
































Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Contudo, foi Hermine Von Hug-Hellmuth a “primeira psicanalista a se ocupar ... Hermine divergia da ideia da confluência pai-analista, defendida pelo mestre,.
Tipologia: Esquemas
1 / 40
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
As pioneiras na clínica: da “experiência pedagógica” em Anna Freud à técnica do brincar em Melanie Klein
Uma das maiores, senão a maior meta psicológica que a criança deve alcançar e que lhe toma a maior parte de suas energias psíquicas é o domínio da angústia. (Melanie Klein, 1981[1932], p.50)
Entremeada na própria história da psicanálise, a psicanálise com crianças tem sua origem na ideia defendida por Freud, em 1909, no caso Hans, de que somente a união de pai e terapeuta em uma única pessoa garantiria o tratamento analítico de uma criança. Sabemos que, naquele período de construção do campo, não foram raros os casos de psicanalistas que analisaram seus filhos ou parentes: “Anna Freud foi analisada pelo pai, Klein analisou o próprio filho, Abraham analisou a sua filha Hilda, e Jung a sua ‘pequena Agathli’” (Camarotti, 2010, 49). Contudo, foi Hermine Von Hug-Hellmuth a “primeira psicanalista a se ocupar regularmente de crianças” (Santa Roza, 1999, p.23) e o relato de suas primeiras experiências abririam o terreno para se pensar as especificidades desta clínica.
Hermine divergia da ideia da confluência pai-analista, defendida pelo mestre, argumentando que a criança não confessa jamais seus desejos e pensamentos íntimos e profundos aos pais e que a franqueza psicanalítica do filho dificilmente seria suportada pelo narcisismo parental. (CAMAROTTI, 2010, p.51) Embora pouco lembrada, muito provavelmente devido à forma trágica de sua morte^3 , Hermine Von Hug-Hellmuth foi a primeira analista a “assinalar a
(^3) Hellmuth observou e analisou seu sobrinho Rolf, filho de sua irmã Antoine. Seus escritos foram objeto de muitas críticas na sociedade psicanalítica e também pelo próprio paciente que terminou por acusá-la de maus tratos, chegando a assassiná-la tempos depois. Tal fato teve uma repercussão extraordinária tanto na imprensa como nos meios intelectuais e psicanalíticos. A educação psicanalítica de crianças passou a ser motivo de debate. (ARAÚJO, 2009, p.312)
dupla função da psicanálise infantil: curativa e educativa já que consiste não só em liberar a criança de seu sofrimento, como também proporcionar-lhe valores éticos e morais”, aproximando-se das concepções desenvolvidas posteriormente por Anna Freud. (Araújo, 2009, p.311). Vimos, nos capítulos anteriores, que a formulação do conceito de inconsciente estabelece a existência permanente do infantil no psiquismo humano. Freud identificara que a dinâmica pulsional constituinte do psiquismo humano têm suas marcas fundamentais situadas muito precocemente nas experiências vividas durante a infância. Para o autor, isso passa a ter organização, por volta dos 4-5 anos de idade, a partir do complexo de Édipo. No entanto, pesquisas posteriores de psicanalistas como Melanie Klein, Winnicott e o próprio Lacan localizam efeitos desse conflito estrutural num período bem anterior ao pensado por Freud, o que indica uma ampliação de conceitos e a própria construção de um campo teórico capaz de subsidiar a clínica com crianças. Embora encontremos nas formulações freudianas as vias de acesso à construção do campo em questão, não podemos deixar de destacar que algumas formalizações teóricas de analistas pós-freudianos tomaram a metapsicologia freudiana por um viés biológico desenvolvimentista. A confusão conceitual parece ter recaído justamente sobre a teoria da organização sexual infantil e das chamadas relações pré-genitais. Muitos psicanalistas parecem ter lido as descobertas freudianas a partir de premissas equivocadas, como se o caminho para a vida adulta fosse unilateral e ascendente e, ultrapassadas as fases do desenvolvimento libidinal, houvesse uma unificação, uma síntese pulsional que organizaria a parcialidade tão característica na sexualidade infantil em “normalização” genital no adulto, quando o Eu, já completamente formado e de posse total de suas funções, atingiria a harmonia da relação de objeto genital. (Lacan, 1956-57, p. 16). Este foi o posicionamento, por exemplo, da chamada Psicologia do Ego , corrente norte-americana surgida nos anos de 1920 cuja nomeação psicanalítica, na verdade, coexistiu com uma série de desvios e leituras equivocadas da descoberta freudiana. Dentro desta perspectiva de trabalho, destaca-se a influência das ideias defendidas por Anna Freud, filha de Sigmund Freud, e uma das primeiras interessadas em articular teoricamente a sua prática no cuidado de crianças. Baseando-se na concepção de um ego inato, capaz de se desenvolver
Interessante observarmos nesta passagem a ideia que a autora possui sobre a própria análise de adultos, com a qual constantemente compara a análise de criança: a troca dos objetos (pais) de fantasia pela pessoa concreta do analista seria não só uma vantagem, como também o objetivo do movimento da transferência analítica. No entanto, a autora parece considerar o jogo transferencial como troca imaginária. Lacan afirma que a perspectiva da psicologia do ego prioriza a dimensão imaginária da relação dual em detrimento do aspecto simbólico que há na relação do sujeito com o outro, o que produziria sérios problemas na análise, visto que a relação imaginária só pode resultar em idealização e agressividade. O objeto em questão no tratamento analítico seria um objeto idealizado, não só pelo analisando, sujeito alienado em uma imagem que acredita poder ser, pois que foi autenticada pelo outro, mas também pelo próprio analista, que, preso nas armadilhas narcísicas, acreditaria ser possível oferecer-se como modelo identificatório para o analisando (Lacan, 1956-57). Embora, de antemão, o posicionamento de Anna Freud pareça impossibilitar a legitimidade do campo da psicanálise com criança, é interessante notar que ela reserva um lugar aos pais no tratamento que dispensa às crianças, ainda que seja um lugar destinado a orientações adaptativas. Para ela, o único papel possível ao analista de crianças seria ensinar a criança “a conduzir-se perante sua vida instintiva”, influenciá-la no sentido de controlar seus impulsos já que o superego infantil ainda não alcançou um “considerável grau de independência” das figuras parentais (Freud, 1926). Em função do forte vínculo de dependência da criança em relação aos pais ou responsáveis, segundo Anna Freud, falta ao pequeno paciente “tudo aquilo que parece indispensável no caso do paciente adulto: a consciência (insight) de enfermidade, a decisão voluntária e a vontade de curar-se” (Anna Freud, 1926, p.22). A fim de tornar as condições favoráveis ao início da análise, ela desenvolve então a ideia de que é necessário um período preparatório , uma espécie de ajustamento na técnica, que pudesse induzir a criança a uma compreensão interna de sua condição de doença, transmitir confiança a fim de que haja aliança com o analista e transformar a decisão de submeter-se à análise em decisão própria. (Freud, 1926). Se nesse período que “nada tem a ver com o trabalho analítico” for alcançada as condições necessárias, ou seja, se a criança possui certa noção de que
precisa do analista para livrar-se de algum incômodo ou sofrimento, e é capaz de confiar nesse outro adulto, a análise pode vir a acontecer.
O analista deve reivindicar a liberdade de dirigir a criança neste importante ponto, a fim de poder assegurar, em certa medida, o resultado da análise. Sob a sua influência a criança deve saber como conduzir-se perante a sua vida instintiva e o seus pontos de vista devem, afinal, determinar que parte dos impulsos sexuais infantis precisa ser suprimida ou rejeitada como não-utilizável no seio do mundo cultural; […]o que é que deve ser encaminhado na direção da sublimação, para cujo processo todos os recursos disponíveis de educação precisam ser usados. Resumidamente podemos dizer que o analista deve esforçar-se por se colocar no lugar do Ego-ideal da criança por toda a duração da análise. (FREUD, 1926, p.75- 76). Como se percebe, a função do analista de crianças tem em Anna Freud um papel essencialmente pedagógico. Combinado ao papel de educador, o analista de crianças seria uma espécie de mediador de conflitos ao orientar os pais no sentido de corrigir alguma etapa do desenvolvimento anormal de seu filho. Se, de fato, notamos que o êxito pedagógico está fortemente associado a um vínculo positivo com o educador – uma pessoa aprende melhor quanto mais fácil for sua relação com o professor – é compreensível que, na visão de Anna Freud, o aparecimento de manifestações de hostilidade e agressividade (transferência negativa) fosse fortemente evitado, caso contrário todo o processo estaria comprometido. Este será um ponto bastante questionado pela proposta kleiniana, como veremos adiante. Completamente dependente dos vínculos parentais, e possuindo poucos recursos para “expressar-se livremente”, a criança, segundo Anna Freud, parece encarnar o ideal social moralizante que falávamos no primeiro capítulo deste trabalho. O espaço para a elaboração dos conflitos neuróticos na análise passa a ser substituído por um espaço onde a criança irá submeter-se à “ajuda terapêutica”, a fim de adaptar-se às exigências internas e externas. No texto de apresentação do livro Quando brincar é dizer de Eliza Santa Roza, o psicanalista Joel Birman afirma que:
Inserida em diferentes registros de minoria – cronológica, sexual, mental, lógica e jurídica – a infância ocuparia também uma posição de minoria na psicanálise, posto que inexistiria^4 um sujeito do inconsciente. As crianças não poderiam desfrutar do “ouro” da psicanálise, mas apenas do “cobre”, da liga metálica
(^4) Itálico nosso.
medida pedagógica e que analisemos a fundo os impulsos negativos dirigidos contra o analista.” (Klein, 1926, p. 20). Melanie acreditava que a dificuldade de uma psicanálise com criança não residia no fato de que a criança é “imatura” psiquicamente e, pelo fato de ser extremamente ligada aos pais, estivesse impossibilitada de transferir ao analista seu arranjo sintomático. O problema estava simplesmente em transpor um método utilizado no tratamento com adultos para a prática com crianças. A técnica do brincar surge então como um meio de expressão simbólico dos conflitos da criança e, através desse instrumento, o analista teria acesso e poderia intervir, via interpretação, no material fantasmático inconsciente dos pequenos pacientes.
A criança expressa suas fantasias, desejos e experiências de uma forma simbólica, através de jogos e brinquedos. Ao fazê-lo, utiliza os mesmos modos arcaicos e filogenéticos de expressão, a mesma linguagem com que já nos familiarizamos nos sonhos; a plena compreensão dessa linguagem só será obtida se dela nos acercarmos da maneira que Freud nos ensinou. O simbolismo constitui apenas uma parte dessa linguagem (KLEIN, 1932, p.30). Enquanto, para Hug-Helmuth e Anna Freud, o brincar era apenas um meio de conduzir a relação entre a criança e o analista, para Melanie Klein o brincar é, por excelência, a linguagem da criança. No tratamento, o brincar tinha um valor tanto revelador das angústias infantis quanto sublimatório e poderia ser encarado como um equivalente das associações livres do adulto. Além disso, a interpretação do material “negativo” e impulsos agressivos dos pacientes deveria ser um dos principais eixos do trabalho analítico, não o “cultivo dos afetos positivos” como defendia a perspectiva annafreudiana. Tal opinião se tornou uma das razões que levou Melanie Klein a transferir- se de Berlim para Londres em 1926, onde suas ideias eram mais bem aceitas. A morte prematura de Karl Abraham, em 1925, com quem Klein retomara seu processo de análise foi um adicional em sua decisão pela mudança para a Sociedade Britânica de Psicanálise. (King & Steiner, 1998). Vejamos então de que modo esses dois aspectos – o brincar e a interpretação dos impulsos negativos – serão temas centrais na clínica kleiniana, a partir da apresentação das principais construções teóricas da autora. Hanna Segal (1975), psicanalista contemporânea a Klein e adepta de suas ideias, no clássico livro Introdução à obra de Melanie Klein faz um apanhado
interessante da construção metapsicológica que fundamenta a escola kleiniana. Partindo da reformulação do conceito freudiano de fantasia, Melanie Klein parece extrapolar o movimento regressivo que a psicanálise realiza em direção ao originário ao conceber a ativação das fantasias primitivas – em um psiquismo rudimentar – a partir do evento do nascimento. “A primeira fome e o esforço instintual para satisfazer essa fome são acompanhados pela fantasia de um objeto capaz de satisfazê-la” (Segal, 1975, p. 24). Diante da experiência de desamparo inaugurada pelo nascimento, o bebê humano já teria condições de construir primitivas relações de objetos na fantasia, em virtude da instalação dos processos de prazer-dor. O seio materno torna-se então o primeiro objeto com o qual o bebê irá travar relações. Fonte de experiências de gratificação e frustração, de acordo com Melanie Klein, o seio será interpretado pelo bebê tanto como um objeto bom, que promove sua satisfação, quanto como um objeto mau, persecutório. Nesse momento inicial, as relações ainda pouco diferenciadas levam o bebê a conceber os acontecimentos da “realidade” como fruto de suas fantasias primitivas de onipotência. Assim, por exemplo, um bebê que adormece satisfeito com o simples movimento de sucção ou chupando os próprios dedos, dorme com a fantasia de ter, incorporado em si, o seio que dá o leite. Por outro lado, um bebê em desconforto, ao gritar e espernear furiosamente, fantasia que está atacando e destruindo o seio mau, porém “experimenta seus próprios gritos que o rasgam e o machucam como se o seio rasgado o estivesse atacando dentro dele próprio” (Segal, 1975, p.24). Interessante notar que a concepção kleiniana pressupõe no recém-nascido um grau de organização do ego capaz de tecer – impulsionado pelas exigências pulsionais e pela ansiedade – relações de significação na fantasia a partir do enfrentamento da realidade. Ou seja, a fantasia não é simplesmente um instrumento de defesa e fuga da realidade, como havia pensado Freud, mas um recurso indispensável ao próprio processo de pensamento que “não apenas contrasta com a fantasia, mas nela se baseia e dela deriva”. “O pensar poderia ser encarado como uma modificação da fantasia inconsciente, uma modificação efetuada de modo semelhante pelo teste de realidade.” (Segal, 1975, p.34). Segundo Melanie Klein, Freud suspeitava no ego primitivo do bebê essa capacidade de formar fantasias, pois o conceito de realização de desejo alucinatório implicaria tal organização psíquica. Embora sensivelmente frágil,
Vale ressaltar que na posição esquizo-paranóide o excesso de divisão ( splitting ) do ego e dos objetos parece ir de encontro à própria função integradora pela qual o eu é responsável. Contudo, é através desse mecanismo que a criança poderá organizar e distinguir suas impressões sensoriais e emocionais, unindo-as posteriormente quando do reconhecimento dos objetos totais numa próxima etapa. De acordo com Segal, esta importante expoente da escola kleiniana,
Com a divisão ( splitting) estão em conexão a ansiedade persecutória e a idealização. Naturalmente, ambas, se retidas em sua forma original na vida adulta, deformam o julgamento, mas alguns elementos da ansiedade persecutória e da idealização estão sempre presentes e desempenham um papel nas emoções adultas. Um certo grau de ansiedade persecutória é precondição para que se seja capaz de reconhecer, apreciar e reagir a situações verdadeiras de perigo em condições externas. A idealização é a base da crença na bondade de objetos e na própria bondade, e é precursora de boas relações de objeto.(…) persiste em várias situações, tais como o apaixonar-se, apreciar a beleza, formar ideais sociais ou políticos – emoções que, embora possam não ser estritamente racionais, aumentam a riqueza e a variedade de nossas vidas. (SEGAL, 1975, p.48). Uma precondição necessária à passagem da posição esquizo-paranóide para uma posição “relativamente” menos conturbada – a posição depressiva – é “que haja predominância das experiências boas sobre as más”. Quando isso ocorre, o ego é capaz de se identificar, de maneira mais firme, com o objeto ideal e com a bondade que o mesmo contém e, menos temeroso de sua própria ansiedade e agressividade (antes, maciçamente projetada), permite a aproximação entre objetos perseguidores e ideais, iniciando o processo de integração tanto dos objetos, quanto do eu. “Através da diminuição de mecanismos projetivos, há uma diferenciação crescente entre o que é eu (self) e o que é objeto. Assim prepara-se o caminho para a posição depressiva”. (Segal, 1975, p. 49) Prosseguindo em seu desenvolvimento, o bebê alcança o momento em que passa a relacionar-se com a mãe como objeto total, “não mais apenas com o seio, mãos, face, olhos da mãe, como objetos separados, mas com ela própria como uma pessoa total, que à vezes pode ser boa, às vezes má, presente ou ausente.” (Segal, 1975, p.81). Tal reconhecimento significa descobrir sua dependência em relação ao amor da mãe, aquela a quem o bebê se dá conta de que é capaz de amar e odiar revelando, assim, a ambivalência de seus próprios sentimentos. Essa mudança de posição em relação aos objetos provoca uma alteração “no foco das ansiedades do bebê”. Se na posição esquizo-paranóide o ego temia ser destruído
pelos vários objetos maus, na posição depressiva a criança é capaz de reconhecer seus impulsos agressivos e, portanto, teme que “seus próprios impulsos destrutivos tenham destruído ou destruam o objeto que ela ama e do qual depende totalmente”. (Segal, 1975, p.82). A descoberta de que a mãe – esse objeto agora percebido como independente – é capaz de afastar-se e manter outras relações, desperta no bebê o aumento da “necessidade de possuir esse objeto, de mantê-lo dentro e, se possível, de protegê-lo de sua própria destrutividade”, intensificando os processos de introjeção. No entanto, a urgente necessidade de introjeção do objeto bom, manifestada, por exemplo, na avidez dos impulsos orais do bebê, é acompanhada por poderosos impulsos destrutivos, o que leva ao surgimento de dois novos sentimentos: “o luto e o anseio pelo objeto bom – sentido como perdido e destruído – bem como a culpa , uma experiência depressiva que surge do sentimento de ter perdido o objeto bom através da própria destrutividade” (Segal, 1975, p.83).
A experiência de depressão mobiliza no bebê o desejo de reparar seu objeto ou seus objetos destruídos. Anseia por compensar o dano infligido a eles em sua fantasia onipotente, por restaurar e recuperar seus objetos amados perdidos, e por lhes dar de volta vida e integridade. (SEGAL, 1975, p.85)
Tais impulsos reparadores e os sentimentos de luto são considerados processos imprescindíveis ao desenvolvimento normal do psiquismo do bebê, pois constituem a base da criatividade e dos processos sublimatórios essenciais à organização do eu. É também nesse momento que os mecanismos psicóticos da divisão (splitting) gradualmente cedem lugar ao estabelecimento dos mecanismos neuróticos de recalque, inibição, deslocamento, de modo que a formação simbólica se tornará mais abstrata e complexa. “Se a realidade psíquica é experimentada e diferenciada da realidade externa, o símbolo é diferenciado do objeto; é sentido como tendo sido criado pelo eu( self), e este pode usá-lo livremente. (Segal, 1975, p.89). Por outro lado, se o processo de reparação falha e os sentimentos depressivos de culpa e perda não podem ser suportados, as defesas maníacas entram em cena. “O objeto então é tratado com desprezo, controle e triunfo (…), e os ataques sempre renovados aumentam tanto a destruição do objeto quanto sua retaliação vingativa, aprofundando assim as ansiedades depressivas” (Segal, 1975,
A criança expressa suas fantasias, desejos e experiências de uma forma simbólica, através de jogos e brinquedos. Ao fazê-lo, utiliza os mesmos modos arcaicos e filogenéticos de expressão, a mesma linguagem com que já nos familiarizamos nos sonhos. […] o simbolismo constitui apenas uma parte dessa linguagem. […] A análise infantil tem-nos demonstrado repetidas vezes quantos significados diferentes um simples brinquedo ou simples peça de um jogo podem ter. Só chegaremos a compreender plenamente seu significado quando conhecermos suas conexões ulteriores e a situação analítica geral dentro da qual se situam (KLEIN, 1932, p.30-1).
Esta passagem confirma a concepção do jogo/brincar como uma formação do inconsciente, semelhante ao material do sonho produzido pelo adulto. “Ao brincar, ela (a criança) age ao invés de falar”; sua ação tem o valor de palavras condensadas e deslocadas na atividade lúdica e, portanto, precisam ser liberadas na interpretação do analista. O brincar na sessão e todo o jogo transferencial deveriam então ser interpretados detalhadamente, a fim de diminuir a angústia da criança e possibilitar os meios para o prosseguimento da análise. Comentando o caso de um garotinho de três anos e nove meses, Melanie conta que a criança, logo no princípio de sua primeira sessão, após ter feito colidir duas carroças a cavalo de modo que as patas dos cavalos se chocassem, disse: “tenho um novo irmãozinho chamado Fritz”. Após perguntar-lhe o que estavam fazendo as carroças, a criança diz: “isso não fica bem”; para a brincadeira e, em seguida, recomeça só com os cavalinhos. Melanie Klein então interpreta: “Olha aqui, os cavalos são duas pessoas que estão se chocando uma com a outra”, ao que a criança, após retrucar, acabou admitindo: “sim são duas pessoas se chocando”, e acrescentou: “Os cavalos também se chocaram e agora vão dormir; agora estão mortos; eu os enterrei”. Na segunda sessão, a criança retoma a brincadeira e a analista resolve explicar-lhe que se tratava de duas pessoas – seu papai e sua mamãe – e que ele pensava que, ao ficarem batendo seus “negocinhos” um no outro, fizeram nascer seu irmãozinho. O garotinho protesta dizendo: “Não, isso não fica bem”; mas continua a embater os carros e, em seguida, volta a falar do irmão. (Klein, 1932, p.42-43). Neste exemplo clínico, podemos observar como a técnica kleiniana consiste em tornar “real” o mundo interno da criança através da interpretação. Há aí a crença em uma realidade “verdadeira” da relação com o objeto, relação “na qual o analista, agora personificado como um novo objeto, permite à criança uma
‘correção’ de suas fantasias primitivas, ao situar-se, por meio da interpretação, de uma forma diferente das imagos originais” (Santa Roza, 1999, p.122). Segundo a teoria kleiniana, o esclarecimento do material fantasístico – principalmente aquele referente aos impulsos agressivos – produziria a progressiva diminuição da angústia infantil e, consequentemente, uma minimização dos efeitos destrutivos do supereu, possibilitando assim uma constituição do eu menos persecutória e mais criativa. Sendo expostos os conflitos da criança através de seus jogos e fantasias, o analista pode então iniciar a interpretação do material. Contudo, se a criança apresenta-se muito tímida, resistente a brincar, ou mesmo desconfiada – indícios de transferência negativa – a interpretação se torna ainda mais necessária, pois permite “abrir a porta do inconsciente e diminuir a angústia suscitada, preparando, assim, o caminho para o trabalho analítico” (Klein, 1932, p.50). Klein relata ainda que, através da análise, muitas crianças chegam a tal moderação das exigências do supereu que podem até “rirem-se da ideia de uma vez terem querido engolir a mamãe ou picá-la em pedacinhos”, ou seja, o desenvolvimento do senso de humor parece surgir em consequência de um superego mais amável. Além disso, afirma,
A diminuição do sentimento de culpa que acompanha essas mudanças também permite a sublimação dos desejos sádicos que até agora estavam totalmente recalcados. Isto se verifica na remoção das inibições, tanto no brinquedo como nos estudos, e no surgimento de numerosas atividades e interesses novos (KLEIN, 1932, p.38).
O brincar infantil possui, portanto, um papel importante no desenvolvimento da capacidade da criança em apropriar-se da realidade e, apoiada nessas relações, promover o fortalecimento do ego dotando-o, de recursos criativos para lidar com as exigências externas e angústias internas. No entanto, Santa-Roza (1999) afirma que o modelo kleiniano de interpretação apresenta dois problemas: a equivalência entre jogo e associações livres e a vertente essencialmente imaginária de todo o sistema teórico e clínico. Ao desconsiderar o próprio movimento associativo da atividade lúdica, fica evidente a imposição de uma significação sistemática à criança em detrimento da singularidade expressiva do brincar, neste modelo. Melanie Klein chega a dizer que só através da interpretação sistemática, da análise contínua das resistências,
teóricos fortemente influenciados pelas ideias de Melanie Klein. Todavia, contrário ao dogmatismo que emanava do grupo kleiniano, logo se destacou ao apresentar sua teoria sobre os objetos transicionais, lançando novas ideias em relação ao brincar e ao desenvolvimento infantil.
Winnicott: a função do ambiente e o espaço transicional
D. Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, foi outra grande referência no campo da psicanálise com crianças. Centralizando a questão do desenvolvimento emocional do bebê e da construção do espaço subjetivo da criança nas primeiras relações de cuidado materno, o autor enfatizava a ideia de que o bebê já traz consigo capacidades inatas para o seu desenvolvimento normal. No entanto, será a qualidade da interação com o ambiente, num primeiro momento restrito à relação com a mãe, que definirá os rumos do desenvolvimento da criança. No artigo de 1967, O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil , ele diz: O enunciado puro é este: nas primeiras fases do desenvolvimento emocional do bebê humano, um papel vital é desempenhado pelo meio ambiente, que, de fato, o bebê ainda não separou de si mesmo. Gradativamente, a separação entre o não-eu e o eu se efetua, e o ritmo dela varia de acordo com o bebê e com o meio ambiente. As modificações principais realizam-se quanto à separação da mãe como aspecto ambiental objetivamente percebido. Se ninguém ali está para ser a mãe, a tarefa desenvolvimental do bebê torna-se infinitamente complicada. (WINNICOTT, 1967, p.153) Segundo Winnicott, no primeiro momento, a função ambiental é experimentada pelo bebê através do segurar, do manejar e da apresentação de objetos. A incapacidade inicial de sustentação corporal do bebê o coloca na posição de completa dependência de que algo, na realidade, alguém, apareça para minimizar algum desconforto que experimenta. Esse objeto que lhe é apresentado, de modo geral, a mãe, autentica “sua experiência legítima de onipotência”, pois a mãe é tida pelo bebê como uma continuidade sua, e essa ilusão permitida pela mãe estabelece os primórdios do psiquismo do bebê. “O resultado pode ser que o bebê seja capaz de usar o objeto e sentir-se como se esse objeto fosse um objeto
subjetivo, criado por ele” (Winnicott, 1967, p.154), o que pode explicar o sentimento de poder e onipotência, tão característico de crianças pequenas. Winnicott deu destaque a uma ideia presente já na teoria kleiniana: a da função criativa do bebê no surgimento do espaço subjetivo. Segundo ele, a mãe e, em seguida, os demais objetos que farão parte do contexto de interação são fruto da criatividade primária do bebê, e só num segundo tempo serão percebidos objetivamente como “externos”. Para dar conta dessa passagem que o bebê efetiva no processo de separar eu e não-eu, Winnicott criou o conceito de espaço transicional, uma área intermediária de experimentação entre “o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa primária e a projeção do que já foi introjetado, entre o desconhecimento primário da dívida e o reconhecimento desta (‘Diga: “bigado” ‘) (Winnicott, 1975, p.14). Neste espaço intermediário tudo acontece. Não é uma área em que há disputa entre o que é objetivo – o que acreditamos ser realidade externa, mas que de fato não deixa de implicar uma construção psíquica – e o que é interno, subjetivo. Para Winnicott é o terreno em que, a partir da relação com o outro e com os objetos que compõem o mundo humano, a criança poderá pensar, fantasiar, brincar. Desse modo, a capacidade de simbolização do bebê implica o estabelecimento de um espaço ilusório entre a realidade de suas exigências corporais e a mãe como objeto (externo) capaz de ser tomado como parte de seu próprio corpo, quando essas exigências são satisfeitas. A essa capacidade e disponibilidade da mãe, Winnicott denominou preocupação materna primária , uma certa loucura da mãe, necessária nos primeiros meses de vida do bebê, que aos poucos deve ir se diluindo, para possibilitar à criança distinguir-se da mãe e construir sua própria subjetividade.
[…] as mães, a não ser que estejam psiquicamente doentes, se preparam para a tarefa bastante especializada durante os últimos meses de gravidez, (…) desenvolvem uma capacidade surpreendente com o bebê, o que lhes possibilita ir ao encontro das necessidades básicas do recém-rascido, de uma forma que nenhuma máquina pode imitar, e que não pode ser ensinada. (WINNICOTT, 1956, p.30)
desenvolvimento das potencialidades do bebê, torna-se tanto fonte de identificação do bebê, quanto sinal da qualidade do ambiente que o acolhe e que, aos poucos, é percebido como separado de si, ou seja, percebido como externo. Referindo-se à relação de mães deprimidas e seus bebês, Winnicott (1967, p.155) afirma que: “A maioria das mães pode reagir quando o bebê está em dificuldades ou quando é agressivo, e, especialmente, quando doente.”. A saída agressiva em crianças pequenas pode ser lida então como uma possibilidade de alterar esse outro materno deprimido, ou mesmo indicar que a relação fusionada da criança com a mãe lhe impede de criar seu próprio espaço subjetivo separado da subjetividade e fantasias maternas. À medida que o mundo externo e as coisas reais vão sendo apresentados ao bebê em pequenas doses, através das relações deste com a mãe, a criança vai se tornando capaz de reconhecer as diferenças entre realidade e fantasia. Essa capacidade de localizar-se frente à realidade, objetivo de todo desenvolvimento subjetivo no humano, é acompanhado pela diminuição das angústias decorrentes da intensidade dos instintos agressivos e dos impulsos excitados de amor dirigidos tanto para o objeto quanto para o próprio eu.
É fácil compreender, portanto, até que ponto é essencial para um bebê ter sua mãe cuidando dele assiduamente durante certo período de tempo, sobrevivendo aos seus ataques e, finalmente, perto dele para ser o objeto do sentimento de ternura, do sentimento de culpa e o alvo de suas preocupações pelo bem-estar da mãe que se revelam com o decorrer do tempo. O fato dela continuar sendo uma pessoa viva, na vida do bebê, torna possível à criança constituir o impulso urgente para consertar, para recriar e para dar. (WINNICOTT, 1982 [1965], p.123)
Desta relativamente complexa relação com a mãe, a criança seguirá para a ampliação de suas relações sociais. Segundo o autor, “há uma evolução direta dos fenômenos transicionais para o brincar, do brincar para o brincar compartilhado, e deste para as experiências culturais” (Winnicott, 1975, p.76). Isto responde de algum modo, ao reconhecido fato de que a crianças sentem prazer nas brincadeiras; é que estas servem não só como “escoamento ao ódio e à agressão”, como também garantem a integridade da criança no momento em que o ambiente (os outros, as regras do jogo) é capaz de tolerar essa diversa e adversa intensidade emocional presente nas relações sociais. Afastando-se da concepção kleiniana, Winnicott vai afirmar que:
o elemento masturbatório está essencialmente ausente no momento em que uma criança brinca; quando uma criança está brincando, se a excitação física do envolvimento instintual se torna evidente, então o brincar se interrompe ou, pelo menos, se estraga (WINNICOTT, 1975, p.60). O potencial de suas ideias logo resultou em sua exclusão do grupo kleiniano, embora Winnicott reconhecesse a forte influência desta psicanalista no seu trabalho. D.Winnicott chegou a analisar o filho de Klein, mas a relação entre eles tornou-se ainda mais difícil depois que ela fez a “bizarra” proposta de supervisionar o trabalho que ele vinha realizando com seu filho. O estudo sobre os fenômenos transicionais viabilizou um novo olhar sobre o brincar. O brincar tem um lugar e um tempo , diz Winnicott_._ Não um tempo e lugar internos. Tampouco se localiza num tempo e espaço fora, o que equivale a dizer que “não constitui parte do mundo repudiado, do não-eu, aquilo que o indivíduo decidiu identificar (com dificuldade e até mesmo sofrimento) como verdadeiramente externo, fora do controle mágico” (Winnicott, 1975, p.62). Trata- se de um dispositivo que serve para controlar o que está fora e o que está dentro, fazendo. O autor nos lembra: “há que fazer coisas, não simplesmente pensar ou desejar, e fazer coisas toma tempo. Brincar é fazer” (Winnicott, 1975, p. 63).
A importância do brincar é sempre a precariedade do interjogo entre a realidade psíquica pessoal e a experiência de controle dos objetos reais. É a precariedade da própria magia, magia que se origina na intimidade, num relacionamento que está sendo descoberto como digno de confiança. Para ser digno de confiança, o relacionamento é necessariamente motivado pelo amor da mãe, ou pelo seu amor- ódio, ou pela sua relação de objeto, não por formações reativas. Quando um paciente não pode brincar, o psicoterapeuta tem de atender a esse sintoma principal, antes de interpretar fragmentos de conduta. (WINNICOTT, 1975, p.71)
Brincar significa, em Winnicott, um caminho para o desenvolvimento saudável. Na análise, a técnica lúdica possui também um valor curativo, e a participação ativa do analista na brincadeira com a criança pode ser comparada a uma sessão psicoterapêutica em que a história do paciente pôde ser pontuada pelo analista. As significações aparecem de maneira livre no brincar, de forma que o momento mais significativo da análise “é aquele em que a criança se surpreende a si mesma , e não o momento de minha arguta interpretação (Winnicott, 1971). Interpretação fora do amadurecimento do material é doutrinação e produz subimissão (1960a)” (Winnicott, 1975, p.75-6).