitadas em seus semelhantes, mas ao mesmo tempo está vagamente consciente dessas forças em remotas regiões do seu próprio ser. A Idade Média atribuía, com absoluta coerência, todas essas doenças à influência de demônios e, nisso, a sua psicologia era quase correta (Ibid., p. 260). Freud indicara em um artigo anterior que “o diabo nada mais é do que a personificação da vida instintual inconsciente reprimida” (Id., 1996 [1908b], p.
162- 163 ): se o epilético e o louco parecem estar possuídos, subjugados pelo diabo ou pela pulsionalidade, o perverso parece encarnar tanto o primeiro quanto a segunda. No texto de 1919, as pulsões que despertam o horror têm uma configuração específica, remetida à mesma atitude feminina para com o pai que examinamos: aqui ela apresenta-se como ponto de impasse entre incesto e castração. Freud identifica esta configuração num conto de Hoffman, “O homem da areia”, e dela deriva o efeito emocional de terror que sua leitura suscita. Natanael, o protagonista, é atormentado desde criança pelos “dois opostos em que a imagem paterna é dividida pela sua ambivalência” (Id., 1996 [1919b], p. 250, nota 1). Suas relações tanto com figuras paternas ‘boas’ quanto com sua amada, Clara, são invariavelmente perturbadas pela chegada, sob vários disfarces, do ‘homem da areia’, o “pai temido, de cujas mãos é esperada a castração” (Ibid., p. 249). O homem da areia “aparece sempre como um perturbador do amor” (Ibid., p. 249), em primeiro lugar, aliás, do amor ao pai: no início do conto Natanael narra como a iminência de sua chegada, anunciada pela mãe, era o que marcava a hora em que, quando criança, tinha que ir dormir, separando-se da companhia agradável do pai, que pouco via durante o dia (Hoffman, 1993, p. 114). Quando pergunta à mãe quem é o homem da areia que o separa de seu pai, já o qualificando de “malvado”, a mãe desmente sua existência: diz que significa apenas que o menino não consegue manter os olhos abertos, “como se alguém tivesse jogado areia neles” (Ibid., p. 115). Mas ele vê nisso uma negação, preferindo a explicação que a babá lhe dá, segundo a qual se trata de um homem perverso “que aparece para as crianças quando elas não querem ir dormir e joga- lhes punhados de areia nos olhos, de forma que estes saltam do rosto sangrando” (Ibid., p. 115). Esta versão diabólica da instância paterna não só sobrevive à morte de seu pai real, como é também responsabilizada por ela. Arrancar os olhos, diz Freud, simboliza a castração: “a ameaça de ser castrado excita de modo especial uma emoção particularmente violenta e obscura, (...) é essa emoção que dá, antes de mais nada, intenso colorido à idéia de perder outros órgãos” (Freud, loc. cit.). Esta emoção, que podemos chamar de horror,
involuntária que cerca o que, de outra forma, seria bastante inocente, de uma atmosfera [sinistra], e que nos impõe a idéia de algo fatídico e inescapável” (Ibid., p. 255). A sensação de desamparo diante do sinistro e suas personificações, experimentada também em alguns estados oníricos, é, antes de tudo, portanto, a sensação de desamparo do eu diante não do mundo externo, mas do isso e do aspecto mortífero das pulsões, poderoso o bastante “para prevalecer sobre o princípio de prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco” (Ibid., p. 256). Assim, se o horror às perversões é uma manifestação do sinistro, da angústia diante do iminente retorno de pulsões mortíferas recalcadas, o séquito oitocentista de perversos insere-se na linhagem de personificações da inescapável e involuntária ação destas pulsões, uma série que se inicia com os pais e termina, escreveria Freud, com o “poder sombrio do Destino, que apenas poucos dentre nós são capazes de encarar como impessoal” (Id., 1996 [1924b], p. 185). Esta projeção, digamos, do isso no mundo externo pode ser intensa a ponto de extinguir “a distinção entre imaginação e realidade” (Id., 1996 [1919b], p. 261 ), dando ao sinistro sua conotação fantasmagórica, “como quando algo que até então considerávamos imaginário surge diante de nós na realidade, ou quando um símbolo assume as plenas funções da coisa que simboliza, e assim por diante” (Ibid., p. 261). Certamente só encontraremos manifestações tão extremas do sinistro na vida onírica, ou em delírios e alucinações – situações em que a angústia, para Freud (2001 [1925a], pp. 98-99), é plenamente traumática –, mas elas parecem estar subjacentes também à vocação teratológica que a Medicina Legal oitocentista herdou do discurso religioso que a precedeu. A importância atribuída então aos dismorfismos é esclarecida um pouco mais, por sinal, quando Freud a relaciona à projeção da inveja: Quem quer que possua algo que seja a um só tempo valioso e frágil, tem medo da inveja de outras pessoas, na medida em que projeta nelas a inveja que teria sentido em seu lugar. (...) quando um homem se destaca devido a atributos visíveis, e particularmente atributos não atraentes, as outras pessoas estão prontas a acreditar que a sua inveja se eleva a um grau de intensidade maior do que o habitual, e que essa intensidade a converterá em ação efetiva (Id., 1996 [1919b], p. 257). Se tomarmos a própria unidade narcísica, imaginária, como algo desta espécie, ao mesmo tempo valiosa e frágil, compreenderemos o mecanismo
paradoxal que imbui o perverso de sua monstruosidade, seja ela atribuída ou assumida como semblante: não se trata de outra coisa que não o que Freud chamou de Verleugnung , o desmentido da castração. O monstro, deformado e potente, é a um só tempo invejoso e pleno – castrado e não castrado; daí encarnar a essência da periculosidade mesma. Afinal, esta é a análise que Freud faz, três anos depois, do simbolismo que envolve a “horripilante cabeça decapitada da Medusa” (Id., 1996 [1922a], p. 289), um monstro da mitologia grega. Decapitar = castrar. O terror da Medusa é assim um terror de castração (...). Os cabelos na cabeça da Medusa são freqüentemente representados nas obras de arte sob a forma de serpentes e estas, mais uma vez, derivam do complexo de castração. Constitui fato digno de nota que, por assustadoras que possam ser em si mesmas, na realidade, porém, servem como mitigação do horror, por substituírem o pênis, cuja ausência é a causa do horror (Ibid., p. 289). Assim, o monstro, bem como seu pálido representante, o perverso, são o produto paradigmático do desmentido da castração, sua negação e assunção simultâneas: castrados, posto que desejantes ou invejosos, ao mesmo tempo apresentam o falo e, portanto, mitigam o horror ao darem provas de que é possível possuí-lo. Chegamos à Verleugnung por uma via pouco usual, a do sinistro, o que tem a vantagem de indicar o quanto este operador é disseminado. Afinal, dele parecem fazer uso não só os fetichistas, mas também os gregos antigos, os teratólogos medievais e os psiquiatras oitocentistas. Pois a mitigação do horror narcísico parece começar pela própria personificação do sinistro, da localização em intenções humanas daquilo que causa angústia. É o que Freud indica, mais tarde, quando discute as raízes psíquicas do animismo, a “humanização da natureza”, que “proporciona alívio imediato” do desamparo ao criar “violentos super-homens externos” (Id., 1997 [1927], p. 28): a vida e o universo devem ser despidos de seus terrores (...). De forças e destinos impessoais ninguém pode aproximar-se; permanecem eternamente distantes. Contudo, se nos elementos se enfurecerem paixões da mesma forma que em nossas próprias almas, se a própria morte não for algo espontâneo, mas o ato violento de uma Vontade maligna, se tudo na natureza forem Seres à nossa volta, do mesmo tipo que conhecemos em nossa própria sociedade, então poderemos respirar
pendentes seios” (Ibid., p. 105), que constituem tanto a projeção da feminilidade repudiada pelo pintor quanto um indício de que seus sentimentos ternos e hostis pela mãe foram deslocados para o pai. A revolta contra a castração, por sua vez, empresta ao demônio seu caráter grotesco e disforme: uma maneira, diz Freud, de aviltar o pai: “quando um menino desenha rostos grotescos e caricaturas, podemos francamente demonstrar que neles está escarnecendo de seu pai” (Ibid., p. 102), despojando-o da unidade narcísica que o próprio menino lhe havia atribuído. Novamente, trata-se da paradoxal projeção simultânea de potência fálica e inveja do pênis, que permeia desde as “fobias animais das crianças” até o “medo de ladrões e arrombadores à noite” (Ibid., p. 102), e que parece também delimitar o impossível lugar – entre o ridículo e o monstruoso (Lanteri-Laura, 1994 [1979], p. 41) – que o perverso ocupa nas fantasias neuróticas. 4. A angústia e suas figurações Este tipo de análise, das figuras ambíguas a que se atribui a causa da angústia de castração, encontra um terreno privilegiado na experiência do pesadelo. A relação entre pesadelos e investimentos incestuosos foi investigada por Ernest Jones em seu livro On the nightmare (Jones, 1971), onde aborda a influência deste tipo de sonho de angústia na formação de toda sorte de superstição medieval, a crença não só em demônios, mas também vampiros, lobisomens e bruxas; na configuração, enfim, de toda espécie de personagem monstruosa nas fantasias. O extenso exame de Jones da literatura médica a respeito dos pesadelos impressiona por evidenciar o quanto se esteve disposto a eleger causas externas, operando à maneira de corpos estranhos, diria Freud^7 , para os sonhos de angústia: entre as hipóteses que buscavam dar conta de sua causa, encontramos desde “matéria incongruente do sangue” e “comida não-digerida no estômago” até (^7) A referência é a Esboço de Psicanálise : “Estabelecemos assim um direito a chegar a uma compreensão da vida normal da mente a partir do estudo de seus distúrbios — o que não seria admissível se esses estados patológicos, as neuroses e as psicoses, tivessem causas específicas operando à maneira de corpos estranhos” (Freud, 1996 [1938], p. 209).
“gases venenosos” e mesmo “fases da lua”^8 (Ibid., pp. 30-33). O autor nota, no prefácio à segunda edição, que tais explicações, que chama de pseudomaterialísticas, assemelham-se às explicações religiosas que atribuem os pesadelos à ação de “espíritos maus” (Ibid., p. 7), na medida em que ambas se evadem da responsabilidade pessoal do sonhador por seus desejos, e neste sentido são análogas à teoria da sedução e à etiologia traumática da histeria. No fundo, representam “defesas contra a admissão do inconsciente” (Ibid., p. 7). Em conformidade com a interpretação freudiana dos sonhos, o pesadelo será, ao invés disso, entendido como “expressão de um conflito mental” (Ibid., p. 44), de algo ao mesmo tempo “desejado e temido” (Ibid., p. 45). Quanto mais intenso for o conflito, mais a realização onírica do desejo tende a se apresentar de forma distorcida (...). Quanto mais o desejo escapou à distorção, maior a manifestação da angústia que o acompanhará. Para Jones, o pesadelo é, entre os sonhos de angústia, aquele que é acompanhado pela mais intensa angústia. Isso o autoriza a tomá-lo como uma expressão bastante clara do conflito em torno do desejo o mais intenso: o desejo incestuoso. A experiência clínica mostra que os pesadelos, ao lado da angústia, não escondem o cunho libidinoso. Seu tema recorrente é o de um visitante noturno, um demônio obsceno que se deita sobre o sonhador para copular. A semelhança desta estrutura do pesadelo com certas alucinações eróticas, em que os pacientes se queixam de abuso por parte de figuras que são tanto atraentes quanto repelentes, não escapa ao autor (Rudge, 2005, p. 83). Através da literatura médica, Jones caracteriza a forma mais típica de pesadelo como o terror de ser atacado por uma presença opressora e paralisante, freqüentemente uma sensação sufocadora de peso no peito aliada à de “total impotência” (Jones, op. cit., p. 22). O agente da opressão, seja um animal, um monstro, “ou mesmo um vago e indefinível ‘algo’” (Ibid., p. 46), tem sempre atributos como “força, energia, determinação” (Ibid., p. 46). Os sintomas observáveis de um pesadelo incluem sudorese e taquicardia – evidências de esforço, diz o autor (Ibid., p. 24) – e seus, digamos, efeitos colaterais ao acordar compreendem exaustão, indisposição, depressão e “fraqueza nos membros inferiores” (Ibid., p. 25). Destes elementos, Jones infere que o desejo incestuoso envolvido é o de ter uma relação sexual passiva: as manifestações do pesadelo serão tão mais severas, “tempestuosas e veementes” (Ibid., p. 52), quanto mais constantemente e mais intensamente recalcado for o componente masoquista da sexualidade. (^8) Tradução minha do original em inglês, como todas as citações que seguem.
‘diabo’, devil em inglês, deriva da raiz primordial DV, cujo mais arcaico campo de significação encontra-se em formas Sânscritas que congregam ‘incendiar’, ‘iluminar’, ‘atiçar’ e ‘despertar’^9 , e de onde deriva também ‘deus’ (Ibid., pp. 158- 159). Mas as próprias características físicas e mentais do diabo indicam que ele herdou os admirados poderes dos deuses antigos: seus atributos animalescos (pernas de bode, rabo) remetem a Pã, deus grego que personifica a natureza; seu odor de enxofre é análogo ao atribuído ao nórdico Thor, por ser o odor deixado após uma tempestade; a afinidade com corvos é comum ao diabo e Odin, deus maior do panteão nórdico; sua cor negra é emprestada do deus romano Saturno e de Vritra, deus indiano da escuridão (Ibid., pp. 161-162). É curioso que, por este mesmo motivo, a manobra da Igreja de “atribuir todas as suas dificuldades à atividade do Diabo, e desta maneira distrair o povo da contemplação de suas fraquezas, aterrorizando-os com um perigo externo” (Ibid., pp. 163-164) tenha ameaçado se voltar contra ela própria durante o século XII, quando as pessoas, em desespero pelo óbvio fracasso de Deus e a Igreja em aliviar sua miséria, absorveram avidamente a doutrina dos poderes maravilhosos do Diabo, de forma que não poucos se refugiaram nele; provavelmente a natureza definida da barganha nos bem-conhecidos pactos os atraia mais que as intermináveis e freqüentemente ineficazes preces aos santos (Ibid., p. 164). Os poderes sobre-humanos do diabo correspondem à idealização que a criança faz da potência sexual de seu pai, um dos quatro elementos que Jones distingue como constituindo a encruzilhada fálico-edípica que sua figura personifica. Deste primeiro aspecto, o pai admirado, deriva o caráter sedutor e tentador do diabo, além da suposição de potência e gozo pleno que muitas vezes perpassa o discurso sobre as perversões. O segundo elemento – hostilidade contra o pai – é bem mais explícito, pois o diabo é essencialmente uma figura persecutória, o inimigo declarado da humanidade. Toda a arbitrariedade paternal, crueldade selvagem, injustiça, tirania mesquinha e falta geral de razoabilidade que desfigura o Yahweh do Antigo Testamento foram herdadas por completo pelo Diabo Cristão. A semelhança deste retrato com o que (^9) div e dyu , do Sânscrito, que Jones traduz por to kindle. Vale dizer que o inglês devil , o latim deus e o grego theos derivam todos da primeira forma, div.
muitas crianças entendem como uma descrição exata de seus pais é bastante evidente (Ibid., p. 173). Evidente também é a semelhança com a conotação essencialmente sádica que tem, muitas vezes, o diagnóstico de perversão. Como vimos, no discurso de Krafft-Ebing o uso da força e o prazer em subjugar se insinuavam como critérios para caracterizar, dentro de uma psicopatologia sexual, uma perversão, pura e simplesmente. E nisto ele estava apenas transplantando para o campo da sexualidade uma analogia político-jurídica do fim do século XVIII, segundo a qual o crime é essencialmente da ordem do abuso de poder. O criminoso é sempre, de certo modo, um déspota, que faz valer, como despotismo e em seu nível próprio, seu interesse pessoal (...) [há] uma espécie de simetria, de parentesco entre o criminoso e o déspota, que de certa forma se dão a mão, como dois indivíduos que (...) fazem de seu interesse a lei arbitrária que querem impor aos outros (Foucault, 2001 [1974-75], pp. 115-116). Se o pai odiado é um anacronismo que se faz presente no discurso cristão sobre o diabo, vemos como ele possivelmente participa também do discurso revolucionário sobre o tirano, do discurso jurídico moderno sobre o criminoso e do discurso psiquiátrico oitocentista sobre o perverso. Mas o diabo também simboliza a própria criança, no complexo Filho-Pai, em sua relação com deus; o diabo, diz Jones, imita deus como a criança imita o pai. A esta projeção da posição do filho ele deve sua relação com a castração, expressa em uma de suas dismorfias típicas: é freqüentemente retratado como sendo coxo. incapacidade de andar é, entre os neuróticos, um símbolo freqüente para a impotência sexual. A crença [num diabo coxo] é, claro, altamente sobredeterminada, e tem a ver com todo tipo de idéias conectadas com o complexo de castração. Desejos de castração do Pai (Deus) estão nela contidas, enquanto por outro lado o fato do mancar ser tantas vezes o resultado de ser arremessado dos céus aponta para os medos de castração do filho, seu temor de que o pai o puna desta apropriada maneira (Jones, 1971, p. 180). Finalmente, a imitação do pai, na medida em que é tingida também pela hostilidade, dá ao diabo seu caráter rebelde, “sua desobediência insubordinada e insurreição final contra a autoridade de Deus Pai” (Ibid., p. 180). Em sua