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Donald winnicott foi o primeiro pediatra a se dedicar à prática psicanalítica. Sua escrita oferece testemunho da relação dependente e vivificante entre vida e arte. Winnicott sublinhou a importância da relação entre mente e corpo, a evolução do indivíduo a partir das necessidades corporais e a importância do ambiente na formação da personalidade. Além disso, ele destacou a importância de lidar com a agressividade primitiva e a necessidade de criar condições para que a criança se desenvolva.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
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Ele é louco, mas é genial! (Decobert, apud Clancier & Kalmanovitch, 1984, p. 13, sobre Winnicott).
(...) um psicanalista como Winnicott mantém-se realmente no limite da psicanálise, porque tem o sentimento de que este procedimento não convém mais num certo momento. Há um momento em que não se trata mais de traduzir, de interpretar, traduzir em fantasmas, interpretar em significados ou em significantes (...). Há um momento em que será necessário partilhar , é preciso colocar-se em sintonia com o paciente , é preciso ir até ele partilhar seu estado. Trata-se de uma espécie de simpatia, de empatia, ou de identificação?” (Deleuze, 1973/1997, 322, grifos nossos).^34
Qual é a principal contribuição winnicottiana para o traçado de um conceito de corpo? Ou ainda, por que revisitar a obra de Donald Winnicott para pensar o gesto e o afeto na clínica contemporânea? Winnicott ressurge intensamente nas últimas duas décadas como um importante autor no cenário psicanalítico, em função da forma pela qual aborda a vida subjetiva. Podemos afirmar que o mesmo ocorre em relação a Ferenczi. Para dar conta dos chamados casos limítrofes , a teoria de Winnicott produz dois movimentos fundamentais que sugerem a transformação do olhar sobre o mundo e sobre as coisas. Primeiramente, ela dissolve a idéia de uma mente pensada em termos representacionais, isto é, aquela que espelha o mundo, destacada de um corpo, e também rompe com a afirmação de que o sujeito, via de regra, “representa” o seu entorno. Para Winnicott, não é o indivíduo que é o núcleo ou célula, mas o conjunto constituído pelo ambiente e pelo indivíduo. Assim, o centro de gravidade do ser tem bases num todo formado por esse par. O sujeito existe no mundo a partir do campo de afetações que se estabelece no “espaço intermediário” que, como veremos, não é, nem interior, nem exterior ao mundo e ao homem. Fica evidente um continuum não hierárquico entre o indivíduo e o ambiente. Uma perspectiva não dualista como essa refuta convicções em geral, sobretudo aquelas que estabelecem fronteiras entre interioridade e exterioridade, sujeito e objeto, e, para nós a mais cara, mente e corpo. Para escapar dessas armadilhas dicotômicas é necessário se deixar levar pelos ventos das artes e
(^34) Percebe-se essa modalidade de atendimento, a de se colocar em sintonia com o paciente, partilhar seu estado no manejo clínico, tanto em Ferenczi quanto em Winnicott.
propiciar um espaço para dimensão estética e afetiva da clínica. E o que seria essa dimensão estética? Se a mais simples tradução da palavra estética é “um estudo das condições e dos efeitos da criação artística”, em termos clínicos a obra de arte seria nada mais, nada menos, do que a vida^35 e suas condições, a “atmosfera” afetiva do setting experimentada pelos corpos ali envolvidos. Fazer da vida uma obra de arte é um projeto político de existência, que afirma a vida como potência de criação: pensar “a existência não como um sujeito, mas como uma obra de arte (...) esse último estágio, é o pensamento artista” (Deleuze, 1990/2003, p. 131). O trabalho de quem cuida se direcionaria, então, menos às pessoas e mais ao campo de afetação entre os corpos envolvidos na atmosfera clínica. Principalmente, se tivermos em mente a experiência da regressão aos estados iniciais ou impessoais do amadurecimento. Numa carta datada de 13 de novembro de 1946, dirigida a Ella Sharpe, Winnicott vacila em torno da possibilidade de que a psicanálise seja uma arte. “Quando a ouço falar da psicanálise como uma arte vejo-me em dificuldades, não desejando discordar completamente, mas temendo que se dê a esse seu comentário importância excessiva” (Winnicott, 1946/2005a, p. 14). Em outro momento, ele titubeia mais uma vez:
A idéia da psicanálise como uma arte deveria ceder seu lugar gradualmente ao estudo da adaptação ambiental referente à regressão dos pacientes. Mas enquanto o estudo científico da adaptação ambiental não se desenvolve, suponho que os analistas deverão continuar a agir como artistas em seu trabalho [ele quis dizer, num parágrafo acima, quando agem intuitivamente]. Os psicanalistas podem ser realmente bons artistas, mas (conforme perguntei diversas vezes): que paciente deseja ser o poema ou o quadro de alguém? (1954/2000, p. 389).
Essas frases resumem uma característica que acompanha toda a argumentação winnicottiana: um posicionamento intermediário de hesitação, que pode ora oscilar para uma afirmação, ora para uma negação. Nesse caso específico, de que a psicanálise seja, ou não, uma arte. De qualquer maneira, para ele, um indivíduo saudável é um artista que cria e recria o mundo a cada instante. “O estilo, em um grande escritor, também é sempre um estilo de vida, de maneira alguma uma coisa pessoal, mas a invenção de uma possibilidade de vida,
(^35) Ver também o texto deleuziano sobre os escritos de Foucault, intitulado “A vida como obra de arte”. In: Pourparlers: 1972-1990.
do viver. Um conceito que não tem utilidade para a vida fica sempre à margem da práxis, podendo se tornar totalitário^36 ou supérfluo. Nahman Armony (1998) nos apresenta duas maneiras de comunicar uma experiência que podem ser comparadas também com diferentes estilos teóricos. A primeira seria a “modelar”, que, por estar sempre rebatida num referencial intelectual para definir o seu objeto, perde a possibilidade de ser transmitida com vívida emoção. A segunda seria a “exemplar”, propositalmente sem contornos definidos, que carrega consigo uma abertura que destina ao leitor uma flexibilidade apresentada numa teoria mais móvel. Segundo Armony, a filosofia platônica é um protótipo de conhecimento modelar a partir do conceito de essência. Para Armony,
[a] comunicação modelar (...) promove um desvio que passa pelo conceito e que ao retornar à relação inter-sujeitos a empobrece e desvitaliza. No modo exemplar a teoria é móvel, modificando-se na medida em que novos acontecimentos vão sendo vividos e incorporados à experiência (1998, p. 14).
Assim, o autor nos apresenta duas facetas da linguagem: uma do tipo maleável, elástica e inventiva; e outra mais fechada numa burocracia formal. De acordo com o vocabulário filosófico deleuziano, a segunda poderia ser entendida como molar, e a primeira como molecular, matriz de uma língua menor^37. Na linguagem “exemplar”, “o leitor deve formar uma opinião (...) depois estudá-las tanto quanto possível através do seu desenvolvimento (...) [essa] é a única forma de uma teoria (...) mostrar-se inteligível e interessante” (Winnicott, 1990a, p. 60). Complementa Winnicott, num outro texto:
acho que é muito importante que seu trabalho [dirigindo-se à Melanie Klein, sem deixar de incluir o seu próprio] seja reafirmado por pessoas que façam descobertas à sua própria maneira e que apresentem o que descobrem na sua própria linguagem. É apenas desse modo que a linguagem será mantida viva (1952/2005, p. 43).
(^36) “O totalitarismo propagou-se nos tempos mais recentes da civilização industrial sempre que os interesses de dominação prevaleceram sobre os de produtividade, chamando a si e desviando suas potencialidades (Marcuse, 1955/1986, p. 88). As potencialidades das quais nos fala Marcuse, chamamos aqui de potencial criativo. 37 Para Deleuze e Guattari, língua maior é aquela “centralizada, padronizada, língua de poder, maior [molar] ou dominante” (1980/2002, p. 45). Os autores sugerem que “cada um deve encontrar a sua língua menor [molecular] (...) é a força dos autores que chamamos “menores” (...) É em sua própria língua que se é bilíngüe ou multilíngüe” (p. 51). Portanto, consideramos Winnicott e Ferenczi, nesse dialeto, dois autores menores, por gaguejarem nas suas próprias línguas. Acrescentamos que a língua maior, molar, se aproxima do que Armony chama de modelar, enquanto que a língua menor, molecular, da exemplar.
Segundo Winnicott, para inventar uma língua própria, seria necessário destruir aquela que a antecedeu. Sobre Winnicott, e o seu estilo exemplar , é interessante imaginar e apontar resumidamente o seu percurso, já que a sua formação de base foi em medicina. Na época, ainda não havia a especialidade em pediatria, mas era essa a sua área. Parece que as crianças têm muito para ensinar e, junto a elas, Winnicott abriu as janelas para um novo mundo dentro da psicanálise. Mesmo sem negar a influência de seus mestres diretos e indiretos, Winnicott não verteu a sua pesquisa sobre uma teoria pronta, mas foi a sua própria experiência que lhe serviu de sustentação para criar novos paradigmas. Depois de muito observar os bebês e suas mães, ele elaborou a chamada “teoria do desenvolvimento emocional primitivo”, que deu título a um artigo que marca um movimento tangencial no que se refere à prática psicanalítica clássica. No entanto, dois pontos devem ser ressaltados: Winnicott não se considera autor de uma nova técnica e tampouco achava necessário qualquer alteração no modelo proposto por Freud para um trabalho de análise bem-sucedido. De forma sub-reptícia, ele parece abrir mão dessa autoria. O seu trabalho “foi uma progressão natural para a psicanálise, envolvendo uma nova compreensão, mas não uma nova técnica” (Winnicott, 1945/2000, p. 219). Para Winnicott, a técnica clássica já seria suficiente para precipitar elementos primitivos na cena clínica, a partir de mudanças na situação de transferência. As mudanças as quais sugere estão na esfera do manejo , que podem acontecer também em estágios de regressão a um “(...) ponto em que haviam falhado na primeira infância, exigiam [os pacientes] um ambiente de apoio como um corretivo de onde poderia ser retomado o desenvolvimento” (Rodman, 2005. p. 38, grifo nosso). Concordamos com Rodman que, para lidar com os estágios de regressão em análise, temos que fornecer um ambiente consistente, que sirva de amparo para o analisando, a partir de uma atitude mais afetiva e menos insípida diante de seu sofrimento. Porém não com o intuito de corrigir algo, como se fosse possível uma obturação, nem de retomar um determinado momento da vida do paciente, mas, talvez, de propiciar outros começos, que não fossem falhos em sua precocidade e sua precariedade.
Psique, soma e mente não são fragmentos do organismo humano, exteriores uns aos outros e colocados como peças de uma engrenagem imaginária. Fraccionar intelectualmente a psique-soma em “partes” é uma forma cômoda de isolar facetas de relação organismo-meio, relevantes para certos propósitos em certos contextos (Costa, 2004, p. 106).
Outros pontos de coincidência entre Winnicott e Ferenczi a serem destacados são: a qualidade da escuta no setting ; a disponibilidade oceânica do analista em perceber a criança que está presente em todo adulto, que inclui a técnica da regressão ; e, ao que tudo indica, a sustentação do paradoxo, já que a sua solução implicaria a perda de seu valor.
Os paradoxos desvanecem o sentido único. São entidades escorregadias por serem impossíveis, e opacas por serem oscilantes. Escapolem do princípio de contradição porque se caracterizam pela afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo (...). O paradoxo dissolve a solidez do sentido e é a semente do indiscernível. Exprime o sensível incondicionado e, como paixão do pensamento, estabelece que não pode ser instaurado em um único sentido, mas sim que a linguagem o carrega para o imprevisível e irreconciliável (Cangi, 2005, p. 24 e 25).
De fato, falar de “previsibilidade”, no que se refere ao encontro que se estabelece na clínica e no ambiente maternante, é cair em normas que nem sempre, ou nunca, dão conta dos acasos que brotam dessas situações. Ademais, o laboratório de Winnicott foi a sua prática, que, certamente, o estimulava ao improviso. Winnicott foi o primeiro pediatra a enveredar para a prática psicanalítica (Phillips, 1988/2006, p. 27). É interessante assinalar que ele nunca abandonou a pediatria em prol da psicanálise. Sem dúvida, esse fato aparece ora escamoteado, ora mais evidente, nas suas produções. O contato contínuo com a clínica pediátrica o levou a observar cada vez mais profundamente o comportamento entre os bebês e as suas mães, tornando-o cada vez mais íntimo da misteriosa atmosfera que reina no mundo interpessoal do bebê. A própria percepção do corpo do bebê é contaminada pelo seu olhar atento, curioso e perspicaz, essencial não só para um pesquisador como para aquele que pretende cuidar do outro.
(...) Winnicott não vê nenhum contra-senso em permanecer psicanalista ao mesmo tempo em que, apoiado na sua experiência paralela com bebês e com psicóticos (...). Imposto pelos novos fenômenos clínicos, esse questionamento visa pôr em pauta diferenças teóricas na concepção de doença e saúde psíquicas, fundadas, por sua vez, nas diferenças conceituais sobre psiquismo e natureza humana (Dias, 2003, p. 76).
Nota-se, portanto, uma dupla afetação: o olhar de pediatra presente no psicanalista Winnicott e vice-versa. O fato de ter trabalhado durante muitos anos como pediatra, e também com psicóticos, irradia por toda a sua obra. Tornou-se um apreciador dos paradoxos, pois somente de forma paradoxal é possível lidar com o sofrimento humano. “O amante dos paradoxos é aquele que resiste a escolher o próprio bando porque não quer ser determinado por propriedades calculáveis. Brinca com as idéias sem negar que as nominações reais possam ser ditas” (Cangi, 2005, p. 25, grifo nosso). Não foi à toa que, não conformado, Winnicott se juntou ao “grupo do meio”, cujos integrantes se pretendiam independentes de qualquer filiação. Seria muito afirmar que sua produção é plasmática variando conforme o contexto onde é aplicada? Tendo em vista que ele proferiu palestras para as mais diversas áreas de conhecimento: matemáticos, educadores, pediatras, assistentes sociais, e psicanalistas – podemos chegar a uma resposta afirmativa. Grande parte de sua obra foi compelida a partir dessas falas, conferindo-lhe um tom ensaístico. Esse gênero discursivo parece estar mais próximo de uma polifonia, ou ainda uma espécie de texto “para o fora”. Para Sibília, “uma escrita diletante, que se abre aos labirintos intertextuais (...)” (2002, p. 21). Para adentrar nesses labirintos, é preciso ter coragem (que etimologicamente se aproxima de “cor agir”: agir com o coração), sabendo que jamais sairemos incólumes dessa experiência, que é também estética. “A escrita de Winnicott, comparada à de todos os psicanalistas, é a que melhor presta testemunho da relação mutuamente dependente e vivificante da vida e da arte” (Ogden, apud Luz, 2007, p. 19). Sua teoria é um sintoma, um testemunho , uma plasticidade textual de seus afetos.
Os discursos pedagógicos proferidos por Winnicott em programas de rádio evidenciam uma artimanha em tratar de um assunto tão complexo num linguajar acessível a qualquer pessoa. Suas recomendações não eram privilégio para poucos, ao contrário_._ “Escreveu como falava: com a simplicidade e com o objetivo de relatar. Não de convencer ou doutrinar” (Khan, 2000, p. 12). “O dogmatismo de um sistema aplicado sobre a realidade viva; destacado da experiência que a viu nascer, a teoria perde o seu sentido e se transforma em doutrina” (Geets, apud Dias, 2003, p. 29). Vimos aí uma familiaridade entre o sistema que visa a doutrinar e a linguagem “modelar” acima citada
final, continua aberto para futuras indagações. Não existe uma falta de ordem, nem de rigor, mas o seu modo de organização é paradoxal e inexato. A sua percepção não progressiva do acontecer emocional é fruto dessa maneira de construir uma teoria, e vice-versa. A própria noção de desenvolvimento que transita por toda a sua obra não está implicada numa progressividade: princípio, meio e fim. Os estágios winnicottianos se interpenetram e paradoxalmente não se completam. Winnicott percebe o indivíduo como uma multiplicidade e não como uma totalidade^39 encerrada. Para ele, a derradeira marca da saúde, que jaz na idéia de completude, não faz parte da vida. As tarefas que decorrem da tendência ao amadurecimento nunca se dão por concluídas. Tanto em Ferenczi, quanto em Winnicott, a vida é marcada por lutas sem fim que incluem o devir, isto é, acontecimentos. Compactuamos^40 com Dias, quando afirma:
Considero-o [o termo amadurecimento] preferível a “desenvolvimento” ou “maturação”, pois estes termos costumam ser usados (...) de forma indiscriminada (...). Além disso, a língua inglesa não tem, como o português, um verbo como “amadurecer”, que, a meu ver, guarda o sentido eminentemente pessoal que Winnicott confere a esse processo (Dias, 2003, p. 93).
A obra winnicottiana pode ser considerada um “rizoma” em que se agenciam as invenções conceituais. O conceito de “rizoma” vem de encontro ao pensamento arbóreo cartesiano, que pressupõe uma origem, um meio, quer dizer, um centro e um fim. O rizoma funciona por proliferação e não exatamente por ligação. Para Deleuze e Guattari, o pensamento da diferença não é arborescente, é rizomático:
(...) diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza (...). Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio [em Winnicott, um entre ] pelo qual ele cresce e transborda (Deleuze & Guattari, 1990, p. 32, grifos nossos).
(^39) O autor utiliza a expressão “pessoa total” (1975, p. 46) para caracterizar um determinado estágio do desenvolvimento, e não uma totalidade, já que nomeamos este estágio de rumo à independência, que traz em si a idéia de processo e não de completude. 40 Embora, porventura, possamos utilizar, no decorrer do texto, os termos “amadurecimento” e “desenvolvimento”, descartamos uma possível tradução dos mesmos, calcada numa dimensão progressista, privilegiando, assim, um sentido que inclui o devir.
Como Ferenczi, Winnicott pode ser considerado um pensador que marca com a sua postura um diferencial prático e teórico. Para direcionar os seus escritos, Winnicott fazia uma espécie de bricolage^41 , um trabalho manual, ou ainda, um mosaico, contendo pedaços de sua autoria e outros não. O exemplo do mosaico é interessante, pois ao terminar a obra de arte, com os pequenos pedaços colados entre si, já não se sabe mais o que pertence a quem, ou seja, uma espécie de caleidoscópio que sugere a morte do autor , tão cara e preciosa para quem pratica a escrita, e por que não dizer, para quem experimenta os processos de criação. Sem deixar de mencionar que, mesmo aparentemente completo, o mosaico tem pequenos espaços entre as peças, sugerindo a sua incompletude. A imagem do mosaico vem corroborar com a idéia filosófica de que os conceitos não têm um contorno regular. E, justamente por isso, não são passíveis de formar um encaixe de quebra-cabeça^42 (Deleuze & Guattari, 1991/2005, p. 35). Numa carta para Melanie Klein, referindo-se de forma crítica a uma frase da “sra. Riviere”, Winnicott escreve: “dá a impressão^43 de que há um quebra- cabeça do qual existem todas as peças; o trabalho adicional consistirá apenas em juntá-las” (1952/2005a, p. 44). O autor nos participa sua maneira de trabalhar, que, embora possa sugerir, não forma um quebra-cabeça, pois os encaixes, em função de seus “contornos irregulares”, não se dão de forma precisa: “O que acontece é que saio catando isso e aquilo, aqui e acolá, concentrando-me na experiência clínica, formando as minhas próprias teorias e então, depois de tudo, me interesso em descobrir de onde eu roubei o quê” (Winnicott, 1945/2000, p. 218).
(^41) Sobre o bricoleur, ver Deleuze & Guattari, 1972, p. 22. (^42) “Os conceitos, como totalidades fragmentárias, não são sequer os pedaços de um quebra-cabeça, pois seus contornos irregulares não se correspondem. Eles formam um muro, mas é um muro de pedras secas e, se tudo é tomado conjuntamente, é por caminhos divergentes. Mesmo as pontes, de um conceito a um outro, são ainda encruzilhadas, ou desvios, que não circunscrevem nenhum conjunto discursivo. São pontes moventes” (Deleuze & Guattari, 1991, p. 35 e 36); as vezes até movediças, daí a necessidade de uma certa “prudência” no ato de derrubar ou atravessar um muro ou uma encruzilhada conceitual. Veremos mais adiante que a prudência tem um íntimo parentesco com a experiência do 43 concern. O que lhe deu essa impressão de um quebra-cabeça foi a seguinte frase de Riviere: “Klein produziu na verdade algo novo na psicanálise: a saber, uma teoria integrada que, embora ainda esquemática, leva em consideração todas as manifestações psíquicas, normais e anormais, do nascimento à morte, e não deixa nenhum golpe intransponível e nenhum fenômeno que se destaque em relação inteligível com o resto” (apud Winnicott, 1952/2005a, p. 47).
o cuidado materno facilitador do que para possíveis opressões provenientes da vida instintiva sexual, isto é, para o cuidado emocional em detrimento do desejo sexual. Integrante do Grupo do Meio, também chamado Grupo dos Independentes, Donald Winnicott fez gaguejar o saber psicanalítico, inventando a sua própria maneira de trabalhar, como já mencionado, sob a égide de uma língua menor. É curioso o nome desse grupo, que já carrega em si um posicionamento, mas que não é estático. Seus integrantes se situavam entre correntes de pensamentos, e foi justamente nesse entremeio que nasceram novos conceitos, principalmente o de “espaço intermediário”.
Comprometidos com o pluralismo em vez de adoração de heróis, suas obras [dos analistas do Grupo do Meio] se aglutinam em volta de um modelo de desenvolvimento mais eclético. Vindas (...) de uma tradição empírica não dialética, elas são caracterizadas por um interesse na observação e na empatia, desconfiança em relação à abstração e ao dogmatismo (...) (Phillips, 1988/2006, p. 133).
Winnicott fazia parte da Sociedade Britânica de Psicanálise entre os anos de 1928 e 1938, deixando a sua marca nas pesquisas desenvolvidas nessa época. Notadamente influenciado por Melanie Klein acerca da importância do jogo no setting analítico, Winnicott constrói a sua própria teoria do brincar , ou ainda, uma teoria que nos leva a brincar ao criar conceitos. Winnicott, em uma carta já mencionada, dirige-se da seguinte forma à sua mestra: “Suas idéias só viverão na medida em que forem redescobertas e reformuladas por pessoas originais, dentro e fora do movimento psicanalítico. É claro que é necessário para você ter um grupo no qual possa se sentir em casa” (Winnicott, 1952/2005, p. 44). E, sem dúvida, Winnicott é uma dessas pessoas. Sua originalidade é fruto de um questionamento de modelos, que envolve o ato de destruir criativamente. “(...) Winnicott variou os temas kleinianos de modo a simultaneamente se inscrever neles e se diferenciar” (Ab’Saber, 2006, p. 13). O discípulo bom o bastante mostrou-se mais poroso aos acontecimentos sociais e históricos e “menos unidirecional frente às dimensões do mundo interno de Klein” (Ab’Saber, 2006, p.14). Ou seja, tanto o mundo externo (histórico, político e social) quanto o interno são igualmente importantes no que se refere ao manejo clínico. Mesmo
porque, nos estágios de regressão em análise, não é possível separar o que é dentro do que é fora do sujeito, pois ainda não se instalou o sentimento do Eu-sou. Diferentemente daquela que, além de uma de suas grandes mestras, foi também sua supervisora durante cinco anos, Winnicott considera que o importante não é o conteúdo da brincadeira, ou o que ela supostamente representa, mas sim o ato de brincar em sua apresentação. Winnicott afirma ainda que o brincar pode estar relacionado à capacidade de concentração nos adultos (1975, p. 59). O autor faz uma distinção sutil entre o substantivo brincadeira e o verbo brincar , ou seja, para ele, o que importa é o brincar em si , infinitivo e intransitivo, descartando uma suposta interpretação da brincadeira. O brincar em Winnicott não diz respeito nem a uma excitação física (1975), o que poderia estragar a brincadeira, nem a uma sublimação. Com a polidez tipicamente inglesa, diz Winnicott:
Não se trata de uma crítica a Melanie Klein (...). Fazemos um simples comentário sobre a possibilidade de que (...) o psicanalista tenha estado mais ocupado com a utilização do conteúdo da brincadeira do que olhar a criança que brinca e escrever sobre o brincar como uma coisa em si (Winnicott, 1975, p. 61).
O movimento do corpo na realidade ou num desenho, por exemplo, é uma dimensão imanente do brincar. Segundo Gil, “construir um gesto dançado releva um processo que não difere muito do de traçar um desenho” (Gil, 2002, p. 136). Nesse sentido, a clínica é um playground , onde se valoriza o que surge da experiência clínica no brincar, em outros termos, o uso afetivo que a criança faz desse acontecimento. Winnicott nos leva a pensar que o brincar se evidencia tanto nas análises de crianças quanto de adultos. “Manifesta-se, por exemplo, na escolha das palavras, nas inflexões de voz e (...) no senso de humor”. De forma extremamente elegante e sub-reptícia, Winnicott atravessa as paredes dos aquários mornos da psicanálise clássica. Segundo Massud Khan (2000), “Winnicott ouvia com o corpo todo e tinha um olhar penetrante (...) uma espontaneidade infantil impregnava os seus movimentos ” (p. 13, grifos nossos). Acrescento que a sua presença corporal é endossada pela maior parte de seus comentadores. Não foi em vão que Winnicott também recebeu deles o apelido de equilibrista, clown e franco atirador,
(...) me sinto relutante em dar início a uma técnica (...). Seria uma derrota do principal objetivo do exercício, caso devesse surgir algo estereotipado (...). A liberdade absoluta é essencial para que cada modificação, se adequada, possa ser aceita. Talvez um traço distintivo seja não tanto o uso do desenho, mas a participação livre do analista que atua como psicoterapeuta (1954/2005, p.85).
As nuances dos desenhos também apresentam movimentos, que incluem o prazer e a expressão do corpo, conjugam passado e presente num instante, num aqui e agora, e não necessariamente um material para interpretação. Sabe-se que Winnicott foi contemporâneo de uma época de grandes mudanças no campo da medicina. A psiquiatria infantil, por exemplo, em seus primórdios, além de ter como referencial a psicopatologia dos adultos, evidenciava uma grande preocupação com os fatores hereditários, negligenciando, assim, a importância do ambiente na etiologia dos distúrbios psicossomáticos; e, o que é pior, estava com a sua atenção mais voltada para as doenças do que para as pessoas. A partir do pensamento winnicottiano, procede afirmar que,
as doenças psíquicas, às quais costuma ser atribuído um caráter hereditário ou constitucional, não são doenças no sentido usual do termo. Esta hipótese etiológica não é aceitável nem quando a constituição é pensada em termos psicológicos, como é o caso da psicanálise tradicional. A psicose não se define nem pela herança de algum processo degenerativo familiar nem é fruto de uma constituição desequilibrada das forças pulsionais (Dias, 2003, p. 73).
Os conceitos criados por Winnicott estavam atrelados ao momento sócio- histórico que ele vivia, e não podem ser explicitados a não ser em função desse contexto. Temos como exemplo clássico as crianças com as quais trabalhou, que sofreram as conseqüências da ausência dos pais em função do afastamento de seus lares durante a Segunda Guerra Mundial. Winnicott teve a sutileza de perceber que, para alguns de seus pacientes, seria melhor estar longe de casa, com um cuidado especial, do que em seus lares conflituosos. Foi justamente nessa época que surgiu uma maior preocupação de Winnicott com o trato jurídico em relação à pessoa delinqüente ou anti-social: “Parece-me que há certos tipos de crime em que a sociedade está pronta para tratar em vez de punir – a homossexualidade, por exemplo, e as perversões em geral, a tentativa de suicídio, o infanticídio” (1950/2005a, p. 30). O autor só não foi feliz aí ao abrir uma possível brecha para uma comparação entre o homossexual e um criminoso.
Ainda em relação às questões políticas e sociais, que incluem possíveis reformas nos esquemas manicomiais, Winnicott formula uma crítica confessa sobre a prática da lobotomia comumente adotada nessa época, não se dispondo a “assumir a responsabilidade por transformar a pessoa que sofre em alguma outra coisa, num ser humano parcial que não sofre, mas que tampouco é a pessoa que foi trazida para o tratamento” (Winnicott, 1990a, p. 71). Outro fato importante foi a sua inspiração na teoria de Darwin sobre a origem das espécies. Se a espécie para sobreviver deveria se adaptar ao ambiente, em Winnicott, para que a criatividade, sinônimo de saúde, não se torne inibida, é o ambiente que deve se afinar com o indivíduo. Após examinar alguns trabalhos de Winnicott a respeito da técnica psicanalítica, veremos a sua utilidade no que se refere ao manejo numa prática atual, tendo como foco a importância do corpo e a sua linguagem gestual no âmbito clínico.
3.1. O acontecimento emocional em Winnicott
Dias (2003) subdivide a obra de Winnicott em três momentos:
(...) deixando de lado os textos da década de 1930, em que ele escreve como pediatra, pode-se distinguir três fases na sua obra: a que vai de 1940 até a publicação, em 1951, do artigo seminal sobre os objetos transicionais; a fase da década de 1950, em que a decisão de desenvolver sua própria perspectiva teórica fica mais explícita; e, finalmente, a fase que começa na década de 1960, sobretudo com a publicação do artigo “A integração do ego no desenvolvimento da criança” de 1962, no qual ele introduz os conceitos centrais de tendência inata ao amadurecimento e de objeto subjetivo (Dias, 2003, p. 18). Comentadora atenta e precisa da obra winnicottiana, Dias complementa o seu argumento, numa nota de pé de página, afirmando que embora desde a década de 1940 já fosse evidente o seu diferencial diante da técnica mais tradicional, Winnicott só se sentiu mais livre para propagar a sua postura teórica após o falecimento de Melanie Klein em 1960. Podemos concordar com a autora, no que se refere à subdivisão da obra winnicottiana em três etapas, ressaltando que, tal como ocorre nas fases do desenvolvimento emocional, não podemos pensá-las separadamente, mas num fluxo rizomático , contínuo e dinâmico, no qual as divisões são estabelecidas para
seja, pacientes que já adquiriram um status de unidade e o sentimento de concern. Ainda que alguns casos anti-sociais possam estar aí inclusos, o mais importante é a sobrevivência do analista aos seus ataques vorazes_._ Os tipos anti-sociais também poderiam ser “adequados” à técnica clássica. Finalmente, Winnicott vai incluir no terceiro grupo os pacientes que precisam de um manejo que inclua a possibilidade de regressão em análise. Neste caso, o trauma ou a falha ambiental se deu antes do estabelecimento da noção espaciotemporal e da personalidade como uma entidade, isto é, no estágio da dependência absoluta , quando ainda não existia relação, mas sim fusão mãe-bebê- ambiente. Aí encontramos um tipo de material que não se enquadra nos modelos tradicionais da teoria psicanalítica.
Para mim o termo regressão indica simplesmente o contrário de progresso. Esse progresso em si mesmo consiste na evolução do indivíduo, psicossoma, personalidade e mente junto com (eventualmente) a formação do caráter e socialização. (...) percebemos imediatamente que não pode existir uma simples reversão do progresso. Para que esse progresso seja revertido, é preciso que haja no indivíduo uma organização que possibilite o acontecimento de uma regressão (Winnicott, 1954-5/2000, p. 377).
Nesse caso, o cuidado com a forma de se comunicar com o paciente deve ser redobrado pelo analista, para não adotar uma postura invasiva, tal qual o ambiente que falhou. Além disso, Winnicott percebe que existem dois tipos de regressão no que diz respeito ao amadurecimento: “um deles retrocedendo para uma situação anterior de falha, e o outro para uma antiga situação de êxito” (Winnicott, 1954/2000, p. 379). Winnicott assinala que pode haver uma confusão de línguas para descrever uma época do desenvolvimento, isto é, “a linguagem que serve para descrever um estágio torna-se errada quando usada para outro (...)” (Dias, 2003, p. 2). Para Winnicott, existe uma tendência inata à maturação, o que, no entanto, não reduz o amadurecimento ao seu aspecto biológico. Para um bom funcionamento psicossomático, faz-se necessária uma série de fatores ambientais. Os estados iniciais formam as bases da personalidade e da saúde psíquica. A relação que a criança vai estabelecendo com o mundo – através de seu corpo e de sua capacidade intensiva de afetar e ser afetada pelos objetos e pelas pessoas – está intimamente implicada na qualidade das primeiras experiências com o
ambiente, representado e apresentado, inicialmente, em pequenas doses pela mãe (Winnicott, 1982). As experiências do bebê vão estar impressas no seu corpo como microcicatrizes, imperceptíveis , porém determinantes no conduzir de sua vida. O tempo de gestação também vai influenciar no desenvolvimento infantil, Winnicott percebeu grandes diferenças entre bebês prematuros e pós-maduros.
Sugiro que, ao final dos nove meses de gestação, o bebê torna-se maduro para o desenvolvimento emocional, e que se um bebê nasce depois do tempo, ele atingiu este estádio no útero, forçando-nos a considerar seus sentimentos antes e durante o nascimento. Por outro lado, um bebê prematuro não vivencia muitas coisas importantíssimas até alcançar a época em que deveria nascer (...) (1945/2000, p. 222).
As necessidades ambientais e a maneira como foram supridas vão acompanhar o indivíduo desde esses primeiros momentos, até que surja a morte “como derradeira marca de saúde”. Quando o autor afirma “eu quero estar vivo na hora da minha morte”, ele quer dizer que estar vivo depende do sentimento de sentir-se real e de que a vida vale a pena. Quando o que predomina é um sentimento de futilidade e uma falta de sentido para a vida, a pessoa sobrevive, mas não existe criativamente no seu estar no mundo. Nesse sentido, a saúde não se restringe a um bom funcionamento (silencioso) dos órgãos: a vida deve ser digna de ser vivida. Winnicott aproxima as dificuldades iniciais do bebê às sentidas pelos indivíduos que apresentam distúrbios esquizofrênicos. O comportamento psicótico seria proveniente de um desvio no processo de maturação ou, se quisermos, de um corte abrupto na linha de continuidade do ser ( continuity of being ), e, nos bebês, por sua evidente imaturidade, fragilidade e dependência absoluta de um ambiente adaptado. Daí a importância de um estudo profundo das primeiras relações entre o indivíduo e o ambiente para o tratamento de distúrbios emocionais delas oriundos. Para pintar o quadro sobre o desenvolvimento emocional, Winnicott se baseou em sua experiência pediátrica e teve como inspiração o comportamento de uma “mãe dedicada comum”. Segundo Winnicott, a organização psíquica interna da criança vai se dando de acordo com a qualidade ambiental provida nesse início pela mãe. E a mãe funciona como um importante operador nesse processo, mas o